Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
470/18.0TXPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA NATÉRCIA ROCHA
Descritores: CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL
FINS DAS PENAS
LEI DA NACIONALIDADE
REABILITAÇÃO
Nº do Documento: RP20200212470/18.0TXPRT-A.P1
Data do Acordão: 02/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Registo Criminal, tendo embora um efeito preventivo, não deve e não pode promover a estigmatização do condenado e não deve ser meio de evitar a sua socialização, contrariando a finalidade das penas.
II - O 6.º, alínea d), da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 03.10), tem que ser interpretada não isoladamente, mas à luz de todo o ordenamento, desde o direito internacional acolhido na ordem interna, o direito constitucional e, bem assim, o ordenamento ordinário de igual valor, não podendo em especial desconsiderar o direito à reabilitação.
III - A reabilitação é aplicável a todos os tipos de crimes, a todos os condenados e a todos os tipos de sanções (portanto, incluindo os que resultam em penas de prisão iguais ou superiores a 3 anos), decorrência natural da crença na capacidade de ressocialização, e do entendimento de que devem apenas impedir a reabilitação motivos de defesa social imposta pela perigosidade do agente.
(da inteira responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 470/18.0TXPRT-A.P1
Tribunal de Origem: Tribunal de Execução de Penas do Porto
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
No âmbito do Processo de cancelamento provisório do registo criminal n.º 470/18.0TXPRT-A a correr termos no Tribunal de Competência Alargada de Execução de Penas do Porto referente a B… foi decidido determinar o cancelamento (condicional) provisório total nos certificados de registo criminal a si respeitantes e a emitir no âmbito do disposto no art.º 10.º, n.ºs 5 e 6 da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio (Lei da Identificação Criminal), das decisões que deles deveriam constar, para os efeitos pretendidos.

Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 212/222 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das conclusões seguintes (transcrição):
1. O presente recurso vem interposto da decisão do Mmo. Juiz proferida em 05.07.2019, que deferiu a pretensão do requerente B… e, em consequência, determinou o “cancelamento (condicional) provisório total nos certificados de registo criminal (…) a emitir no âmbito do disposto no art. 10º, nº 5 e 6 da lei 37/2015, de 5 de Maio (Lei da identificação criminal), das decisões que deles deveriam constar, para os efeitos pretendidos”, no caso para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa.
2. O Ministério Público não se conforma com esta decisão, uma vez que o Mmo. Juiz, ao decidir como decidiu, procedeu a uma incorreta interpretação do direito, como a seguir explanaremos.
3. Do registo criminal do requerente B… consta averbada uma condenação de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução e declarada extinta em 10.05.2018, pela prática de um crime de auxílio à imigração ilegal e um de casamento de conveniência.
4. Esta condenação, no âmbito do proc. 1436/07.1TAGDM, foi por factos cometidos entre janeiro de 2007 e setembro de 2008, e, como se refere no douto acórdão condenatório, quanto ao crime de auxílio à emigração legal o tipo foi preenchido por dez vezes, e, quanto ao casamento de conveniência, o requerente B… organizou oito casamentos e serviu de intérprete em mais dois.
5. Ora, o Ministério Publico entende que a pretensão do requerente não deveria proceder por duas ordens de razões, quais sejam, a de impossibilidade legal e, caso assim se não entenda e sem prescindir, a da não verificação do conceito de readaptação no caso concreto.
6. Dispõe o art.º 229º do CEP que “para fins de emprego, público ou privado, de exercício de profissão ou atividade cujo exercício dependa de título público (…) ou para quaisquer outros fins legalmente permitidos, pode ser requerido o cancelamento, total ou parcial, de decisões que devessem constar de certificados de registo criminal emitidos para aqueles fins”.
7. Por sua vez o art.º 10º, nº 6 da Lei 37/2015, de 05.05, refere “Os certificados de registo criminal requeridos por pessoas singulares para o exercício de qualquer profissão ou atividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou avaliação da idoneidade da pessoa, ou sejam requeridos para qualquer outra finalidade, contêm todas as decisões de tribunais portugueses, com exceção das canceladas provisoriamente nos termos do art.º 12º (…), sendo que este artigo prescreve que: “Sem prejuízo do disposto na Lei 113/2009, de 17 de Setembro, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido (…) pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:
c) Já tenham sido declaradas extintas as penas aplicadas;
d)O interessado se tiver comportado de forma a que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e (…)
8. Por sua vez a Lei da Nacionalidade – Lei 37/81, de 3.10, com a última alteração introduzida pela Lei 2/2018, de 05.07 -, no seu art.º 6º, nº 1 faz referência a um certo número de requisitos que devem estar cumulativamente preenchidos para que um cidadão estrangeiro possa obter nacionalidade portuguesa, designadamente o previsto na sua al. d) que determina “não terem sido condenados com pena de prisão igual ou superior a 3 anos.”
9. Assim, e antes de mais, atendendo ao fim para o qual o requerente requereu o cancelamento provisório do registo, cumpre analisar o significado e abrangência da expressão “para qualquer outra finalidade” referida no supracitado nº 6 do art.º 10º da Lei 37/2015, por modo a concluir, ou não, se essa pretensão cabe naquele conceito.
10. E, tal como na posição defendida nos autos, entendemos que não, uma vez que, pela leitura conjugada dos referidos preceitos legais vemos que esta outra finalidade deverá estar sempre relacionada com o exercício de atividades/profissões e não para aquisição de direitos, como é o caso.
11. Tal como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 21.06.2017, proferido no âmbito do proc. 42/17.7TXLSB-A,L1, com o qual concordamos “Se qualquer outra finalidade tem o mesmo significado que qualquer outro fim, não se vê o porquê da ressalva apenas para determinadas situações, previstas em números de um determinado artigo, expressa no dito artigo 12º, que é o que se debruça sobre a possibilidade de cancelamento provisório. (…). Isto é, se fosse possível pedir o cancelamento provisório de um registo independentemente do fim a que se destina o certificado que se pretende obter (…) a lei não necessitaria de fazer qualquer ressalva quanto à finalidade almejada, à semelhança do que se mostra definido nos casos de cancelamento definitivo.”
12. Esta será a melhor interpretação, desde logo para que a revogação do cancelamento provisório prevista no art.º 233º do CEPMPL possa ter algum efeito, uma vez que obtida a nacionalidade, esta não poderá ser revertida caso o requerente B… incorra em “nova condenação por crime doloso e se se verificassem os pressupostos da pena relativamente indeterminada ou da reincidência” - cfr. nº 1 do art.º 233º do CEPMPL.
13. Por outro lado, também não concordamos com o fundamento inserto na decisão recorrida, na esteira do decidido no Ac. do TRL de 27 de Setembro de 2016 que “Inexiste impedimento legal ao cancelamento provisório do registo criminal para fins de obtenção de nacionalidade portuguesa (…) uma vez que “O cancelamento do registo criminal e a concessão da nacionalidade são duas questões que se colocam em momentos diferentes e perante entidades diversas. Uma precede a outra”, uma vez que, sendo verdade esta última conclusão, e caso a condenação averbada no registo criminal seja o único obstáculo à obtenção da nacionalidade, o deferimento do cancelamento provisório ou a reabilitação judicial do requerente, determinará o sentido da decisão a tomar em momento posterior pela entidade competente para a sua concessão.
14. Tal como decidido no Acórdão da Relação de Lisboa de 22.05.2018, publicado in www.dgsi.pt, “a manutenção da exigência constante da al. d) da Lei da nacionalidade, embora não revista propriamente a natureza de lei especial, encerra, porém, um conteúdo excecional relativamente ao regime normal (refira-se adrede que a pretensão do requerente não está em definitivo prejudicada, uma vez que sempre poderá suster a sua pretensão até ao cancelamento definitivo do registo criminal – art.º 11º da lei 37/2015, de 5-5). O cancelamento provisório do registo criminal bule com direitos fundamentais não abarcados pela previsão do CEPMPL e pela Lei de identificação Criminal, decorrentemente da possibilidade de aquisição da nacionalidade portuguesa. A exceção consagrada no art.º 6º, 1, d) da lei da nacionalidade, pretendeu que, durante um período alargado de tempo, um cidadão estrangeiro não possa adquirir a nacionalidade portuguesa por naturalização (…), sendo que a razão de ser da exigência em apreço prende-se com motivos de garantia de idoneidade do candidato (…) não apenas numa perspetiva de capacidade, mas também de mérito para exercer os direitos que lhe passam a ser conferidos.”
15. No mesmo sentido, se pronunciaram os Acórdãos da Relação de Lisboa de 27.10.2016 (proc. 1496/15.1TXLSB-A.L1), 21.06.2016 (proc. 42/17.7TXLSB-S.L1.) e 11.07.2019, publicado in www.dgsi.pt.
16. Aliás, se fosse intenção do legislador permitir a reabilitação judicial para efeitos de obtenção de nacionalidade, tê-lo-ia feito, designadamente aquando da recente alteração à Lei da Nacionalidade efetuada em 5 de julho de 2018, precisamente no que concerne ao alterado art.º 6º, al. d).
17. Efetivamente, se considerarmos, como devemos, que o legislador, vê o sistema legislativo como um todo, constamos que nos casos da fixação do conceito de idoneidade para efeitos do exercício das profissões de taxista (art.º 6º, nº 2 da lei 6/2013, de 22 de Janeiro), de motorista de TVDE (art.º 11º, nº 2 da Lei 45/2018, de 10 de Agosto) e da atividade de segurança privada (art.º 22º, , nº 1, al. d) da Lei 34/2013, de 16 de maio, com a recente alteração efetuada pela Lei 46/2019, de 08.07), em que também são considerados impedimentos determinadas condenações, sempre excecionou expressamente a possibilidade de reabilitação judicial, o que não acontece na Lei da Nacionalidade.
18. Por outro lado, entendemos também que a interpretação defendida, ao contrário do que consta da decisão recorrida, não viola qualquer princípio constitucional, designadamente os consagrados nos art.º 26º e 30º da CRP, uma vez que a reabilitação judicial não seria a única forma de o requerente lograr obter a nacionalidade portuguesa.
19. Efetivamente, em face das regras do cancelamento definitivo do registo criminal previstas no art.º 11º da Lei 37/2015, de 5 de maio, está perfeitamente delimitado o tempo e as circunstâncias em que determinada condenação permanece averbada no registo criminal.
20. No caso do requerente, tendo em conta a pena a que foi condenado e o tipo de crime, verifica-se que a sua condenação será definitivamente cancelada em 10.05.2023 (pena extinta em 10.05.2018 e caso não cometa mais nenhum crime).
Sem prescindir, mesmo que assim se não entenda:
21. Mostrando-se verificados os requisitos objetivos exigidos no art.º 12º da Lei 37/2015, de 05.05, ou seja, a pena a que o requerente foi condenado já foi declarada extinta e não há indemnização a pagar, cumpriria averiguar se se mostra preenchido o exigido pela al. b) do citado art.º 12º, ou seja que o “interessado se tenha comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado”.
22. Ora, na nossa opinião não se pode concluir pela readaptação do requerente, uma vez que os crimes por si praticados, para além de revestirem gravidade elevada, são também reveladores da sua personalidade, no sentido de que não respeitou as normas do Estado de que agora pretende tornar-se nacional, especificamente quanto às regras de aquisição de nacionalidade.
23. Não podemos, portanto, concordar, com a conclusão inserta na douta decisão recorrida, que resulta, aliás, do modo como o próprio requerente “encara” a sua condenação (cf. relatório social de fls. 166), de que “a condenação sofrida, por factos praticados que remontam há cerca de 12 anos, é entendida pelo requerente como uma situação pontual (sublinhado nosso) no seu percurso de vida, da qual se arrepende”.
24. Efetivamente, não cremos que uma conduta que perdurou durante mais de um ano – janeiro de 2008 a julho de 2019 – e em que o crime de auxilio à emigração ilegal foi preenchido dez vezes e o no de casamento de conveniência, o requerente B… organizou oito casamentos e serviu de intérprete em mais dois (cf. acórdão condenatório), se possa considerar “uma situação pontual “, nem sequer que os factos tenham ocorrido há cerca de 12 anos, mas sim há cerca de 10 anos.
25. Em face de todos os argumentos supra expendidos, cremos que a pretensão do requerente não deveria ter procedido e que, ao decidir deferir o cancelamento provisório do seu registo, violou o Mmo. Juiz o disposto conjugado nos arts. 9º, nº 1 e 3 do CCivil, 229º, 230º e 233º do CEPMPL e art.º 6º, nº1, al. d) da Lei da Nacionalidade.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso e, em consequência seja revogada a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que indefira o requerido cancelamento provisório do registo criminal de B… para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa.

A este recurso respondeu o arguido, conforme consta a fls. 225/228 dos autos, concluindo da seguinte forma:
- Pelos elementos constantes dos autos, é possível comprovar que o recorrido não voltou a cometer qualquer ilícito quer de idêntica quer de diferente natureza.
- O que é revelador da mudança no comportamento assumido no passado e que deu origem à referida condenação.
- O Recorrido constituiu família em Portugal, tendo a seu cargo duas filhas menores.
- Desde 2017, o Requerente é proprietário do estabelecimento comercial destinado à restauração denominado “C…”, sito em Braga, auferindo rendimentos suficientes para ter uma vida condigna e sustentar as suas duas filhas e esposa.
- Alias, tais factos são corroborados pelo relatório social junto aos autos.
- Na realidade, a pena aplicada ao arguido produziu a sua função, uma vez que não é conhecido qualquer facto em desabono do recorrido.
- Inexistindo qualquer grau de perigosidade.
- Acresce que, serão violados diversos princípios integradores de Direito Internacional acolhidos na ordem jurídica interna, à Constituição e à Lei ordinária, caso o Dig.º Tribunal opte pela interpretação que vede em absoluto a possibilidade de cancelar provisoriamente o registo criminal para fins de aquisição de nacionalidade por decorrência automática dos efeitos de uma condenação.
- Assim, ao nível internacional, não nos parece que tal interpretação seja a mais consentânea com a tendência geral para o reconhecimento do direito à nacionalidade como um dos direitos fundamentais do Homem, cf. Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 15.º - “1 – Todo o individuo tem direito a ter uma nacionalidade. 2 - Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nemdo direito de mudar de nacionalidade.”), Convenção Europeia Sobre a Nacionalidade de 26 de novembro de 1997 (artigos 4.º e 6.º) e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 (artigo 24.º, §3, referente às crianças).
- Igualmente não se afigura como a mais consentânea com alguns princípios constitucionais, desde logo, o que proíbe que qualquer pena envolva como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos (artigo 30.º, n.º 4, da CRP).
- Na verdade, caso o cancelamento (legal ou judicial) fosse irrelevante, a condenação em pena de prisão igual ou superior a 3 anos, traduzir-se-ia num efeito inexorável, automático ou necessário da pena, impedindo a administração de conceder a nacionalidade, ainda que se tratasse de alguém reabilitado.
- Igualmente a interpretação que desvaloriza o cancelamento para efeitos de aquisição de nacionalidade, não é aquele que melhor se harmoniza com a consagração constitucional do direito à cidadania (artigo 26.º da CRP), enquanto direito fundamental pessoal, que consta do elenco dos direitos, liberdades e garantias e, como tal, goza do respetivo estatuto (artigo 19.º, n.º 6, da CRP).
- Em especial os direitos fundamentais detêm substratos de universalidade, igualdade, vocação para a aplicabilidade direta e vinculam todas as entidades públicas e privadas (artigo 18.º, n.os 2 e 3, CRP).
- E abrange-se aqui o direito a não perder a cidadania, bem como o direito de aceder ex novo à cidadania
- O direito da aquisição da nacionalidade sofreu também evolução no direito ordinário passando a ser entendido como um poder vinculado do Estado e não discricionário, sendo obrigação do Estado não privar da cidadania qualquer indivíduo que com ele “tenha uma ligação efetiva” legalmente prevista, como é o caso do Recorrido que reside há mais de 10 anos e Portugal.
- Portanto, dispondo a lei que o cancelamento pode ser decretado quando se trate de emitir um certificado para qualquer finalidade, não é legítimo restringir a possibilidade de cancelamento quando o certificado se destina a obter a nacionalidade portuguesa, pois esse é um fim legalmente permitido para efeitos do disposto no art.° 229, n° 1, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.
Termina pedindo seja negado provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida.

Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, e que se encontra a fls. 231/241 dos autos, pugna pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais veio a ser acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II - Fundamentação:
Fundamentação de facto
São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância:
a) Por acórdão transitado em julgado em 30.09.2013, proferido no Processo nº1436/07.1TAGDM da Comarca do Porto, Porto, JC Criminal, J15, foi o requerente condenado na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática no ano de 2007, de um crime de auxílio à imigração ilegal e um crime de casamento por conveniência.
b) Tal pena foi declarada extinta, pelo integral cumprimento, por decisão de 10.05.2018 (conforme consta da certidão de fls. 141 destes autos)..
c) O requerente, de nacionalidade paquistanesa, viveu no país de origem até 2005, junto do agregado de origem, pais e 4 irmãos.
d) Frequentou o ensino no país de origem durante 12 anos e desenvolveu atividade durante 5 anos numa empresa farmacêutica.
e) Saiu do Paquistão em 2005, com o objetivo de adquirir melhores condições de vida e permaneceu algum tempo em Praga- Republica Checa. Posteriormente fixou residência em Lisboa, cidade onde viveu cerca de 7 meses, optando por imigrar para a região norte do país, concretamente para a Trofa.
f) Manteve uma relação afetiva durante 8 anos, resultando o nascimento de uma filha, atualmente com 9 anos de idade. Após a separação o requerente fixou residência em Braga e encetou novo relacionamento afetivo com D…, com quem coabita e de quem tem uma filha com 2 anos de idade. A companheira de origem russa obteve a nacionalidade portuguesa há 5 anos.
g) O requerente estabeleceu-se profissionalmente na área da restauração, inicialmente na Trofa e Vila Nova de Famalicão com o restaurante E… e que viria a encerrar quando fixou residência em Braga, cidade onde abriu um outro estabelecimento de restauração F…, em fevereiro/2016.
h) Mantém o exercício da sua atividade no referido estabelecimento, juntamente com a companheira D…, sendo considerado um espaço de qualidade, cuja matéria- prima é importada da Alemanha e que o requerente pretende distribuir na zona norte do país.
i) Para concretizar o sobredito negócio, é-lhe exigido crédito bancário, que lhe vem sendo negado pelo facto de não possuir nacionalidade portuguesa.
j) Economicamente, o requerente subsiste com o rendimento obtido do restaurante que gere e que referiu apresentar-se como adequado às necessidades do quotidiano e ao pagamento da prestação de alimentos devidos à filha menor, residente na Trofa.
l) O requerente pretende manter a residência em Portugal, onde profissionalmente tem estruturado um percurso indicador de estabilidade para além de ter ainda organizado o seu núcleo familiar.
m) O seu trajeto vivencial após a condenação, foi de cumprimento pelas atividades delineadas no Plano de Reinserção Social no âmbito da suspensão da pena com regime de prova a que esteve sujeito, revelando assunção dos crimes pelos quais foi condenado e cumprindo as suas obrigações, para além de revelar um significativo investimento na área empresarial a que se dedicou e ter reorganizado a vida afetiva e familiar.
n) Na sequência da sua transferência para Braga, o requerente esteve a ser acompanhado pela equipa de reinserção social de setembro de 2016 a março de 2018, revelando durante o referido período uma vida sociofamiliar estável e equilibrada, com assunção das responsabilidades familiares e um quotidiano direcionado para a vida laboral, não havendo registo de qualquer comportamento associal.
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Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
A questão que cumpre apreciar é a de saber se deverá ser ordenado o cancelamento provisório do registo da decisão que condenou o requerente numa pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, já declarada extinta, com o objetivo de obtenção da nacionalidade portuguesa.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.º 10.º, n.º 1, da Lei 37/2015, de 5 de maio Lei da Identificação Criminal), “O certificado do registo criminal identifica a pessoa a quem se refere e certifica os antecedentes criminais vigentes no registo dessa pessoa, ou a sua ausência, de acordo com a finalidade a que se destina o certificado, a qual também é expressamente mencionada”.
Segundo o disposto no n.º 1 do art.º 2.º da citada Lei, “A identificação criminal tem por objeto a recolha, o tratamento e a conservação de extratos de decisões judiciais e dos demais elementos a elas respeitantes sujeitos a inscrição no registo criminal e no registo de contumazes, promovendo a identificação dos titulares dessa informação, a fim de permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes”.
Como bem refere o Sr. Juiz a quoA inscrição de uma condenação penal no registo criminal constitui um efeito da prática de um crime que reflete a articulação e o equilíbrio entre uma ordem jurídica que contempla a socialização dos delinquentes como finalidade do sancionamento penal com as exigências de defesa da comunidade perante os perigos de uma possível reincidência”. Ou seja, o registo criminal visa, desde logo, defender a sociedade dos perigos que estão associados a determinado tipo de delinquência e de delinquentes.
Com efeito, o acesso ao Registo Criminal permite às autoridades judiciárias conhecer o passado criminal do investigado ou do arguido, dele extraindo as devidas e legais ilações. E permite também aos particulares conhecer o passado criminal das pessoas com quem têm de conviver. Ao conhecer-se o passado criminal, naturalmente que se acautelam ou, no mínimo, podem minimizar-se os referidos perigos.
Todavia, as penas visam também, e principalmente, a ressocialização do delinquente.
Ora, o Registo Criminal, tendo embora aquele efeito preventivo, não deve e não pode promover a estigmatização do condenado e não deve ser meio de evitar a sua socialização, contrariando a finalidade das penas.
Por isso é que a Lei prevê, por um lado, o cancelamento definitivo das inscrições, que tem lugar decorrido determinado período de tempo a contar da extinção da pena, “desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza” (art.º 11º, n.º 1 da Lei 37/2015, de 5 de maio).
Mas prevê, também, precisamente para facilitar a reintegração social do delinquente, o cancelamento provisório do registo, total ou parcial, determinado pelo tribunal de execução das penas desde que:
a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;
b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e
c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento.
Assim o consagra de forma expressa o art.º 12º da Lei 37/2015, de 5 de maio.
Os requisitos transcritos são cumulativos e hão de ser apreciados pelo Tribunal de Execução das Penas no processo a que aludem os art.ºs 229.º e segs do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL).
A natureza jurídica do cancelamento do registo criminal modificou-se, deixando de ser entendida com um ato de clemência, e passando a integrar um verdadeiro direito subjetivo à reabilitação, verificados que estejam certos pressupostos, assumindo a sua afirmação pela entidade competente mera natureza declarativa.
É relevante referir-se que a reabilitação é aplicável a todos os tipos de crimes, a todos os condenados e a todos os tipos de sanções (portanto, incluindo os que resultam em penas de prisão iguais ou superiores a 3 anos), decorrência natural da crença na capacidade de ressocialização, e do entendimento de que devem apenas impedir a reabilitação motivos de defesa social imposta pela perigosidade do agente.
O legislador elegeu como índices de readaptação o simples decurso do tempo sem superveniência de cometimento de novos crimes, que funciona de forma automática (legal), ou a comprovação, mediante indagação prévia e individualizada, da readaptação do condenado (reabilitação judicial, atualmente denominado cancelamento provisório).
Assim: “Para fins de emprego, público ou privado, de exercício de profissão ou atividade cujo exercício dependa de título público, de autorização ou homologação da autoridade pública, ou para quaisquer outros fins legalmente permitidos, pode ser requerido o cancelamento, total ou parcial, de decisões que devessem constar de certificados de registo criminal emitidos para aqueles fins” – n.º 1 do art.º 229º do CEPMPL.
A Lei visa através do instituto de cancelamento do registo criminal, quer definitivo quer provisório, facilitar a integração social do condenado, num equilíbrio com as finalidades do registo criminal constantes do art.º 2º da Lei n.º 37/2015, que se relacionam com finalidades de prevenção da delinquência, na vertente de defesa da sociedade em relação a alguns tipos de criminalidade, como bem se expõe no acórdão desta Relação de 7/7/2016 proferido no proc.986/15.0TXPRT-A.P1, relatado pelo Presidente desta secção.
Contudo, subjacente ao pedido de cancelamento provisório do registo, está um concreto interesse do requerente relacionado com a finalidade a que tal pedido se destina.
No caso em análise, pretende o requerente com o pedido formulado nos presentes autos a aquisição da nacionalidade portuguesa.
Estipula o art.º 6.º, n.º 1, da Lei n.º 37/81, de 03.10 (Lei da Nacionalidade), que: “1 - O Governo concede a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos estrangeiros que satisfaçam cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Serem maiores ou emancipados à face da lei portuguesa;
b) Residirem legalmente no território português há pelo menos cinco anos;
c) Conhecerem suficientemente a língua portuguesa;
d) Não tenham sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, com pena de prisão igual ou superior a 3 anos;
e) Não constituam perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em atividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respetiva lei”.
(…)
10 - A prova da inexistência de condenação, com trânsito em julgado da sentença, com pena de prisão igual ou superior a 3 anos referida na alínea d) do n.º 1 faz-se mediante a exibição de certificados de registo criminal emitidos; (…)”.
O Ministério Público na 1.ª Instância defende que, atenta a pena concreta em que o condenado, ora requerente, foi condenado, há um impedimento legal que inviabiliza o deferimento da pretensão por aquele formulado
A Jurisprudência tem-se dividido no que concerne a esta matéria, esgrimindo argumentos para sustentar cada uma das posições.
A Jurisprudência dos Tribunais desfavorável ao deferimento do cancelamento provisório do registo criminal para fins de aquisição de nacionalidade, defende que a LN, não sendo lei especial, tem “um conteúdo excecional” e “próprio”, sobrepondo-se à LIC e ao CEPMPL. Tal supremacia viria do facto de bulir com direitos constitucionais como a cidadania, que permite o acesso aos direitos fundamentais de sufrágio, direitos políticos e exercício de funções públicas. A referida exigência visa garantir a “idoneidade do candidato em como respeitará os deveres impostos pelo Estado de Direito Democrático” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de maio de 2018 (www.dgsi.pt). Também tem sido defendido o argumento da “segurança interna”.
Já a jurisprudência do Tribunal favorável ao cancelamento provisório para fins de aquisição de nacionalidade argumenta que a previsão da norma constante do CEPMPL permite que cancelamento seja requerido para quaisquer fins legalmente permitidos, onde se inclui o direito de obter a nacionalidade, donde “não é legítimo restringir a possibilidade de recurso ao processo de cancelamento das condenações no registo criminal” (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Setembro de 2018 (www.dgsi.pt).
O Tribunal Constitucional também já foi chamado a pronunciar-se nestas matérias, destacando-se o acórdão daquele Tribunal n.º 106/201629 (citado, aliás na sentença recorrida), que analisou o recurso sobre decisão do TACL que, numa ação de oposição à aquisição de nacionalidade, desaplicou o normativo referente ao requisito de inexistência de condenação em crime punível de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos. O Tribunal Constitucional não considerou tal norma inconstitucional (6.º, alínea d), da LN), mas concluiu que a mesma teria de ser interpretada não isoladamente, mas à luz de todo o ordenamento, desde o direito internacional acolhido na ordem interna, o direito constitucional e, bem assim, o ordenamento ordinário de igual valor, não podendo em especial desconsiderar o direito à reabilitação. Afirma o TC que “não se pode deixar de ter igualmente presente que é a mesma comunidade que, também representada pelo legislador democraticamente eleito, por via dos institutos da reabilitação (judicial ou legal) e da cessação do registo criminal das decisões condenatórias (decorrido um determinado período temporal para tanto fixado), não permite a valoração da conduta criminosa em causa para além dos limites decorrentes da reabilitação ou da cessação da vigência das condenações no registo criminal, por impedimento decorrentes das ideais de plena integração e ressocialização da pessoa condenada na sociedade em que se insere”. Mais acrescentou que uma aparente contradição intrasistémica teria de ser resolvida à luz de toda esta ordem normativa, desde o direito internacional, ao quadro constitucional onde se incluiu o direito à nacionalidade (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), que goza do estatuto de direitos, liberdade e garantais pessoais (artigos 17.º e 18.º da CRP), e, ainda, conformando-se e harmonizando-se com a ordem interna ordinária, onde se inclui o instituto de reabilitação que não pode ser anulado.
Ao contrário do defendido pelo Ministério Público na 1.ª Instância (não acompanhado, aliás, pelo parecer proferido pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal) e citando a Exmª Sr. Juiz Leonor Barroso, in Revista Julgar online, de dezembro de 2018, posição que subscrevemos integralmente e, por isso, passamos a reproduzi-la, “são esmagadores os argumentos favoráveis ao cancelamento provisório do registo criminal cujo fim seja a aquisição de nacionalidade.
2.1 - A letra e a ratio da lei: Em primeiro lugar, convocando a letra da lei, diremos que o regime jurídico deste tipo de cancelamento permite que o mesmo seja deferido para “quaisquer outros fins legalmente permitidos”, sendo a aquisição da nacionalidade, nesta aceção, um desses fins. Ademais, este regime jurídico não consagra nenhuma proibição nesta matéria, apenas impõe restrições em matéria de proteção dos interesses dos menores que ao caso não relevam.
Já a ratio legis aponta para a concessão do cancelamento/reabilitação a todo e qualquer indivíduo, nacional ou estrangeiro, desde que estejam verificados certos pressupostos.
A legislação respeitante ao registo criminal/cancelamento tem vocação genérica e igual valor hierárquico ao da legislação da nacionalidade, revestindo todos os diplomas a forma de Lei, não sendo esta última lei especial.
Quanto à LN, o legislador ordinário, legitimado, pode regular no quadro dos valores constitucionais as políticas que entende adequadas a um determinado contexto histórico, onde não são alheios, entre outros, motivos associados a crises mundiais, movimentos migratórios e necessidades demográficas.
Contudo, não pode, com base na crença absoluta de que um condenado é para sempre um homem não idóneo, ignorar o outro legislador, também legitimado, que regulou sobre o registo criminal, antecedentes criminais e conferiu a possibilidade do seu cancelamento.
2.2 - O elemento histórico e a sucessão de leis: Em segundo lugar, convocando o elemento histórico, a versão atual da LIC suprimiu o obstáculo legal anteriormente existente, o qual excecionava do cancelamento os casos em a lei exigisse ausência de quaisquer antecedentes criminais, ou apenas de alguns, para o exercício de determinada profissão ou atividade.
Ainda fazendo uso da occasio legis, também da exposição de motivos da proposta de lei que originou a atual LIC consta, como sendo um dos objetivos, o ajustamento às tendências legislativas mais atuais, as quais consideram que as exigências legais de ausência de antecedentes criminais46 não consagram um impedimento absoluto e automático de acesso a certas profissões ou cargos por força dessa condenação, impondo-se uma ponderação casuística.
2.3 - A unidade do sistema jurídico: Em terceiro lugar, fazendo agora apelo ao elemento sistemático, a LN carece de enquadramento na unidade do sistema jurídico, não podendo ser interpretada isoladamente ou de modo desgarrado. Qualquer aparente contradição intrasistémica terá de ser resolvida no quadro superior da ordem jurídica, em obediência aos princípios de Direito Internacional acolhidos na ordem jurídica interna, à Constituição e à lei ordinária.
Ora, acontece que serão violados diversos princípios integradores destes três graus de ordenamento, caso se opte pela interpretação que vede em absoluto a possibilidade de cancelar provisoriamente o registo criminal para fins de aquisição de nacionalidade por decorrência automática dos efeitos de uma condenação.
Assim, ao nível internacional, não nos parece que tal interpretação seja amais consentânea com a tendência geral para o reconhecimento do direito à nacionalidade como um dos direitos fundamentais do Homem, cf. Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 15.º - “1 – Todo o individuo tem direito a ter uma nacionalidade. 2 – Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.”), Convenção Europeia
Sobre a Nacionalidade de 26 de novembro de 1997 (artigos 4.º e 6.º) e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 (artigo 24.º, §3, referente às crianças).
Igualmente não se afigura como a mais consentânea com alguns princípios constitucionais, desde logo, o que proíbe que qualquer pena envolva como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos (artigo 30.º, n.º 4, da CRP).
Na verdade, caso o cancelamento (legal ou judicial) fosse irrelevante, a condenação em pena de prisão igual ou superior a 3 anos, traduzir-se-ia num efeito inexorável, automático ou necessário da pena, impedindo a administração de conceder a nacionalidade, ainda que se tratasse de alguém reabilitado.
Igualmente a referida interpretação que desvaloriza o cancelamento para efeitos de aquisição de nacionalidade, não é aquele que melhor se harmoniza com a consagração constitucional do direito à cidadania (artigo 26.º da CRP), enquanto direito fundamental pessoal, que consta do elenco dos direitos, liberdades e garantias e, como tal, goza do respetivo estatuto (artigo 19.º, n.º 6, da CRP).
Em especial os direitos fundamentais detêm substratos de universalidade, igualdade, vocação para a aplicabilidade direta e vinculam todas as entidades públicas e privadas (artigo 18.º, n.os 2 e 3, CRP). E abrange-se aqui o direito a não perder a cidadania, bem como o direito de aceder ex novo à cidadania47. O direito da aquisição da nacionalidade sofreu também evolução no direito ordinário passando a ser entendido como um poder vinculado do Estado e não discricionário48, sendo obrigação do Estado não privar da cidadania qualquer indivíduo que com ele “tenha uma ligação efetiva” legalmente prevista49.
Finalmente, a referida interpretação, ainda numa perspetiva de harmonia do sistema, não se afigura compatível com a restante lei ordinária, ou seja, nem com a lei de registo criminal, nem com as restantes normas que regem o instituto do cancelamento constantes no CEPMPL, nos termos supra expostos.
Na verdade, da conjugação de todo o universo jurídico retira-se que qualquer cidadão pode requer a declaração de reabilitação e, se lhe foi concedida, poderá, seguidamente, habilitar-se à aquisição de nacionalidade. Primeiro reabilita-se e somente depois se coloca a questão da aquisição de cidadania, sendo que aquela precede esta última.
A sentença do TEP que defere o cancelamento de registo criminal deve surtir os seus efeitos declarativos na plenitude da ordem jurídica, pelo que se alguém é declarado reabilitado por um tribunal para o efeito competente, será pouco curial que, noutra sede, esse alguém seja considerado pouco idóneo porque tem cadastro.
2.4 - A natureza do registo criminal análoga à das medidas de segurança: Em quarto lugar, as fontes mediatas de Direito como a doutrina e os elementos históricos (mormente a história do instituto e sua evolução), apontam para a classificação do registo criminal quando destinado a “outros fins” como tendo natureza análoga à das medidas de segurança, submetido aos princípios da necessidade, proporcionalidade e menor intervenção possível. Daqui resulta que, inexistindo perigosidade, em conformidade com a sentença reabilitativa, o acesso aos antecedentes criminais não deve ser permitido, sob pena de perpetuação injustificada de um “efeito infamante”, não compatível com os valores humanitários próprios das sociedades atuais que se pautam pelo respeito de valores tidos por fundamentais.
2.5 - A natureza do cancelamento criminal quando destinado a fins não judiciais ou de investigação/estatística: Em quinto lugar, numa visão atualista, o cancelamento provisório é modernamente entendido como um direito subjetivo à reabilitação e não como um favor judicial.
2.6 - A moderna orientação de política criminal: Ademais, o regime jurídico do registo criminal e do instituto de cancelamento espelham opções de política criminal, entendendo-se, portanto, coerente adotar-se uma interpretação de lei o mais consentânea possível com os princípios informadores de Estados de direito como o português, cujas políticas de fins de penas, servindo a defesa da sociedade, se norteiam pelas ideias de ressocialização e de inclusão social.
Concluindo, em nosso entender, não subsiste margem para a dúvida de que o TEP bem andará ao conceder o cancelamento provisório do registo criminal para fim de aquisição de nacionalidade a quem comprovadamente se mostre readaptado”.
Embora já resulte do quadro legal acima enunciado, enfatizamos que o cancelamento a cargo do TEP é provisório e apenas surte efeito nos certificados solicitados para fins de atividades, cargos, emprego público ou privado, ou outros fins legalmente permitidos, e nunca para fins processuais/judiciais (onde só o cancelamento definitivo opera).
Considerando tudo quanto se deixa expresso é manifesto que, ao contrário do defendido pelo Ministério Público requerente, não existe impossibilidade legal na pretensão do requerente, não tendo a decisão recorrida violado os art.ºs 9.º, n.ºs 1 e 3 do Cód. Civil, 229.º e 230.º do CEPMPL e art.º 6.º, n.º 1, al. d) da Lei da Nacionalidade.
Alega, ainda, o recorrente que a pretensão do requerente não poderá proceder pela não verificação do conceito de readaptação ao caso concreto.
Estipula o disposto no art.º 12.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, de 30 de maio, que “Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:
a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;
b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e
c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento”.
Analisando o caso concreto, verifica-se que a pena em que o ora requerente foi condenado já se encontra extinta, por decisão de 10.05.2018, e que inexiste condenação em obrigação de indemnização.
Alega o Ministério Público recorrente que não poderemos considerar preenchido o requisito previsto sob a alínea b) do citado preceito legal, porquanto os crimes por si praticados, para além de revestirem gravidade elevada, são também reveladores da sua personalidade, no sentido que não respeitou as normas do Estado de que agora pretende tornar-se nacional, especificamente quanto às regras de aquisição de nacionalidade.
Sem dúvida que resultou provado que o ora requerente, por acórdão transitado em julgado em 30.09.2013, proferido no Processo nº1436/07.1TAGDM da Comarca do Porto, Porto, JC Criminal, J15, foi condenado na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática no ano de 2007, de um crime de auxílio à imigração ilegal e um crime de casamento por conveniência.
Contudo, resultou também provado que trajeto vivencial do ora requerente após a condenação, foi de cumprimento pelas atividades delineadas no Plano de Reinserção Social no âmbito da suspensão da pena com regime de prova a que esteve sujeito, revelando assunção dos crimes pelos quais foi condenado e cumprindo as suas obrigações, para além de revelar um significativo investimento na área empresarial a que se dedicou e ter reorganizado a vida afetiva e familiar. Acresce que, na sequência da sua transferência para Braga, o requerente esteve a ser acompanhado pela equipa de reinserção social de setembro de 2016 a março de 2018, revelando durante o referido período uma vida sociofamiliar estável e equilibrada, com assunção das responsabilidades familiares e um quotidiano direcionado para a vida laboral, não havendo registo de qualquer comportamento associal.
Considerando o que se deixa exposto, e não obstante aquela violação de normas do Estado de que agora pretende tornar-se nacional, especificamente quanto às regras de aquisição de nacionalidade, a verdade é que tais factos pelos quais o ora requerente foi condenado ocorreram há cerca de 12 anos, tendo o arguido, desde então, pautado a sua conduta pelo cumprimento dos deveres impostos pelo Estado, encontrando-se perfeitamente inserido na comunidade e no meio familiar e laboral, pelo que teremos que concluir que o interessado se tem comportado de forma que é razoável supor encontrar-se readaptado.
Recordando o que acima já se havia deixado consignado, o Registo Criminal, tendo embora um efeito preventivo, não deve e não pode promover a estigmatização do condenado e não deve ser meio de evitar a sua socialização, contrariando a finalidade das penas
É relevante referir-se que a reabilitação é aplicável a todos os tipos de crimes, a todos os condenados e a todos os tipos de sanções (portanto, incluindo os que resultam em penas de prisão iguais ou superiores a 3 anos), decorrência natural da crença na capacidade de ressocialização, e do entendimento de que devem apenas impedir a reabilitação motivos de defesa social imposta pela perigosidade do agente. Ora, no presente caso, a comprovação, mediante indagação prévia e individualizada, da readaptação do condenado foi totalmente favorável, razão pela qual teremos que concluir que o requerente se encontra readaptado.
Assim, mostrando-se reunidos todos os requisitos legais necessários ao deferimento da pretensão do requerente, nenhuma censura merece a decisão recorrida, improcedendo totalmente o recurso interposto pelo Ministério Público.
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a decisão recorrida.
Sem custas.

Porto, 12 de fevereiro de 2020
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Paula Natércia Rocha
Élia São Pedro