Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
241/20.4YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: REVISÃO DE DIVÓRCIO CONSENSUAL CELEBRADO POR ESCRITURA PÚBLICA
REGISTO DE ACTO DO DIVÓRCIO NA LEI BRASILEIRA
INGRESSO NO REGISTO NACIONAL
Nº do Documento: RP20201022241/20.4YRPRT
Data do Acordão: 10/22/2020
Votação: MAIORIA COM 1 DECLARAÇÃO DE VOTO E 1 VOTO VENCIDO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O divórcio «directo consensual» que a lei brasileira permite que seja celebrado extrajudicialmente por escritura pública é um acto cujo efeito jurídico se produz naquele ordenamento sem a intervenção de uma autoridade, judicial ou administrativa, chamada a controlar, homologar ou decidir sobre a produção do efeito da extinção do casamento, o qual se produz ali por mero efeito potestativo da vontade dos cônjuges.
II - A acção de revisão de sentença estrangeira do nosso ordenamento jurídico tem por objecto especial verificar e reconhecer entre nós o efeito jurídico produzido por uma decisão jurisdicional ou equiparada sobre direitos privados, de modo que esse efeito seja aceite e tratado no nosso ordenamento jurídico como o efeito de uma decisão do sistema judicial ou administrativo e não, simplesmente, como efeito jurídico caucionado pela ordem jurídica estrangeira onde se produziu.
III - O divórcio consensual celebrado no brasil pelos cônjuges por escritura pública não é passível de revisão e confirmação entre nós através da acção de revisão de sentença estrangeira.
IV - O acto de registo do divórcio lavrado no registo civil brasileiro com base na escritura pública de divórcio pode ingressar no registo civil nacional (e adquirir aqui o efeito e o valor de acto de registo civil) em face de documento que, de acordo com a respectiva lei, comprove a sua inscrição no registo e mediante a prova, a efectuar perante o nosso registo civil, de que o divórcio não contraria os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português (artigos 6.º e 7.º do Código de Registo Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Revisão de Sentença Estrangeira
ECLI:PT:TRP:2020:241.20.4YRPRT
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.
B…, titular do Cartão de Cidadão n.º ……… …., emitido pela República Portuguesa, residente em …, Rio de Janeiro, Brasil, e C…, titular do Passaporte n.º ………, emitido pela República Federativa do Brasil, residente em Matosinhos, Portugal, instauraram neste Tribunal da Relação do Porto a presente acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira.
Pediram a revisão e confirmação para todos os efeitos legais da «decisão que decretou o divórcio dos Requerentes, por escritura pública lavrada em 06 de Maio de 2019».
Juntaram certidão da escritura pública de divórcio e certidão do assento de casamento transcrito para Portugal através do Assento n.º …. do ano 2014 do Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, Brasil.
Em sede de alegações o Ministério Público e os requerentes pronunciaram-se pela inexistência de obstáculos à pretensão dos requerentes.
II.
O tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem totalmente.
As partes possuem personalidade judiciária e são as legítimas.
Não há nulidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer-se e que obstem ao conhecimento do mérito.
III.
Estão provados por documento autêntico os seguintes factos:
a. No dia 21 de Fevereiro de 2014, no Cartório do 10º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, Brasil, os requerentes contraíram entre si casamento civil com convenção antenupcial, conforme assento de casamento lavrado pelo Cartório do 5º Registro Civil do Rio de Janeiro, Brasil.
b. O correspondente assento de casamento foi transcrito para Portugal através do Assento de casamento n.º …. do ano de 2014 do Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, Brasil.
c. Em 6 de Maio de 2019 os requerentes compareceram no Cartório do 25º Oficio de Notas do Rio de Janeiro, Botafogo, Brasil, onde fizeram lavrar «escritura publica de consensual divórcio direto».
d. A referida escritura pública possui o seguinte conteúdo:
«Escritura Pública de Divórcio Direto Consensual, que se faz, C… e B… na forma abaixo: Saibam quantos este público instrumento de Escritura Pública de Divórcio Direto Consensual, virem que aos 06 (seis) dias de Maio de dois mil e dezenove, nesta Cidade do Rio de Janeiro, […], neste 25º Tabelionato de Notas, […], perante mim, D…, Substituta, matricula nº ../…., comparecem como outorgantes e reciprocamente outorgados, doravante denominados apenas como outorgantes e reciprocamente outorgados, C…, […] e B…, […], e ainda, como Advogado Assistente, Dr. E…, […]; as partes fizeram o rito e escolha pelo divórcio consensual. Os comparecentes juridicamente capazes, reconhecidos como os próprios, mediante a exibição que fizeram dos documentos de identificação supramencionados, que ficam arquivados, por cópia, os quais ratificam a qualificação com que figuram nesta escritura. E, na minha presença, pelos Outorgantes, me foi dito que compareceram perante mim, D…, as partes constituído, o ora Assistente, para realizar o seu divórcio direto: I - Do casamento: Os Outorgantes, contraíram matrimónio no dia 21 (vinte e um) dias do mês de 02 (Fevereiro) de 2014 (dois mil e quatorze), conforme se verifica na certidão de casamento, […], sob o regime da Separação de Bens, na vigência da lei 6.515/77; II - Dos filhos: Que os Outorgantes, não possuem filhos menores, e, ainda, que o cônjuge virago não se encontra em estado gravídico ou ao menos, que não tenha conhecimento sobre essa condição; III - Dos Requesitos do divórcio direto: Que, não desejando mais os Outorgantes, manter o vínculo conjugal, declaram, de sua espontânea vontade, livre de qualquer coação, sugestão induzimento, o seguinte: 3.1 - Que a convivência matrimonial entre eles tornou-se intolerável não havendo possibilidade de reconciliação; 3.2 - que o divórcio que ora requerem preserva os interessados dos conjugues e não prejudica o interesse de terceiros. IV - Do aconselhamento e assistência jurídica: Pelo assistente, advogado constituído pelos dois Outorgantes, foi dito que, tendo ouvido ambas as partes aconselhou e advertiu das consequências do divórcio. As partes declaram perante o assistente jurídico e a esta Substituta estarem convictas de que a dissolução do casamento é a melhor solução para ambos. V - Do divórcio: Assim, em cumprimento do pedido e vontade dos outorgantes atendidos os requisitos legais, pela presente escritura, nos termos do artigo 1580 parágrafo 2º do Código Civil e 1.124-A do Código de Processo Civil, acrescido pela Lei 11.441 de janeiro de 2007, fica dissolvido o vinculo conjugal entre eles Outorgantes, que passam a ter o estado civil de divorciados; VI - Efeitos do divórcio: Em decorrência deste divórcio ficam extintos todos os deveres matrimoniais deste casamento, excluindo os deveres em relação ao sustento de ambas as partes; VII - Do nome das partes: a esposa, B…, voltará a usar o nome de solteira B…; VIII - Da pensão alimentícia: Os Outorgantes estabelecem que, considerando que ambos terão rendas suficientes para sua manutenção, se desobrigarem reciprocamente de pensionato entre os mesmos; IX - Dos bens: - As partes declaram que não possuem imóveis a partilhar. 9.1 - As partes tem ciência que irão fazer a comunicação aos órgãos competentes para o devido registro deste ato público. 9.2 - As partes requerem e autorizam o Senhor Oficial do Registro de Civil de Pessoas Naturais da 5ª Circunscrição desta Cidade, a efetuar a averbação necessária para que conste o presente Divorcio Direto, passando as partes ao estado civil de divorciados. Certifico e Porto Por Fé: Assim justos e contratados, me pediram lhes lavrasse nestas minhas notas a presente escritura, o que lhes fiz, li em voz alta perante todos, que a acharam o conforme, aceitaram, outorgaram e assinam, dispensando a presença de testemunhas.»
IV.
O n.º 1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «necessidade de revisão», estabelece o seguinte: «Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada».
Decorre desta norma que, em regra, a sentença proferida por tribunal estrangeiro sobre direitos privados não tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem ser revista e confirmada em Portugal.
Em consonância com essa disposição, o artigo 706.º do Código de Processo Civil estabelece que as sentenças proferidas por tribunais ou por árbitros em país estrangeiro só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo tribunal português competente, sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais. O n.º 2 da mesma norma legal estabelece, porém, que os títulos exarados em país estrangeiro não carecem de revisão para ser exequíveis entre nós.
Conforme refere Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado, volume I, Almedina, 2000, pág. 455, «toda a sentença sobre direitos privados, quer provenha de um tribunal de justiça, quer emane de uma autoridade não judiciária legalmente investida no poder de julgar, é susceptível de revisão e confirmação; sendo certo que, por outro lado, só depois de revista e confirmada poderá a decisão surtir na ordem jurídica do foro, os efeitos que lhe competem segundo a lei do país de origem».
Os requisitos para que a sentença estrangeira possa ser confirmada encontram-se definidos no artigo 980.º do Código de Processo Civil. São eles os seguintes: a) que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Conforme resulta da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 983.º do Código de Processo Civil, trata-se de requisitos cumulativos necessários para a confirmação da sentença, bastando a falta de um deles para impedir o reconhecimento da decisão estrangeira (Cf. António Marques dos Santos, in Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (alterações aos regime anterior), Estudos de direito internacional privado e de direito processual civil internacional, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 320).
A acção de revisão de sentença estrangeira é uma acção de simples apreciação positiva cujo objecto é a verificação se a sentença estrangeira reúne as condições de produzir efeitos como ato jurisdicional na ordem jurídica portuguesa. Decorre do artigo 984.º do Código de Processo Civil que o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980.º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
É comummente aceite que o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras se inspira basicamente no chamado sistema de delibação ou de revisão meramente formal. Por princípio, o tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa. Desde que o tribunal nacional apure que está perante uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa (cf. Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 141).
Por outro lado, no nosso sistema jurídico-processual civil vigora o princípio da legalidade das formas do processo (artigo 546.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), segundo o qual cada forma de processo especial apenas é aplicável aos conflitos que integram a respectiva previsão legal expressa, não podendo ser usada para dirimir conflitos excluídos dessa previsão.
A acção de revisão de sentença estrangeira é aquela que tem por objecto a revisão e confirmação de «decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro». É assim pressuposto do recurso a tal forma de processo que tenhamos uma decisão, que essa decisão recaia sobre direitos privados e que a decisão tenha sido proferida por tribunal estrangeiro.
Sendo esse o objecto especial desta forma de processo, não podem ser objecto de revisão e confirmação em Portugal, por exemplo, meros actos jurídicos praticados no estrangeiro, ainda que produzam efeitos (constitutivos, extintivos ou modificativos) sobre direitos privados, designadamente aqueles cujos efeitos se produzam por mero efeito potestativo da vontade das partes e não exijam a intervenção de qualquer entidade com competência para decidir conceder ou recusar o efeito de direito privado correspondente à vontade dos interessados.
Para assim concluir, cremos, é suficiente ter presente os requisitos da confirmação da sentença estrangeira elencados no artigo 980.º do Código de Processo Civil. A confirmação exige, entre outras coisas, que não haja dúvida sobre a inteligência da decisão, que esta tenha transitado em julgado, que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado; que o réu tenha sido regularmente citado para a acção e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
Todos estes conceitos são indissociáveis de um processo de decisão e da intervenção de uma entidade com competência legal para proferir uma decisão, deles resultando manifestamente que é necessário que estejamos perante uma decisão proferida no âmbito de um processo destinado a dirimir conflitos sobre direitos pessoais no qual hajam sido respeitados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
Com todo o devido respeito por opinião diversa, manifestada em diversos arestos dos nossos tribunais, não concebemos como será possível aplicar estas exigências em situações em que não há qualquer decisão e o que existe é apenas a formalização em documento autêntico de uma vontade jurídica manifestada pelos interessados. Uma escritura pública na qual os interessados declaram a sua vontade tendente à produção de efeitos jurídicos privados, designadamente o seu estado civil, e na qual o notário não procede a qualquer intervenção para além da formalização das declarações das partes por escritura pública, não transita em julgado! Para além de não ser de excluir a possibilidade de se arguir que a declaração de vontade levada à escritura tenha sido formada por erro, simulação ou coacção, por exemplo, e se pedir a sua invalidade.
Ninguém questiona que não carece de revisão e confirmação em Portugal, através da acção prevista nos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil, por exemplo o casamento, ainda que ele tenha sido celebrado perante um oficial público e/ou dotado de competência (v.g. entidade administrativa ou religiosa) para declarar os nubentes casados e haja mesmo sido antecedido de um processo de verificação dos impedimentos ao casamento cuja ausência aí terá sido fiscalizada e afirmada.
Tal como não carece de revisão e confirmação a inscrição do nascimento e/ou da paternidade apesar de esses actos produzirem efeitos pessoais!
Isso mesmo resulta afinal de contas do estabelecido nos artigos 6.º e 7.º do Código de Registo Civil.
Segundo o n.º 1 do primeiro desses normativos os actos de registo lavrados no estrangeiro pelas entidades estrangeiras competentes podem ingressar no registo civil nacional, em face dos documentos que os comprovem, de acordo com a respectiva lei e mediante a prova de que não contrariam os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português. O n.º 4 acrescenta que isso pode ser feito mesmo em relação a actos que respeitem não a cidadãos nacionais mas a estrangeiros bastando para o efeito que o requerente mostre legítimo interesse na transcrição.
A excepção a esse ingresso directo no registo nacional (com o valor e os efeitos que esse registo possui na ordem jurídica portuguesa) dos actos de registo lavrados no estrangeiro pelas respectivas entidades competentes, encontra-se prevista no subsequente artigo 7.º.
Segundo este, as decisões dos tribunais estrangeiros relativas ao estado ou à capacidade civil dos Portugueses, depois de revistas e confirmadas, são directamente registadas por meio de averbamento aos assentos a que respeitam. As decisões dos tribunais estrangeiros, referentes ao estado ou à capacidade civil dos estrangeiros, estão nos mesmos termos sujeitas a registo, lavrado por averbamento ou por assento, consoante constem ou não do registo civil português os assentos a que devam ser averbadas.
Daqui resulta que a regra é o ingresso directo no registo civil nacional dos actos de registo lavrados no estrangeiro pelas respectivas entidades competentes, razão pela qual, por exemplo o casamento, o nascimento ou a paternidade são levados ao registo civil nacional em face dos documentos que comprovem a sua inscrição no registo do país de origem, rectius, sem necessidade de qualquer decisão dos tribunais desse país que reconheça ou declare o nascimento, a paternidade ou o casamento e, por maioria, de razão, sem necessidade da revisão de uma tal decisão pelos tribunais nacionais.
A excepção é apenas relativa às decisões de tribunais estrangeiros relativas ao estado ou à capacidade civil, só estas carecendo de ser revistas e confirmadas para que o acto reconhecido ou declarado em tais decisões possa ser inscrito no registo nacional. É aqui que entronca a questão da não transcrição da inscrição no registo do divórcio porque tradicionalmente entre nós e na maioria dos países o divórcio tinha de ser apreciado e julgado pelos tribunais.
No caso estamos perante um divórcio de cidadãos brasileiros realizado no Brasil em conformidade com a respectiva legislação.
O artigo 1580º do Código Civil Brasileiro, citado na escritura pública como fundamento legal do divórcio (dito directo, isto é, alcançado sem ter sido previamente estabelecida o equivalente à nossa separação judicial de pessoas e bens), estabelece o seguinte:
«Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em divórcio.
§ 1º A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges será decretada por sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou.
§ 2º O divórcio poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de comprovada separação de fato por mais de dois anos
Por sua vez o artigo 1.124º-A do Código de Processo Civil Brasileiro, aprovado pela Lei n.º 5.869, de 1973, aditado ao mesmo pelo artigo 3º da Lei nº 11.441, de 4 de Janeiro de 2007, estabelecia o seguinte:
«A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.
§ 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis.
§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. […]»
Presentemente esta matéria consta do artigo 731.º e seguintes do Código de Processo Civil Brasileiro aprovado pela Lei nº 13.105, de 16 de Março de 2015, cuja redacção é a seguinte:
«Art. 731. A homologação do divórcio ou da separação consensuais, observados os requisitos legais, poderá ser requerida em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão: I - as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns; II - as disposições relativas à pensão alimentícia entre os cônjuges; III - o acordo relativo à guarda dos filhos incapazes e ao regime de visitas; e IV - o valor da contribuição para criar e educar os filhos.
Parágrafo único. Se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o divórcio, na forma estabelecida nos arts. 647 a 658.
Art. 732. As disposições relativas ao processo de homologação judicial de divórcio ou de separação consensuais aplicam-se, no que couber, ao processo de homologação da extinção consensual de união estável.
Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731.
§ 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. […]»
Resulta destas normas que a lei brasileira permite o divórcio consensual (por mútuo consentimento) sem prévia separação judicial de pessoas e bens desde haja «comprovada separação de fato por mais de dois anos».
A mesma legislação permite aos cônjuges requerer judicialmente o divórcio em tal situação, mas dá-lhes a faculdade de realizarem o divórcio por escritura pública (pode ser realizado) da qual devem constar as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia, o acordo quanto à retoma pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adoptado no casamento.
Essa escritura pública, no dizer expresso das normas legais aplicáveis, não depende de homologação judicial e constitui título válido e suficiente (hábil) para inscrever o divórcio no registo civil. Tais normas acrescentam que o notário lavrará a escritura desde que os contratantes estejam assistidos por advogado.
Desse modo, o notário procede à recolha das declarações prestadas pelos cônjuges quanto a desejarem dissolver o respectivo casamento por divórcio e, estando estes assistidos por advogado, lavra a correspondente escritura pública, a qual, na sua veste de documento autêntico onde constam declarações de vontade dos cônjuges com vista à extinção do respectivo casamento, é suficiente para inscrever o divórcio no registo civil. Por outras palavras, o notário intervém na escritura na sua pura veste de notário, não procedendo a qualquer acto de homologação do divórcio realizado directamente pelos cônjuges e/ou a qualquer fiscalização ou verificação dos pressupostos do divórcio, nem tendo competência para tal.
A pretensão dos requerentes suscita de imediato uma questão que os mesmos, aliás, tiveram presente na sua petição inicial, qual seja, a questão de saber se a escritura pública que apresentam e através da qual nos termos do direito da sua nacionalidade dissolveram extrajudicialmente o respectivo casamento, deve ser equiparada a uma sentença de tribunal estrangeiro para efeitos de a mesma carecer de ser revista e confirmada em Portugal.
Esta questão tem sido suscitada com alguma frequência nos tribunais nacionais, igualmente a propósito da união estável (união de facto) que, como vimos, no Brasil segue o mesmo regime que o divórcio consensual.
O recente Acórdão da Relação de Lisboa de 24/10/2019, processo n.º 2403/19.8YRLSB.L1-2, relatado por Pedro Martins, a que se pode aceder in https://jurisprudencia.csm.org.pt, faz, como aliás é timbre do respectivo relator, uma resenha exaustiva e análise detalhada dessa jurisprudência, com apontamentos da jurisprudência espanhola e brasileira sobre questão idêntica, pelo que nos abstemos de a repetir aqui.
Conforme se afirma neste Acórdão e merece a nossa inteira concordância, ao contrário do que é sustentado noutras decisões, «nestas escrituras notariais de divórcio não há qualquer intervenção do notário/tabelião, para além da elaboração da escritura. Ele não homologa nada e a escritura do divórcio serve para o registo civil do acto como se fosse uma sentença».
Salvo melhor opinião, não resultando da lei nem do texto da escritura qualquer intervenção do tabelião que traduza o exercício do poder de controlar ou homologar a vontade dos outorgantes, é uma pura ficção afirmar que ao redigir a escritura o notário declara o divórcio e/ou homologa a vontade das partes de fazer extinguir o respectivo casamento; o que resulta do sistema vigente é que os cônjuges deverão ser assistidos obrigatoriamente por advogado, ao qual, parece estar confiada a tarefa de elucidar os cônjuges dos requisitos e das consequências da vontade declarada na escritura[1].
Nos termos do artigo 46.º da Resolução nº 35, de 24 de Abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça brasileiro que disciplina a aplicação da Lei n.º 11.441/07 pelos serviços notariais e de registro, consultável in https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_35_24042007_26032019143704.pdf, o tabelião poderá negar-se «a lavrar a escritura de separação ou divórcio se houver fundados indícios de prejuízo a um dos cônjuges ou em caso de dúvidas sobre a declaração de vontade, fundamentando a recusa por escrito». Todavia, o que essa disposição estabelece é a faculdade de recusa da celebração da escritura, não é a faculdade de homologar a vontade reduzida à escritura ou a produção dos respectivos efeitos jurídicos.
Entre nós o artigo 173.º do Código de Notariado também estabelece os casos em que o notário pode recusar a prática do acto que lhe seja requisitado. Entre esses casos conta-se a situação de o acto ser nulo ou de haver dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes. Daí resulta que o notário deverá recusar-se a celebração da escritura no caso de ser do seu conhecimento que a vontade declarada pelos outorgantes não existe ou é diferente da declarada na medida em que isso corresponde a um vício da vontade que determina a nulidade do acto.
Ora isto é válido para a celebração de qualquer escritura pública e no entanto certamente ninguém defende que em virtude dessa norma o notário se encontra habilitado a homologar a vontade declarada numa escritura pública de … compra e venda, de mútuo ou de partilha ou a autorizar ou validar a produção dos respectivos efeitos jurídicos materiais. Trata-se apenas de uma disposição que rege sobre a prática do acto notarial, não sobre a produção dos efeitos do acto jurídico formalizado através desse acto notarial.
O Acórdão da Relação de Lisboa a que vimos fazendo referência, referindo-se directamente à escritura pública declaratória de união estável brasileira, mas em termos que considera aplicáveis por maioria de razão à escritura pública de divórcio consensual (e que de facto no Brasil são equiparáveis no tocante ao conteúdo e à intervenção que nelas tem o tabelião), filia-se na posição que defende a possibilidade de tais escrituras poderem ser «objecto de um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos arts. 980º e seguintes do Código de Processo Civil».
Em resumo, o raciocínio desenvolvido no citado Acórdão é o de que a expressão “decisões” usada pelo artigo 978.º do Código de Processo Civil deve ser interpretada como equivalendo não propriamente a decisões mas a “actos caucionados administrativamente pela ordem jurídica em que foram produzidos”, razão pela qual integrarão esse conceito mesmo as meras declarações de vontade dos próprios interessados desde que a lei do país lhes atribua o direito potestativo de constituírem por si mesmos o efeito pessoal desejado e a declaração de vontade obedeça à forma legal.
Este raciocínio desloca a tónica da questão da existência de uma intervenção de uma entidade com competência para decidir (isto é, fiscalizar os pressupostos e emitir uma pronuncia sobre a pretensão dos interessados ao efeito privado almejado pelos mesmos, independentemente de a mesma possuir natureza declarativa, constitutiva, homologatória ou de outra natureza), para a aceitação pela ordem jurídica onde o acto foi praticado do efeito jurídico correspondente (ou seja, do caucionamento, leia-se a aceitação, o reconhecimento, pela ordem jurídica daquele acto como acto produtor de efeitos jurídicos válidos).
Salvo melhor opinião, este entendimento despreza o objecto assinalado pelo legislador nacional às acções de revisão de sentença estrangeira, alarga esse objecto a domínios relativamente aos quais não existe uma identidade de razões e gera uma solução para um problema que a ordem jurídica nacional resolve sem necessidade de tão elaborada e artificiosa construção.
Digamos porquê.
As acções de revisão de sentenças estrangeiras encontram-se previstas no nosso ordenamento jurídico para resolver um problema, qual seja, o de saber como deve a ordem jurídica nacional tratar as deliberações de um tribunal estrangeiro que já tenham decidido sobre direitos privados que haja interesse em fazer valer em Portugal.
Não se trata, assim, de definir se determinados efeitos jurídicos privados, designadamente pessoais, reconhecidos por uma ordem jurídica estrangeira devem igualmente ser reconhecidos em Portugal, mas somente de definir que valor atribuir àquelas decisões de tribunais estrangeiros ou em que condições lhes atribuir valor e eficácia entre nós de forma que os interessados as possam invocar perante o nosso ordenamento jurídico como se fossem decisões definitivas e executórias dos nossos tribunais.
O que está na origem da solução adoptada não é pois o respeito pela ordem jurídica dos outros países e o reconhecimento dos efeitos jurídico-privados aí produzidos, é essencialmente o respeito e o reconhecimento da validade do modo como nesses países estão organizados o sistema judicial e/ou administrativo para apreciar e decidir questões de direitos privados, impondo às partes os efeitos dessas decisões uma vez tornadas definitivas e executórias.
O alargamento do objecto das acções de revisão de sentença estrangeira, tal como ele se encontra fixado no nosso sistema processual civil, ao reconhecimento dos efeitos jurídicos produzidos no domínio de outra ordem jurídica e reconhecidos por esta, independentemente do modo como eles se produziram (leia-se independentemente de serem resultado de uma decisão judicial), desvirtua o nosso ordenamento nacional. Com efeito, nesse caso o reconhecimento do efeito jurídico é totalmente desarreigado daquilo que na opção do legislador nacional justificava o recurso à acção e os contornos restritos em que a revisão pode ser negada: haver uma intervenção de uma entidade com competência para apreciar e decidir sobre a produção desses efeitos, ter sido proferida uma decisão a reconhecer, constituir, declarar ou homologar a produção desses efeitos, essa decisão ser definitiva e executória, não haver litispendência ou caso julgado relativamente a um processo pendente entre nós sobre a mesma questão, terem sido observados no processo de decisão os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
Por outro lado, a produção de efeitos jurídico-privados por vontade potestativa das partes, sem fiscalização ou decisão de qualquer entidade jurisdicional ou administrativa a que a ordem jurídica atribua e reconheça competência (rectius: as habilitações e o poder) para verificar se estão reunidas as condições legais para a produção desses efeitos, não pode ser equiparado à produção de efeitos jurídicos por decisão jurisdicional e/ou administrativa subordinada às regras de funcionamento e controle do sistema judicial e/ou administrativo. Por isso, ao nível do reconhecimento dos efeitos jurídicos-privados, aquela situação só deveria ter na nossa ordem jurídica nacional o mesmo tratamento se acaso tivesse sido essa a configuração dada pelo legislador à acção de revisão que seria então de revisão de efeitos jurídico-privados produzidos no estrangeiro e não uma revisão de sentença, rectius, de decisões.
Finalmente, no caso que nos ocupa, o recurso à acção de revisão é ainda desnecessário. Basta interpretar de forma conjugada o disposto no artigo 978.º do Código de Processo Civil com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do Código de Registo Civil para verificar que o sistema criado dispensa a revisão sem colocar em causa os direitos dos particulares.
Com efeito, se entendermos que a revisão e confirmação só está prevista naquela norma para os casos de decisões jurisdicionais ou administrativas proferidas sob o ius imperium que permite o estabelecimento definitivo do efeito jurídico constituído, reconhecido ou declarado, a interpretação do artigo 7.º do Código de Registo Civil na mesma linha levará a concluir que os factos sujeitos a registo produzidos noutra ordem jurídica e aí levados ao competente registo (sinal de que aí produziram efeitos) podem ingressar no registo civil nacional, em face dos documentos que os comprovem, de acordo com a respectiva lei e mediante a prova de que não contrariam os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português[2] (artigo 6.º do mesmo diploma).
Com a diferença, assinalável, de que nesse caso o efeito do reconhecimento que se produz na nossa ordem jurídica nacional é, como devia ser, o que é próprio de uma inscrição no registo civil, e não o efeito que teria se fosse resultante de uma decisão judicial e/ou administrativa (revista e confirmada) uma vez que não tem na sua génese essa decisão.
A solução a que chega a posição de que nos afastamos é também contraditória em si mesma. O processo de desjudicialização da produção de determinado efeito jurídico-privado é um processo que tem por objectivo retirar da actividade jurisdicional questões que até esse momento eram da sua competência. Através dele elimina-se a necessidade da intervenção decisória de uma entidade jurisdicional para que determinado efeito jurídico se produza, seja atribuindo a competência para tal a entidades não jurisdicionais, seja consentindo pura e simplesmente que o efeito jurídico se produza por acto das partes sem qualquer intervenção fiscalizadora ou decisória de entidades judiciais ou administrativas.
Por isso, cremos, não faz sentido estender o tratamento que a nossa ordem jurídica dispensa às sentenças (decisões) estrangeiras aos casos em que uma ordem jurídica estrangeira passou a consentir a produção de determinado efeito jurídico-privado por mero acto potestativo (ainda que formal) dos respectivos titulares, precisamente porque o que esta ordem jurídica pretendeu foi precisamente o oposto: dispensar a produção desse efeito jurídico a uma intervenção fiscalizadora e decisória dos tribunais.
Sejamos claros, a necessidade do divórcio ser revisto e confirmado era a solução tradicional porque o divórcio era tradicionalmente decretado por sentença judicial; a partir do momento em que isso deixou de ser assim, está posta em crise aquela necessidade, pelo que a resposta não tem de ser a mesma.
Imagine-se um acto jurídico interno que até determinada altura carecia de uma decisão jurisdicional e passou a poder ser alcançado directamente pelas partes por mero efeito da respectiva vontade jurídica correspondente (ainda que essa vontade tenha de ser reduzida a uma determinada forma legal, v.g. a escritura pública). Nessa situação, cremos que ninguém questionará que segundo as regras do nosso ordenamento jurídico não podemos atribuir ao comportamento das partes valor equiparado a uma decisão jurisdicional. Com toda a sinceridade, não vemos por que se há-de chegar então ao mesmo resultado se se tratar de um acto jurídico externo (!) que é precisamente o que resulta de se admitir a revisão pelo Tribunal da Relação nacional de uma escritura na qual as partes declaram uma vontade negocial que produz potestativamente um efeito jurídico quanto ao seu estatuto pessoal.
Concluindo agora, entendemos que no nosso sistema jurídico não é possível instaurar uma acção de revisão de sentença estrangeira para pedir a revisão e confirmação de um mero acto jurídico produzido noutro país pelos titulares de determinando efeito jurídico-privado, como seja o divórcio consensual realizado no Brasil através de escritura pública dos cônjuges sem que a produção do efeito extintivo do casamento tenha sido objecto da intervenção de qualquer entidade pública, administrativa ou jurisdicional, que fiscalizasse a verificação dos pressupostos do divórcio e de cuja actividade dependesse a produção daquele efeito jurídico. Requerida a revisão de um acto dessa natureza a acção deve ser julgada improcedente.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a presente acção improcedente e recusar a revisão e confirmação do acto apresentado pelos requerentes.
Custas da acção pelos requerentes.
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Porto, 22 de Outubro de 2020.
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva (Voto vencido, nos termos da seguinte declaração de voto):
A principal razão da nossa discordância assenta na circunstância de entendermos que a escritura pública de divórcio directo, lavrada em 06 de Maio de 2019, no 25º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, outorgada por Requerente e Requerido, nos termos da qual foi dissolvido o casamento entre ambos celebrado, pode ser equiparada a uma sentença para efeitos da sua revisão e confirmação.
No caso vertente, nos termos do artigo 733.º do Código de Processo Civil da República Federativa do Brasil e da Emenda Constitucional 66/10, promulgada em 13 de Julho de 2010, foi decretado o divórcio consensual entre Requerente e Requerido e extinto o vínculo matrimonial que mantinham, passando ao estado civil de divorciados, por escritura pública de divórcio, lavrada em 06 de Maio de 2019.
Esta decisão foi proferida pela entidade brasileira legalmente competente para o efeito.
Conforme dimana do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2013, proferido no processo n.º 623/12.5YRLSB.S1, acessível em www.dgsi.pt “Para estas situações em que a autoridade administrativa estrangeira decreta o divórcio, desde há muito que se sedimentou a interpretação jurisprudencial no sentido de que a decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 1094º (actualmente art.º 978.º), n.º 1 do Código de Processo Civil, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal”.
Ademais, conforme se considerou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.05.2013, proferido no processo n.º 687/12.1YRLSB.S1, jurisprudência que acolhemos por boa “(…) O que interessa para a ordem jurídica portuguesa é mais o conteúdo do acto administrativo, ou seja, o modo como regula os ditos interesses privados.
Do ponto de vista formal apenas releva que o acto administrativo provenha efectivamente duma autoridade administrativa.
Se não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados e provém duma autoridade administrativa, estão preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo.
Não releva, portanto, o modo ou a via como se chegou à produção desse acto, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira mais «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta que se trate de um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido (cfr. artigo 1º da Convenção de Haia Sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separação de Pessoas, de 1/06/1970).
Acresce que, se assim não fosse, “estava-se a denegar a força do dito acto, como idóneo para produzir os seus efeitos, como se de sentença fosse. Ou seja, estava-se a denegar a competência da entidade que o produziu, quando é certo que a competência para o acto, como é de jurisprudência, é definida pela lei nacional dessa entidade”, além de que, continua o citado acórdão, “esta natureza meramente contratual da escritura não resulta dos seus termos. Os outorgantes não declaram a dissolução do vínculo conjugal. Pedem-na e o Tabelião - notário - não se limita a testar as suas declarações, declara (decide) a dissolução, depois de verificados e preenchidos os requisitos legais. Estamos, pois, perante uma decisão homologatória, logo constitutiva do divórcio”.
Por fim, conforme se defendeu, igualmente, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.07.2005, acessível in www.dgsi.pt. “(…) Não se pode ignorar que, em muitos Estados, a dissolução do casamento por mútuo consentimento é feita em sede administrativa, donde deve considerar-se aplicável o processo regulado no art.º 1094° (actualmente art.º 978.º) e seguintes do Código de Processo Civil, de modo a que tal decisão, sendo válida segundo o ordenamento do país onde foi proferida, possa produzir os seus efeitos em Portugal (…)”.
À luz da referida jurisprudência e sempre com o máximo e devido respeito pela posição contrária, constitui igualmente nosso entendimento que a escritura pública em causa nos autos pode servir de base à presente revisão, encontrando-se, ainda, preenchidos os demais requisitos constantes do artigo 980.º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, consignamos o nosso voto de vencido, pois, somos do entendimento que se encontram reunidos os pressupostos para conceder a revisão pelo que confirmaríamos a escritura pública de divórcio directo, lavrada em 06 de Maio de 2019, no 25º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, Botafogo, Brasil, que decretou o divórcio entre requerente e requerido.

Paulo Dias da Silva
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[1] Segundo o artigo 1580.º do Código Civil brasileiro, o divórcio apenas poderá ser requerido pelos cônjuges no caso de comprovada separação de facto por mais de dois anos, o que coloca a questão de saber como se controla a verificação desse requisito no caso do divórcio extrajudicial por escritura pública. A Resolução a que se faz referência a seguir no corpo do texto deste Acórdão, estabelece no artigo 53.º que «a declaração dos cônjuges não basta para a comprovação do implemento do lapso de dois anos de separação no divórcio direto. Deve o tabelião observar se o casamento foi realizado há mais de dois anos e a prova documental da separação, se houver, podendo colher declaração de testemunha, que consignará na própria escritura pública». No presente caso, não se encontra no texto da escritura alusão a qualquer documento que comprove a separação por mais de dois anos e não há a intervenção de nenhuma testemunha, designadamente para esse efeito.
[2] Que é, nem mais nem menos que precisamente o único requisito dos previstos no artigo 980.º do Código de Processo Civil que em rigor pode ser verificado no caso de se ficcionar que uma escritura pública dos interessados é uma decisão de um tribunal estrangeiro e para efeitos de preenchimento dos requisitos para a procedência da acção de revisão de sentença estrangeira.

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas certificadas]