Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2167/10.0PAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: COELHO VIEIRA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Nº do Documento: RP201302062167/10.0PAVNG.P1
Data do Acordão: 02/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O tipo legal de crime de violência doméstica visa proteger a pessoa individual e a sua dignidade humana.
II - O seu âmbito punitivo abarca os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade.
III - O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, entendida esta enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa e/ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2167/10.0PAVNG.P1 (proc. urgente)

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

No T. J. de Vila Nova de Gaia (3. Juízo Criminal) o MP deduziu acusação contra o arguido, B…, com os sinais dos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º ns. 1, al. a) , 2 e 4, do C. Penal.
C…, assistente, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando a indemnização de 3.000 euro, por danos não patrimoniais.
O arguido contestou a acusação, negando a prática dos factos, antes imputando à assistente comportamentos de desafio, agressão e injúria.
X
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, na sequência da qual foi elaborada sentença, dela constando o seguinte DISPOSITIVO:-
(…)
Nos termos legais e factuais expostos julgo a acusação totalmente procedente e, em consequência, condeno o arguido B… pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º ns. 1 al. a) e 2, do C. Penal, na pena de 2 anos de prisão.

Ao abrigo do disposto no art. 50º, do C. Penal, considerando a ausência de antecedentes criminais do arguido, é nosso entendimento que as necessidades de prevenção, quer especial, quer geral ficarão satisfeitas, com a suspensão da execução da presente pena de prisão, pelo período de 2 anos, o que se determina, sujeita, porém, a regime de prova a elaborar pela DGRS do qual deverá constar a frequência de cursos e programas de prevenção de violência doméstica de molde a permitir que o arguido interiorize a gravidade da sua conduta e restabeleça um relacionamento de normalidade dom a assistente, mãe do seu filho, de molde a permitir a restabelecimento das relações familiares que neste momento continuam a ser afectadas pelo arguido.
Julgo parcialmente (procedente) o pedido de indemnização civil deduzido e, em consequência, condeno o arguido B… a pagar a C… a título de indemnização pelos danos morais causados, a quantia de 2.000 euro, acrescidos de juros de mora contados, à taxa legal, desde a notificação para contestar até integral pagamento.
Custas criminais a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, com os legais acréscimos.

Custas cíveis a cargo do arguido e da assistente na proporção do respectivo decaimento
Notifique.
Após trânsito remeta boletins ao registo, comunique à DGRS e remeta certidão da presente sentença, bem como suporte digital das declarações prestadas pelo menor D… na presente audiência de discussão e julgamento ao Tribunal de Família e Menores deste Tribunal a fim de serem juntos aos autos de regulação das responsabilidades parentais em que são requerido os aqui arguido e assistente, para os fins tidos por convenientes.
(…)
XXX

Inconformado com o decidido, o arguido veio interpor recurso, motivando-o e aduzindo CONCLUSÕES (as quais se sintetizam sem, contudo, as desvirtuar):-

Assim e no entender do Recorrente:-

- a sentença enferma dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada;
- a sentença enferma do vício do erro notório na apreciação da prova;
- foram incorrectamente julgados os pontos de facto dados como provados nos pontos “2 a 9, 11 e 12 da acusação”(apelando à motivação, refere o Recorrente, erroneamente a “acusação”, mas facilmente se depreende que entende incorrectamente julgados os pontos de facto dados como provados nos ns. 2 a 11 da fundamentação da sentença ( que se segue por enumeração e numeração);
- foi violado o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º, do CPP) e o princípio “in dúbio pro reo”; o arguido-recorrente deve ser absolvido.
- está errada a subsunção jurídica dos factos dos factos ao Direito
XXX

Responderam o MP e a assistente.
O MP defende a total improcedência do recurso.
A Assistente entende que o recurso é intempestivo e subsidiariamente, totalmente improcedente.

XXX

Nesta Relação o Ilustre Procurador-Geral Adjunto, para além de defender a tempestividade do recurso, pugna pela total improcedência do recurso, por via do douto Parecer que emitiu.
Cumprido que se mostra o disposto no art. 417º nº 2, do CPP, verifica-se que não foi deduzida qualquer resposta.

XXX

COLHIDOS OS VISTOS LEGAIS CUMPRE DECIDIR:-

Na sentença recorrida consta a seguinte:-

(…)

II. Fundamentação

Factos Provados (vão numerados por questão de maior clareza relativamente ao recurso da matéria de facto):-

1 - O arguido e C… contraíram casamento civil no dia 1 de Março de 1997 e católico no dia 20 de Março de 1999, em V. N. de Caia, passaram a residir na Rua …, n.° …., …, .° Esquerdo, em …, V. N. de Gaia, e dessa união tiveram um filho, D…, nascido em 30 de Abril de 1998.

2 - Decorridos alguns dias após o casamento de ambos, em Março de 1997, e quando se encontravam em Lua-de-mel, o arguido, sem qualquer motivo, abeirou-se de C… e desferiu-lhe uma bofetada na face que lhe causou dores.

3 - Em datas não concretamente apuradas, mas que se situam logo no início do casamento, em 1997, na supra citada residência, o arguido, por várias Vezes, desferiu em C… bofetadas que a atingiram na face, puxões de cabelo, socos que a atingiram nos braços e na cabeça e, numa ocasião, quando a assistente se baixou, o arguido desferiu-lhe uma bofetada que a atingiu nos olhos, causando-lhe dores e hematomas nas zonas atingidas.

4 - De igual modo, também por várias vezes, o arguido dirigiu-se à assistente e proferiu-lhe, em viva voz, as seguintes expressões “puta, fllha da puta, vaca”.

5 - Em Novembro de 1997, em data e hora não apurada, na supra citada residência, quando a assistente se encontrava no quinto mês de gravidez do filho de ambos, o arguido desferiu-lhe um soco que a atingiu na barriga, e causou-lhe dores.

6 - Como consequência das agressões físicas que o arguido vinha desferindo na assistente, esta teve necessidade de recorrer à assistência médico-hospitalar, nos dias 25 de Fevereiro de 1999 e 31 de Maio de 2003.

7 - No ano de 2004, em datas não apuradas, e quando ambos se encontravam a residir em Espanha, o arguido por várias vezes, sem qualquer motivo, tapava a boca e o nariz da assistente, apertava-lhe o pescoço, ao que esta ficava com falta de ar, ficava com dores e chorava, situação que era presenciada pelo filho menor de ambos, D….

8 - Em data não apurada, mas que se situa no início do ano de 2009, o arguido desferiu pontapés e empurrões na assistente, que lhe causou dores, e o filho menor de ambos teve de intervir para impedir que o arguido continuasse a bater-lhe.

9 - No dia 10 de Dezembro de 2010, cerca das 22H00, o arguido telefonou à assistente, e, em tom grave e sério, disse-lhe: “não tenho medo, vou aí’ (à casa da assistente) e vou acabar o que comecei na Lua de Mel, não adianta fugires que eu apanho-te”, ao que a assistente ficou com medo da reacção do arguido.

10- Desde o mês de Janeiro de 2010, o arguido e a assistente encontram-se separados. Ao agir do modo supra descrito, o arguido quis maltratar fisicamente a assistente, como efectivamente maltratou, bem como pretendeu, com tais expressões, amedrontar a assistente, que conseguiu, originando-lhe um medo constante das suas reacções, com medo daquilo que o arguido pudesse vir a fazer no futuro, contra a sua integridade física ou a sua vida, bem como humilhando-a na sua honra e consideração, no interior da residência conjugal e na presença do filho menor de ambos.

11- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se por completo pela saúde da assistente, estado psíquico e pelo seu bem-estar, bem sabendo que tais condutas supra descritas lhe estavam vedadas e punidas por lei, e, ainda assim, não se inibiu da sua realização.

12- Do CRC do arguido nada consta.
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O arguido é empresário em nome individual auferindo uma média mensal de 1.200 euro.
Vive com a mãe em casa desta.
Não paga renda de casa.
Tem a seu cargo o filho D… de 13 anos de idade.
É bem conceituado no meio familiar em que se insere.
Em consequência da conduta do arguido, C… sentiu humilhação, vergonha, desgosto, angústia e desilusão.
A assistente omitia as ofensas de que era vítima por ter vergonha e medo do comportamento do arguido, chegando a temer pela própria vida.
De igual modo, em consequência directa e necessária da conduta do arguido a assistente sentiu ansiedade, medo e intranquilidade.
A assistente é respeitada no meio familiar em que se insere.

Factos Não Provados

Dos factos descritos na acusação, no pedido de indemnização civil e na contestação, com relevo para a decisão a proferir, não se provaram quaisquer outros, designadamente, os seguintes:-

Na pendência do casamento o arguido dirigia à assistente as expressões: “vai para o caralho, vai-te foder” e “qualquer dia enterro-te viva, ninguém te vai encontrar nunca, faço-te desaparecer”.
A assistente era a causadora das discussões que o casal mantinha por sentir demasiados ciúmes do arguido, recusando-se a sair de casa, acusando-o de estar sempre a olhar para outras mulheres.
No decurso do casamento, a assistente empurrava o arguido, batia-lhe no ombro em jeito de desafio e encostava-lha a cabeça à cara enquanto discutia com o mesmo.
A assistente inferiorizava o arguido em frente da família e dos amigos, evidenciando a pretensa falta de cultura do arguido, corrigindo-o de modo jocoso, enquanto se ria e fazia rir os demais presentes, sempre que este falava.
Entre os anos de 1999 e 1997 a assistente partiu o nariz do arguido, atirando-lhe com uma escova de banho.

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XXX

O RECURSO

O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cfr. art. 428º, do CPP.
É consabido que as conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respectivo objecto – cfr. arts. 402º, 403º e 412º, todos do CPP.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº 2, do art. 410º, do CPP, mas tão-só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. Do STJ nº 7/95 – in DR I s., de 28/12/1995, em interpretação obrigatória, ainda hoje actual); ainda das nulidades principais, como tal “taxadas” por lei.

Como acima se referiu, e face ao supra dito, são as seguintes as questões suscitadas:-

- a sentença enferma dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada;
- a sentença enferma do vício do erro notório na apreciação da prova;
- foram incorrectamente julgados os pontos de facto dados como provados nos pontos “2 a 9, 11 e 12 da acusação” (apelando à motivação, refere o Recorrente, erroneamente a “acusação”, mas facilmente se depreende que entende incorrectamente julgados os pontos de facto dados como provados nos ns. 2 a 11 da fundamentação da sentença (que se segue por enumeração e numeração);
- foi violado o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º, do CPP) e o princípio “in dúbio pro reo”; o arguido-recorrente deve ser absolvido.
- está errada a subsunção jurídica dos factos dos factos ao Direito
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Sem embargo do conhecimento de tais questões, coloca a Assistente a QUESTÃO PRÉVIA da intempestividade do recurso.
Porém sem razão.
Com efeito e no caso dos autos o prazo para interposição do recurso (como aliás a própria Assistente refere) é, no caso, de 30 dias a contar da data de deposito da decisão – cfr. arts. 411º nº 1, al. b) e 4, do CPP.
A data do depósito na Secretaria ocorreu em 13/09/2012.
Terminando o prazo em 13/10/2012 (sábado) passou o términus para 15/10/2012.
Usando o Recorrente da faculdade de praticar o acto os três dias seguintes o prazo teve o seu términus em 18/10/2012 – cfr. art. 107º-A, do CPP.
Ora, como se pode verificar de fls. 391a) o Recorrente enviou as suas motivações precisamente em 18/10/2012.
Assim o recurso é tempestivo.

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Vejamos, agora, as questões suscitadas no recurso:-

Vícios da decisão:-

Na síntese feita pelo STJ (cfr. CPP Anot., Leal Henriques e Simas Santos – II vol., pags. 738 a 741) ali se diz o seguinte:-

O vício da insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada ocorre quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que “essa matéria de facto” não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso concreto; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material (art. 340º, do CPP), podendo e devendo ter ido mais longe, o Tribunal não curou de indagar factos essenciais que se prendem com a subsunção jurídica ou medida da pena, ou de ambas.

O vício da contradição insanável entre a fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando, de acordo com um raciocínio lógico seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão insanável entre os fundamentos invocados.

Por sua vez, o vício do erro notório na apreciação da prova (cfr. art. 410º nº 2, al. c), do CPP), devendo ser patente ao homem comum, existe, …” quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado…ou quando usando de um processo racional e lógico se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica e arbitrária, contraditória ou notoriamente violadoras das regras da experiência comum, ou ainda quando se violam regras sobre provas vinculadas ou das “legis artis”… (cfr. Ac. do STJ de 2/06/99 – proc. Nº 288/99).

No caso em apreço e sob as roupagens dos vícios da decisão, o que o Recorrente faz é sindicar a matéria de facto dada como provada, para além, do texto da decisão recorrida; com efeito, o Recorrente, em contraposição, explana a sua visão da prova produzida, sopesa e valora o manancial probatório produzido, de forma diversa e até antagónica da visão das provas que o Julgador apurou e fundamentou.
Ora, este tipo de argumentação vai para além daquele texto estriba-se naquilo que podemos designar pelo recurso da matéria de facto “qua tale”, mais ampla e ex vi do disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do CPP.
Nesta matéria fatal é a improcedência do recurso.
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Recurso da matéria de facto (art. 412º ns. 3 e 4, do CPP):-

Dispõe o art. 412º nº 3 e 4, do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
3:- a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas
4:- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Temos dito, repetidamente que o recurso da matéria de facto não se destina a um novo julgamento e à aquisição de nova convicção de facto, mas sim a aquilatar da razoabilidade da convicção de facto adquirida pela 1ª instância, face às provas produzidas, sempre sem esquecer que a 1ª instância se encontra enriquecida pelo princípio da imediação, a qual naturalmente pressupõe o contacto “ao vivo” com os participantes processuais e, designadamente, com as provas prestadas oralmente em audiência, no caso, de livre apreciação e tendo em mente o disposto no art. 127º, do CPP.

A Jurisprudência do STJ que a seguir se cita e segue (para além de diversas decisões desta Relação – cfr. entre várias outras, o Ac. de 21/01/09 – Proc. Nº 2545/08; de 1/04/09, Proc. Nº 7212/08, m- relator) tem-se debruçado sobre esta mesma vertente).

Assim:-

A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma.
III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma.
IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo».
V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações:
- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.
VI - O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP.
VII - Constitui entendimento pacífico há muito estabelecido que não há erro na apreciação da prova quando o que o recorrente invoca não é mais do que uma discordância sua quanto ao enquadramento da matéria de facto provada. (cfr. Ac. do STJ, de 12/06/08 – www.dgsi.pt. -).

Já mais recentemente, mas, a nosso ver, em plena consonância com os arestos anteriores, conforme se decidiu no douto Ac. do STJ de 19/05/2010 – in www.dgsi.pt(...)
A motivação de recurso compreende dois ónus: o de alegar e o de concluir. O recorrente deve começar por expor todas as razões da impugnação da decisão de que recorre (enunciar especificamente os fundamentos do recurso) e, depois, indicar de forma sintética, essas mesmas razões (formular conclusões em que resume as razões do pedido).
São as conclusões da motivação que definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, são as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior.
Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP: as indicações aqui exigidas são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.
É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto.
A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância.
O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.

Ainda mais recentemente mas em total sintonia jurisprudencial com o que vem de ser expendido, cfr. Ac. desta RP, de 16/01/2013 in dgsi.pt. diz-se o seguinte:-
(…)
A circunstância de o tribunal, perante duas versões distintas, dar crédito a uma em detrimento da outra, tem a ver com o exercício do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º C P Penal, segundo o qual o julgador deve proceder à avaliação e ponderação dos meios de prova sem vinculação a um quadro pré-definido de valoração das provas, sujeito apenas às regras da experiência comum e ao dever de dar explicação concisa das razões da relevância atribuída à cada prova e do percurso racional que levou à decisão tomada.

Se assim é, se o Tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão-só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas, sugiram ou permitam) decisão diversa, estamos perante uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância.
Os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível).

De resto, a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, pode vir a transformar o julgamento na 2ª instância, num jogo de palavras vazio do pulsar da vida, da percepção dos sentidos e sentimentos.
Na verdade, não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, o Tribunal da 2ª instância está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo, aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão. Só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabeleceu-se com o Tribunal de 1ª instância e daí que a alteração da matéria de facto fixada, deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação.

Apreciemos então, o que afinal se reconduz, a uma diversa valoração do sentido da prova pessoal produzida.
A este propósito convém, então, referir que, nos termos do artigo 127º C P Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A maior parte das vezes, os recursos, quanto a esta concreta questão, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco - o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, juridicamente ilegítimo, por irrelevante, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, exercício este que, para ser legítimo, logo juridicamente relevante, por imposição do artigo 127º C P Penal, somente ao tribunal, entidade competente, notoriamente, incumbe.
Não pode é, a convicção do recorrente sobrepor-se à do julgador.
À pergunta sobre o que significa, negativa e positivamente, a livre apreciação da prova, ou, o que é o mesmo, valoração discricionária ou valoração da prova segundo a livre convicção do julgador, responde o Prof. Figueiredo Dias, “(…) significa, negativamente, ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova; mas qual o seu significado positivo? Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma motivação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida; se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionaridade (como já dissemos que a tem toda a discricionaridade jurídica) os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados; a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo, possa embora a lei renunciar à motivação e o controlo efectivos”.
“Livre apreciação da prova não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela objectivável e motivável; já se vê, assim, que sendo a dúvida que legitima a aplicação do princípio in dubio pro reo, obviamente, a que obsta à convicção do juiz, tal dúvida não pode ser puramente subjectiva, antes tem de, igualmente, revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável”. [3]
“Embora os meios de prova produzidos não estejam sujeitos a qualquer regime de prova legal, mas antes à livre apreciação do tribunal, artigo 127º C P Penal, a verdade é que livre apreciação não significa pura convicção subjectiva, mas sim “convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. E uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável; não se tratará, pois, de uma mera opção voluntarista pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos à posteriori tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”.
A conclusão – pela qual o arguido pugna - de que, pelo facto de nenhuma prova directa se ter produzido – não pode ser tido como o autor do factos, não é permitida, não é consentida, salvo atentado grosseiro à normalidade das coisas da vida e à inteligência do ser humano.
De resto, a propósito da inexistência de prova testemunhal a afirmar, directamente, ter tido o arguido, participação directa e pessoal na prática dos factos, convém dizer o seguinte:
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso, II, 82, citado no Ac. RC de 9.2.2000, in CJ, I, 51, que doravante seguiremos de perto, “é clássica a distinção entre prova directa e indiciária.
Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto que a prova indirecta ou indiciária, se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
Assim, se o facto probatório (meio de prova) se refere imediatamente ao facto probando, fala-se de prova directa e se o mesmo se refere a outro do qual se infere o facto probando, fala-se em prova indirecta ou indiciária.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos e, por isso o seu valor probatório é extremamente variável. Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica do juiz. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto-indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
A associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objectivos e regras objectivas, leva alguns autores a afirmara sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova directa e testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho, (Mittermaier, Tratado de la Prueba em Matéria Criminal).
Como refere André Marieta, in La Prueba em Processo Penal, 59, são 2 os elementos da prova indiciária:
- o indício será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele está relacionado, que pode ser definido como todo o resto, vestígio, circunstância e em geral todo o facto conhecido ou melhor devidamente comprovado, susceptível de levar, por via da inferência ao conhecimento de outro facto desconhecido.
O indício constitui a premissa menor do silogismo que, associado a um princípio empírico ou a uma regra da experiência, vai permitir alcançar uma convicção sobre o facto a provar. Este elemento de prova requer em primeiro lugar que o indício esteja plenamente demonstrado, nomeadamente através de prova directa…
O que não se pode admitir é que a demonstração do facto-indício que é a base da inferência seja também ele, feito através de prova indiciária, atenta a insegurança que tal acarretaria.
- em segundo lugar, é necessária a existência da presunção que é a inferência que obtida do indício permite demonstrar um facto distinto. A presunção é a conclusão do silogismo construído sobre uma permissa maior: a lei baseada na experiência; na ciência ou no sentido comum que apoiada no indício permissa menor, permite a conclusão sobre o facto a demonstrar.
A inferência realizada deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando os estados de dúvida e probabilidade.
A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de 3 operações: em primeiro lugar, a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador, uma regra da experiência ou da ciência, que permite num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
A lógica tratará de explicar o correcto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova da capacidade de convicção.
A nossa lei processual não faz qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária.
O funcionamento e creditação desta está dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
Conforme refere Marques da Silva, o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal, os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervém elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente à valoração da prova intervém as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão, regras da experiência.
(…)

Ainda quanto ao art. 127º, do CPP:-

O art. 127º do Cód. Proc. Penal prescreve que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. É o chamado princípio da livre apreciação da prova.
De acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.
Por seu turno, o Tribunal Constitucional, no seu Ac. nº 464/97/T, D.R., II Série, nº 9/98 de 12.1, chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma do art. 127º do Cód. Proc. Penal, e estribando-se nos ensinamentos dos Prof. Castanheira Neves e Figueiredo Dias, refere que “esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso mediante fundamentos que a ‘razão prática’ reconhece como tais (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso «está apta para o consenso». A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça”.
Ora, o princípio da livre apreciação da prova está intimamente relacionado com os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção da prova e a discussão, na audiência de julgamento, se realizem oralmente, de modo a que todas as provas (excepto aquelas cuja natureza não o permite) sejam apreendidas pelo julgador por forma auditiva. O segundo, diz respeito à proximidade que o julgador tem com os intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova, através de uma percepção directa.

Tecidas estas considerações mais genéricas e de apoio Jurisprudencial e Doutrinário, vejamos, então, o caso CONCRETO dos autos (com necessário apelo à motivação do recurso).

O Recorrente pretende que se declare (e se extraiam as devidas conclusões jurídicas) incorrectamente julgada a matéria de facto acima devidamente sinalizada, com base em provas de livre apreciação – suas próprias declarações, declarações da assistente e prova testemunhal também referenciada na motivação adiante referida - , sopesando e valorando de forma diversa (e com transcrição parcelar) tais provas e contrapondo a sua visão, respeitável, mas subjectiva, à visão das provas que o Julgador fundamentou, a nosso ver de forma razoável, com o suporte dos princípios da imediação e da oralidade e também se suportando dos elementos clínicos juntos aos autos (O Recorrente parece, digamos, “olvidá-los”), tudo fundamentado de forma concisa (como de resto comanda a lei adjectiva – cfr. art. 374º nº 2, do CPP), sem vício ou qualquer dúvida razoável.
Assim, consta na sentença a seguinte:-
(…)
MOTIVAÇÃO
O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto de provas produzidas em audiência de discssão e julgamento que valorou livremente fazendo apelo a regras da experiência comum e normalidade do acontecer.
O arguido que inicialmente não quis prestar declarações acabando por o fazer antes do encerramento d audiência, acabou por confirmar algumas das ocorrências descritas na acusação, designadamente, a ocorrência durante o quinto mês de gravidez, bem como a lesão no olho da assistente e a ocorrência na garagem, pese embora tenha negado a sua autoria, com excepção da ocorrência na garagem em que afinal acabou por afirma que naquelas concretas circunstâncias afinal pretendia manter relações sexuais com a assistente, contra a vontade desta. A justificação dada para as demais ocorrências que confirmou é, porém, de tal modo ingénua e irreal, por exemplo no que concerne à ofensa no período de gravidez – “tocou-lhe levemente o que fez com que a assistente tropeçasse na cama e caísse” – que mais não são do que uma confissão de culpa.
As declarações da assistente, concisas, seguras e, afinal confirmadas pelo próprio arguido, mereceram a credibilidade do tribunal.
Tais declarações foram também confirmadas, pese embora indirectamente, pelas demais testemunhas de acusação, D… e E….
As declarações da testemunha D…, filho do casal, a residir com o pai desde há um ano, mais não foram do que a expressão viva de uma criança/adolescente vítima de violência doméstica. Na verdade, instrumentalizado pelo pai, não quis ver a mãe e declarou abertamente em audiência de julgamento que não gostava dela. Apesar disso lá foi confirmando os empurrões que o pai desferia na assistente e que a fazia chorar e, na altura, ficar com pena dela e a lado dela. Diz hoje que era a mãe que se fazia de coitadinha. Perguntado sobre as razões de não gostar da mãe com quem sempre viveu até há um ano atrás, afirmou que esta o abandonou em casa da avó porque, segundo lhe disse, por causa do trabalho não poderia levá-lo à escola. Isto posto, é evidente que esta mãe nunca abandonou o filho, para junto do qual voltava todos os dias, como o próprio afirmou e que afinal é o progenitor que sem pejo, impõe ao filha a falta de amor pela mãe, indiferente ao que tal imposição significa para o bem estar emocional e psíquico do filho, sendo que ele, o arguido, vive em casa da mãe. O filho do casal foi, assim, em audiência de julgamento, a expressão viva da violência doméstica que o arguido continua a exercer sobre a assistente, privando-a do contacto e da relação com o filho e sobre o seu filho que utiliza como instrumento para magoar e ferir a ex-mulher.
O depoimento da testemunha E… e das testemunhas F… e G…, pese embora não tenham assistido a ofensas directas à filha e irmã, confirmaram as lesões físicas. A mãe apercebeu-se da situação na garagem, pese embora não tenha visto o arguido a agredir a filha, mas viu-a chorosa e incomodada no momento em que se abeirou do casal.
De referir também que a mãe do arguido H… confirmou a existência de nódoas negras no pescoço da nora que na altura lhe foram justificadas com actos de carinho. Certo é que são lesões compatíveis com os apertões no pescoço relatados pela assistente.
Foi ainda valorado o conteúdo das fichas clínicas de fls. 112 e ss., as quais descrevem idas da assistente ao serviço de urgência que a mesma em audiência de julgamento imputou a actos do arguido, circunstância que na altura omitiu, como acontecia perante os seus familiares, por vergonha.
Foi valorado o conteúdo do CRC do arguido bem como as suas condições de vida, as quais não foram infirmadas pela demais prova produzida.
A demais prova testemunhal não foi de molde a infirmar a prova produzida, sendo que as testemunhas I… e J…, respectivamente, namorada e ex-namorada do arguido, depuseram em favor do seu carácter.
A mãe do arguido referiu-se ao episódio da escova, porém, não assistiu ao mesmo, não tendo sido produzidos outros elementos de prova, que não as declarações do arguido que confirmem que foi a assistente que produziu aquele resultado; o tribunal respondeu negativamente a tal matéria por se nos afigurar ser insuficiente a prova de tal ocorrência.
Nenhuma prova se produziu sobre a demais matéria dada como não provada.
(…)

Com o devido respeito pelos direitos de defesa do Recorrente não temos dúvidas que o recurso, roçando a manifesta improcedência é, sem dúvida totalmente improcedente.
Desde logo, o Tribunal “a quo” deu (e justificou o porquê) credibilidade às declarações da assistente em contraposição com as do arguido que só as prestou a final da audiência de discussão e julgamento; importa não esquecer que os episódios clínicos devidamente documentados no processo são prova credível e conferem credibilidade às declarações da assistente; por outro lado, a testemunha E… e as testemunhas F… e G… não deixaram de corroborar as declarações da assistente e a sua versão credível e com inteiro suporte de razoabilidade; com efeito, confirmaram ter visto lesões físicas no corpo da assistente e também a sua mágoa e transtorno com “olhos de chorar”, sendo que a testemunha E… não deixou de referenciar o episódio da garagem.
Por outro lado, o Tribunal descredibilizou fundamentadamente as declarações do arguido, bem como o depoimento do filho do casal também de forma fundamentada e com o enriquecimento dos falados princípios da oralidade e da imediação.
O recurso da matéria de facto está votado ao fracasso.

XXX

MATÉRIA DE DIREITO

Preceitua o art. 152º, no seu nº 1, al. a) do Código Penal, que: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: ao cônjuge ou ex-cônjuge; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. E no seu nº 2, que: “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Antes de mais, refira-se que toda a exposição que iremos fazer acerca deste tipo de ilícito limitar-se-á ao caso destes autos, ou seja, ao caso de violência doméstica entre cônjuges, ficando por analisar todas as outras vertentes de violência doméstica protegidas também pelo artigo 152º do Código Penal.
A função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis e camufladas formas de violência no âmbito da família. Neste sentido, a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no art. 152º, alínea a) resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização, no sentido de que a disposição deste artigo é algo de relativamente recente, não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos actuais, mas sim uma saudável consciencialização da inadequação e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, de uma consciencialização recente da violência conjugal como problema social.
Nas palavras de Teresa Beleza: esta previsão “tem por referência a percepção dos maus tratos da mulher pelo marido como fenómeno generalizado, empiricamente detectado e já não considerado lícito. E é evidente, por outro lado, que a insistência constitucional e legal na igualdade dos cônjuges se baseia na verificação da real desigualdade, outrora legal, hoje de facto” in Maus tratos conjugais: o art. 153º, nº 3 do Código Penal, A.A.F.D.L. 1989.
Prova de que a criminalização da violência doméstica foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família não mais podia constituir feudo sagrado, onde o direito penal tinha de se abster de intervir foi o tom exageradamente cauteloso com que o Autor do Anteprojecto de 1966 encarava a neocriminalização destes comportamentos (repare-se que os maus tratos entre cônjuges não foram previstos no Anteprojecto, mas apenas no nº 3 do art. 153º do Código Penal de 1982). Nas palavras de Eduardo Correia: “estes artigos (arts. 166º e 167º do Anteprojecto que globalmente correspondem ao nº 1 do actual art. 152º) correspondem à necessidade de punir com dignidade penal os casos mais chocantes de maus tratos a crianças e de sobrecarga de menores e de subordinados. Como é óbvio, esta protecção não entra em pormenores que se deixam às leis do trabalho ou tutelar de menores. Em ambos os artigos se faz referência a um elemento da personalidade: a malvadez ou egoísmo”. No dizer de Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 330: “Estas duas expressões revelam os receios da altura em intervir penalmente em domínios que, tradicionalmente, pareciam querer prolongar um poder quase absoluto do marido, do pai, do educador e do empregador”.
A redacção final do Código Penal de 82 manteve a referência à malvadez ou egoísmo e a jurisprudência acabou por manter uma interpretação excessivamente restritiva do âmbito criminalizador do tipo legal de maus tratos, ao ponto de exigir que, para haver crime, era necessário que, para além da prática dolosa dos actos descritos, o agente tivesse actuado com malvadez ou egoísmo. Esta exigência, segundo alguma jurisprudência, passou a ser feita também em relação aos maus tratos de um cônjuge sobre outro.
Contra a aplicação desta jurisprudência da exigência de “malvadez ou egoísmo” aos maus tratos conjugais, ver Teresa Beleza, Maus tratos conjugais: o art. 153º, 3 do Código Penal, A.A.F.D.L.1989.
A Revisão Penal de 1995, levada a efeito pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, introduziu algumas importantes alterações no preceito sobre o qual nos estamos a debruçar.
Concretamente, o legislador consciente que no domínio familiar e conjugal as humilhações, os insultos, as ameaças constituem, muitas vezes, formas de violência psíquica mais graves do que muitas ofensas corporais simples, previu, ao lado dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos. Por outro lado, eliminou-se a referência à “malvadez ou egoísmo”. Quanto às penas, estas foram substancialmente agravadas. Assim, não podem ser dirigidas contra o art. 152º do Código Penal de 1995 as justas e merecidas críticas feitas ao Código Penal de 82.
Entretanto, a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, introduziu mais alterações ao art. 152º do Código Penal, sendo a de maior significado a que passou a considerar integrante do crime de violência doméstica os maus tratos quer sejam infligidos de modo reiterado ou não.
O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”.
Desta análise sistemática, pode-se concluir que a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime abarca os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade. Se é certo que no passado se considerou que o bem jurídico protegido era tão só a integridade física, constituindo a violência doméstica uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, no presente uma interpretação como a acabada de expor é inaceitável, por manifestamente limitativa e redutora. A ratio deste artigo que estamos a analisar vai muito mais longe que os maus tratos físicos, abrangendo também os maus tratos psíquicos, como as ameaças, as humilhações, as provocações, as curtas privações da liberdade de movimentos e as ofensas sexuais. Assim sendo, podemos dizer que o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, esta entendida enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.
O crime de violência doméstica pressupõe um agente, um sujeito activo que se encontra numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima, daqueles comportamentos. Assim sendo, estamos perante aquilo a que se chama um crime específico: “quem infligir ao cônjuge ou ao ex-cônjuge”. Este denominado crime específico será impróprio ou próprio, consoante as condutas por si mesmas consideradas já constituam crime (estamos a lembrar-nos dos maus tratos físicos, sinónimo de ofensa à integridade física simples, de algumas formas de maus tratos psíquicos, como por exemplo, ameaças, injúrias ou difamações) ou não configurem em si mesmas qualquer tipo de crime.
Sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal, ou seja, cônjuge.
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de duas espécies: maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações).
E estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não. Anteriormente, à alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro ao Código Penal, o tipo em análise pressupunha implicitamente uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois dos referidos actos afastaria o elemento reiteração ou habitualidade. Contudo, existia já uma grande parte da jurisprudência, com a qual concordávamos, que considerava que uma conduta ainda que isolada podia configurar um crime de maus tratos desde que pela sua gravidade pusesse em causa a dignidade humana do cônjuge ofendido – cf. neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 13/06/2007, in www.dgsi.pt.
(cfr. Ac. da RP de 6/10/2010 – relator Des. Pinto Monteiro também subscrito pelo ora relator como adjunto).

Estas considerações vêm a propósito do que decidiu o Ac. do STJ, de 30/10/2003 – in CJ, Acs. do STJ, XI, T III, 208), onde, a propósito da redacção do art. 152º ns. 1, al. a) e 2, do CP, resultante da revisão efectuada pelo DL 48/95, de 15/03 e com as alterações posteriores mas anteriormente à revisão efectuada pela Lei nº 59/2007, de 4/09, ora em vigor.

Ali se decidiu, além do mais para que se considere preenchido o condicionalismo integrador de tal crime não basta uma acção isolada do agente, nem que ocorra uma situação de habitualidade; é necessário que se verifique uma acção plúrima reiterada.

Acresce que, também como recentemente se decidiu no Ac. Deste TRP, de 9/01/2013 (in www.dgsi.pt):-
(…)
O bem jurídico tutelado pela incriminação, assim caraterizado, é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal (física e psicológica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.
Desta mesma forma ele se encontra caraterizado por André Lamas Leite, (Revista “Julgar” – nº 12, pags. 25 e segs., quando refere que o mesmo tem como fim o “(…) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (…)” sendo este bem jurídico multímodo “(…) uma concretização do direito fundamental (artigo 25º da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26º da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25º da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana.
(…) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam”
Entre muitos outros, cremos particularmente feliz a síntese contida no sumário do Acórdão desta Relação do seguinte teor: “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima. (sublinhado nosso)
(…)
No caso em apreço, face ao supradito e próprio conteúdo da decisão no seu enquadramento jurídico estamos perante o preenchimento de todos os elementos essenciais típicos do ilícito criminal objecto de condenação.

Apenas em jeito de nota final importa referir que estamos em plena concordância com a opção pela pena de prisão, pela sua dosimetria, bem como pela suspensa da execução da pena e com as condições que vêm decretadas no dispositivo da decisão recorrida.
E também quanto ao “quantum” indemnizatório, salientando-se que o valor da alçada do Tribunal “a quo” (5.000 euro) e o valor do decaimento sempre levariam, nesta matéria, à rejeição do recurso.
Em suma, esta não merece qualquer censura e é de confirmar “in tottum”.
XXX
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando totalmente a sentença recorrida.

Deverá ser observado o cumprimento do disposto no art. 37º, da Lei nº 112/2009, de 16/09.

O Recorrente pagará 5 Ucs de taxa de justiça.

PORTO, 6/02/2013
José João Teixeira Coelho Vieira
José Carlos Borges Martins