Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7228/21.2T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
PERSI
CESSÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RP202301247228/21.2T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da acção executiva, uma condição objetiva de procedibilidade, cuja ausência se traduz numa excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, insanável, que conduz à absolvição da instância.
II - A exigência deste pressuposto não é afastada pela cessão do crédito, ainda que para efeitos de titularização.
III - Aceitar-se que a cessionária do crédito possa resolver validamente o contrato por factos ocorridos antes da cessão traduzir-se-ia numa violação do regime jurídico da titularização de créditos previsto no Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro, maxime das normas que visam assegurar a neutralidade dessa operação perante o devedor, bem como numa violação do regime jurídico do PERSI, maxime das normas que proíbem cessões de créditos que permitam às instituições de crédito subtraírem-se àquele regime, numa verdadeira fraude à lei, pelo que essa solução deve ser rejeitada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 7228/21.8T8PRT-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – Juiz 1



Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Por apenso à execução que A..., S.A. move contra AA, veio esta deduzir a presente oposição por embargos, admitindo que não cumpriu pontualmente o contrato de mútuo que serve de base à referida execução, mas alegando que esse incumprimento não é total e definitivo, tendo em conta a ausência de resposta às diversas propostas de pagamento que apresentou ao banco mutuário e, já na pendência dos autos principais de execução, à ora exequente, mais alegando a falta de notificação da cedência do crédito exequendo à referida A..., S.A.
Liminarmente admitidos os embargos, a exequente embargada apresentou contestação, alegando que tem o direito de exigir da executada o pagamento da totalidade da dívida, nos termos dos artigos 777.º, 781.º e 801.º do Código Civil (CC), uma vez que esta não só foi interpelada para esse pagamento, como foi notificada da resolução do contrato, pelo que a restruturação do crédito nunca foi uma possibilidade aceite pela exequente. Mais impugnou a falta de notificação da cessão de créditos.
Mediante despacho datado de 10.11.2021 (reiterado em 31.03.2022), a exequente embargada foi notificada para, em 10 dias, juntar aos autos documentos comprovativos de que a instituição bancária cedente do crédito integrou a executada embargante no regime do PERSI.
Em resposta, aquela veio informar «que não existem cartas de PERSI, segundo a informação prestada pelo banco originador».
Depois de realizada audiência prévia, tendo-se revelado inviável a conciliação das partes, foi proferido saneador-sentença a julgar totalmente procedentes os presentes embargos de executado e, consequentemente, a determinar a absolvição da embargante executada da instância executiva, a extinção da execução e o cancelamento das penhoras efectuadas.
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Inconformada, B..., S.A., invocando a qualidade de exequente nos autos principais, apelou dessa decisão, formulando as seguintes conclusões:
«A. A Apelante não se conforma com a Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, pelo que dela decorre.
B. O Tribunal de 1ª instância fez diversas interpretações erradas da lei, nomeadamente, do disposto no art. 18.º do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de outubro e no art. 5.º do Decreto-Lei nº 453/99, de 5 de novembro.
C. Assim, ao invés do que consta da Sentença recorrida, nos termos do art. 18.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei nº 227/2012, mesmo durante o período de integração do cliente bancário no PERSI, podem ser cedidos créditos para efeitos de titularização.
D. Nessa situação, isto é, sendo o crédito cedido na pendência do PERSI, o sujeito ativo do PERSI continua a ser a instituição de crédito cedente, que continua vinculada às obrigações emergentes do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de outubro, sob pena de, se assim não fosse, se defraudar o regime do PERSI e reduzir a proteção do devedor-inadimplente.
E. Andou mal, portanto, o Tribunal a quo ao entender que, da conjugação do artigo 18.º, n.os 1, alíneas c) e d), 2 e 3, resulta a impossibilidade da instituição de crédito proceder à cessão do crédito que deva ser objeto de integração em PERSI a terceiro que não seja instituição de crédito.
F. E aquele Tribunal insistiu no erro ao considerar que competia à cessionária, entre outras passagens, “Assim, a exequente no momento da cessão de créditos deveria ter curado de saber se os créditos cedidos e objecto da execução tinham sido ou não integrados em PERSI. Na negativa, como resultou das citadas sentenças transitadas em julgado, não poderiam esses créditos ter sido objecto de cessão, mormente para efeitos de lograr a sua execução”.
G. Por um lado, essa proibição não decorre da lei; por outro, nada na lei impõe às entidades cessionárias verificar se os créditos a ceder estavam, ou não, integrados num PERSI.»
A recorrida apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
«1. As Alegações de Recurso apresentadas pela sociedade “B..., S.A.”, devem ser desentranhadas, porquanto, tal entidade não é parte no processo;
2. Foram carreados para os autos, prova inequívoca da violação, por parte da exequente, das obrigações legais impostas pelo DL n.º 227/2012, de 25-10.
3. A exequente nunca inseriu a executada no PERSI, impedindo a mesma e restrutura o crédito.
4. A instauração da execução foi claramente prematura e indevidamente instaurada.
5. A douta Decisão proferida deve ser mantida nos seus precisos termos, porquanto, verificou-se inequivocamente a existência de uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa.» (sic)
Notificada a recorrente para se pronunciar sobre a alegada ilegitimidade, ao abrigo do disposto no artigo 655.º do Código de Processo Civil (CPC), veio a embargada A..., S.A. esclarecer que a indicação de B..., S.A. nas alegações de recurso se ficou a dever a mero lapso, pelo qual muito se penitencia, motivado pela circunstância de a mandatária subscritora daquelas alegações patrocinar igualmente a referida B..., S.A.
Nesta conformidade, requereu a substituição do aludido articulado por outro, que apresentou, no qual fez constar A..., S.A. como recorrente.
A recorrida não se pronunciou.
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II. Questão Prévia
Nos termos do artigo 249.º do CC «[o] simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação deste».
A jurisprudência, com o apoio da doutrina, tem entendido que esta disposição legal consagra um princípio geral, aplicável, a todos os actos judiciais ou das partes. Como se diz no Ac. STJ de 8/6/78 (publicado e anotado por Vaz Serra na RLJ, Ano 111, n.º 3633, p. 382) «[p]ode assentar-se (...) com relativa segurança, que essa disciplina jurídica se aplica não só aos erros de escrita cometidos em declarações negociais, como aos que se verifiquem em declarações enunciativas, como são as que as partes produzem no decurso do processo ...».
A razão de ser deste entendimento radica no seguinte: o erro ostensivo numa declaração negocial não implica a sua anulação, mas apenas a sua rectificação, pois esse erro e o modo de o corrigir, revelando-se no próprio contexto da declaração ou pelas circunstâncias em que ela é feita, é facilmente detectado pelo declaratário. Mas se assim é, a solução legal deve aplicar-se a todos os casos em que se verifiquem os seus pressupostos. Cfr. Vaz Serra, na anotação ao acórdão supra citado.
Este era já o entendimento pacífico na vigência do artigo 665.º do CC de 1867, não obstante a sua redacção mais lacónica.
Assim, o erro de escrita ou de cálculo não terá outras consequências além da sua rectificação. Essencial é, como vimos, que o erro seja manifesto, ostensivo ou, nos termos da lei, resulte do próprio contexto da declaração ou das circunstâncias em que esta é feita.
À mesma solução chegaríamos através do artigo 295.º do CC. Aí se diz que «[a]os actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente», o capítulo dedicado, precisamente, ao negócio jurídico. Ora, os actos processuais praticados pelas partes são, indubitavelmente, actos jurídicos.
Com a revisão do CPC de 2013, a possibilidade de rectificação de erros de cálculo ou de escrita das peças processuais apresentadas pelas partes passou a estar expressamente consagrada no artigo 146.º que, sob a epígrafe «Suprimento de deficiências formais de atos das partes», dispõe assim:
«1 - É admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada.
2 - Deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa.»
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, em anotação a esta norma, realçam que se trata «de um preceito novo pautado, como outros do CPC de 2013 (v.g. arts. 6.º, n.º 2, e 193.º, n.º 3), pelo objectivo de evitar, tanto quanto possível, que aspectos meramente técnicos ou formais possam impedir ou condicionar a apreciação do mérito da causa e a justa composição do litígio». Logo a seguir acrescentam os mesmos autores que «[o] n.º 1 veio consagrar expressamente a solução (sustentada numa jurisprudência constante) que já vinha sendo aplicada por referência ao disposto no art. 249.º do CC, sendo critério fundamental que o erro de cálculo ou de escrita se revele no contexto da peça processual, seja pelo seu próprio teor, seja pelo teor de peças ou documentos com que tenha conexão» (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra 2019, p. 175).
No caso em análise, considerando que a exequente/embargada e a sociedade B..., S.A. são patrocinadas pelas mesmas mandatárias, as Dras. BB e CC, como decorre das procurações forenses juntas aos autos, considerando também que aquelas duas sociedades têm sede no mesmo local, como já havia sido assinalado no despacho proferido em 22.10.2022, considerando ainda que, para além de não ser parte nos presentes autos, nada indicia que a referida B..., S.A. tenha algum interesse no presente recurso, afigura-se de meridiana clareza que a indicação desta, no requerimento de interposição do recurso, como sendo a recorrente se ficou a dever a mero lapso, revelado no contexto em que essa peça processual foi apresentada e, por isso, facilmente detectável pela recorrida e pelo Tribunal.
Acresce que este erro e a sua rectificação em nada prejudicam a contraparte ou o andamento da causa, visto que aquela recorrida, ainda que à cautela, já apresentou a sua resposta à alegação da recorrente.
Pelo exposto, defere-se a requerida rectificação, substituindo-se a alegação de recurso originariamente apresentada pela versão corrigida junta aos autos em 27.10.2022.
Consequentemente, julga-se prejudicada a alegada falta de legitimidade da recorrente.
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III. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do CPC, não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, consiste em saber se a execução deve ser julgada extinta por verificação da excepção dilatória inominada de não integração da executada no PERSI.
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IV. Fundamentação
A. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal a quo, os quais não foram impugnados pela recorrente e são confirmados pelos documentos e demais elementos juntos aos autos:
«1. Por Contrato de Venda de Créditos, assinado em 12 de Julho de 2019, a Banco 1... vendeu o(s) crédito(s) que detinha sobre o(s) requerido(s) e todas as garantias acessórias a ele(s) inerentes, à A..., S.A., nos termos constantes do documento n.º 1 junto aos autos de execução, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
2. A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao crédito cedido, designadamente da hipoteca constituída sobre o prédio melhor identificado infra.
3. Foi apresentada à execução de que estes autos constituem um apenso:
a) O documento junto com o requerimento executivo, denominado “Doc. 4”, celebrado por instrumento notarial em 6.12.2006 denominado “mutuo com hipoteca” nos termos do qual, para além do mais, a Banco 2... declarou conceder um empréstimo na quantia de € 113.000,00€ à aqui executada, a qual declarou aceitar e de que se confessou devedora, comprometeu-se a liquidar tal montante em 397 prestações mensais e sucessivas, destinado a aquisição de imóvel para habitação própria e permanente (cfr. doc. 4 incluindo o documento complementar junto com o requerimento executivo, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido);
b) O documento junto com o requerimento executivo, denominado “Doc. 5”, celebrado por instrumento notarial em 6.12.2006 denominado “mutuo com hipoteca” nos termos do qual, para além do mais, a Banco 2... declarou conceder um empréstimo na quantia de € 22.000,00 à aqui executada, a qual declarou aceitar e de que se confessou devedora, comprometeu-se a liquidar tal montante em 516 prestações mensais e sucessivas (cfr. doc. 5 incluindo o documento complementar junto com o requerimento executivo, cujo teor, no mais, se dá aqui por integralmente reproduzido);
3. Para garantia das obrigações assumidas, foram constituídas duas hipotecas voluntárias sobre a fracção “F” do prédio urbano sito na Avenida ..., ..., freguesia de Matosinhos, concelho Porto , descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o número ..., daquela freguesia, inscrito na matriz do Serviço de Finanças de Matosinhos 1,sob o número ..., hipotecas estas que foram registadas na referida Conservatória do Registo Predial através da Aps. ... e ... ambas de 2006/10/10, conforme respetiva certidão predial permanente.
4.A Executada faltou ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao mutuante, em 02-04-2018 e 04-04-2019 respectivamente.
5.A executada realizou junto do banco credor, para que fosse possível restruturar o crédito.
6. A exequente não chegou a qualquer acordo com a executada, invocando Dividas fiscais e penhoras existente contra a exequente das Finanças e à Segurança Social.
7. A executada não foi integrada no PERSI».
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B. O Direito
A questão suscitada por via do presente recurso consiste, como vimos, em saber se a execução movida contra a recorrida deve ser julgada extinta por verificação da excepção dilatória inominada de não integração da executada no PERSI.
O PERSI – Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento – foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 70-B/2021, de 8 de Junho.
O preâmbulo deste diploma justifica assim as diversas medidas introduzidas pelo mesmo:
«A concessão responsável de crédito constitui um dos importantes princípios de conduta para a actuação das instituições de crédito. A crise económica e financeira que afecta a maioria dos países europeus veio reforçar a importância de uma actuação prudente, correcta e transparente das referidas entidades em todas as fases das relações de crédito estabelecidas com os seus clientes enquanto consumidores na acepção dada pela Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril.
A degradação das condições económicas e financeiras sentidas em vários países e o aumento do incumprimento dos contratos de crédito, associado a esse fenómeno, conduziram as autoridades a prestar particular atenção à necessidade de um acompanhamento permanente e sistemático, por parte de instituições, públicas e privadas, da execução dos contratos de crédito, bem como ao desenvolvimento de medidas e de procedimentos que impulsionem a regularização das situações de incumprimento daqueles contratos, promovendo ainda a adopção de comportamentos responsáveis por parte das instituições de crédito e dos clientes bancários e a redução dos níveis de endividamento das famílias.
Neste contexto, com o presente diploma pretende-se estabelecer um conjunto de medidas que, reflectindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as actuais dificuldades económicas.
(…) O presente diploma visa, assim, promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários».
As razões de interesse público assim expostas revelam a matriz imperativa do regime legal em causa.
A respeito do PERSI, escreve-se o seguinte no ac. do STJ, de 09.02.2017 (proc. n.º 194/13.5TBCMN-A.G1.S1, rel. Fernanda Isabel Pereira, acessível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da respectiva fonte), numa síntese esclarecedora do respectivo regime jurídico:
«O PERSI constitui uma fase pré-judicial, em que se visa a composição do litígio por mútuo acordo, entre credor e devedor, mediante um procedimento que comporta três fases: a fase inicial; a fase de avaliação e proposta; a fase de negociação (artigos 14.º, 15.º e 16.º).
Na fase inicial, a instituição, depois de identificar a mora do cliente, informa-o do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida, desenvolvendo diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado; persistindo o incumprimento, integra-o, obrigatoriamente, no PERSI entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequente à data do vencimento da obrigação em causa (artigos 13.º e 14.º n.º 1).
Na fase de avaliação e proposta, a instituição de crédito procede à avaliação da situação financeira do cliente para apurar se o incumprimento é momentâneo ou tem carácter duradouro. Findas as diligências, apresenta ao cliente uma ou mais propostas de regularização do crédito adequadas à sua situação financeira e necessidades, se considerar que o mesmo tem condições para cumprir. Se a averiguação feita tiver revelado incapacidade do cliente bancário para retomar o cumprimento das suas obrigações ou regularizar o incumprimento, mesmo com recurso à renegociação do contrato ou à sua consolidação com outros contratos de crédito, comunica ao cliente o resultado da avaliação e a inviabilidade de obtenção de um acordo no âmbito do PERSI, o qual se extinguirá (artigo 17.º n.º 2 al. c)).
A fase da negociação tem por objectivo obter o acordo do cliente para a proposta ou uma das propostas apresentadas pela instituição de crédito com vista à regularização do incumprimento.
Durante o período que decorre entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste procedimento, está, nomeadamente, vedado à instituição de crédito intentar acções judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito (artigo 18º nº 1 al. b))».
Sem prejuízo do que ficou exposto supra a respeito da fase inicial, «a instituição de crédito mutuante está sempre obrigada a incluir o cliente no PERSI quando aquele esteja numa situação de mora e o solicite, ou quando um cliente que já tivesse alertado para o risco do seu incumprimento entre, efectivamente, em mora, conforme decorre do art.º 14º, nº 2 do DL 227/2012» (cfr. ac. do TRL, de 15.12.2022, proc. n.º 23116/16.7T8SNT-C.L1-8, rel. Carla Sousa Oliveira, cuja exposição inicial vimos seguido de perto).
O PERSI extingue-se nos termos regulados no artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do citado diploma, devendo essa extinção ser comunicada ao cliente bancário, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo.
Deste breve análise dos fundamentos e do regime jurídico do PERSI decorre que, verificados os respectivos pressupostos, a integração do cliente bancário nesse procedimento é obrigatória, não estando na disponibilidade das partes derrogar ou afastar a aplicação das normas que o impõem, ainda que por mútuo acordo, com todas as consequências previstas no artigo 18.º do diploma que vimos analisando, o qual, sob a epígrafe Garantias do cliente bancário, dispõe assim:
«1 – No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de:
a) Resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento;
b) Intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito;
c) Ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito; ou
d) Transmitir a terceiro a sua posição contratual.
2 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do número anterior, a instituição de crédito pode:
a) Fazer uso de procedimentos cautelares adequados a assegurar a efectividade do seu direito de crédito;
b) Ceder créditos para efeitos de titularização; ou
c) Ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito.
3 – Caso a instituição de crédito ceda o crédito ou transmita a sua posição contratual nos termos previstos na alínea c) do número anterior, a instituição de crédito cessionária está obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual.
4 – Antes de decorrido o prazo de 15 dias a contar da comunicação da extinção do PERSI, a instituição de crédito está impedida de praticar os actos previstos nos números anteriores, no caso de contratos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, e em que a extinção do referido procedimento tenha por fundamento a alínea c) do n.º 1 ou as alíneas c), f) e g) do n.º 2 todas do artigo anterior».
Mas porque assim é, do referido regime jurídico decorre igualmente que a falta de integração no PERSI, malgrado a verificação dos respectivos pressupostos, «impede também que a instituição de crédito intente acção judicial com vista à satisfação do seu crédito, porque antes de o poder fazer tem de cumprir aquela obrigação que lhe é imposta de tentativa extrajudicial de regularização do incumprimento, ou seja, aquela integração surge como uma condição prévia ao accionamento judicial», como se escreve no já citado acórdão do TRL, de 15.12.2022.
Neste sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e das relações tem vindo a afirmar de modo uniforme que o cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da acção executiva, uma condição objetiva de procedibilidade, cuja ausência se traduz numa excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, insanável, que conduz à absolvição da instância, nos termos do disposto nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, e 578.º do CPC, aplicáveis ao processo executivo por força do disposto no artigo 551.º, n.º 1, do mesmo código. A título de exemplo, vide: acórdãos do STJ de 13.04.2021 (proc. n.º 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1, rel. Graça Amaral), de 16.11.2021 (proc. n.º 21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S, rel. Clara Sottomayor) e de 09.12.2021 (proc. nº. 4734/18.5T8MAI-A.P1.S1, rel. Ferreira Lopes); acórdãos do TRP de 09.01.2019 (proc. n.º 8207/14.7T8PRT-B.P1, rel. Filipe Caroço), de 09.05.2019 (proc. n.º 21609/18.0T8PRT-A.P1, rel. Judite Pires), de 14.01.2020 (proc. n.º 4097/14.8TBMTS.P1, rel. Ana Lucinda Cabral), de 07.02.2022 (proc. n.º 1091/20.3T8OVR-A.P1, rel. Ana Paula Amorim), de 07.03.2022 (proc. n.º 121/20.3T8VLG-A.P1, rel. Miguel Baldaia Morais), de 08.06.2022 (proc. n.º 4204/20.1T8MAI-A.P1, rel. Eugénia Cunha) e de 15.06.2022 (proc. n.º 1112/20.0T8LOU-A.P1, rel. Aristides Rodrigues de Almeida); acórdãos do TRL de 7.05.2020 (proc. n.º 2282/15.4T8ALM-A.L1-6, rel. Adeodato Brotas) e de 13.10.2020 (proc. n.º 15367/17.3T8SNT-A.L1-7, rel. Maria da Conceição Saavedra); acórdãos do TRE de 06.10.2016 (proc. n.º 4956/14.8T8ENT-A.E1, rel. Tomé de Carvalho) e de 28.06.2018 (proc. n.º 2791/17.0T8STB-C.E1, rel. Mata Ribeiro).
No caso concreto, tendo a executada recorrida faltado ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao banco mutuante em 02-04-2018 e 04-04-2019 (cfr. ponto 4 dos factos provados), este não integrou a referida executada no PERSI entre o 31.º e o 60.º dia subsequentes, como impõe a lei, nem posteriormente (cfr. ponto 7 dos factos provados).
Vem a recorrente alegar que, ao contrário do afirmado na decisão recorrida, mesmo durante o período de integração do cliente bancário no PERSI, podem ser cedidos créditos para efeitos de titularização (cfr. artigo 18.º, b.º 2, al. c), do Decreto Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro) – como sucedeu in casu – a sociedades de titularização de créditos – como a apelante – ou a fundos de titularização créditos (cfr. artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro), uma vez que as garantias do cliente bancário não ficam prejudicadas ou de alguma forma diminuídas por tal operação, porquanto se encontram salvaguardadas pelo artigo 5.º do referido Decreto-Lei nº 453/99, cujo n.º 1, dispõe assim: «Quando a entidade cedente seja instituição de crédito, sociedade financeira, empresa de seguros, fundo de pensões ou sociedade gestora de fundos de pensões, deve ser sempre celebrado, simultaneamente com a cessão, contrato pelo qual a entidade cedente, ou no caso dos fundos de pensões a respectiva sociedade gestora, fique obrigada a praticar, em nome e em representação da entidade cessionária, todos os actos que se revelem adequados à boa gestão dos créditos e, se for o caso, das respectivas garantias, a assegurar os serviços de cobrança, os serviços administrativos relativos aos créditos, todas as relações com os respectivos devedores e os actos conservatórios, modificativos e extintivos relativos às garantias, caso existam». Assim, acrescenta, o sujeito ativo do PERSI continua a ser a instituição de crédito cedente, que continua vinculada, em relação ao crédito cedido, às obrigações emergentes do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, tudo se passando como se não tivesse ocorrido a cessão.
Por isso, alega ainda a recorrente, nada na lei exige que a cessionária do crédito verifique previamente se o mesmo foi ou não integrado no PERSI, novamente em contradição com o que é afirmado na decisão recorrida.
Conclui, assim, a recorrente que «as interpretações acima referidas feitas pelo Tribunal a quo para fundamentar a Sentença proferida e ora em crise, estão erradas e não poderão ser aceites, pelo que caberá a este Tribunal da Relação de Lisboa [querendo certamente referir Porto], revogar parcialmente a Sentença e alterá-la nos termos ora alegados».
Esta alegação é, todavia, inconsequente. Ainda que dirigida a alguns dos argumentos aduzidos na sentença recorrida, é totalmente insusceptível de afectar a decisão que julga verificada a excepção dilatória e determina a extinção da instância executiva. Mesmo que se considere que a cessão de créditos é válida à luz das disposições legais invocadas pela recorrente, mantém-se inalterada a circunstância de não terem sido cumpridos os deveres impostos pelo regime do PERSI, ou seja, a não verificação de um pressuposto específico da acção executiva, que consubstancia numa excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, insanável, que conduz à absolvição da instância. De resto, não esclarece a recorrente em que se traduz a revogação parcial por si propugnada.
Para contrariar esta conclusão não se diga que a recorrente, por não ser uma instituição de crédito, não está sujeita, ela própria, às obrigações impostas pelo Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25.10, pelo que aquela excepção dilatória não lhe é oponível.
Desde logo porque esta conclusão seria violadora das normas do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro, invocadas pela própria recorrente, que visam a neutralidade da operação de titularização de créditos perante os devedores. Como se afirma no preâmbulo deste diploma legal, «[q]uanto aos legítimos direitos dos devedores, especialmente dos consumidores de serviços financeiros, consagram-se normas que visam a neutralidade da operação perante estes. É o que sucede, nomeadamente, no que respeita à manutenção, pela instituição financeira cedente, de poderes de gestão dos créditos e das respectivas garantias. Com efeito, em relação aos devedores, a titularização dos créditos não implica a diminuição de nenhuma das suas garantias, continuando aqueles, no que ao sector financeiro respeita e não obstante a ausência de notificação da cessão, a manter todos os seus direitos e todo o seu relacionamento com a instituição financeira cedente».
Aquela argumentação seria equacionável se o incumprimento da executada tivesse ocorrido já depois da cessão do crédito. Mas, no caso, aquando desta cessão, ocorrida em 12.07.2019 (cfr. ponto 1 dos factos provados), já a recorrida estava em situação de incumprimento relativamente às prestações de 02.04.2018 e de 04.04.2019. Consequentemente, naquela data, o credor originário, Banco 1..., já havia incumprido as referidas obrigações, com todas as consequências daí decorrentes já antes analisadas, nomeadamente o impedimento de intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação desse crédito.
Só assim se garante que o regime jurídico do PERSI é assegurado. Uma leitura diferente equivaleria a desvirtuar ou, mesmo, perverter esse regime jurídico, deixando “entrar pela janela” aquilo que o legislador não quis deixar “entrar pela porta”.
Como decorre da jurisprudência preconizada pelo ac. do TRG, de 30.01.2020 (proc. n.º 5520/18.8T8VNF-A.G1, rel. Alcides Rodrigues), que merece o nosso inteiro acolhimento, o regime legal das garantias do cliente bancário consagradas no artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 227/2012 – mormente da proibição de proposição de acções judiciais para cobrança do crédito, prevista na al. b), do n.º 1, da proibição de transmissão desse crédito, prevista na al. d), do mesmo n.º 1, e das excepções a esta proibição de cessão do crédito, previstas e reguladas nas alíneas b) e c), do n.º 2, e no n.º 3 – revela que o legislador pretendeu impedir a cessão de créditos que pudesse desvirtuar ou obstar à aplicação do PERSI, pois «de outro modo estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012, bastando para o efeito que, em violação do estatuído no citado diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art. 18.º e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido, sendo-lhe, por isso, lícito, sem quaisquer restrições, resolver de imediato o contrato de crédito com fundamento em incumprimento (art. 18.º, n.º 1, al. a)), intentar ações judiciais contra o mutuário, tendo em vista a satisfação dos respetivos créditos (al. b)), ceder a terceiros uma parte ou a totalidade do crédito em causa (al. c)) ou transmitir a terceiro a sua posição contratual (al. d))».
Como se acrescenta no mesmo acórdão, «[t]al representaria, fácil é de ver, uma autêntica fraude à lei, na medida em que frustraria por completo os objetivos que presidiriam à consagração daquele especial regime que visa tutelar as situações dos clientes bancários que se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, solução essa que deve ser rejeitada».
Em desabono da decisão recorrida não se argumente, também, que a recorrente já resolveu o contrato – linha argumentativa que a ora recorrente seguiu na sua contestação, para rebater os argumentos aduzidos na petição de embargos, ou seja, num contexto muito distinto do que envolve a presente apelação – e que a aplicação do PERSI pressupõe que o mesmo esteja em vigor (cfr. ac. do TRE, de 02.05.2019, proc. n.º 10/14.0TBTVR-A.E1, rel. Paulo Amaral).
A ter ocorrido essa resolução – o que não chegou a ser apreciado pelo Tribunal a quo – a mesma teria sido formalizada pela cessionária do crédito, aqui recorrente, por via das missivas juntas como documentos n.ºs 1 e 2 da contestação, datadas de 13 de Fevereiro e 20 de Março de 2020 (recorde-se que a resolução não se confunde com a perda do benefício do prazo prevista no artigo 781.º do CC, conforme se afirma no ac. do TRP, de 29.04.2022, rel. Anizabel Sousa Pereira, não se justificando aqui trazer à colação este normativo).
Por conseguinte, os contratos de mútuo que servem de base à execução não se encontravam resolvidos ou extintos à data em que a executada deveria ter sido integrada no PERSI, nos termos do artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro.
Deste modo, a instituição bancária mutuante ficou impedida de resolver os referidos contratos de crédito com fundamento em incumprimento, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 1, al. a), do referido diploma legal, sendo aqui aplicável, mutatis mutandis, a argumentação anteriormente desenvolvida: aceitar-se que a cessionária do crédito possa resolver validamente o contrato por factos ocorridos antes da cessão traduzir-se-ia numa violação do regime jurídico da titularização de créditos previsto no Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro, maxime das já aludidas normas que visam assegurar a neutralidade dessa operação perante o devedor, bem como numa violação do regime jurídico do PERSI, maxime das normas que proíbem cessões de créditos que permitam às instituições de crédito subtraírem-se àquele regime, numa verdadeira fraude à lei, pelo que essa solução deve ser rejeitada.
Tendo em conta tudo quanto ficou exposto, concluímos estar verificada a excepção dilatória de não integração da executada no PERSI, pelo que importa confirmar a decisão que absolveu a recorrida da instância executiva e determinou a extinção da execução, com todas as consequências legais.
As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu integral decaimento (artigo 527.º do CPC).
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V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 24 de Janeiro de 2023
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
João Proença