Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
929/20.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: CÁLCULO DA LEGÍTIMA
NULIDADES DA SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RP20220627/929/20.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As causas de nulidade da sentença - aplicável ex vi 613º nº 3 do CPC aos despachos - previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC, respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”, pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito.
II - Apenas a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito, e já não a deficiência em que assenta a decisão, são causa de nulidade da sentença ou despacho.
III - O vício da ininteligibilidade por obscuridade da decisão, a que respeita a al. c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, pressupõe que o decidido não seja percetível para os seus destinatários e assim permita a dúvida sobre o sentido decisório.
IV - Na reapreciação da matéria de facto o tribunal da Relação, fazendo uso dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, deve alterar o decidido pelo tribunal a quo quando verifique erro de julgamento.
V – Para o cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança (artigo 2162º nº 1 do CC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 926/20.5T8AVR.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta - Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca de Aveiro – Jz. Central Cível de Aveiro
Apelante/ AA
Apelada/ Massa insolvente de BB

Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).
………………………………
………………………………
………………………………

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
Massa Insolvente de BB instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra AA, peticionando pela procedência da ação a condenação do R. a[1]:
“a) A declarar e reconhecer que o Autor é único e universal herdeiro legitimário de CC, viúva, falecida em .../.../2017;
b) A reconhecer que os bens doados ao Réu eram os únicos que constituíam a herança de CC;
c) A declarar e reconhecer que o valor total dos bens e direitos doados perfazem o valor total de 209.510,30€ (duzentos e nove mil, quinhentos e dez euros e trinta cêntimos);
d) A declarar e reconhecer que a legítima do Autor, enquanto herdeiro legitimário perfaz o montante de 104.755,15€;
e) A ser reduzido ao valor das liberalidades (doações) o valor de 104.755,15€, por serem em parte inoficiosas ofendendo a sua legítima;
f) Ser ordenado o cancelamento das inscrições efetuadas com as AP. ... de 2015/03/31 e AP. ... de 2017/07/31 registadas na 2.ª C.R.P. da Maia;
g) Caso os bens doados já tenham sido alienados ou onerados, deve o Reu ser condenado a preencher a legítima do Autor em dinheiro pelo montante de 104.755,15€ no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão;”
Para tanto e em suma alegou:
- BB e sua esposa foram declarados insolventes por sentença proferida a 04 de agosto de 2016.
- Em 09 de Outubro de 2017 faleceu CC, mãe do insolvente, tendo no processo de insolvência sido informado que a falecida não teria deixado quaisquer bens suscetíveis de serem herdados pelo insolvente – seu único herdeiro - e assim apreendidos para a massa insolvente.
- Após buscas efetuadas pela AI, veio esta a averiguar que por contrato celebrado a 25/03/2015, celebrou a falecida contrato de doação, ao abrigo do qual doou a seu neto e ora R. os imóveis descritos em 6º da p.i.;
- Bem como doou a este mesmo neto e ora R. por contrato celebrado em 11/11/2016 o seu quinhão hereditário correspondente a ½ da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD e EE. Quinhão este do qual faz parte as verbas descritas em 8º da p.i.;
- Não tendo assim sido apreendidas para a massa insolvente de BB quaisquer bens ou direitos na herança de sua mãe CC porquanto esta doou em vida toda a sua herança ao neto AA e ora R.;
- A autora da sucessão apenas poderia ter disposto de ½ dos seus bens a favor de outrem que não o seu herdeiro legitimário, declarado insolvente;
- Havendo como tal fundamento para a redução da liberalidade nos termos peticionados, já que as doações celebradas ofendem a legítima (quota indisponível) do insolvente e resultaram em prejuízo da massa insolvente.
Citado o R. deduziu contestação.
Nesta:
- invocou a caducidade do direito da A.;
- impugnou o alegado, nomeadamente tendo invocado que sua avó, em vida, doou a seu pai bens de valor não inferior a € 240.000,00 que preencheram a sua legítima.
Não ofendendo as liberalidades da falecida para o aqui R. e seu neto a legítima do insolvente.
Termos em que concluiu pela procedência da invocada exceção de caducidade e quando assim se não entenda, pela sua total absolvição do pedido.
Após resposta da A. à invocada exceção, na qual concluiu pela sua improcedência e dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova, sem reclamação.
No despacho saneador foi apreciada e julgada improcedente a arguida exceção de caducidade.
Agendada oportunamente audiência de discussão e julgamento, procedeu-se à sua realização, após o que foi proferida sentença, julgando-se a final:
“Declara-se a ação parcialmente procedente por provada e, em consequência:
a) Declaro e reconheço que o Autor é único e universal herdeiro legitimário de CC, viúva, falecida em .../.../2017;
b) Declaro e reconheço que o valor total dos bens e direitos doados perfazem o valor total de 312.457,42 € (trezentos e doze mil, quatrocentos e cinquenta e sete euros e quarenta e dois cêntimos.
c) Declaro e reconheço que a legítima do Autor, enquanto herdeiro legitimário perfaz o montante de 156.228,71 € (cento e cinquenta e seis mil duzentos e vinte e oito euros e setenta e um cêntimos.
d) Determino a redução doação descrita em 7 e 8 dos factos provados por ser, inoficiosa, relativamente ao valor de 53.281,59 € (cinquenta e três mil, duzentos e oitenta e um mil e cinquenta e nove cêntimos).
e) Ordeno o cancelamento das inscrições efetuadas com a AP. ... de 2017/07/31 registadas na 2.ª C.R.P. da Maia no que se refere ao prédio descrito na Conservatória de Registo Predial com o n.º ...
Relativamente ao prédio descrito na Conservatória de Registo Predial com o n.º ... absolvo o Réu da instância.
No que se refere ao ponto b) do pedido, improcede a ação.
No que se refere ao ponto g) não se conhece do pedido por impossibilidade legal de o fazer.”
*
Do assim decidido apelou o R. oferecendo alegações e formulando as seguintes
Conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………
***
Apresentou a A. contra-alegações, em suma tendo concluído pela total improcedência do recurso interposto, face ao bem decidido pelo tribunal a quo tanto em sede de decisão de facto como de direito. Pugnando ainda pela improcedência das arguidas nulidades da sentença.
***
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
***
II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes serem questões a apreciar:
1) Nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e por ininteligibilidade [vide conclusões 6 a 10];
2) erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto [vide conclusões 11 a 19].
3) erro na aplicação do direito.
***
III- Fundamentação

Foram julgados provados os seguintes factos:
“Ficaram provados os seguintes factos:
1. BB e sua esposa foram declarados insolventes, por sentença proferida, em 04-08-2016, no âmbito do processo n.º 2301/16.7T8AVR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - Inst. Central de Aveiro - 1ª Sec. Comércio - J2.
2. Em 9/10/2017, faleceu a Sra. CC, mãe do Insolvente.
3 - Esta deixou como seu único herdeiro o seu filho, BB.
4 – O seu falecimento foi comunicado aos autos de insolvência, tendo sido igualmente comunicado que a falecida não teria deixado quaisquer bens suscetíveis de serem herdados, nomeadamente pelo insolvente.
5 - Em 25/03/2015, foi celebrado um Contrato de Doação, em que a falecida mãe do insolvente doou a AA, seu neto, o seguinte bem imóvel: a) Prédio misto, sito no lugar dos castanheiros, na freguesia ..., concelho de Ovar, composto por casa de rés do chão e primeiro andar, destinado a habitação, sito na Rua ... e terreno de cultura, com mil quatrocentos e cinquenta metros quadrados, inscrito na matriz predial urbana no artigo ..., com o valor patrimonial tributário de 124.405,50€ e na matriz predial rustica no artigo ..., com o valor patrimonial tributário correspondente a 99,59€ , e descritos na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º ..., freguesia ...
6 - Doação registada pela AP. ... de 2015/03/31.
7 - Em 11 de Novembro de 2016, a falecida, mãe do insolvente, doou o seu quinhão hereditário, correspondente a ½ da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD e EE, também a AA, seu neto, quinhão do qual faz parte:
a) Verba 1 – urbano, em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, composto por rés-do-chão e primeiro andar, destinado a três habitações, com nove divisões, sendo duas no rés-do-chão e uma no primeiro andar, com terreno a logradouro, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho da Maia, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... com o valor patrimonial de 114.470,00€ e descrita na 2.ª C.R.P. da Maia sob o n.º ..., freguesia ... ;
b) Verba 2 – urbano, em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, composto por rés-do-chão, destinada a habitação, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho da Maia, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... com o valor patrimonial de 54.320,00€ e descrita na 2.ª C.R.P. da Maia sob o n.º ..., freguesia ....
8 - Esta doação foi registada pelo Averbamento da AP. ... de 2017/07/31.
9 – Relativamente à verba n.º 2 referida em 7 b) fora em 29/12/2015 registada pela Ap. ... uma promessa de alienação efetuada por FF e CC a favor de GG e HH.
10 – Pela apresentação 625 de 20/05/2016 foi esse registo convertido em definitivo.
11 – Pela apresentação 3213 de 23/08/2017 foi registada a aquisição, por compra, do mesmo prédio a favor de GG e HH
12 - Não foram apreendidos para massa insolvente de BB quaisquer bens ou direitos na herança de sua mãe, CC.
13 - A mãe do insolvente foi empresária e o pai do insolvente, por seu turno, era também ele empresário no ramo do papel, sendo pessoas de posses.
14 - O insolvente, aquando do início da crise de 2008 era sócio de três sociedades de construção e mediação imobiliária, a “B..., “C... e “P...”, as quais começaram a afundar-se em dívidas.
15 - A mãe do insolvente CC, por morte de seu marido II herdara, juntamente com o insolvente, 12 verbas.
16 - Bens esses que acabaram por vender, na sua maioria, doando a dita CC a sua parte monetária ao insolvente.
17 - Assim, foram vendidos os seguintes bens pertencentes à referida herança
a) - Em 18/04/1986, por escritura de compra e venda foi vendido um terreno de mato e eucalipto, inscrito na matriz sob o n.º ..., de .... A mãe do insolvente e o insolvente receberam 480,000,00 mil escudos, o equivalente a € 2.394,23 tendo a mãe do insolvente doado ao mesmo a sua parte no valor de € 1.197,12.
b) - Em 02/11/2007, por escritura de venda de um prédio rústico inscrito na matriz … da freguesia ..., a mãe do insolvente e o insolvente receberam a quantia de € 24.000,00 tendo a mãe do insolvente doado a sua parte no valor de € 12.000,00 ao filho BB
c) - Em 13/11/2009 por escritura de venda do prédio rustico inscrito na matriz sob o n.º ..., freguesia ..., o insolvente e a mãe teriam a receber € 30.000,00 valor a dividir por ambos, tendo a mãe do insolvente dado ao insolvente também a parte que correspondia à mesma, pelo que lhe doou a quantia de € 15.000,00.
d) Em 18/02/2010 por escritura de venda do prédio rústico inscrito na matriz sob o n.º ... da freguesia ..., o insolvente e a sua mãe receberam a quantia de € 5.000,00 tendo a mãe do insolvente doado a sua parte no valor de € 2.500.00
18 - Por escritura de compra e venda celebrada no dia três de junho de 2009 foi ainda vendido pelo preço total de 37.500 € o prédio rustico inscrito na matriz n.º ... da freguesia ....
Constam, como vendedores, três outorgantes:
- Primeiro - JJ e marido;
- Segundo - KK e LL;
Terceiros – CC e BB e esposa;
Declarando os vendedores que o prédio está inscrito a seu favor, em comum e sem determinação de parte ou direito.
19 - CC doou ao seu filho BB a parte do preço que lhe caberia.
20 - Além disso, a mãe do insolvente (CC) foi doando importâncias financeiras ao filho para que fosse possível, ainda que a título precário, manter as empresas.
21 - Assim entregou ao filho, nos anos de 2004 a 2008, através de cheque, pelo menos, as quantias de 25.000,00 €, 12.500,00, 10.000,00 €, 5.000,00 €, 2.500,00 € e 11.000,00 €, num total de 66.000 €.
22 - Valores estes que o insolvente colocava nas empresas a fim de as salvar e diminuir o seu passivo e as suas responsabilidades pessoais.
23 - A mãe do insolvente dedicava-se à compra e venda de viaturas.
24 - A sociedade “B...” entrou em insolvência no ano de 2011.
25 - Tanto o insolvente (BB) como a esposa, também ela insolvente, com a insolvência da sociedade onde trabalhavam, ficaram desempregados.
26 - Perante esse cenário a mãe do insolvente desde pelo 2008 até à sua morte em .../.../2017 ajudou o filho nas suas despesas quotidianas, em montante não concretamente apurado.
27- A CC residia com o neto desde o divórcio do mesmo.”
*
O tribunal a quo julgou ainda não provada a seguinte factualidade:
“Não se provou.
a) Os bens doados ao neto constituíssem todo o património da falecida CC.
b) A mãe do insolvente desde 2008 até à sua morte doasse ao filho quantias em dinheiro, em montante não inferior a 240.000 € (duzentos e quarenta mil euros).
c) Relativamente à venda referida em 18 a mãe do insolvente lhe doasse a quantia de 18.750,00 €.
d) O ora Réu cuidasse da sua avó, até á morte desta, durante quase 12 anos,
e) Fosse a título de gratidão que doasse em vida ao neto a casa, onde os dois, Réu e avó, residiam.
f) O valor total dos bens que compõem a herança se fixe em € 448.557,42, sendo o valor do dinheiro entregue pela falecida ao filho de € 239.047,12.
g) O insolvente ficasse ainda como único titular da quota detida na sociedade que se dedicava ao ramo do papel.
h) Para além dos valores descritos de 16 a 22 dos factos provados revertesse ainda para o filho da falecida CC o valor de pelo menos € 50.000,00 (cinquenta mil euros), proveniente da venda de viaturas.
i) A título gratuito, a mãe do insolvente, desde 2008 até à sua morte, doasse ao insolvente € 950,00 por mês para que o mesmo pudesse fazer face às despesas do seu agregado familiar, num total global de € 102.600,00.”
*
1) Cumpre em primeiro lugar apreciar se a decisão recorrida padece das arguidas nulidades por falta de fundamentação e ininteligibilidade.
As causas de nulidade da sentença, previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC[2], respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”[3], pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito[4].

Alega o recorrente que a decisão padece do vício da nulidade por falta de fundamentação “quanto aos factos não provados enunciados em b), d), e), f), g), h) e i) da sentença” já que a seu ver ocorre “uma clara omissão da fundamentação (pensamento) que suportou o entendimento segundo o qual não podem ser considerados os depoimentos do Réu e da testemunha desacompanhados de outros elementos de prova por um alegado notório interesse dos mesmos no processo”.
E a arguida ininteligibilidade é pelo recorrente fundada nos seguintes termos: “Não é possível compreender pela motivação apesentada porque razão para uns factos entendeu que tanto a testemunha quanto o Réu eram credíveis e para outros não”.

Da decisão atacada, resulta a seguinte fundamentação quanto aos factos não provados identificados:
“A convicção do tribunal fundou-se:
(…)
No que se refere aos pontos 15, 16, 17, 18 e 19 dos factos provados e a) c) dos factos não provados nos documentos juntos com a contestação e constantes de fls. 53 verso a 68.
Quanto à doação, por parte da CC, ao filho, da parte que lhe caberia, relevaram também os depoimentos antes referidos, sendo que essas doações são verosímeis, sendo muito vulgar que nestes pequenos negócios de venda de terrenos os pais abdiquem em favor dos filhos da parte do preço que lhes caberia.
No que se refere ao ponto 18 dos factos provados e c) dos factos não provados há ainda a considerar o seguinte:
O Réu, alega no art. 57º da contestação que recebeu a quantia de 37.500 €, fruto da venda efetuada por si e por sua mãe do prédio rústico inscrito na matriz com o n.º ....
No entanto, na escritura de compra e venda que titula o negócio (constante de fls. 63 e ss dos autos) figuram também como proprietários do mesmo prédio dois outros outorgantes, sendo o aqui Réu e sua mãe, em conjunto, os terceiros outorgantes.
Resulta, pois desse documento que seriam apenas proprietários de 1/3 do prédio, pelo que, em conjunto, deverão ter recebido apenas 12.500, e não os 37.500 € invocados. Assim, considerar-se-á apenas esse valor de 12.500 €
(…)
Quanto aos factos não provados enunciados em b), d), e) f), g), h) e i), depuseram também o Réu e a testemunha acima referida.
No entanto, atendendo ao notório interesse que tanto o Réu como a testemunha (seu pai e insolvente), têm no objeto do processo, não podem esses depoimentos ser valorados quando desacompanhados de outros meios de prova consistentes.
Ora, quanto aos pontos b) e i) não existe, de todo, outro meio de prova.
Quantos aos pontos d) e) não existe qualquer indício que a avó do réu precisasse da ajuda deste.
Quanto à alínea g), embora da relação de bens apresentada por morte do marido de CC conste, de facto uma quota societária, nenhuma prova documental foi feita quanto ao seu destino.
Quanto ao ponto h) desconhece-se, em absoluto os contornos dos negócios de que terão sido objeto os veículos mencionados de fls. 69 a 81.”

No que ao vício da insuficiência da fundamentação previsto na al. b) do nº 1 do artigo 615º do CPC concerne, é entendimento uniforme na jurisprudência e com apoio na doutrina que a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito, e apenas esta e já não a sua deficiência, em que assenta a decisão, são causa de nulidade da mesma[5].
Por sua vez o vício da ininteligibilidade por obscuridade – al. c) do nº 1 do artigo 615º - pressupõe que o decidido não seja percetível para os seus destinatários e assim permita a dúvida sobre o sentido decisório [6].
Sendo a decisão o resultado de um raciocínio lógico, expositivo e argumentativo que da mesma é pressuposto, são os fundamentos da mesma as premissas lógicas necessárias daquela. Entre ambas naturalmente impõe-se a coerência e clareza. E quando assim não ocorra, verifica-se o vício da oposição ou contradição e/ou obscuridade/ininteligibilidade, como o recorrente invocou, sancionado com a nulidade ora em análise.
Não se confunde a contradição entre os fundamentos e a decisão geradora de nulidade com a contradição entre factos provados e não provados, ou quando a decisão de facto é omissa quanto a factos essenciais à decisão da causa, ou ainda quando à motivação da decisão de facto se imputa vício por erro de julgamento.
Nestas hipóteses, o que está em causa é um vício da decisão de facto, a ser corrigido nos termos do artigo 662º do CPC.
Não se confunde esta situação com a nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos e a decisão ou ininteligibilidade.
Tão pouco se confunde a contradição da decisão em análise com a errada subsunção dos factos ao direito, porquanto então estará em causa o erro de julgamento e não a nulidade de sentença[7].

Basta atentar na fundamentação da decisão recorrida que acima deixámos (na parte relevante) reproduzida, para se concluir que na mesma foram expostas as razões da decisão de facto, quer quanto aos factos provados, quer quanto aos não provados.
Tendo para o efeito o tribunal a quo seguido e exposto uma argumentação lógica, coerente e de sentido unívoco.
Tal como afirmado no Ac. TRE de 03/11/2016, nº de processo 1774/13.4TBLLE.E1 in www.dgsi.pt
«as nulidades da decisão, são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjetivo) aplicável. Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito (cf. Ac. RC de 15.4.08, Proc.1351/05.3TBCBR.C1).
(…) Como ensina Remédio Marques, in “Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 667, “a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”, e “a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença”»
Perceciona-se dos fundamentos invocados pelo recorrente para ambos os vícios que o mesmo discorda do decidido, para tanto invocando em abono da sua tese os depoimentos de si próprio e seu pai (insolvente) que a seu ver deveriam ter sido considerados na sua totalidade.
Claramente contende a crítica apontada não com o vício de falta de fundamentação ou sequer da ininteligibilidade da decisão, mas antes com um imputado erro de julgamento na apreciação da prova. O que respeita, pelo já exposto, não aos vícios da decisão que a ferem de nulidade, mas antes com o erro de julgamento, a apreciar oportunamente.
Em suma improcedem as arguidas nulidades por falta de fundamentação e por ininteligibilidade da decisão.

2) Cumpre em segundo lugar apreciar do imputado erro à decisão de facto.
Como questão prévia apreciação da observância dos ónus de impugnação que sobre o recorrente recaem, em especial o previsto no artigo 640º nº 1 do CPC.
*
Para a apreciação desta pretensão importa ter presente os seguintes pressupostos:
i- Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados[8];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao recorrente [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Sendo ónus do mesmo apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que as conclusões têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Pelo que destas conclusões é exigível que das mesmas conste, no mínimo e de forma clara, quais os pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição da reapreciação da decisão de facto.
Podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo alegatório.
Embora na jurisprudência se encontrem posições mais ou menos exigentes quanto aos elementos que das conclusões devem constar, este é um denominador mínimo comum a todas elas, como as decisões a seguir identificadas o demonstram:
- Ac. TRG de 07/04/2016, nº de processo 4247/10.3TJVNF.G1 in www.dgsi.pt/jtrg;
- Acs. STJ de 01/10/2015, nº de processo 824/11.3TTLRS.L1.S1; de 29/10/2015, nº de processo 233/09.4TBVNC.G1.S1; de 06/12/2016, nº de processo 437/11.0TBBGC.G1.S1 (todos in www.dgsi.pt/jstj);
- Ac. STJ de 16/05/2018, nº de processo 2833/16.7T8VFX.L1.S1, in www.dgsi.pt de cujo sumário (que aqui se reproduz) resulta reiterada a necessidade de nas conclusões constar de forma concreta quais os pontos de facto que constam da sentença e cuja alteração se pretende:
“I - Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração.
II - Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso.
III - Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art. 640º, nº 1, als. a) e c) do CPC, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte.”;
- Ac. STJ de 27/09/2018, nº de processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1, onde se afirma “Como decorre do artigo 640 supra citado o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorretamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objeto do recurso”;
- Ac. STJ de 21/03/2019, nº de processo 3683/16.6T8CBR.C1.S2, no qual e após se ter feito uma distinção entre ónus primários e secundários de alegação e concretização para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º do CPC (nos seguintes termos e tal como ali sumariado)
“I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.”,
se concluiu, para o efeito convocando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na aferição do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no artigo 640º no que concerne aos aspetos de ordem formal
III. (…) enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.”;
- Ac. STJ de 17/11/2020, nº de processo 846/19.6T8PNF.P1.S1 in www.dgsi.pt onde se afirma, tal como consta do sumário “I - A especificação dos concretos pontos de facto [impugnados] deve constar das conclusões recursórias, posto que estas têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte.”;
- Ac. STJ de 09/02/2021, nº de processo 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1 in www.dgsi.pt do qual se extrai idêntico entendimento.
Vide ponto III do sumário “III - O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões- Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil., pág. 165.”
Da respetiva fundamentação se extraindo o reiterado entendimento do STJ – de acordo com as múltiplas decisões no mesmo convocadas – de que a completa omissão nas conclusões dos “concretos pontos de facto que no entender dos apelantes impõem decisão diversa da recorrida” implica o entendimento da não observância dos ónus de alegação impostos pelo artigo 640º nº 1 do CPC.
Convocando ainda na doutrina Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 165, «em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” e acrescenta “são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra geral que se extrai do art. 635, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões” e reafirma na nota 274, a págs. 168 que “ainda que não tenha utilizado no art. 640 uma enunciação paralela à que consta do nº 2 do art. 639 sobre o recurso da matéria de direito, a especificação nas conclusões dos pontos de facto a que respeita a impugnação serve para delimitar o objeto do recurso”»;
- Ac. STJ de 25/03/2021, nº de processo 756/14.3TBPTM.L1.S1, in www.dgsi.pt no qual (e citando diversa jurisprudência no seu sentido decisório) se realçou recair sobre o recorrente a observância do ónus primário de impugnação que corresponde às exigências do nº 1 do artigo 640º do CPC sob pena de imediata rejeição do recurso, sem lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, na medida em que delimitam o objeto do recurso e fundamentam a sua impugnação; exigências estas “decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso” e não “alheias também ao princípio do contraditório, pois destinam-se a possibilitar que a parte contrária possa identificar, de forma precisa, os fundamentos do recurso, podendo assim discretear sobre eles, rebatendo-os especificadamente”; reafirmando-se ser “entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme que, nas conclusões das alegações, que têm corno finalidade delimitar o objeto do recurso (cfr. n.° 4, do art.° 635°, do CPC) e fixar as questões a conhecer pelo tribunal ad quem, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, sob pena de rejeição do recurso, como a lei adjetiva comina no n°1, do art.° 640°.”;
*
Tratamento diverso merece o vício imputado à decisão de facto com base em eventual vício de deficiência, obscuridade ou contradição da decisão proferida, que quando invocado e se procedente, ou mesmo conhecido oficiosamente, poderá implicar quando dos autos não constem todos os elementos necessários, a anulação da decisão de facto para suprimento de tais vícios ou ampliação da decisão de facto nos termos do artigo 662º nº 2 al. c) do CPC.
Estes últimos vícios não estão, como tal, sujeitos aos requisitos impugnativos prescritos no artigo 640º nº 1 do CPC “os quais só condicionam a admissibilidade da impugnação com fundamento em erro de julgamento dos juízos probatórios concretamente formulados”.
Requisitos impugnativos de admissibilidade da impugnação da decisão de facto com base em erro de julgamento que encontram o seu fundamento na garantia da “adequada inteligibilidade do objeto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso”.[9]
ii- Na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do artigo 662º do CPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão.
Cabendo ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis.
Sem prejuízo de e quanto aos factos não objeto de impugnação, dever o tribunal de recurso sanar mesmo oficiosamente e quando para tal tenha todos os elementos, vícios de deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade enunciada, tal como decorre do disposto no artigo 662º n.º 2 al. c) do CPC.
Assim e sem prejuízo das situações de conhecimento oficioso que impõem ao tribunal da Relação, perante a violação de normas imperativas, proceder a modificações na matéria de facto, estão estas dependentes da iniciativa da parte interessada tal como resulta deste citado artigo 640º do CPC.
Motivo por que e tal como refere António S. Geraldes in “Recursos no Novo Código do Processo Civil, 2ª ed. 2014, em anotação ao artigo 662º do CPC, p. 238 “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para circunscrever o objeto do recurso. Assim o determina o princípio do dispositivo (…)”.
Sobre a parte interessada na alteração da decisão de facto recai, portanto, o ónus de alegação e especificação dos concretos pontos de facto que pretende ver reapreciados; dos concretos meios de prova que impõem tal alteração e da decisão que a seu ver sobre os mesmos deve recair, sob pena de rejeição do recurso.
Tendo presente que o princípio da livre apreciação das provas continua a ser a base, nomeadamente quando em causa estão documentos sem valor probatório pleno; relatórios periciais; depoimentos das testemunhas e declarações de parte [vide art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.os 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 (quanto às declarações de parte) do C.P.C.], cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis. Fazendo ainda [vide António S. Geraldes in ob. cit., em anotação ao artigo 662º do CPC, págs. 229 e segs. que aqui seguimos como referência]:
- uso de presunções judiciais – “ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido” (vide artigo 349º do CC), sem prejuízo do disposto no artigo 351º do CC, enquanto mecanismo valorativo de outros meios de prova;
- ou extraindo de factos apurados presunções legais impostas pelas regras da experiência em conformidade com o disposto no artigo 607º n.º 4 última parte (aqui sem que possa contrariar outros factos não objeto de impugnação e considerados como provados pela 1ª instância);
- levando em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no artigo 607º n.º 4 do CPC (norma que define as regras de elaboração da sentença) ex vi artigo 663º do CPC (norma que define as regras de elaboração do Acórdão e que para o disposto nos artigos 607º a 612º do CPC remete, na parte aplicável).
Por fim de realçar que embora não exigida na formação da convicção do julgador uma certeza absoluta, por via de regra não alcançável, quanto à ocorrência dos factos que aprecia, é necessário que da análise conjugada da prova produzida e da compatibilização da matéria de facto adquirida, extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras da experiência (vide artigo 607º nº 4 do CPC) se forme no espírito do julgador a convicção de que com muito elevado grau de probabilidade os factos em análise ocorreram.
Neste contexto e na dúvida acerca da realidade de um facto ou da repartição do ónus da prova, resolvendo o tribunal a mesma contra a parte à qual o facto aproveita, tal como decorre do disposto nos artigos 414º do CPC e 346º do C.C..
iii- Na medida em que os recursos visam, por via da modificação de decisão antes proferida reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, temos de concluir que a reapreciação da matéria de facto está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objeto processual delineado pelas partes e assim já antes submetido a apreciação pelo tribunal a quo [vide neste sentido Acs. do TRG de 11/07/2017, nº de processo 5527/16.0T8GMR.G1; c. TRL de 26/09/2019, nº de processo 144/15.4T8MTJ.L1-2; Ac. STJ de 17/05/2017, nº de processo 4111/13.4TBBRG.G1.S1 e Ac. STJ de 09/02/2021, nº de processo 26069/18.3T8PRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt].
iv- Pelos mesmos motivos, temos igualmente de concluir que as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, não podem pelo tribunal de recurso ser consideradas, salvo se de conhecimento oficioso [vide, entre outros, Ac. TRC de 14/01/14, nº de processo 154/12.3TBMGR.C1; Ac. TRP de 16/10/2017, nº de processo 379/16.2T8PVZ.P1; Ac. TRG de 08/11/2018 nº de processo 212/16.5T8PTL.G1; Ac. TRP de 10/02/2020, nº de processo 22441/16.1T8PRT-A.P1, todos in www.dgsi.pt].
*
Tendo presentes estes considerandos e revertendo ao caso concreto, analisadas as conclusões de recurso, extrai-se das mesmas a afirmação de que “O apelante discorda da matéria de facto dada como não provada, uma vez que foi produzida prova (…) que obrigava à prolação de sentença distinta”.
Acrescenta ainda o apelante “Em bom rigor o tribunal a quo não considerou provados determinados factos (…) que o deveriam ter sido (…)
[vide conclusões 1 e 2].
Em seguida afirma o recorrente que discorda “totalmente dos seguintes factos que foram dados como não provados, desde logo pela clara falta de fundamentação (…)”
Factos não provados aos quais imputa o vício da falta de fundamentação e ininteligibilidade e que identifica como os enunciados em b), d), e), f), g), h) e i) [vide conclusões 3 a 9].
Tece em seguida o recorrente considerandos sobre a credibilidade dos depoimentos do R. e seu pai (insolvente) para a seguir afirmar “A título de exemplo quanto aos factos não provados b) e i) resultou claro do depoimento do insolvente (BB) recebia da progenitora o valor mensal de € 1.000,00 (mil euros) para fazer face às despesas familiares (…)” [vide conclusão 13 e seguintes até 15]; no que diz respeito ao facto não provado b) “relativamente ao qual o tribunal a quo refere (…) isso mesmo resulta dos depoimentos do Réu e da testemunha BB, os quais se requer sejam reapreciados” [vide conclusão 16 e seguinte].
Após o que conclui o recorrente que deveriam ter sido julgados provados os factos que elenca na conclusão 19 [factos que como veremos infra não têm na sua grande parte correspondência sequer com o que foi alegado].

Recordando que ao recorrente incumbe identificar nas conclusões os concretos pontos de facto que entende estarem incorretamente julgados – por erro na apreciação da prova – temos que em concreto e em função do que acima deixámos reproduzido das conclusões - apenas se poderá julgar como devidamente identificados os pontos constantes das als. b) e i) dos factos não provados.
Quanto aos demais pontos factuais identificados pelo recorrente no início das conclusões – vide em concreto conclusões 3 a 7 – enquadrou o recorrente os mesmos no vício da decisão por falta de fundamentação e ininteligibilidade que supra já foi apreciado e julgado improcedente.
Mas já não os identificou em concreto em tais conclusões como alvo de reapreciação por erro de julgamento na apreciação da prova.
Neste campo apenas elencou o recorrente os pontos factuais b) e i).
Nesta medida e como consequência do incumprimento do ónus de especificação e concretização dos pontos impugnados a ser alvo de reapreciação, é de rejeitar a mesma, por não observância do disposto no artigo 640º nº 1 al. a) do CPC, com exceção dos pontos b) e i) dos factos não provados.
Acresce recair sobre o recorrente o ónus de indicar a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto em concreto impugnadas.
O mesmo é dizer que por referência aos concretos pontos factuais impugnados o recorrente deve dizer qual a redação que a seu ver deveria ter sido proferida.
Ora, o recorrente após a impugnação que deduziu nos termos que acima já deixámos assinalados concluiu a final, de forma global pugnando por serem julgados provados os factos que elencou na conclusão 19 em vii parágrafos [numeração que para melhor identificação dos diversos parágrafos aqui consideramos].
Nenhuma correspondência fez o recorrente entre os factos por si impugnados e os factos que elencou.
Sem prejuízo de ter reproduzido como factos a julgar como provados precisamente os factos julgados não provados sob as als. b) [correspondente ao § 4º e que reproduziu com a exata mesma redação da al. b)] e i) [correspondente ao § ii sobre o qual propôs uma redação diferente].
Correspondências que são quanto a estes pontos percetíveis e encontram apoio na impugnação validamente deduzida para estas mesmas als. b) e i) dos factos não provados.

No mais e analisados estes vii parágrafos resulta dos mesmos pretender o recorrente introduzir factualidade que só agora em sede de recurso alega.
Basta para tanto confrontar o que o R. alegou na sua contestação com o que agora propõe como factualidade a ser julgada provada.
Na contestação alegou o R. em primeiro lugar que “O valor total dos bens que compõem a herança fixa-se em € 448.557,42” que decompôs em € 239.047,12 correspondente a dinheiro; € 124.485,35 (verba 1) correspondente a dois imóveis; e € 85.025,00 correspondente a ½ de um quinhão hereditário composto por duas verbas [vide 45º da contestação].
Em segundo lugar alegou o R. que a sua avó – no contexto de dificuldades económicas de seu pai insolvente – desde 2008 e até à sua morte em .../.../2017 doou a este (seu filho) quantias em dinheiro em montante não inferior a € 240.000,00 [vide 36º da contestação].
Quantias cuja proveniência concretizou e justificou nos termos constantes dos artigos 52º e seguintes da contestação que aqui se indicam:
i- venda de bens imóveis pertença da mãe do insolvente e deste mesmo insolvente (por herança do pai deste), com doação dos valores recebidos pela mãe a seu filho insolvente. Em causa os seguintes valores: € 1197,12 (54º da contestação); € 12.000,00 (55º da contestação); € 15.000,00 (56º da contestação); € 18.750,00 (57º da contestação); € 2.000,00 (58º da contestação);
ii- entrega de valores em cheques: € 37.500,00 (31º e 59º da contestação);
iii- titularidade de quota social – sem indicação ou contabilização do seu valor (60º da contestação);
iv- entrega de valores provenientes de venda de veículos no montante de € 50.000,00 (61º da contestação);
v- entrega mensal de € 950,00 entre 2008 e até à morte da mãe do insolvente, no valor de € 102.600,00 (62º da contestação).
Perfazendo estas alegadas entregas o montante de € 239.047,12 [próximo, portanto dos alegados € 240.000,00].
Dos factos provados e não impugnados resultou ter o insolvente recebido em doação de sua mãe os valores alegados de € 1197,12; € 12.000,00; € 15.000,00; € 2.500,00 (assim se corrigindo o que teria sido um lapso de cálculo no alegado em 58º da contestação); ainda o valor recebido pela venda do imóvel identificado em 57º da contestação e que o tribunal a quo considerou corresponder a 1/3 do valor recebido ou seja € 12.500,00 (ao invés dos alegados € 18.750,00 na pressuposição não demonstrada do recebimento pela mãe de ½ do preço de venda [vide 18 e 19 dos fp para a venda deste último prédio e fp 17 para os demais prédios].
Mais se provou que o pai do R. e insolvente recebeu de sua mãe € 66.000,00 através de cheques (vide fp 21).
Perfazendo os valores que se apurou ter o insolvente recebido o montante de € 109.197,12 do total alegado de € 239.047,12.
A que acresce o fp 26 que declara ter o insolvente recebido de sua mãe ajuda para despesas quotidianas de valor não concretamente apurado [em causa os alegados € 102.600,00 à razão mensal de € 950,00 não apurados – vide i) dos factos não provados].
Por sua vez nas conclusões de recurso e nomeadamente na conclusão 19, pugna o recorrente pela introdução nos factos provados das seguintes doações:
§ 1º - € 63.147,26 provenientes de levantamentos de Banco 1... (nunca este valor foi antes alegado/identificado pelo recorrente);
§ 3º - € 400.000,00 referentes à quota social (nunca tendo antes o recorrente invocado o valor de tal quota nem sequer incluído o mesmo no valor total da herança que identificou em 45º da sua contestação);
§ 4º - € 240.000,00 que corresponde sensivelmente à soma das verbas que inicialmente o R. elencou na sua contestação nos termos acima descritos e que o tribunal apreciou de forma individualizada e consonante ao alegado na contestação. Pelo que esta verba nunca poderia ser considerada de forma individual sob pena de contabilizar em duplicado outras verbas apuradas e não apuradas;
§ 5º - € 674.094,38 que corresponde agora à soma das verbas referentes à venda dos imóveis acima já elencadas e descriminadas com o valor dos cheques recebidos e também contabilizados nos factos provados, o valor da quota não alegado antes, o valor proveniente de levantamentos de Banco 1... igualmente antes não alegado e o valor recebido mensalmente sobre o qual se provou apenas o que consta em 26 dos fp e que corresponde ao constante do § 2º.
Ou seja, os valores agora indicados nos § 4º e 5º correspondem a somas de verbas que foram consideradas antes parcelarmente ou verbas não alegadas, pelo que não poderiam claramente ser considerados.
Por sua vez os valores dos § 1º e 3º correspondem a verbas não alegadas nem consideradas na alegação do valor total dos bens da herança indicado na p.i., pelo que tão pouco poderiam ser considerados.
Em causa estão factos novos.
Tal como já supra referido, na medida em que os recursos visam por via da modificação de decisão antes proferida, reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, está vedado ao tribunal de recurso apreciar as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso.
O mesmo é dizer que não pode este tribunal de recurso reapreciar a prova produzida com vista a aquilatar se os factos novos alegados pela recorrente só agora no recurso e não no momento processual adequado foram cabalmente demonstrados[10]. Factos que ao recorrente incumbia ter oportunamente alegado para posteriormente os provar e não são de conhecimento oficioso.

Acresce que o facto indicado no § vi não respeita a facto validamente impugnado – atento o supra já exposto.
O mesmo ocorre quanto ao facto indicado no § vii, em relação ao qual de qualquer modo sempre se acrescenta que da prova documental junta aos autos extrai-se a correção do apurado – a doação incidiu sobre o quinhão hereditário correspondente a ½ da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de DD e EE, da qual faziam parte os 2 imóveis descritos em 7 dos factos provados.
Perante tudo o exposto conclui-se em primeiro lugar que o recorrente não cumpriu de igual modo e de forma cabal o ónus de indicação da redação concreta a atribuir a cada um dos pontos impugnados – ainda que se considerassem os mesmos devidamente identificados; e em segundo lugar a redação proposta não respeita nos termos analisados os limites do objeto do recurso. Exceção feita à impugnação das als. b) e i) dos factos não provados com correspondência aos §§ ii e iv.

Analisando agora a redação da al. b) dos factos não provados, a qual se relaciona com o § iv da conclusão 19, pelo que acima já expusemos, é de eliminar a mesma da decisão de facto e consequentemente dos factos não provados, pois engloba esta os valores parcelares que foram alegados pelo recorrente e que dessa maneira individual foram apreciados e julgados.
O que assim se decide.

Resta assim da nova redação proposta, o § 2º que se relaciona com o alegado em 62º da contestação e al. i) dos factos não provados.
Al. i) dos factos não provados que se julga validamente impugnada e cuja reapreciação cumpre ora observar.
Convocou o recorrente para a alteração da redação por si pretendida o seu próprio depoimento - no qual afirmou que o valor recebido pelo seu pai era de cerca de € 900,00.
Bem como o depoimento do insolvente, no qual este afirmou que o valore recebido mensalmente por sua mãe era de cerca de € 1.000,00 mensais.
Consigna-se que se procedeu à audição do depoimento do R. – em depoimento de parte e da única testemunha ouvida, precisamente o pai do R. e insolvente BB.
Tal como o tribunal a quo mencionou, nenhum outro meio de prova foi oferecido para prova direta do facto em questão que corroborasse os depoimentos mencionados.
E que tanto o R. como seu pai, a testemunha BB, têm interesse no que na causa se decide é igualmente uma realidade, tal como o tribunal a quo deu nota.
O R. corre o risco de ver as doações reduzidas por inoficiosidade.
E no processo de insolvência foi informada a inexistência de bens a integrar a massa insolvente. Informação que se então foi comunicada aos autos, o insolvente não tem agora interesse em contradizê-la. Nem aliás o fez no seu depoimento, nos termos que o próprio recorrente transcreveu. Depoimento que para além do mais é também favorável a seu filho.
O interesse no que se decide nos autos por parte do R. e da testemunha é pois inegável.
O que importa dirimir é se precisamente com fundamento neste interesse, é de afastar a credibilidade dos depoimentos em causa quanto aos valores alegados que mensalmente seriam entregues pela mãe do insolvente ao mesmo para suportar as despesas do seu quotidiano.
Tanto mais quando o tribunal a quo lhes conferiu credibilidade para julgar como provado que essa assistência mensal existia (vide 26 dos fp’s), apenas tendo julgado não cabalmente demonstrado qual o valor em concreto recebido. Tendo de igual forma considerado estes mesmos depoimentos para julgar provados os factos provados 13, 14, 23 a 27 (ainda que no que respeita à venda de viaturas com apoio nos docs. de fls. 69 a 81); os factos 15 a 19 – quanto às doações dos valores das vendas tendo sido considerados estes mesmos depoimentos, justificando o tribunal a quo tal credibilidade com a circunstância de serem as doações “verosímeis, sendo muito vulgar que nestes pequenos negócios de venda de terrenos os pais abdiquem em favor dos filhos da parte do preço que lhes caberia”; ainda quanto à propriedade do dinheiro existente em conta co-titulada pelo insolvente por referência ao julgado provado nos pontos 20 a 22, justificando a sua convicção nos seguintes termos: “nas cópias dos cheques juntos a fls. 53, 81 verso, 93 e 94, cheques provenientes de uma conta cuja titular era a falecida CC, sendo cheques passados pela referida CC (não foi impugnada a assinatura) a favor das empresas do insolvente.
O facto de o insolvente ser também titular da conta, não obsta a que as quantias dessa conta pertencessem à referida CC (sendo comum os filhos serem co-titulares das contas pertencentes aos pais).
Atenta a sua antiguidade e as vicissitudes pelas quais passou, entretanto, o banco emitente dos cheques (Banco 2...), percebe-se a dificuldade em serem juntos os originais.
Tanto o réu como a testemunha afirmaram que a falecida CC tentou ajudar as empresas do filho, sendo que duas delas acabaram por ser encerradas sem dívidas.
Conjugando estes depoimentos com os cheques apresentados, sendo perfeitamente aceitável que a CC tentasse, na medida do possível, ajudar o seu filho único nas dificuldades que este enfrentou, entende-se dar credibilidade às referidas ajudas, relativamente às quantias tituladas pelos cheques.”
Ora esta reconhecida e julgada aceitável ajuda por parte da mãe a seu filho, o insolvente pai do R., pressuposta numa efetiva necessidade de ajuda que tanto o R. como seu pai reiteraram, na sequência das dificuldades económicas que atravessou, abrangeu também a alegada, afirmada e apurada ajuda mensal, nos termos constantes de 26 dos fp’s.
E o valor mensal a este título entregue foi pelo R. afirmado rondar os 900 euros mensais, ao invés tendo a testemunha BB afirmado rondar os 1000 euros.
Com os quais afirmava se sustentar – ele e esposa - mensalmente.
É certo inexistir prova, nomeadamente documental, que demonstre a entrega mensal de tais valores.
No entanto, no contexto de ajuda apurado e fundado em reais necessidades da testemunha BB e esposa, certo sendo que nenhuma contraprova foi produzida que colocasse em causa estes mesmos valores que se afiguram razoáveis num contexto de necessidade versus as capacidades proclamadas e apuradas da progenitora, afigura-se-nos ser de conferir aos depoimentos o mesmo nível de credibilidade que para o demais apurado foi considerado, sendo assim de julgar como provado que durante o período apurado e indicado em 26 dos fp´s a mãe do insolvente ajudou o mesmo nas suas despesas quotidianas, entregando-lhe quantia de valor não inferior a € 900,00 mensais.
Relembra-se que na formação da convicção do julgador, o princípio da livre apreciação das provas continua a ser a base, nomeadamente quando em causa estão apenas depoimentos das testemunhas e declarações de parte [vide art.ºs 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.ºs 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 (quanto às declarações de parte) do C.P.C.].
E não sendo exigível na formação da convicção do julgador uma certeza absoluta, por via de regra não alcançável quanto à ocorrência dos factos que aprecia, é de concluir de acordo com as regras da experiência (vide artigo 607º nº 4 do CPC) e perante a prova produzida (testemunha e depoimento de parte) nos termos já explicados, que no caso concreto e pela análise conjugada da prova produzida e matéria de facto adquirida, com muito elevado grau de probabilidade, ocorreu a entrega mensal do valor acima mencionado.

Nesta medida procedendo parcialmente a pretendida alteração da al. i) dos factos não provados, passará o fp 26 a ter a seguinte redação:
“26- Perante esse cenário a mãe do insolvente desde pelo 2008 até à sua morte em .../.../2017 ajudou o filho nas suas despesas quotidianas, entregando-lhe quantia de valor não inferior a € 900,00 mensais.”
Termos em que se julga parcialmente procedente a pretendida alteração.
*
***
3) Do erro na aplicação do direito.
Em função da alteração introduzida nos factos provados, cumpre apreciar de direito. Aferindo nomeadamente se o decidido merece censura.
Para tanto tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não obstante, sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido, não estar o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC].
Tal como resulta do relatório supra a autora pugnou pela redução das liberalidades (doações) feitas pela autora da herança CC – mãe do insolvente e avó do aqui R. – ao R. precisamente com fundamento na sua inoficiosidade, na medida em que excedem o valor da legítima do insolvente. Excesso que a A. (massa insolvente) contabilizou em € 104.755,15 partindo de um valor de legítima do autor de € 104.755,15 [correspondente a ½ do valor total da herança que identificou como sendo constituída apenas pelos bens doados] e um valor dos bens doados ao R. de € 209.510,30.

O R. defendeu inexistir a invocada inoficiosidade. O que reiterou em sede de recurso, após defender a alteração da decisão de facto, parcialmente julgada procedente.
Em função da factualidade assente – após a alteração introduzida – cumpre apreciar se assiste razão ao R. recorrente.

Para tanto e em função das questões suscitadas pelo recorrente, importa em primeiro lugar definir se os valores mensais entregues pela progenitora a seu filho (pai do R.) e que ora em função da redação alterada do facto provado 26 se pode contabilizar no montante total de € 106.200,00[11] [correspondente a 118 meses – 9 anos de 2008 a 2016 inclusive, acrescido de 10 meses de 2017] devem ou não ser contabilizados para o cálculo da legítima.
Valor sobre o qual o tribunal a quo expressou o entendimento[12] de não dever ser considerado no cálculo da legítima por se tratar de ajudas normais de pais para filhos.
Do que discorda o recorrente. Argumentando que deveria este valor ser considerado para efeitos de determinar se ocorre ou não inoficiosidade, por violação da legítima.

Entende-se por legítima a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários (cfr. artigo 2156º do CC).
Legítima que no caso de concorrer à herança apenas um filho (não havendo cônjuge sobrevivo) é de metade da herança (cfr. artigo 2159º do CC).
Para o cálculo da legítima, deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança (artigo 2162º nº 1 do CC).
Determina, portanto, o legislador a “restituição fictícia de todos os bens doados em vida pelo autor da sucessão”, a qual se não confunde com a colação:
“a) porque a colação só abrange as liberalidades feitas aos legitimários; b) porque a colação, restituição realmente processada tem por fim a igualação da partilha, enquanto a reunião fictícia dos bens doados visa apenas o cálculo da quota disponível e também das legítimas; porque a colação abrange liberalidades que não revestem a forma estrutural típica da doação, sendo precisamente a estas que (sob a designação vulgar de despesas) se refere logo a seguir o artigo 2162º”.
E as despesas sujeitas a colação a que este mesmo nº 1 logo a seguir se reporta, “representam encargos da paternidade, suportados gratuitamente pelo pai em virtude de circunstâncias da vida, mas sem qualquer propósito discriminatório entre os filhos ou seus descendentes (…).
É de harmonia com esta penetrante conceção da vida que só estão sujeitas a colação, para o efeito do cálculo da legítima, os bens doados a quem for presuntivo herdeiro legitimário à data da doação (art. 2105º), bem como as despesas feitas gratuitamente apenas com os descendentes, nos termos do artigo 2110º.
Já não cabem inteiramente nesta moldura lógica e conceitual, quer as despesas compreendidas no nº 2 do artigo 2110 enquanto não excederem os usos e a condição social e económica do falecido, quer os bens doados que tiverem perecido nos termos referidos pelo artigo 2112º.
Quando porém, a despesa tenha sido realizada de acordo com os usos e dentro da condição económica e social do doador, mas seja feita a estranhos, tratar-se-á de doação que conta para efeito do cálculo da legítima”[13]
O que releva apreciar em concreto é, pois, saber se as despesas que ora analisamos se integram no nº 2 do artigo 2110º caso em que não entrariam para a contabilização do valor da herança e assim da legítima.
Ou antes e com vista a ser contabilizado tal valor para o cálculo da legítima, se entram no número 1 do mesmo artigo 2110º, ou ainda e como defende o recorrente, se está em causa uma doação – então necessariamente manual, por no contexto dos factos apurados estar em causa um ato de entrega de bem móvel (dinheiro) de forma direta ao donatário (vide 2113º do CC). Não relevando para o efeito que se analisa o facto de se presumir sempre dispensada de colação (nº 3 do artigo 2113º). Pois que para efeito de cálculo da legítima terá de ser contabilizada, pelas razões que acima se deixaram indicadas na transcrição efetuada.
O que dos factos provados consta (fp’s 25 e 26) é que num cenário de desemprego do filho insolvente e esposa, a mãe (autora da herança) ajudou o filho nas suas despesas quotidianas - em consonância aliás com o alegado em 62º da contestação, onde o R. afirmou que tal valor se destinava a que pudesse fazer às despesas do seu agregado familiar” – entregando para o efeito valor não inferior a € 900,00.
A entrega do valor apurado ao filho da autora da herança num contexto de desemprego deste e sua esposa para as despesas quotidianas excede a nosso ver o conceito de despesas do artigo 2110º e melhor será integrado no conceito de doação manual, acima aludido.
A assim não ser entendido, então melhor se integraria no nº 1 do citado artigo 2110º.
Em qualquer das situações devendo ser contabilizado para efeitos do cálculo da legítima nos termos do artigo 2162º do CC.
Assim definida esta contabilização resta em função dos demais valores apurados apurar qual o valor da herança e por via deste o valor da legítima.
Sendo certo que os demais valores apurados não foram questionados nos termos em que pelo tribunal a quo foram julgados provados.
Temos assim que o valor do património do autor da herança a contabilizar para os fins do cálculo da legítima soma o total de € 424.197,62 [correspondente à soma das seguintes parcelas: € 215.397,12 recebidos pelo autor + € 84.395,00 (correspondente a ½ do quinhão hereditário doado e descrito em 7 dos fp´s) + € 124.405,50 (correspondente ao bem descrito em 5 dos fp’s)].
De onde resulta um valor da legítima de € 212.098,81 [já que o insolvente era o único descendente e não havia cônjuge sobrevivo].
A ser assim, verifica-se não terem os bens doados excedido o valor da quota disponível, tendo sido respeitada a legítima do autor.
O mesmo é dizer que não se verifica a arguida inoficiosidade que se fundamenta na ofensa da legítima dos herdeiros legitimários.
Consequentemente tem a pretensão da A. de improceder na sua totalidade, com a revogação total do decidido.
***
III. Decisão.
Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o presente recurso, consequentemente e revogando a decisão recorrida se decidindo julgar totalmente improcedente a ação com a consequente absolvição do R. do pedido.
Custas pela recorrida autora, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.
***
Porto, 2022-06-27.
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
_________________
[1] Vide retificação da formulação do pedido apresentada em 05/10/2020, na sequência do determinado pelo tribunal a quo por despacho de 22/09/2020 – conforme consulta eletrónica do processo que aqui se deixa consignada.
[2] Preceitua o artigo 615º nº 1 do CPC
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
[3] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, nº de processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt
[4] Vide Ac. STJ de 30/05/2013, nº de processo 660/1999.P1.S1, in www.dgsi.pt sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento.
[5] Vide neste sentido Ac. TRP de 11/01/2018, Relator Filipe Caroço; Ac. TRL de 03/12/2015, Relator Olindo Geraldes; Ac. TRG de 21/05/2015, Relatora Ana Duarte in http://www.dgsi.pt.
[6] Vide neste sentido Ac. TRL de 10/10/2017, nº de processo 23656/15.5T8SNT.L1-7; Ac. TRG de 21/03/2019, nº de processo 68/17.0T8VFL.G1, ambos in www.dgsi.pt
[7] Cfr. os Acs. citados nas notas 3 e 4.
[8] Realce nosso.
[9] Cfr. Ac. STJ de 22/03/2018, nº de processo 290/12.6TCFUN.L1.S1, in www.dgsi.pt
[10] Cfr. neste sentido Ac. STJ de 15/09/2021, nº de processo 559/18.6T8VIS.C1.S1 in www.dgsi.pt
[11] O cálculo efetuado pelo recorrente e constante de 62º da contestação padece de lapso que aqui se deixa corrigido.
[12] Sem prejuízo de não ter então apurado qual era o valor em concreto a considerar.
[13] Cfr. notas 2 e 3 em anotação ao artigo 2163º do CC anotado de Pires de Lima e Antunes Varela. Vol. VI, edição 1998, p. 264/265. Ainda e sobre o cálculo da legítima no sentido que seguimos, cfr. Acs. TRG de 28/06/2018, nº de processo 5182/15.4T8VNF.G1 relatado pela aqui 1ª adjunta e Ac. STJ de 03/11/2005 nº de processo 05B3239 in www.dgsi.pt