Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
209/21.3T9MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
PRINCÍPIO ACUSATÓRIO
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RP20230503209/21.3T9MCN.P1
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo a acusação peça fundamental que fixa o objeto do processo e sobre a qual o arguido se vai pronunciar e exercer os seus direitos de defesa e tendo por assente que a notificação efetuada ao abrigo do art.105º, n º 4, b), do Regime Geral das Infrações Tributárias é condição objetiva de punibilidade, tal notificação tem de constar da acusação para a mesma se justificar relativamente ao arguido em concreto; se assim não for, falha um pressuposto essencial para que alguém possa ser eventualmente condenado.
II - O saneamento do processo resultante do despacho proferido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, quando se traduz numa decisão genérica sobre a verificação dos pressupostos processuais e inexistência de nulidades e irregularidades e questões prévias ou incidentais, não faz caso julgado formal; só fará caso julgado formal se o juiz tiver apreciado concretamente a questão e essa decisão concreta não tiver sido impugnada.
III – Em face da omissão de referência à condição objetiva de punibilidade na acusação, não existem condições para punir o comportamento em causa e, por consequência, nem sequer existem os pressupostos da alteração substancial ou não substancial de factos, pois não estamos perante factos novos, surgidos em fase de julgamento e resultantes da discussão e do confronto de posições.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 209/21.3T9MCN.P1 - Juízo Local Criminal de Marco de Canaveses

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular em epígrafe id. a correr termos no Juízo Local Criminal de Marco de Canaveses, por sentença foi decidido:
«i) Absolver a sociedade arguida “A..., Lda.” da prática, da prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, qualificado pelo valor, previsto e punido nas normas dos artigos 6.º, 7.º, 105.º, n.º 1, e 107.º, n.º 1, todos da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (RGIT);
ii) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 30.º do Código Penal e artigos 6.º e 107.º n.º 1 e 2, por referência ao artigo 105.º n.º 1, 4 e 7 todos da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (RGIT), na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 1.320,00 (mil, trezentos e vinte euros);
iii)Declarar, nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 4, do Código Penal, a perda a favor do Estado do montante correspondente aos valores de que o arguido AA se apropriou, no montante de € 39.418,41 (trinta e nove mil, quatrocentos e dezoito euros, e quarenta e um cêntimos), correspondente à soma das vantagens obtidas com o não pagamento à Segurança Social das respectivas prestações, mediante a prática dos factos enunciados nos factos provados, a cujo pagamento se condena o mesmo arguido – quantia à qual deverá ser descontado o valor que, eventualmente, já tenha sido pago;
iv) Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Instituto da Segurança Social, IP, e, em consequência, decide-se condenar os arguidos/demandados AA e a sociedade “A..., Lda.” a pagarem ao demandante a quantia de 39.418,41 € (trinta e nove mil, quatrocentos e dezoito euros, e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento;
v) Custas cíveis a cargo dos demandados, em partes iguais, e custas criminais a cargo do arguido AA, fixando-se a taxa de justiça criminal em 2 (duas) UC.»
*
Inconformado, o M.P. interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra que condene a sociedade arguida.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
« 1- Numa parte da sentença, proferida em 09-11-2022, lê-se que:
“De facto, nada vem alegado na acusação quanto ao preenchimento da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, b), do RGIT, relativamente à sociedade arguida “A..., Lda.”.…
2- Perante a ausência de alegação na acusação quanto ao cumprimento da mencionada condição objetiva de punibilidade, temos que concluir, sem necessidade de maiores considerações, que a acusação terá de improceder relativamente à sociedade arguida “A..., Lda.”.
3- Para tanto, citou jurisprudência, com a qual concordamos.
4- E, assim sendo, absolveu a sociedade arguida, quer do crime, quer da perda da vantagem criminal, condenando apenas o gerente AA.
5- Salvo o devido respeito, discordamos desta parte sentença absolutória em relação à sociedade/arguida, por 10 razões.
6- Em primeiro lugar, a empresa/arguida foi notificada na pessoa do seu gerente. Isto existiu, na realidade. Aconteceu.
7- Em segundo lugar, a notificação da arguida/empresa pagar (condição objetiva de punibilidade, prevista no artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT) está documentada no processo.
8- Em terceiro lugar, notificação em causa está alegada, de forma expressa, na acusação.
9- Em quarto lugar, a parte da sentença em crise violou o caso julgado formal.
10- Com efeito, num primeiro momento, no despacho de recebimento da acusação, em 19-05-2022, o M. Juiz decidiu, de uma forma expressa, que:
11- “A acusação do Ministério Público contém todos os elementos legalmente exigíveis (artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) e não se vislumbra, por outro lado, a presença de qualquer causa de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.
12- Pelo exposto, recebo a acusação pública deduzida a folhas 257-265 pelo Ministério Público contra os arguidos “A..., Lda.” e AA, identificados nos autos, pelos factos e disposições legais dela constantes, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.”
13- Depois, num segundo momento, na parte da sentença ora recorrida, absolve-se a empresa arguida, porque falta, na acusação, a alegação da notificação da arguida/empresa para pagar.
14- Ora, a parte da sentença recorrida está em total contradição com o despacho de recebimento da acusação.
15- A parte da sentença recorrida está em total contradição com o despacho anterior de recebimento da acusação (que decidiu que a acusação – vide a este propósito Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª Ed. Atualizada, pág. 997, nota 1 – continha todos os fatos necessários para o crime), devendo prevalecer o primeiro.
16- É o que resulta da norma de processo civil aplicável subsidiariamente ao processo penal (vide antigo artigo 675º, nº 1 e 2 e atual 625º, nº 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 4º do CPP).
17- Assim sendo, a sentença recorrida é nula, nesta parte, porque viola o caso julgado formal.
18- Em quinto lugar, não está em causa nenhuma nulidade insanável, esta nulidade estava dependente de arguição, pelo que o M. Juiz não podia conhecer dela, ex officio e absolver a arguida/empresa (artigos 118º e ss. do CPP).
19- Vide acórdão do tribunal da Relação de Évora, de 10-12- 2009, in www.dgsi.pt e, ainda, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-12-2008 e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18-02-2008, ambos in www.dgsi.pt e no site da PGDL, em anotação ao artigo 283º do CPP.
20- Vide, também, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código do Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 744-5, notas 12 e 13.
21- E, ainda, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, in “Código do Processo Penal – Comentários e Notas Práticas”, pág. 716, nota 7 que diz que: “a nulidade de acusação é sanável…”
22- Nem a defesa, nem ninguém levantou questões ou dúvidas sobre a validade e eficácia da parte da acusação contra a arguida/empresa, menos o M. Juiz que, após diversas diligências desnecessárias e inúteis, operou uma decisão final surpresa, nesta parte, a favor da arguida/empresa, que absolveu, erradamente.
23- Em sexto lugar, mesmo que o M. Juiz entendesse assim (coisa com a qual não se concorda!!!), não havendo falta de dolo na acusação (pelo que não é aplicável o AUJ Nº 1/2015), deveria ter procedido a uma alteração da qualificação jurídica, não tendo sido observado, pois, o disposto no artigo 358º do CPP.
24- Em sétimo lugar, o mesmo M. Juiz, ao longo destes últimos 2/3 anos, decidiu de forma totalmente diferente a este caso, em situações semelhantes (mas de forma congruente, com as nossas acusações), mudando, agora, recente e subitamente, de opinião, entrando em frontal e total contradição com as suas decisões anteriores e muito recentes.
25- Vide, entre outros e por todos, os processos nºs
- 311/21.1T9MCN (com sentença de 21-03-2022),
- 138/20.8T9MCN (com sentença proferida 06-12-2021),
- 65/20.9T9PRD (com sentença proferida 29-09-2021) e
- 495/21.9IDPRT (com sentença proferida 03-05-2022),
Todos consultáveis, no Citius.
26- Em oitavo lugar, feita uma pesquisa no Citius, desde 01-01- 2018 até à presente data, o signatário fez 57 acusações semelhantes a esta, em toda a comarca do Porto Este (porque, nos anos de 2020 e 2021, esteve com a titularidade/responsabilidade de todos os inquéritos desta comarca do Porto Este, relativos a este tipo crime de abuso de confiança contra a segurança social.
27- Com a exceção de um caso semelhante, muito recente, com sentença proferida pelo mesmo M. Juiz e que também teve recurso do Ministério Público, há poucas semanas e que está pendente (processo nº 312/21.0T9MCN), todos os outros 55 casos idênticos a este, foram julgados e decididos, nos 8 municípios desta comarca do Porto Este, por diversos juízes (mais de uma dezena!), sem que nenhum deles tivesse levantado este problema e decidido desta forma (absolvição da empresa), da qual se recorre.
28- Todos eles (os 55 casos), consultáveis no Citius, vide a título exemplo, processos nºs: 311/21.1T9MCN (com sentença de 21- 03-2022), 138/20.8T9MCN (com sentença proferida 06-12-2021), 65/20.9T9PRD (com sentença proferida 29-09-2021), 495/21.9IDPRT (com sentença proferida 03-05-2022), deste município/núcleo (juízo local criminal de Marco de Canaveses), - 273/20.2T9MCN (juízo local criminal de Lousada), - 12/20.8T9MCN, 13/20.6T9MCN, 213/20.9T9MCN e 215/20.5T9PRD (juízo local criminal de Penafiel), - 14/20.4T9MCN, 60/20.8T9MCN e 71/20.3T9MCN (juízo local criminal de Paredes), - 46/20.2T9AMT e 74/20.8T9PRD (juízo local criminal de Amarante) e - 31/20.4T9MCN, 5/20.5T9PRD, 57/20.8T9PRD, 61/20.6T9MCN e 171/20.0T9MCN (juízo local criminal de Felgueiras).
29- Em nono lugar: tendo, consequentemente, a sentença, nesta parte recorrida, violado as normas dos artigos 110º do CP, 577º, 580º, 581º, 582º, 619º, 620º e 625º do CPC, ex vi artigo 4º do CPP, 118º a 121º, e 311º a 313º e 358º do CPP, 6.º, 7.º, 105.º, n.º 1 e 5, e 107.º, n.º 1, estes da Lei n.º 15/2001 de 5 de junho (RGIT), o que se peticiona que se reconheça.
30- Em décimo e último lugar: devendo, pois, o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso, determinar-se em conformidade com as conclusões que antecedem, designadamente revogar-se a parte da sentença recorrida que absolveu a sociedade arguida e ser proferido douto acórdão, julgando a mesma responsável criminalmente e condenando-a pela prática de um na pena que o tribunal considerar justa e adequada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido nas normas dos artigos 6.º, 7.º, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.º 1, todos da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (RGIT) e ainda na declaração de perda a favor do Estado da vantagem criminal até ao valor da dívida (artigo 110º do CP).»
*
A arguida não respondeu.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acolheu a posição assumida pelo recorrente Ministério Público, pugnando, assim, pela procedência do recurso e pela revogação de parte da sentença recorrida.
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Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, a recorrido não apresentou resposta.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Ausência de alegação na acusação quanto ao cumprimento da condição objetiva de punibilidade;
- Violação do caso julgado formal;
- Conhecimento da nulidade e sua caracterização;
- Inobservância do disposto no art. 358º do CPP;
- Incongruências do tribunal a quo.
*
Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença recorrida (transcrição):
«A. Factos provados

1. A arguida “A..., Lda.” é uma sociedade por quotas, matriculada sob o nº ... na Conservatória do Registo Comercial (CRC) do Marco de Canaveses, que iniciou a atividade em 2004/10/29 e foi registada na Segurança Social em
2005/02/03, tendo como objeto social a “construção civil e obras públicas, demolição e terraplanagens, engenharia civil, construção de coberturas, construção de estradas, vias férreas, aeroportos e instalações desportivas, engenharia hidráulica, estocagem, pintura e colocação de vidros, construção de edifícios, preparação de locais de construção”.
2. A gerência da sociedade comercial arguida, no período em causa, esteve a cargo de BB, que foi designada gerente em 2005/12/12, não havendo registo de renúncia.
3. Todavia, quem mandava na empresa, fazia pagamentos de salários e a fornecedores era o seu marido, o arguido AA.
4. Aquela apenas foi gerente no papel, a pedido deste, pois ela até trabalhava na agricultura.
5. No exercício das suas funções de gerente, o arguido AA integrou no património da sociedade arguida as quantias em dinheiro que reteve dos descontos que efetuou nos salários devidos e que foram pagos aos trabalhadores da sua empresa, sita no concelho de Marco de Canaveses, e que a seguir se descriminam:









6. Assim, no decurso daqueles períodos de tempo, de Fevereiro de 2005 a Agosto de 2005, Outubro de 2005, Dezembro de 2005 a Dezembro de 2018, o arguido, no exercício do giro comercial da empresa, integrou no património desta a quantia global de 39.418,41 € (trinta e nove mil, quatrocentos e dezoito euros, e quarenta e um cêntimos), provenientes dos descontos relativos às quotizações de salários pagos a si, e aos trabalhadores que tinha a seu cargo.
7. Até à presente data e apesar de notificado pela Segurança Social em 23.09.2021, nos termos e para efeitos do artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT, o arguido AA não regularizou a situação com a previdência e nada pagou à Segurança Social Portuguesa, encontrando-se a Segurança Social patrimonialmente lesada no correspetivo montante.
8. O arguido agiu deliberadamente, com intenção de integrar no património da sociedade arguida as quantias em dinheiro que recebeu e reteve, por título não translativo de propriedade e por via do pagamento de salários aos seus trabalhadores, invertendo assim o título de posse em relação ao dinheiro e quantias que reteve ou recebeu, não obstante saber que aquela quantia de 39.418,41 € (trinta e nove mil, quatrocentos e dezoito euros, e quarenta e um cêntimos) não lhe pertencia.
9. O arguido sabia que tinha o dever de entregar nos cofres da Segurança Social Portuguesa as quantias em dinheiro relativas às quotizações que cobrou e que reteve.
10. Agiu ainda livre e lucidamente, no interesse e em nome da sociedade arguida, e com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11. O arguido actuou da forma descrita, movido pela facilidade com que sucessivamente logrou concretizar os seus intentos, pois que após não ter entregue os montantes referentes às contribuições do mês de Fevereiro de 2005, não entregou as prestações subsequentes acima referidas, em virtude do ISS não ter entretanto inspeccionado a sociedade arguida, criando ao longo desse período de tempo a convicção de que a sua conduta criminosa tinha sido bem sucedida e permanecia impune, convencimento que só veio a ser interrompido com a acção de inspecção que foi efectuada pelos Serviços competentes do ISS.
12. O arguido tem inscrito a seu favor o registo do automóvel com a matrícula “OD-..-..”.
13. O arguido apresentou rendimentos do seu trabalho junto da segurança social, sendo o último no valor de € 505,00, relativo ao mês de Abril de 2005.
14. O arguido não tem antecedentes criminais.
15. A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.
*
2.1. Factos Não Provados:
Com relevo para a decisão da causa, não resultou provado:
1. O arguido decidiu fazer suas as quantias em dinheiro referidas em 5) e 6) dos factos provados.
2. O arguido apropriou-se, integrando no seu património pessoal, as quantias referidas em 5) e 6) dos factos provados, o que fez à custa do património da Segurança Social.
*
Consigna-se que o demais alegado constitui matéria de direito, conclusiva, repetida ou sem pertinência para a descoberta da verdade e boa resolução da causa.»

Acusação proferida pelo M.P:

“Em processo comum e perante tribunal singular, o Ministério Público acusa:
1- A... LDA

Sede: LUGAR ..., ... ..., MARCO DE CANAVESES
Morada de TIR: ..., ... ..., ... ...
NISS: ...
NIF: ... e
2- AA

Morada: ..., ..., ... ...
NISS: ...
NIF: ...
Porquanto:
A arguida A... LDA é uma sociedade por quotas, matriculada sob o nº ... na Conservatória do Registo Comercial (CRC) do Marco de Canaveses, que iniciou a atividade em 2004/10/29 e foi registado na Segurança Social em 2005/02/03, tem como objeto social a “construção civil e obras públicas, demolição e terraplanagens, engenharia civil, construção de coberturas, construção de estradas, vias férreas, aeroportos e instalações desportivas, engenharia hidráulica, estocagem, pintura e colocação de vidros, construção de edifícios, preparação de locais de construção.”
Da certidão da CRC resulta, além do mais, que a gerência da sociedade comercial arguida, no período em causa, esteve a cargo de BB, que foi designada gerente em 2005/12/12, não havendo registo de renúncia.
Todavia, quem mandava na empresa, fazia pagamentos de salários e a fornecedores era o seu marido, o arguido AA.
Aquela apenas foi gerente no papel, a pedido deste, pois ela até trabalhava na agricultura.
Tal como resulta do Mapa com a identificação das cotizações em falta, constante de fls. 410 e ss. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos e que a seguir se transcreve:















o arguido AA decidiu fazer suas e não entregar nos cofres da Segurança Social Portuguesa, as quantias em dinheiro provenientes dos descontos que efetuou nos salários devidos e que pagou aos trabalhadores da sua empresa, sita no concelho de Marco de Canaveses, nesta comarca.
Assim, em obediência a esse mesmo desígnio apropriativo e no decurso daqueles períodos de tempo de fevereiro de 2005 a dezembro de 2018 e sem qualquer causa justificativa, a arguida, no exercício do giro comercial da empresa, apropriou-se da quantia global de 39.418,41 € (trinta e nove mil quatrocentos e dezoito euros e quarenta e um cêntimo) provenientes dos descontos relativos às cotizações de salários pagos a si, e aos trabalhadores que tinha a seu cargo.
Com efeito, em vez de a arguida entregar tal quantia à Segurança Social Portuguesa, que recebeu a título de mero depositário, por título não translativo de propriedade, como podia e devia, fê-la sua e integrou-a no respetivo património, locupletando-se à custa do património daquela entidade.
Até à presente data e apesar de notificado pela Segurança Social em 23/09/2021, nos termos e para efeitos do art. 105º, nº 4, al. b) do RGIT, o arguido não regularizou a sua situação com a previdência e nada pagou à Segurança Social Portuguesa e recusa-se a satisfazer as suas obrigações contributivas em dívida, encontrando-se a Segurança Social patrimonialmente lesada no correspetivo montante.
Agiu deliberadamente e em obediência ao mesmo desígnio, com intenção de fazer sua e de integrar no respetivo património as quantias em dinheiro que recebeu e reteve, por título não translativo de propriedade e por via do pagamento de salários aos seus trabalhadores, invertendo assim o título de posse em relação ao dinheiro e quantias que reteve ou recebeu e comportando-se em relação a ela como se fosse o seu legítimo proprietário, não obstante saber que aquela quantia de 39.418,41 € (trinta e nove mil quatrocentos e dezoito euros e quarenta e um cêntimo) não lhe pertencia e que atuava contra a vontade da dona.
Bem sabia que tinha o dever de entregar nos cofres da Segurança Social Portuguesa as quantias em dinheiro relativas às cotizações que cobrou e ilegitimamente reteve.
Agiu ainda livre e lucidamente, a coberto de uma só resolução criminosa, no interesse e em nome da sociedade arguida, em conjugação de vontades e comunhão de esforços e com a perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, os arguidos A... LDA e AA cometeram um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido nas normas dos artigos 6º, 7º, 105º, n.º 1 e 107º, n.º 1, todos da Lei n.º 15/2001 de 5 de junho (RGIT).
DA PERDA DA VANTAGEM PATRIMONIAL:
Dispõe o artigo 110.º do Código Penal, na redação da Lei n.º 30/2017, de 30.05, sob a epígrafe “perda de produtos e vantagens”, no seu n.º 1 al. b) que “são declarados perdidos a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.” E o n.º 4 desse mesmo artigo estipula que “se os produtos ou as vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A”. Tudo isto sem prejuízo dos direitos do ofendido, tal como se prevê no n.º 6 do artigo 110.º do Código Penal.
Nestes casos, nos termos do disposto no artigo 130.º, n.º 2 do C.P., “[…] o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondentes ou a receita gerada pela venda dos mesmos.
O legislador português optou assim por um sistema misto. A obrigação de confisco é geral e sobrepõe-se à vontade de qualquer indivíduo, mas salvaguardando, igualmente, os seus direitos.
Quer isto dizer que, o pedido de indemnização civil que os eventuais ofendidos – no caso o Instituto de Segurança Social, IP – venham a requerer, não faz precludir o direito de confiscar as vantagens obtidas através do facto ilícito. A perda deverá sempre ser declarada e, caso o pedido de indemnização civil venha a ser procedente, a declaração de perda deverá harmonizar-se com o decidido podendo inclusivamente não produzir quaisquer efeitos práticos (pense-se na hipótese do montante da declaração da perda de vantagem ser idêntico ao montante atribuído a título de indemnização). No entanto a perda deverá sempre ser declarada enquanto manifestação do ius imperium estadual.
Como referem Vítor Sá Pereira e Alexandre Lafayette (in Código Penal anotado e Comentado, pags. 299/300) “[…] aqui está em causa a prevenção da criminalidade em globo, à luz da ideia de que o crime não compensa […] a perda de vantagem não é uma pena acessória. É antes uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança”.
E como se escreve no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22.02.2017, “a perda de vantagem patrimonial prevista no artigo 111.º do C.P. reveste carácter sancionatório com intuitos exclusivamente preventivos e não carácter indemnizatório […]”.
Ora, no vertente caso, o arguido reteve os valores das quotizações retidas nos salários dos trabalhadores e nos salários pagos aos membros estatutários, enquanto gerente, de facto e de direito, da sociedade arguida.
Não obstante, até à presente data, a arguida não saldou os mencionados montantes, após deduzidos os mesmos.
Praticou, assim, atos necessários e adequados a que a sociedade que era por si gerida, se eximisse à entrega e pagamento à Segurança Social dos valores devidos a título de quotizações, obtendo um benefício ilegítimo correspondente, pelo menos, à quantia total de 39.418,41 € (trinta e nove mil quatrocentos e dezoito euros e quarenta e um cêntimo).
Pelo exposto, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, al. b) e 4 do Código Penal, sem prejuízo dos direitos do Instituto da Segurança Social, IP, devem os arguidos ser condenados a pagar ao Estado o montante correspondente aos valores retidos e não entregues à Segurança Social, correspondente à soma das vantagens obtidas, mediante a prática dos factos enunciados na acusação deduzida. Termos em que se promove a condenação dos arguidos A... LDA e AA a pagar ao Estado o valor de 39.418,41 € (trinta e nove mil quatrocentos e dezoito euros e quarenta e um cêntimo) que corresponde ao valor das vantagens obtidas com a prática do facto ilícito típico nos termos do artigo 110.º, n.º 1 al. b) e n.º 4 do Código Penal.
Prova:
Documental:
1- Certidão permanente por NIPC da empresa.
2- Mapas com a identificação das cotizações em falta.
3- Notificação.
4- Declarações de remunerações mensais.
5- Recibos de vencimento.
6- Declarações para efeitos de IRS.
7- Parecer Fundamentado.
8- CRC.
Testemunhal:
1- CC, Técnica Superior do ISS, IP, a exercer funções no Núcleo de Gestão de Dívida do Centro Distrital do Porto, com domicílio profissional na Rua ..., ... Porto;
2- DD, melhor identificado a fls 262 e 263 dos autos; e
3- EE, melhor identificado a fls 313 e 314 dos autos Medidas de coação:
Por se afigurar suficiente e adequado às exigências cautelares, determino que os arguidos aguardem os ulteriores trâmites processuais sujeitos a termo de identidade e residência, já prestados (artigos 191.º, 192.º, 193.º e 196.º, todos do CPP).
Cumpra o disposto no artigo 283.º, n.º 5 do CPP.
Comunique à Segurança Social (artigo 50º do RGIT).”

Despacho de recebimento da acusação.

“O Tribunal é o competente.
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Pedido de constituição de assistente:
Quanto ao pedido de constituição apresentado pelo Instituto da Segurança Social, I.P., antes de mais, cumpra-se o disposto no artigo 68.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
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Inexistem nulidades, excepções ou outras questões de que cumpra conhecer de imediato e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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Autue como processo comum, com intervenção de Tribunal Singular.
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A acusação do Ministério Público contém todos os elementos legalmente exigíveis (artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) e não se vislumbra, por outro lado, a presença de qualquer causa de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.
Pelo exposto, recebo a acusação pública deduzida pelo Ministério Público (ref. n.º 88033304) contra os arguidos “A..., Lda.” e AA, identificados nos autos, pelos factos e disposições legais dela constantes, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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Oportunamente, notifique os arguidos nos termos dos artigos 311.º-A, do Código de Processo Penal (na redacção dada pela Lei n.º 94/2021, de 21.12), com cópia da acusação, para, designadamente, em vinte dias apresentarem, querendo, contestação da acusação contra si deduzida e rol de testemunhas ou requererem outras diligências de prova, nos termos do artigo n.º 311-B, do Código referido.
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Após o decurso do prazo previsto no artigo 311.º-B, abra conclusão para que seja designada data para a realização de audiência de julgamento (artigo 312.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
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Medidas de coacção: Não havendo qualquer alteração factual a registar determino a manutenção da medida de coacção já prestada pelos arguidos.
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Admite-se o pedido de indemnização civil deduzido (cfr. ref. n.º 7808709).
Notifique os arguidos/demandados para, querendo, contestarem tal pedido.”
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Vejamos.
A Lei nº 53-A/2006 de 29 de Dezembro, que deu a redação vigente ao art. 105º do RGIT, acrescentou, no que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, e ao crime de abuso de confiança contra a segurança social [ex vi, art. 107º, nº 2 do referido regime geral], uma nova condição objetiva de punibilidade – assim qualificada pela jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 6/2006.
Condição que consiste em a falta de entrega das prestações tributárias e das prestações de segurança social, declaradas, deduzidas e não entregues, só ser punível se não forem pagas, com os legais acréscimos, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito feita.
Nos presentes autos a arguida foi absolvida da prática de um crime de abuso de confiança fiscal por o Tribunal ter entendido que não constando da acusação a referência ao cumprimento da condição objetiva de punibilidade prevista no artº 105º, nº 4, al b) do RGIT, o crime imputado á sociedade arguida não é punível.

Dispõe o artº 105º, nº 1 do RGIT que:

Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias”.

E o nº 4 do referido normativo estipula que os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

A infração imputada aos arguidos é composta pelos seguintes elementos:
- O agente esteja obrigado a entregar ao credor tributário (administração fiscal) determinada prestação tributária de valor superior a € 7500
- Essa prestação tributária tenha sido deduzida nos termos da lei tributária;
- O agente não proceda à entrega de tal prestação;
- O faça dolosamente, sob qualquer uma das modalidades do dolo: directo, necessário ou eventual;
O artº 105º nº 4 do RGIT exige, ainda, a verificação de duas condições objetivas de punibilidade da conduta:
- Que o agente não proceda à entrega da prestação após terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; (al a)
- Que a prestação que tiver sido comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.(al b).

De acordo com o nosso mais Alto Tribunal, a exigência prevista na al b) do nº 4 do artº 105, na redação introduzida pela Lei nº 53-A/2006, configura uma condição objetiva de punibilidade
No caso vertente verifica-se que, da acusação deduzida pelo Ministério Público em parte alguma se refere que a arguida empresa foi notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artº 105º nº 4 al b) do RGIT, apesar de o terem sido.
Da acusação devem constar todos os elementos acima referidos incluindo a condição objetiva de punibilidade prevista na al b) do nº 4 do artº 105º do RGIT.
Faltando um destes elementos, a acusação é manifestamente improcedente e, como tal, deve ser rejeitada (artº 311º nº 2, al a) do CPP).
Assim, só após a notificação prevista na alínea b) do nº 4 do artº 105º e tendo decorrido o prazo de 30 dias é que deverá ser deduzida a acusação e nesta deverá constar as condições objectivas de punibilidade.
Como afirma Jescheck “as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo”, a sua existência, a sua verificação, tem que constar da acusação”
O Exmo Desembargador Cruz Bucho no proc. nº 157/03.9DBRG.G1 do Tribunal da Relação de Guimarães refere que tratando-se de uma condição objetiva de punibilidade prevista na lei em data anterior á dedução da acusação, esta (acusação) deveria conter a declaração do seu cumprimento, pois que delimitando a acusação o thema decidendum (objeto do processo) e o thema probandum (extensão da cognição), o teor da dita acusação delimita e baseia a existência processual dos elementos que são necessários à punibilidade da conduta.
Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo esta “condição objetiva de punibilidade” é claro que a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artº 311º nº 1, al a) e 3, al d) do CPP e sua consequente rejeição.
É que, como é bom de ver, se a condição não está verificada, o ilícito não é punido. Se não é punível por isso, a importância da “condição objetiva da punibilidade” está demonstrada. Se não é punido, é inútil vir para o Tribunal.
Porque se trata de uma condição objetiva de punibilidade e não de mais simples condição de procedibilidade. Vide Ac. RC de 20.09.17 in dgsi.

Compulsado o teor da acusação resulta que na sua construção ora se faz menção à arguida ora ao arguido, delimitando os respetivos campos de atuação, mas nunca usando o plural e no que diz respeito à notificação mencionada a fls. 10 da acusação se remete para a notificação do dia 23.09.21 sempre em relação ao arguido e efetivamente essa notificação ao arguido Manuel António cfr. fls. 439.
A notificação referente à empresa arguida mostra-se realizada na pessoa da sua legal representante BB em 01.06.2021 cfr. fls.79.
Torna-se claro que para os efeitos do art. 105º, n º 4 do RGIT a empresa mostra-se notificada.
Contudo, tal não resulta do conteúdo da acusação onde se faz apenas menção à notificação do arguido AA para aqueles efeitos com expressa referência à notificação realizada no dia 23.09.21.
Posto isto, sendo a acusação peça fundamental que fixa o objeto do processo e sobre a qual o arguido se vai pronunciar e exercer os seus direitos de defesa e tendo por assente que a notificação em questão é condição objetiva de punibilidade e que tem de constar da acusação para a mesma se justificar relativamente ao arguido em concreto, não estando falha um pressuposto essencial para que alguém possa ser eventualmente condenado.
Como afirma Cruz Bucho, do Tribunal da Relação de Guimarães em ac. de 22-11-2010 (que “H.H. Jescheck é peremptório ao afirmar que as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo (Tratado de Derecho Penal, Parte general, 4ª ed., trad. esp., Granada, 1993, pág. 508). Entre nós parece também ser esta a solução defendida por Teresa Beleza, quando assinala que quanto as estas condições funcionam as mesmas exigências de garantia da lei penal em termos de interpretação e de aplicação (Direito Penal, 2ºvol. Lisboa, 1983, pág. 367-368 e 372).
Figueiredo Dias fala mesmo de um capítulo da doutrina do facto punível marcado pela inconcludência: “décadas de especulação levaram só à magra conclusão (negativa) de que ali se trata de um conjunto de pressupostos que, se bem que se não liguem nem à ilicitude, nem à culpa, todavia decidem ainda da punibilidade do facto” (Temas Básicos da Doutrina do Direito Penal, Coimbra, 2001, pág. 247 e Direito Penal, cit., pág. 617, §1, itálico no original).”
Concorda-se, pois com a decisão a quo quando refere “De facto, nada vem alegado na acusação quanto ao preenchimento da condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, b), do RGIT, relativamente à sociedade arguida “A..., Lda.”. Daí que tal matéria não tenha sido vertida para os factos provados.
Ora, conforme decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, em Acórdão de 24.09.2013, cujo excerto encontra-se na Jurisprudência associada ao artigo 105.º do RGIT, sob o n.º 22, disponível na página www.pgdl.pt:
«1. Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo a condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53 -A/2006 (Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008), a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.
2. Cabe ao poder executivo, isto é, á administração, qualquer que ela seja, proceder a tal notificação antes de o processo ser enviado para tribunal. Assim, verificada a necessidade de se proceder á notificação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, e ordenada a dita notificação, o processo deverá esperar o decurso de tal prazo de 30 dias.
3. Só depois disso se deverá passar á fase posterior, ou seja, deduzir acusação. E isto porque se, como afirma Jescheck, «as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo», a sua existência, a sua verificação, tem que constar da acusação.» - relevo acrescentado.
Acresce que a alegação da notificação do arguido na acusação não equivale à alegação da notificação da sociedade arguida na pessoa do arguido, desde logo porque tais notificações são distintas e devem ser feitas de forma autónoma. Ou seja, o arguido que seja sócio gerente de uma sociedade que também é acusada deve ser notificado não só em termos individuais, mas igualmente na qualidade de legal representante da sociedade arguida. A este propósito, leia-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26.02.2014, processo n.º 6319/11.8IDPRT.P1, e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 11.10.2017, processo n.º 2500/15.9T9CBR.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, onde se pode ler:
«(…) a notificação prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT deve ser feita ao ente colectivo, à sociedade, na pessoa dos seus gerentes ou administradores, nesta mesma qualidade, e também, aos gerentes e administradores, agora na qualidade de pessoas singulares e portanto, fora daquela veste estatutária ou seja, a notificação referida deve ser feita a todos os sujeitos processuais que tenham a qualidade de arguido.» - relevo acrescentado.”
Também no mesmo sentido Ac. RC de 20.09.17 in dgsi“Da acusação devem constar todos os elementos acima referidos incluindo a condição objectiva de punibilidade prevista na al b) do nº 4 do artº 105º do RGIT. Faltando um destes elementos, a acusação é manifestamente improcedente e, como tal, deve ser rejeitada (artº 311º nº 2, al a) do CPP).
Assim, só após a notificação prevista na alínea b) do nº 4 do artº 105º e tendo decorrido o prazo de 30 dias é que deverá ser deduzida a acusação e nesta deverá constar as condições objectivas de punibilidade.”
Diz o recorrente que tendo admitido a acusação não pode agora o tribunal a quo voltar atrás e conhecer da questão, tendo-se formado caso julgado formal.
Ora, o saneamento do processo resultante do despacho proferido ao abrigo do art. 311º do CPP, foi uma decisão genérica sobre a verificação dos pressupostos processuais e inexistência de nulidades e irregularidades e questões prévias ou incidentais, pelo que não faz caso julgado formal, vide ac. STJ n º 2/95.
Só fará caso julgado formal se o juiz tiver apreciado concretamente a questão e essa decisão não tiver sido impugnada.
Ora, no caso foi proferida uma decisão genérica como se pode constatar, pelo que o juiz de julgamento podia reavaliar a questão da condição objetiva de punibilidade.

Diz o recorrente que não estamos perante um situação de nulidade insanável, pelo que a ser nulidade estava dependente de arguição, pelo que o juiz a quo não podia dela conhecer oficiosamente.
Relativamente a esta matéria defendemos que sendo certo não referir o artigo 283.º do Código Processo Penal, se a nulidade aí cominada é sanável ou insanável, a lógica do sistema necessariamente nos impõe concluir tratar-se de nulidade insanável. Desde logo, se a falta de narração dos factos na acusação, aqui se incluindo a narração da condição objetiva de punibilidade. Tratando-se de matéria de tão fundamental importância, em que estão em causa direitos de defesa constitucionalmente consagrados, nenhuma razão existe para que tal vício não seja de conhecimento oficioso.
Daí que a imposição de fundamentação de facto e de direito, ao despacho acusatório, por aplicação do mencionado normativo (artigos 283º nº 3) do Código Processo Penal só deve considerar-se cabalmente satisfeita, com a articulação ou/e enumeração, expressa, discriminada e autónoma, de cada um dos factos, pois só desse modo se permitirá, por um lado, uma efetiva possibilidade de exercício do direito de recurso por parte dos sujeitos processuais que se sintam afetados com a decisão e por outro, um verdadeiro controlo e uma real sindicância por parte do tribunal de segunda instância. A não narração, ainda que sintética, dos factos acarreta a nulidade do despacho nulidade essa, aliás, de conhecimento oficioso por este tribunal.
A enumeração das nulidades insanáveis previstas no art.º 119.º, do Cód. Proc. Penal, não é taxativa, como bem o põe em evidência a letra da lei.
Depois, o art.º 283.º, do Cód. Proc. Penal não nos diz se a nulidade aí cominada é sanável ou insanável. Porém, se nos socorrermos da lógica do sistema, teremos de concluir tratar-se de nulidade insanável.
Desde logo, por a questão em análise ofender direitos da maior importância, como sejam direitos de defesa, art.º 32.º, n.º 1, da C.R.P., quer do arguido, quer dos demais sujeitos processuais.
Por fim, veja-se que de harmonia com o que se dispõe no art.º 311.º, n.º 2, al. a) e 3, al.b), do Cód. Proc. Penal, a falta de narração de factos na acusação conduz à sua rejeição.

Ora, nenhum sentido faria que um Tribunal tivesse de apreciar um despacho de acusação se o mesmo fosse omisso quanto à narração de factos dentre os quais a condição objetiva de punibilidade. A própria lógica do sistema não entenderia qualquer eventual dualidade de critérios.

Diz o recorrente que sempre o tribunal poderia ter recorrido ao disposto no art.358º do CPP.
A questão que agora se levanta é saber se não contendo a acusação os factos pertinentes à condição objetiva da punibilidade e apenas em sede de audiência de discussão e julgamento se constatar tal falha se é possível a inclusão de tal condição nos factos provados ao abrigo do disposto no artº 358º do CPP ou do artº 359º do mesmo diploma.
A este respeito seguimos de perto o teor do Ac. C. de 20.09.17 que se transcreve em parte “Como vem referido no Ac RE 650/12.2IDFAR.E1 de 25/10/2016 em termos de fundamentação –que não de decisão – já o STJ assumiu posição em caso análogo, designadamente no A.U.J. nº 1/2015 a propósito do elemento subjectivo do tipo.
“A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente, dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artº 358º do CPP” – relator Cons Rodrigues da Costa in DR I8 Série I 27/01/2015.
E, continuando na esteira do referido acórdão, se o decidido neste A.U.J. se não pode interpretar de forma extensiva, dos elementos subjectivos até á condição objetiva de punibilidade, já as razões da decisão se aplicam indubitavelmente ao caso dos presentes autos, conduzindo á conclusão de que a falta de descrição na acusação da “condição objectiva de punibilidade” não pode – nunca pode – ser suprida pela aplicação do regime contido no artº 358º do CPP, sob pena de se revogar a vigência dos princípios do acusatório e do contraditório.
Para isso tenhamos presente que estamos perante factos que não são autonomizáveis em relação ao objeto do processo tal como definido pela acusação e que não há acordo quanto á possibilidade de prosseguir o julgamento com o acrescento de tais factos
Pelo que resta inserir o caso vertente no conceito de “crime diverso” em função da previsão da al f) do nº 1 do CPP que define “alteração substancial dos factos” “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Ora, no caso sub judicio aquilo que consta da acusação é um “nada jurídico” que não permite a punibilidade do arguido precisamente por falta de uma condição objectiva de punibilidade. Portanto, tendo presente a definição de crime contida na al a) do artº 1º supradito, nenhuma pena pode ser aplicada aos arguidos.
Se nos termos daquela al a) “crime” é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”, o teor da acusação não reúne os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao agente. Só a inclusão da condição objectiva de punibilidade atinge o pleno do conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena.
O que está de acordo com o comando contido na al b) do nº 3 do artº 283º do CPP quando estabelece que a acusação deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
E, a ser assim – como é – o supramencionado conceito de crime teria encarado como um conceito lato que necessariamente incluiria as exigíveis condições objetivas de punibilidade.
Por outro lado, a não inclusão na acusação da condição objectiva de punibilidade surge como um “mais” relativamente ao conceito de “crime diverso”. É que, tal como está a acusação não imputa qualquer crime punível ao agente. Só o acrescento daquela “condição” permite a imputação ao arguido de um crime punível.
A situação no caso é, pois, mais grave do que a suposta pelo legislador, que terá certamente presumido que a dedução de uma acusação em processo criminal imputaria sempre a prática de um crime punível e não se transformaria num episódio processual inócuo. Deduzir uma acusação em processo criminal que não permite a punibilidade do agente e permitir depois a sua alteração configura um maior gravame do que a “simples” imputação de um crime mais grave.
E, assim, sempre se poderia pensar – naquele sistema dual supra indicado – que não cabendo a alteração factual na previsão do artº 358º do CPP por não se tratar de “alteração não substancial”, acabaríamos por integrar a situação na previsão do artº 359º do código por estarmos - por exclusão – face a uma alteração substancial de factos.
Parece-nos, no entanto, que a situação é bem mais grave do que a mera “imputação de crime mais grave”.
Continuando na senda do acórdão acima citado e porque de acordo com o mesmo trazemos de novo á colação o A.U.J. nº 1/2015 do STJ que refere:
“Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do artº 358º do CPP, também não será caso de aplicação do artº 359º, pois, correspondendo a alteração á transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.
Por isso, ponderados estes factos, acabamos por concordar com o parecer contido nas alegações da Sra Procuradora-Geral Adjunta: “A falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objectivo de ilícito, seja do tipo subjectivo de ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir á absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.
Ora a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1º al f), 358º e 359º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.
Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida na audiência, à absolvição do arguido.
Embora no caso vertente se não trate de elementos que dizem respeito aos elementos do tipo, as razões apontadas – máxime a “transformação de uma conduta não punível numa conduta punível” – e a gravidade da violação dos princípios do acusatório e do contraditório equiparam as situações normativas de ambos os casos.
Razões que justificam que se mantenha a absolvição da arguida, por ausência de descrição de uma condição objectiva de punibilidade, por se entender que no caso vertente, não há lugar a aplicação do disposto no art.º 358º, nem o artº 359º do CPP.”
Efetivamente não estamos perante factos novos, surgidos em fase de julgamento e resultantes da discussão e do confronto de posições. Em face da não alegação da condição objetiva de punibilidade, não existem condições para punir o comportamento da arguida enquanto crime e por consequência nem sequer existirem os pressupostos da alteração substancial ou não substancial de factos.
Relativamente à demais argumentação sustentada no facto de recorrente ter feito mais acusações do género sem que o mesmo tribunal ou outros tivessem suscitado quaisquer questões, por não traduzir argumentação jurídica não nos merece qualquer tipo de abordagem.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pelo M.P. e em confirmar a sentença recorrida.
Sem custas pelo recorrente M.P.

Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 03 de maio de 2023
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha

(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
______________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.