Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1206/16.6T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO
Nº do Documento: RP201909121206/16.6T8STS.P1
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º181, FLS.99-104)
Área Temática: .
Sumário: No âmbito da exoneração do passivo restante as quantias recebidas pelo insolvente a título de subsídio de alimentação, integrando, enquanto prestações periódicas e regulares, a remuneração por ele auferida enquanto trabalhador por conta de outrem, não estão excluídas, pela sua natureza, do conceito de rendimento disponível enquanto objecto de cessão à massa insolvente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1206/16.6T8STS.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.
1. Tendo o Sr. Administrador apresentado nos autos o relatório a que se refere o artigo 240.º do CIRE, referente ao período de Julho de 2017 a Junho de 2018, vieram os insolventes B… e C…, expressando a sua discordância pelo facto de no referido relatório terem sido considerados os subsídios de alimentação por eles recebidos como rendimentos, requerer “...a correcção do relatório apresentado pelo Fiduciário por forma a que este respeite a legislação em vigor e, como tal, não considere os subsídios de refeição auferidos pelos Insolventes até aos limites legalmente definidos como sendo rendimento do seu trabalho e, como tal, rendimento sujeito a cessão”.
Ouvido o Sr. Fiduciário, que se pronunciou no sentido de que o subsídio de refeição, pago em dinheiro ou em vale-refeição, deve ser considerado rendimento para efeitos de cessão, foi proferido o seguinte despacho:
Requerimento do devedor de 12/12/2018 (fls. 175 e ss.)
Veio o devedor pronunciar-se quanto ao relatório apresentado pelo Fiduciário referente ao período de julho de 2017 a junho de 2018, alegando que não pode ser considerado rendimento a quantia por si recebida a título de subsídio de alimentação, fazendo apelo ao disposto no art. 2/3 b) do CIRS, nos termos que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
O Fiduciário pronuncia-se no sentido de que, para efeitos de exoneração do passivo restante, se deve atender ao disposto no art. 239/3 do CIRE, não havendo ali distinção quanto à natureza do rendimento obtido.
Na verdade, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto do art. 239/2 do CIRE, o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, estabelecendo o n.o3 que Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.o cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Assim acontecendo, no âmbito do presente incidente, impera o delimitado na citada norma, não cabendo aqui que se faz na lei fiscal para este efeito.
Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, indefere-se o requerido pelo devedor.
2. Inconformados com tal decisão, dela vieram os insolventes interpor recurso de apelação, juntando as respectivas alegações, as quais findam com as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo, em 14.05.2019, que indeferiu o requerido pelos Insolventes em 12.12.2018, para o que considerou o Tribunal a quo, em síntese, que, para efeitos do art.º 239 do CIRE, integra a noção de rendimento quaisquer montantes auferidos pelos Insolventes, incluindo subsídios de alimentação, independentemente do respectivo montante e forma de pagamento e ainda que, do ponto de vista fiscal, não sejam os mesmos considerados rendimentos.
II. Consideram os Recorrentes que, s.m.o., mal andou o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que decidiu, porquanto incorre em errada interpretação do conceito de rendimento plasmado no art.º 239 do CIRE.
III. A norma constante do art.º 239.º, n.º 2 do CIRE demanda um exercício de hermenêutica jurídica mais atento, dado que ao definir o rendimento disponível como integrando todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, preenche o conceito, necessariamente jurídico e abstracto, de rendimento disponível, com um outro conceito, também ele jurídico e abstracto, que é o de rendimento e, nessa medida, exige que, primeiramente e antes de se determinar o conceito de rendimento disponível, se determine o significado de rendimento, preenchendo o conceito jurídico com o que de facto o integra.
IV. Antes de definir o que seja rendimento disponível para efeitos do art.º 239 do CIRE, há que indagar do significado do conceito jurídico de “rendimento”, tendo em consideração, não só o processo de insolvência, mas o ordenamento jurídico português, que se quer integrado e uno, conforme imposto pelo art.º 9 do CC.
V. É insofismável que, na interpretação da norma, de qualquer norma, há que considerar o sistema jurídico como um todo, a sua integridade e unidade.
VI. Na interpretação do n.º 3 do art.º 239 do CIRE, é imperativo que se recorra às normas da lei fiscal, pelo singelo facto de serem estas – e só estas – que nos dão a definição legal de rendimento que o art.º 239 (ou qualquer outra norma do CIRE) não dá, não obstante recorra ao respectivo conceito para, por sua vez, definir o que seja rendimento disponível.
VII .Antes de mais, para que o art.º 239, n.º 3 do CIRE possa ser cabalmente aplicado, é necessário determinar o que deve ser considerado rendimento, sendo que a noção de rendimento está legalmente prevista precisamente nas normas fiscais, pelo que o restante ordenamento jurídico não pode ignorar a sua existência.
VIII. Em ordem a interpretar cabalmente o conceito de rendimento disponível plasmado no art.º 239, n.º 3 do CIRE há que, a montante, definir o conceito de rendimento, sendo que, nessa tarefa, é imperativo recorrer às normas fiscais que o definem, designadamente as constantes do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, uma vez que só a estas será aplicável o disposto no art.º 239 do CIRE.
IX. Mais concretamente, no que ao caso em apreço diz respeito, em ordem a perceber se os subsídios de alimentação auferidos pelos Insolventes deverão integrar o conceito de rendimento a partir do qual se determinará depois o seu rendimento disponível, importará recorrer ao art.º 2, n.º 3, al. b), ponto 2, do CIRS, que, a contrario, determina que não se deve considerar rendimento o subsídio de refeição na parte em que este seja igual ou inferior ao limite legal estabelecido ou quando, tratando-se de subsídio recebido através de vale de refeição, este seja igual ou inferior ao limite legal estabelecido acrescido de 60%.
X. Importará, então, saber qual o limite legal estabelecido, em cada momento. Quanto aos anos de 2017 e 2018, encontramo-las: a) quanto ao ano de 2017, na Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, diploma que aprovou o Orçamento de Estado para 2017, que, no seu artigo 20.º, fixou em €4,52 o limite legal dos subsídios de refeição recebidos em dinheiro, acima do qual estes passam a ser considerados rendimento; b) quanto ao ano de 2018, na Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, diploma que aprovou o Orçamento de Estado para 2018, que manteve, no seu artigo 21.º, os valores então em vigor.
XI. Em 2017 e 2018, o limite legal dos subsídios de refeição recebidos em vales de refeição, acima do qual estes passam a ser considerados rendimento, foi de €7,23 (€4,52*1,6).
XII. A Insolvente C… recebe o subsídio de alimentação em dinheiro, o que determina que este haja de ser considerado rendimento na parte em que exceda os €4,52 por dia, nos anos de 2017 e 2018 e, em cada momento, no parte em que exceda o limite legal estabelecido para cada ano.
XIII. O subsídio de refeição recebido pela Insolvente C…, nos meses de Julho de 2017 a Junho de 2018, foi sempre de €4,05 por dia de trabalho, pelo que, nos termos da legislação supra mencionada, o subsídio de alimentação auferido pela Insolvente C… não pode ser considerado rendimento do seu trabalho.
XIV. E, nessa medida, não pode ser considerado rendimento para efeitos de determinação do rendimento disponível nos termos do art.º 239, n.º 3 do CIRE e, consequentemente, do valor a ceder ao fiduciário no âmbito dos presentes autos.
XV. O Insolvente B… recebe o subsídio de alimentação em vale de refeição, o que determina que este haja de ser considerado rendimento na parte em que exceda os €7,23 por dia, nos anos de 2017 e 2018 e, em cada momento, no parte em que exceda o limite legal estabelecido para cada ano, acrescido de 60%.
XVI. O subsídio de refeição recebido pelo Insolvente B…, nos meses de Julho a Dezembro de 2017, foi de €5,89 por dia de trabalho e, nos meses de Janeiro a Junho de 2018 a Junho de 2018, foi de €7,23 por dia de trabalho, pelo que, nos termos da legislação supra mencionada, o subsídio de refeição auferido pelo Insolvente B… não pode ser considerado rendimento do seu trabalho.
XVII. E, nessa medida, não pode ser considerado rendimento para efeitos de determinação do rendimento disponível nos termos do art.º 239, n.º 3 do CIRE e, consequentemente, do valor a ceder ao fiduciário no âmbito dos presentes autos.
NORMAS VIOLADAS:
● 9.º CC
● 239.º CIRE
● 2.º CIRS
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar se o subsídio de alimentação por ele recebidos integra, para efeitos de exoneração do passivo restante, rendimento disponível, devendo os respectivos valores ser atendidos no montante a ceder ao fiduciário.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos/incidências processuais relevantes à apreciação do objecto do recurso são os descritos no relatório introdutório.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
De acordo com o artigo 1.º do CIRE, “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.
Já do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, (pontos 3 e 6) se podia retirar: “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Não obstante o objectivo fundamental do processo de insolvência se traduzir na satisfação, tão eficiente quanto possível, dos direitos dos credores, o CIRE, através da exoneração do passivo restante, figura inovadora que o CPEREF não previa, permite, em certas circunstâncias, que os insolventes, pessoas singulares, se libertem das dívidas que os oneram e recomecem de novo, sem elas, a sua vida económica.
Ou seja: através do recurso à exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente é concedida a faculdade, em casos previamente delimitados e previstos, de, decorridos cinco anos - período durante o qual terá de ceder parte do seu rendimento aos credores através de um fiduciário -, obter a extinção das suas dívidas não satisfeitas ou satisfeitas apenas em parte, através da liquidação da massa insolvente, ou através daquela cessão dos rendimentos, desvinculando-se da obrigação de no futuro proceder ao seu pagamento integral.
A exoneração do passivo restante constitui, deste modo, “uma liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante”[1].
Como sustenta Luís Menezes Leitão[2], a figura da exoneração do passivo traduz-se num benefício concedido ao insolvente, com a inerente possibilidade de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste», visando, desta forma, conceder ao devedor um fresh start, “permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior”[3].
Admitida a exoneração do passivo restante requerida pelo insolvente fica este, durante o período da cessão, vinculado a determinadas obrigações acessórias.
Dispõe, com efeito, o n.º 4 do artigo 239.º do CIRE: “Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores”.
Como explicam Carvalho Fernandes e João Labareda[4], em anotação ao artigo 239.º, “o n.º 4 impõe ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida.
Neste plano, e para esses fins, importa, desde logo, que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efectivamente auferidos pelo devedor. Assim, não devendo este ocultá-los ou dissimulá-los, está ainda obrigado a prestar todas as informações que aquelas entidades lhe solicitem, não só quanto aos rendimentos, mas também quanto ao seu património [al. a); cf., ainda, al. d)]”.
No caso em discussão nos autos, tendo o Sr. Fiduciário relacionado como rendimentos valores recebidos pelos insolventes a título de subsídio de alimentação apressaram-se os mesmos a manifestar a sua discordância da inclusão desses valores como integrando os rendimentos que devam ser entregues ao Fiduciário, não podendo, na perspectivados mesmos, ser considerados no cômputo do rendimento a ceder à massa insolvente.
Como se disse, uma das obrigações que recai sobre o insolvente é a de proceder à imediata entrega ao fiduciário dos rendimentos por si recebidos que sejam objecto de cessão.
Estes rendimentos são todos os que advenham, a qualquer título, ao devedor, não excluídos pelo dever de entrega ao fiduciário por alguma das alíneas do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
Assim, sendo o devedor trabalhador por conta de outrem serão, desde logo, objecto de cessão todos os rendimentos por ele recebidos como contrapartida pelo trabalho prestado, que integrem o que se fixou como rendimento disponível, e que não sejam excluídos pelo n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
De acordo com o artigo 258.º do Código do Trabalho, considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho, compreendendo a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie, presumindo-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
O acórdão do STJ de 27.05.2010[5] debruça-se de forma expressiva sobre o que o que deve considerar-se retribuição. Nele se pode ler: “O conceito de retribuição é-nos fornecido pelo art. 249.º, ns.º 1 e 2, do CT, sendo que, de acordo com o respectivo n.º 3, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador. E, de há muito, doutrina e jurisprudência entendem que a retribuição é constituída pelo conjunto de valores (pecuniários ou em espécie) que a entidade empregadora está obrigada a pagar regular e periodicamente ao trabalhador em razão da actividade por ele desenvolvida, ou, mais rigorosamente, da força de trabalho por ele oferecida, aqui avultando o elemento da contrapartida, elemento esse de grande relevo na medida em que evidencia o carácter sinalagmático do contrato de trabalho, permitindo, assim, excluir do âmbito do conceito de retribuição as prestações patrimoniais do empregador que não decorram do trabalho prestado, mas que, ao invés, prossigam objectivos com justificação distinta Como sejam, v.g., os subsídios pelo risco, pela maior penosidade da actividade desenvolvida pelo trabalhador ou destinados a compensar despesas decorrentes do contrato de trabalho. Enformando e integrando o conceito de retribuição, surgem, também, as acima enunciadas características da periodicidade e da regularidade que, por um lado, apoiam a presunção da existência de uma vinculação prévia (quando se não ache expressamente prevista), e, por outro, assinalam a medida das expectativas de ganho do trabalhador, conferindo assim relevância ao nexo existente entre a retribuição e as suas necessidades pessoais e familiares. A regularidade da retribuição está associada à sua constância, a qual se opõe à arbitrariedade; a periodicidade significa que a retribuição é satisfeita em períodos certos ou aproximadamente certos no tempo. Destarte, pode, pois, dizer-se que a retribuição, constituída por um conjunto de valores, é, num primeiro momento, determinada pelo clausulado do contrato, por critérios normativos (como sejam o salário mínimo e o princípio da igualdade salarial) e pelos usos da profissão e da empresa; num segundo momento, a retribuição global – no sentido de que exprime o padrão ou módulo do esquema remuneratório do trabalhador, homogeneizando e sintetizando em relação à unidade de tempo, a diversidade de atribuições patrimoniais realizadas ou devidas – engloba não só a remuneração de base, como também prestações acessórias, que preencham os enunciados requisitos da regularidade e da periodicidade. Assim, constituindo critério legal da determinação da retribuição a obrigatoriedade do pagamento da prestação pelo empregador, dela apenas se excluem as meras liberalidades que não correspondem a um dever do empregador imposto por lei, instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, contrato individual de trabalho, ou pelos usos da profissão e da empresa, e aquelas prestações cuja causa determinante não seja a prestação da actividade pelo trabalhador – ou a sua disponibilidade para o trabalho –, mas sim causa específica e individualizável, diversa da remuneração do trabalho ou da disponibilidade para este”.
O n.º 1 do artigo 260.º do Código do Trabalho identifica, por sua vez, as importâncias, gratificações ou participações que não integram o conceito de retribuição, não prevendo como situação excludente da remuneração o subsídio de alimentação, ao contrário do que sucede, por exemplo, com as ajudas de custo e as despesas para transporte, dela expressamente arredadas.
Do que se deixa exposto haverá, pois, de se concluir que não sendo o subsídio de alimentação excluído do conceito de retribuição pelo n.º 1 do citado artigo 260.º, deverá tal subsídio integrar tal conceito, como, de resto, deriva do artigo 258.º do Código de Trabalho.
Ora, integrando o rendimento disponível – logo, objecto de cessão – todos os rendimentos recebidos pelo devedor, seja a que título for, com exclusão apenas das situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, não se vê razão para nele não incluir as importâncias recebidas pelos insolventes a título de subsídio de alimentação.
As importâncias por eles recebidas a esse título integram a retribuição paga pela entidade empregadora, não sendo excluídas pelo artigo 260.º, nº 1 do Código de Trabalho. Além disso, o corpo do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE considera rendimento disponível todos os rendimentos recebidos pelo devedor, independentemente da sua natureza, desde que contidos nos limites impostos pelas suas alíneas a) e b).
Convocar o disposto no artigo 2.º, n.º 3, alínea b), ponto 2, do CIRS, como o fazem os recorrentes, para sustentar que não se considera rendimento do trabalho dependente o subsídio de refeição na parte em que este seja igual ou inferior ao limite legal estabelecido ou, quando tratando-se de subsídio recebido através de vale de refeição, seja igual ou inferior ao limite legal estabelecido acrescido de 60%, não faz qualquer sentido dado não ter de existir correspondência entre o conceito de rendimento previsto no aludido diploma, determinado apenas para efeitos tributários, e o previsto no CIRE, nomeadamente no seu artigo 239.º, n.º 3, definido para efeitos de determinação do objecto de cessão.
Não existindo fundamento legal que permita acolher a pretensão formulada pelos insolventes quanto à correcção do relatório elaborado e apresentado nos autos pelo Sr. Fiduciário, foi tal pretensão acertadamente indeferida.
Não merece, pois, reparo a decisão impugnada, pelo que se mantém o decidido, improcedendo o recurso.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida.
Custas: a cargo dos recorrentes.
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Porto, 12 de Setembro de 2019
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, vol. II, p. 183 e segs.
[2] “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado”, 4ª ed., págs. 236, 237 e segs.
[3] Cfr. também em idêntico sentido, Catarina Serra, “O novo regime português da insolvência – Uma introdução”, Coimbra, Almedina, 2008 (3ª edição), págs. 102 e 103.
[4] Obra citada, pág. 788.
[5] Processo n.º 467/06.3TTCBR.C1.S1, www.dgsi.pt.