Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
104/14.2TBVLC-H.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ENTREGA
DIREITO DE HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP20210920104/14.2TBVCL-H.P2
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na alínea b) do nº 7, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, introduzido pela Lei nº 13-B/2021 de 05 de abril, visa-se a proteção do direito à habitação da pessoa visada pela diligência de entrega da casa de morada de família, enquanto no nº 8 do mesmo preceito se almeja a tutela do executado ou do insolvente sempre que a diligência de entrega de imóvel seja suscetível de causar prejuízo à subsistência destes, o que deixa pressupor que terão de tratar-se de imóveis que tenham capacidade reditícia, ou seja, terão de ser imóveis com aptidão para gerar rendimentos que sejam necessários à subsistência do executado e do insolvente, suspensão de entrega que em todo o caso só operará desde que não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável.
II - Enquanto a tutela da alínea b), do nº 7 do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020 se basta com a comprovação de que o imóvel a entregar constitui a casa de morada de família da pessoa visada com a diligência de entrega, devendo o executor da medida de entrega suspender imediatamente essa diligência logo que se aperceba que se trata de uma casa de morada de família, no caso do nº 8 o beneficiário da tutela deve requerer a suspensão da entrega, averiguando-se, em sede incidental, a reunião dos pressupostos legais da previsão legal em causa, constituindo este um incidente especial em face do incidente geral previsto no nº 5 do artigo 150º do CIRE, sempre que esteja em causa a desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente.
III - Em todo o caso o incidente previsto no nº 5 do artigo 150º do CIRE não é aplicável enquanto se mantiver a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, como se prevê no nº 1, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, introduzido pela Lei nº 13-B/2021 de 05 de abril, sendo antes aplicável a suspensão da entrega da casa de morada de família tal como previsto na alínea b) do nº 7 do citado artigo 6-E, ainda que o ocupante seja pessoa diversa do insolvente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 104/14.2TBVLC-H.P2

Sumário do acórdão proferido no processo nº 104/14.2TBVLC-H.P2 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Em 18 de fevereiro de 2019, por apenso ao processo de insolvência nº 104/14.2TBVLC-H.P2, pendente no Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis, Comarca de Aveiro, Juiz 1, B… instaurou a presente ação para separação de bem da massa insolvente contra a Massa Insolvente de C… e de D… e o Sr. Administrador da Insolvência, Sr. Dr. E… pedindo a condenação solidária dos réus a:
a) reconhecer a existência e a validade do contrato de arrendamento habitacional celebrado em 31 de dezembro de 1993, entre F…, na qualidade de senhorio e de B…, na qualidade de inquilina, referente ao prédio urbano destinado a comércio e habitação, com logradouro, composto de dois pisos e sótão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tondela sob o nº 3723, freguesia …, resultante da desanexação do descrito sob o nº 312/19910313 e inscrito na matriz sob o artigo 1266;
b) entregar-lhe os quatro conjuntos completos de chaves das portas exteriores desse imóvel e que se abstenha de tomar qualquer medida ou diligência de entrega do prédio enquanto a presente ação não for decidida;
c) reconhecer a ilicitude e a invalidade da diligência de tomada de posse efetiva do prédio apreendido, devendo pagar à autora uma indemnização a título de danos morais em quantia não inferior a € 10.000,00, a que devem acrescer € 150,00 por cada dia que medeie entre a citação dos réus e a efetiva entrega à autora de todas as chaves exteriores do prédio.
Para tal alegou, em síntese, que é titular de um contrato de arrendamento do prédio apreendido que foi celebrado em 31 de dezembro de 1993, pagando de renda o montante de 12.000$00 mensais, sendo que tal imóvel ainda hoje constitui a sua casa de morada de família. Porém, ainda que tenha exibido ao Administrador da Insolvência a documentação demonstrativa de tal contrato, ainda assim o Administrador da Insolvência tomou posse do imóvel e mudou as fechaduras, o que levou a que a autora sofresse grande abalo e fosse hospitalizada, provocando-lhe, ainda hoje, falta de sono e nervosismo.
Os autos prosseguiram os seus termos normais com a citação dos réus e oferecimento de contestações, sendo em 08 de fevereiro de 2020 proferida sentença que julgou totalmente improcedente a ação e condenou a autora como litigante de má-fé na multa de cinco unidades de conta, sentença que por acórdão proferido em 19 de maio de 2020 foi confirmada, com exceção da condenação da autora como litigante de má-fé.
Arguida a nulidade do acórdão do tribunal da Relação e julgada a mesma improcedente, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, recurso que este tribunal não admitiu.
Em 16 de junho de 2021, B… veio requerer que o tribunal a quo esclareça se a norma excecional constante do artigo 6º-E “da lei da doença COVID 19” [sic] prevalece ou não sobre a norma do artigo 150º do CIRE.
Também em 16 de junho de 2021 o Sr. Administrador de Insolvência ofereceu o seguinte requerimento:
E… e “Massa Insolvente de C… e marido D…”, R.R. nos autos à margem identificados, foram notificados de mais um requerimento apresentado pela A. de caráter meramente dilatório e depois de ter utilizado todos os demais expedientes dilatórios existentes na Ordem Jurídica Portuguesa, no qual tem o desplante de peticionar, sem qualquer fundamento legal, novo adiamento na entrega do locado.
Com efeito, o nº 8 do artigo 6º E da Lei nº Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março na versão atualizada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril é bem clara quando dispõe que só o insolvente tem legitimidade para requerer a suspensão da entrega do locado e não um terceiro à presente lide, como é o caso da A..
Face ao exposto, tem a pretensão da A. de soçobrar, o que desde já se requer a V. Exa.
se digne ordenar.
Em 21 de junho de 2021 foi proferido o seguinte despacho[1]:
Veio a A., aceitando não possuir título válido para ocupar o prédio objecto destes autos, requerer a aplicação do disposto no artigo 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 de 19/03 alegando para o efeito que o referido prédio é a sua morada há mais de 40 anos e que só dispõe de 420,00€ de reforma.
O Exmo. AI promoveu o indeferimento do pedido defendendo que o nº 8 do artigo 6º-E da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março na versão atualizada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril é bem clara quando dispõe que só o insolvente tem legitimidade para requerer a suspensão da entrega do locado e não um terceiro à presente lide, como é o caso da A.
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Cabe apreciar e decidir.
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Conforme sabe, tendo recaído sobre ela o ónus de provar que detinha título que legitimasse que ocupasse o imóvel apreendido, não o logrou fazer.
Dissemo-lo na sentença recorrida.
Também no acórdão proferido pelo TRP pode ler-se: “A A. não tinha, à época (07/02/2019), título válido que legitimasse tal ocupação e, assim, o Administrador da Insolvência, depois da adjudicação que foi feita à sua representada (Massa Insolvente), no âmbito da ação de divisão de coisa comum, tinha o dever de apreender aquele prédio (no seu todo). Apreendê-lo, note-se, em termos materiais, pois que é isso que lhe determina o artigo 150.º do CIRE”.
Logo, para o que nos interessa, está provado nestes autos que a A. é ocupante ilegítima do prédio apreendido.
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A Lei nº 1-A/2020 de 19 de Março, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-B/2021, de 05 de Abril estabelece no artigo 6º-E, nº 7, al. b) que ficam suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
E no nº 8 prevê-se que se as vendas e entregas judiciais de imóveis forem suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
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Da conjugação das duas normas acima indicadas resulta que, não sendo a aqui A. insolvente nestes autos não pode lançar mão deste incidente excecional, tendo em vista o diferimento da desocupação do imóvel que ocupa ilegalmente e sem título.
De facto, nem no Código de Processo Civil nem na Lei invocada pela A. existe qualquer norma que acautele a posição do possuidor ou detentor sem título ainda que se trate de pessoa que atravesse grandes dificuldades económicas.
É esse o significado da referência à boa-fé constante do n.º 2 do artigo 864.º do CPC. Ou seja, dada a boa-fé, a legítima confiança na produção dos efeitos desse direito anterior por parte do arrendatário ou do insolvente (alicerçada no seu direito contratual de gozo ou de propriedade, respetivamente), designadamente quanto à expectativa de ocupação e habitação no imóvel a entregar, o legislador protege esses anteriores titulares relativamente a uma perda súbita do seu direito, em determinadas circunstâncias. Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam.
Mas já não protege esses mesmos interesses, autonomamente, relativamente a quem não tiver sido titular desses direitos, pois em relação a tais terceiros já não se identifica qualquer direito no qual se possa sediar, de per si, a ultra-vigência desses efeitos, a continuidade da tutela desses interesses.
Não se olvida que o direito à habitação goza de justificada tutela constitucional – cfr. art.º 65.º da CRP, que proclama, no seu art.º 1.º “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Todavia, assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares (cfr. n.ºs 2, 3 e 4 do preceito), pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes.
Assim, mesmo que se pudesse reconhecer à A. após a produção da prova, o preenchimento do conceito de razões sociais imperiosas, no qual alicerça a sua pretensão, não lhe assiste o direito que pretende ver-lhe reconhecido, já que não detém a qualidade de insolvente nem de arrendatária, sendo apenas estes os titulares do direito a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do n.º 1 do art.º 864.º do Código de Processo Civil e artigo 6º-E da Lei nº 13-B/2021, de 05 de Abril, a tutela legal.
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Pelo que, por não estar legalmente prevista – nem no Código de Processo Civil, nem na Lei nº 1-A/2020, de 19-03, nem qualquer outra – a salvaguarda de quem ocupa ilegalmente um imóvel, indefere-se o pedido formulado pela A.
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Notifique, sendo o AI para tomar posse efectiva do imóvel, recorrendo, se necessário, ao uso da força, para o que fica desde já autorizado, caso a A. não entregue o imóvel livre de pessoas e bens.
Em 27 de junho de 2021, inconformada com a decisão que precede, B… interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
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Não foram oferecidas contra-alegações.
Atendendo à natureza estritamente jurídica do objeto do recurso, à natureza urgente dos autos, à simplicidade da questão decidenda e com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de imediato.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
A única questão a decidir é a da suspensão ou não da entrega de imóvel apreendido para a massa insolvente por força do disposto no artigo 6º-E, nº 7, al. b), da lei nº 1-A/2020 de 19 de março, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 13-B/2021, de 05 de abril.
3. Fundamentos de facto
Os factos necessários e suficientes para a dilucidação do objeto do recurso constam do relatório que precede, resultam dos próprios autos, nesta parte com força probatória plena e não se reproduzem nesta sede por evidentes razões de economia processual.
4. Fundamentos de direito
A recorrente beneficia da suspensão da entrega de imóvel apreendido para a massa insolvente por força do disposto no artigo 6º-E, nº 7, al. b), da lei nº 1-A/2020 de 19 de março, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 13-B/2021, de 05 de abril?
A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida porque, em síntese, a suspensão da execução da entrega da casa de morada de família não depende da qualidade de executado ou de insolvente de quem habita na casa a entregar e, além disso, também o executado e o insolvente após a venda ou apreensão do prédio objeto da entrega não têm título que justifique a sua ocupação.
Cumpre apreciar e decidir.
No nº 10 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020 de 19 de março previa-se que “São suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.
A Lei nº 4-A/2020 de 04 [6] de abril alterou, além do mais, o artigo 7º da Lei nº 1-A/2020 de 19 de março, mantendo-se inalterado o conteúdo do nº 10 do mencionado artigo que passou a nº 11 e introduzindo uma alínea b), no nº 6 do referido artigo passando a prever que ficam também suspensos “Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.
Posteriormente, a Lei nº 16/2020 de 29 de maio, de novo alterou o artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, passando a prever nas alíneas b) e c) do seu nº 6 o seguinte:
6 — Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
(…)
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
A mesma Lei nº 16/2020, alterou o nº 7 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020, passando a ter o seguinte conteúdo[2]:
- Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.
A Lei nº 4-B/2021 de 01 de fevereiro, aditou à Lei nº 1-A/2020, o artigo 6º-B, prevendo, além do mais, no seu nº 6, o seguinte:
- São também suspensos:
(…)
b) Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, com exceção dos seguintes:
i) Pagamentos que devam ser feitos ao exequente através do produto da venda dos bens penhorados; e
ii) Atos que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.
O nº 11 do artigo 6º-B aditado à Lei nº 1-A/2020 pela Lei nº 4-B/2021 passou a ter o seguinte conteúdo:
- São igualmente suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais atos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Finalmente, a Lei nº 13-B/2021, de 05 de abril aditou o artigo 6º-E à Lei nº 1-A/2020 de 19 de março[3], prevendo-se no nº 7, alínea b) desse artigo o seguinte:
- Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
(…)
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Por seu turno, passou a prever-se no nº 8 do mesmo artigo 6-E aditado pela Lei nº 13-B/2021 o seguinte:
- Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
Da análise dos preceitos que foram sucessivamente vigorando no tempo verifica-se que relativamente à tutela da casa de morada de família ou da habitação própria houve um alargamento do seu campo de aplicação, na medida em que na primeira redação da Lei nº 1-A/2020 apenas se contemplava a proteção do ex-arrendatário e presentemente, além da tutela conferida ao ex-arrendatário, prevê-se também a tutela da casa de morada de família de quem for visado por diligência de entrega judicial dessa habitação em sede de processo de executivo ou de processo de insolvência[4].
O campo de aplicação da alínea b), do nº 7, do artigo 6º-E da Lei nº 1-A/2020 de 19 de março, na redação introduzida pela Lei nº 13-B/2021, de 05 de abril respeita à casa de morada de família de quem seja atingido por diligência de entrega desse bem no âmbito de processo executivo ou de processo de insolvência[5], enquanto no nº 8 do mesmo artigo se visa a tutela do executado ou do insolvente sempre que a entrega judicial de imóveis possa causar prejuízo à subsistência destes e desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável.
Pode assim afirmar-se que na alínea b) do nº 7, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020 se visa a proteção do direito à habitação da pessoa visada pela diligência de entrega da casa de morada de família, enquanto no nº 8 do mesmo preceito se almeja a tutela do executado ou do insolvente sempre que a diligência de entrega de imóvel seja suscetível de causar prejuízo à subsistência destes, o que deixa pressupor que terão de tratar-se de imóveis que tenham capacidade reditícia, ou seja, terão de ser imóveis com aptidão para gerar rendimentos que sejam necessários à subsistência do executado e do insolvente, suspensão de entrega que em todo o caso só operará desde que não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável.
Enquanto a tutela da alínea b), do nº 7 do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020 se basta com a comprovação de que o imóvel a entregar constitui a casa de morada de família da pessoa visada com a diligência de entrega, devendo o executor da medida de entrega suspender imediatamente essa diligência logo que se aperceba que se trata de uma casa de morada de família, no caso do nº 8 o beneficiário da tutela deve requerer a suspensão da entrega, averiguando-se, em sede incidental, a reunião dos pressupostos legais da previsão legal em causa, constituindo este um incidente especial em face do incidente geral previsto no nº 5 do artigo 150º do CIRE, sempre que esteja em causa a desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente[6].
Assim, ao contrário do que parece pressuposto na decisão recorrida, o nº 8 do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020 não é uma mera adjetivação da alínea b), do nº 7 do mesmo artigo, sendo antes previsões com pressupostos objetivos e subjetivos de aplicação diversos.
Em todo o caso, em qualquer dos normativos se tutelam sujeitos que não têm já título para deter a coisa objeto da diligência de entrega, seja porque nunca o tiveram seja porque deixaram de o ter em consequência de procedimento ou decisão judicial anterior.
Bem se compreende que num contexto de pandemia, o legislador tenha especial preocupação com a tutela da habitação de pessoas visadas com diligências de entrega da casa de morada de família, já que a concretização dessa diligência exporá por via de regra os ocupantes da habitação a um risco acrescido para a sua saúde.
Deste modo, por tudo quanto precede, conclui-se que o recurso procede, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determina a suspensão da entrega da casa de morada de família da recorrente até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, como se prevê no nº 1, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, introduzido pela Lei nº 13-B/2021 de 05 de abril.
As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente, pois que não foram oferecidas contra-alegações, sendo a recorrente que tira proveito do ora decidido (artigo 527º, nº 1, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza a recorrente[7].
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto por B… e, em consequência, em revogar a decisão proferida em 21 de junho de 2021 que se substitui por decisão que determina a suspensão da entrega da casa de morada de família da recorrente até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, como se prevê no nº 1, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, introduzido pela Lei nº 13-B/2021 de 05 de abril.
Custas do recurso a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.
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O presente acórdão compõe-se de onze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 20 de setembro de 2021
Carlos Gil
Mendes Coelho
Joaquim Moura
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[1] Notificado às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 22 de junho de 2021.
[2] Conteúdo que corresponde em parte à alínea b) do nº 6 do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020 na redação introduzida pela Lei nº 4-A/2020 de 04 de abril.
[3] O nº 1 deste artigo dispõe que: “No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS -CoV-2 e da doença COVID -19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem -se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.”
[4] Recorde-se que o processo de insolvência é um processo de execução universal (artigo 1º, nº 1, do CIRE, acrónimo com que doravante se designará o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). Mas nem só a ação executiva comum ou especial constituem processos executivos, pois também têm esta natureza todos aqueles em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida (artigo 10º, nº 4, do Código de Processo Civil).
[5] Embora a previsão legal se refira a diligência judicial de entrega, afigura-se-nos que por maioria de razão estão também contempladas as diligências coercivas de entrega levadas a cabo pelo Administrador da Insolvência no exercício das competências que legalmente lhe são conferidas no artigo 150º do CIRE.
[6] Em todo o caso sublinhe-se que este incidente não é aplicável enquanto se mantiver a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, como se prevê no nº 1, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, introduzido pela Lei nº 13-B/2021 de 05 de abril, sendo antes aplicável a suspensão da entrega da casa de morada de família tal como previsto na alínea b) do nº 7 do citado artigo 6-E, ainda que o ocupante seja pessoa diversa do insolvente.
[7] No requerimento de 18 de março de 2019, com a referência 8481593, a recorrente comprovou ter-lhe sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.