Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
797/12.5TBGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA DA EXONERAÇÃO
Nº do Documento: RP20200714797/12.5TBGDM.P1
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do artigo 243º nº 1 al. a) do CIRE é fundamento da cessação antecipada do procedimento de exoneração [ou recusa, ex vi 244º nº 2] a violação dolosa ou com grave negligência do devedor de alguma das obrigações impostas pelo artigo 239º que por essa via tenham prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
II - Recai sobre o fiduciário ou credor requerente de tal cessação antecipada, o ónus de alegação fundamentada e prova da violação e circunstancialismo exigidos e mencionados em I.
III - É vedado o conhecimento pelo tribunal de recurso de questões novas antes não suscitadas entre as partes, nos termos do artigo 608º n.º 2 do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 797/12.5TBGDM.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta – Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta – Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Comércio de Santo Tirso
Apelante/B…

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
[consigna-se que foi consultado o processo eletrónico]
i- No requerimento inicial de apresentação à insolvência, o requerente B… requereu a exoneração do passivo restante.
ii- Por decisão de 01/03/2012 foi declarada a insolvência do requerente.
iii- Em 23/01/2013 foi decidido “deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e em relação ao insolvente B… e, em consequência, determinar que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário, nomeando-se para o efeito o administrador de insolvência, ficando os insolventes obrigados a observar as imposições previstas no n.° 4 do artigo 239.° do CIRE.
Fixa-se no montante equivalente a uma vez e meio salário mínimo nacional o rendimento que o insolvente pode dispor para prover à sua subsistência.
Notifique, incluindo o devedor, com expressa advertência do disposto no nº 4 do artigo 239.º do CIRE
(…)”
iv- Por decisão de 08/02/2017, foi declarado o encerramento do processo de insolvência e iniciado “o prazo a que alude o artigo 239º/2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (período da cessão).
Notifique o devedor e o fiduciário.”
v- Em 08/05/2018 o fiduciário juntou aos autos o Relatório de Fidúcia a que alude o artigo 240º do CIRE, informando (em suma):
- o insolvente está a trabalhar;
- de acordo com os dados da declaração de IRS de 2017 o mesmo deveria ter entregue à fidúcia o valor de € 9.947,99, sendo € 4.836,57 relativos ao ano de 2017;
- o insolvente nada entregou;
- foram notificados todos os credores deste relatório;
vi- em 27/06/2018, a C…, SA informa ter sido condenada a pagar uma indemnização ao insolvente – no valor de € 16.123,00 acrescido de juros vencidos e vincendos desde a sua citação e à taxa legal - cujo destino solicita seja indicado.
vii- Em 17/08/2019 o fiduciário juntou aos autos o Relatório de Fidúcia a que alude o artigo 240º do CIRE, informando (em suma):
- o insolvente está a trabalhar;
- foi fixado ao insolvente o rendimento disponível de 1.50 SMN e fixado o início do período em 8/2/2017.
- foi recebida documentação relativa às declarações de IRS dos anos de 2017 e 2018.
De acordo com os dados obtidos, o mesmo deveria ter entregue à fidúcia o valor de € 8.898,28 sendo € 4.364,77 relativos ao ano de 2017 e € 4.533,51
- o insolvente nada entregou;
- foram notificados todos os credores do conteúdo deste relatório.
viii- Por despacho de 25/11/19 foi determinada a notificação do requerente indicado em vi para proceder ao depósito da quantia devida na conta da fidúcia.
Foi ainda determinado: a notificação do insolvente, atento o relatório apresentado para “proceder ao pagamento em falta sob cominação de que a exoneração do passivo restante poderá ser cessada antecipadamente, nos termos do disposto no artigo 243º/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Prazo: 10 dias.
Notifique nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 243º/3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Decorrido o prazo fixado deve o Sr. Fiduciário informar os autos da concretização do pagamento pelo insolvente e complementar o relatório apresentado.”
ix- A credora D… veio em 26/11/19 informar “que, nada tem a opor à cessação antecipada da exoneração do passivo restante, nos termos do Art.º 243º, nº 1, al. a) do C.I.R.E.” porquanto “o insolvente não prestou as informações necessárias ao Fiduciário nem liquidou os valores em falta à Fidúcia, incumpriu com os deveres decorrentes da concessão da exoneração do passivo restante que lhe foram deferidos, violando assim o preceituado no Art.º 239º, n.º 4 do C.I.R.E. e, consequentemente, prejudicando a satisfação dos credores.”.
x- Notificado o insolvente na pessoa do seu mandatário e também pessoalmente[1], nada foi requerido ou informado aos autos.
xi- Em 20/12/2019 o fiduciário informa que a “regularização do montante em aberto não foi efetuada pelos insolventes até à presente data.
Foi notificado o Sr. Mandatário dos relatórios elaborados, assim como a insolvente.”
xii- Em 04/03/2020 é proferida a seguinte decisão:
“(…)
Conforme resulta dos autos, o Exmo. Fiduciário comunicou que os insolventes auferiram quantias superiores ao montante indisponível fixado, que retiveram em seu poder e que ascendem ao montante de € 8.898,28.
Notificados credores e devedores, veio o credor D…, S.A. pugnar pela cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
Por despacho de 25.11.2019, considerando-se que os factos expostos eram suscetíveis de configurar fundamento de cessação antecipada do procedimento de exoneração, foram os insolventes notificados para se pronunciarem e para cumprirem as obrigações em falta no prazo de 10 dias.
Os devedores não vieram aos autos demonstrar o pagamento.
Por requerimento de 20.12.2019 o Sr. Fiduciário informou que ainda nada tinha recebido.
Os devedores, até ao momento, não demonstraram o pagamento em falta apesar de largamente excedido o prazo concedido.
Cumpre apreciar e decidir:
Antes de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração quando se apure alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f), do nº 1 do artigo 238º -artigo 243º/1/b), do referido Código.
Nos termos do disposto no artigo 239º/4/c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, durante o período da cessão o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos rendimentos objeto de cessão.
Assim sendo, considerando a violação dos deveres que lhe eram impostos, mesmo depois de concedido prazo adicional para o efeito, considero haver fundamento para recusar a exoneração, nos termos do disposto no artigo 243º/1/b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Pelo exposto, recuso a exoneração do passivo restante e determino a cessação antecipada do procedimento correspondente.”
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Notificado o insolvente do assim decidido, interpôs recurso de apelação, oferecendo alegações e formulando as seguintes
CONCLUSÕES
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Não foram apresentadas contra alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC [Código de Processo Civil] – resulta das formuladas pelo apelante ser questão a apreciar: se o incumprimento do apelante preenche os requisitos do artigo 243º nº 1 al. a) do CIRE[2] [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas] e na não verificação, se (in)existe fundamento para a decidida cessação antecipada da exoneração do passivo restante [a decisão recorrida cita a al. b) do artigo 243º nº 1, mas invoca o fundamento de violação dos deveres a que respeita a al. a) do mesmo artigo – questão a que infra faremos menção].
A este propósito será ainda analisado o ónus de prova da violação das obrigações previstas na al. a) ou da verificação das circunstâncias indicadas em b) do nº 1 do artigo 243º.
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III- Fundamentação
As vicissitudes processuais a considerar para a apreciação das questões acima identificadas são as já constantes do relatório supra.
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Conhecendo.
Em função do supra elencado, cumpre em primeiro lugar enquadrar o instituto em causa no presente recurso.
Resulta claro do preâmbulo do diploma legal que aprovou o CIRE ser objetivo de qualquer processo de insolvência a satisfação pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores, desde logo pelos reflexos que o incumprimento por parte de certos agentes se repercute necessariamente na situação económica e financeira dos demais (vide § 3 do citado preâmbulo).
Não obstante, pretendeu o legislador conjugar este declarado objetivo de ressarcimento dos credores “com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, verificados determinados condicionalismos e observados por parte dos devedores singulares certos deveres e obrigações especificados nos artigos 235º a 248º que assim regulamentam o regime da “exoneração do passivo restante”
Como a sua própria denominação indica, o fim último deste instituto é o de facultar “ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”, permitindo-lhe assim um “fresh start”, ou seja “a reintegração plena na vida económica”.
“A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos”, assumindo durante tal período “entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário… que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores.”.
No termo desse período, cumpridos todos os deveres que sobre o devedor impendem, a “ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração” (vide § 45 do já referido preâmbulo).
Feito este enquadramento do regime em análise evidencia-se que o despacho liminar não garante ao devedor que decorrido o prazo legal de cinco anos venha o mesmo a ver deferida a sua pretensão de exoneração do passivo restante, já que está ainda dependente da ponderação final da observância de todos os requisitos exigidos e especificados nos artigos que o regulam por parte do devedor, desde que anteriormente e na pendência de tal período legal não tenha sido requerida e deferida, com base na violação das obrigações a que se encontra adstrito o insolvente, a cessação antecipada deste procedimento.
Nos termos do artigo 239º nº 4, uma vez admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e durante o período de cessão, fica ainda o devedor obrigado a:
“a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.”
Por sua vez o artigo 243º, regulando os termos em que a cessação antecipada do procedimento de exoneração terá lugar, dispõe:
“1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respetiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.”
E finalmente o artigo 244º sob a epígrafe “Decisão final da exoneração” dispõe:
“1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.”
O tribunal a quo convocou na decisão recorrida o disposto no artigo 243º nº 1 al. b).
Contudo e por referência ao disposto no artigo 239º nº 4 al. c), concluiu ter ocorrido por parte do devedor “violação dos deveres que lhe eram impostos, mesmo depois de concedido prazo adicional para o efeito”, motivo por que concluiu existir fundamento para recusar a exoneração.
Ora a violação dos deveres impostos por referência ao disposto no artigo 239º, está integrada precisamente no fundamento de cessação antecipada do procedimento de exoneração aludido na al. a) do artigo 243º nº 1 e não no nº 2 [que por sua vez se reporta ao artigo 238º].
Conclui-se assim que a menção à al. b) do artigo 243º nº 1 constante da decisão recorrida padece de manifesto lapso [igualmente assim entendido pelo recorrente, conforme as suas alegações de recurso o evidenciam] que aqui se deixa corrigido.
A reapreciação da decisão recorrida será, nestes termos, efetuada por referência ao disposto na al. a) do artigo 243º nº 1.

O recorrente alega a não verificação dos requisitos a que alude a al. a) do nº 1 do artigo 243º.
Conforme de tal alínea se extrai, é fundamento da cessação antecipada [ou recusa, ex vi 244º nº 2] a violação dolosa ou com grave negligência do devedor de alguma das obrigações impostas pelo artigo 239º que por essa via tenham prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
O decidido fundamentou-se no incumprimento do insolvente quanto à entrega do rendimento disponível fixado na decisão que admitiu liminarmente este incidente. Apesar de para tanto ter sido notificado o insolvente e nada ter dito.
E que a não entrega dos rendimentos objeto de cessão ocorreu, é ponto que o recorrente não questiona.
Tal como é ponto assente que notificado o recorrente para justificar o motivo por que não observou tal dever, o mesmo se remeteu ao silêncio.

A este propósito de referir que o pelo recorrente alegado nas suas alegações de recurso, ou seja que a não entrega das quantias devidas resultou de dificuldades económicas que atravessou, não pode nesta sede ser considerado.
Com efeito, o assim alegado apenas em sede de recurso – cujo objetivo é justificar o seu incumprimento e por esta via afastar uma eventual censura do seu comportamento a título de dolo ou negligência grave [vide conclusão III] – configura uma questão nova que ao tribunal a quo não foi colocada para apreciação.
Até à apresentação do recurso, nada tinha o recorrente invocado a este propósito.
Tendo presente que através dos recursos é visado o reexame das decisões proferidas em 1ª instância por forma a pela via da modificação de decisão antes proferida ser validado o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, temos que as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, não podem pelo tribunal de recurso ser consideradas, salvo em situações limitadas e expressamente consagradas como por exemplo no caso de ocorrer alteração ou ampliação do pedido em 2ª instância (artigo 264º do CPC) ou de se impor o conhecimento oficioso de exceção ainda não decidida com trânsito em julgado.
O mesmo é dizer que o objeto de recurso está portanto limitado pelas questões que foram sujeitas a apreciação ao tribunal recorrido[3];
Consequentemente a apreciação desta nova alegação e justificação formulada perante este tribunal de recurso é de rejeitar.

O preenchimento do disposto na al. a) em análise está sempre dependente da demonstração de que a violação dos deveres que sobre o insolvente recaem, ocorreu de forma dolosa ou com grave negligência, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre os insolventes.
O que nos leva a pronunciar sobre o ónus de prova da factualidade necessária ao preenchimento dos pressupostos que justificam a decisão de antecipação da cessação do procedimento de exoneração.
Nos termos do preceituado no artigo 243º nº 1, previu o legislador a hipótese de antecipar a decisão deste incidente “a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência (…) ou do fiduciário”, requerimento este com o qual e para além de ter de respeitar o prazo previsto no nº 2 deste mesmo artigo, deve “ser oferecida logo a respetiva prova.” (vide nº 2 in fine).
Esta exigência entende-se porquanto estando em causa factos impeditivos do direito do insolvente, ao credor que os invoque caberá fazer prova dos mesmos, em respeito pela regra geral contida no artigo 342º nº 2 do CC.. Só assim se entendendo a exigência quer do requerimento fundamentado quer do oferecimento imediato de prova.
Não tendo a questão do ónus de prova sido líquida a nível jurisprudencial no que respeita à prova dos requisitos necessários à admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante por referência ao disposto no artigo 238º, para que o artigo 243º nº 1 al. b) remete, assumimos como correta a posição que se julga maioritária de ser ónus dos credores ou AI e sem prejuízo da atuação oficiosa que o tribunal entenda por oportuna, a prova dos fundamentos do indeferimento liminar – neste sentido vide o Ac. STJ de 17/06/2014, Relator Fernandes do Vale, in http://www.dgsi.pt/jstj onde é afirmado “consideramos que os fundamentos de indeferimento liminar previstos no art. 238º, nº1 do CIRE têm natureza impeditiva do direito à exoneração do passivo restante por parte do requerente-insolvente, sobre o qual, por isso (art. 342º, nº2, do CC), não impende o ónus processual de, desde logo, alegar e, subsequentemente, provar a inexistência, no caso, de tais fundamentos”, invocando em abono da sua posição Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda in “Colectânea de Estudos sobre a Insolvência”, págs. 284, bem como Antunes Varela na R. L. J., Ano 117º, págs. 26 e segs., em anotação ao Assento – hoje, Acórdão Uniformizador de Jurisprudência – do STJ de 21.06.83, sobre a distinção entre factos constitutivos e factos extintivos do direito ou da pretensão.
Assim em tal Ac. do STJ se concluindo «Não restando, pois, dúvidas, a esta luz, que têm natureza impeditiva da pretensão formulada pelo requerente do benefício de exoneração do passivo restante os factos integrantes dos fundamentos do “indeferimento liminar” previsto no art. 238º do CIRE, bastando-se aquela pretensão com a alegação da qualidade de insolvente e do que exigido se mostra no art. 236º, nº3 do mesmo Cód.» [no mesmo sentido referem-se ainda Ac. STJ de 21/03/2013 Relator Martins de Sousa; Ac. RL de 20/06/2013 Relator Jorge Leal; Ac. RC de 12/06/2012, Relator Artur Dias; Ac. RG de 26/02/2015 Relator Estelita Mendonça e ainda da RG Ac. de 30/06/2016, Relatora Maria Luísa Ramos todos in www.dgsi.pt].
E se assim é nesta fase da admissão liminar, o mesmo se aplica à situação em que o credor vem pugnar pela cessação antecipada do incidente em curso, invocando em tal fase o que antes não alegou por desconhecimento ou verificação superveniente [vide al. b) do artigo 243º nº 1 in fine].
A natureza impeditiva da concessão da exoneração do passivo restante do circunstancialismo referido no artigo 238º e os argumentos a este propósito convocados para concluir pelo ónus probatório incidente sobre o requerente da cessação antecipada deste procedimento de exoneração, é a mesma do fundamento de cessação antecipada previsto na al. a) do artigo 243º nº1 por referência às obrigações impostas aos insolventes no artigo 239º, tanto mais que o legislador exigiu ainda a demonstração de que tal violação foi dolosa ou com grave negligência e prejudicial por esse facto à satisfação dos credores.
A impor a conclusão de que também neste caso, o ónus probatório recai sobre o requerente da cessação antecipada deste procedimento de exoneração [vide neste sentido Ac. TRP de 11/10/2017, Relator Rodrigues Pires, in www.dgsi.pt].
Assente sobre quem recai a prova da violação das obrigações a que se refere o artigo 243º nº 1 al. a), importa aferir se a informação prestada pelo fiduciário quanto ao incumprimento do devedor, a que se associa o subsequente silêncio deste quando expressamente foi notificado para regularizar esse mesmo incumprimento é suficiente para concluir pelo preenchimento dos requisitos da al. a) em análise.
É certo o incumprimento/ violação do dever de cessão, o qual tão pouco está questionado pelo recorrente.
Este, porém, só por si não é suficiente para determinar a decisão de recusa antecipada.
É ainda exigido que tal incumprimento seja imputado ao devedor a título de dolo ou grave negligência.
Bem como é exigida a demonstração de que tal incumprimento prejudicou a satisfação dos créditos.
Analisada a decisão recorrida constata-se que nada foi analisado neste conspecto.
O período de cessão – fixado legalmente em 5 anos – teve início em 08/02/2017.
O que significa que o seu termo [salvo cessação antecipada] ocorreria a 08/02/2022.
Em março de 2020 foi proferida a decisão de recusa do pedido de exoneração com base no já mencionado incumprimento, numa altura em que faltavam ainda 2 anos para o termo dos 5 anos a que corresponde o período normal de cessão.
Nada nos autos evidencia ou foi analisado quanto ao prejuízo que a não entrega dos valores em falta representou para os credores, tanto mais quando estando ainda em curso o período de cessão, poderia haver a possibilidade de o insolvente regularizar os montantes que deveria ter oportunamente entregue ao fiduciário ainda dentro do prazo dos referidos 5 anos.
Igual omissão se verifica quanto ao circunstancialismo em que tal incumprimento ocorreu.
O que se compreende, desde logo pelo facto de a cessação antecipada não ter sido na verdade requerida[4] e assim inexistir factualidade alegada dos respetivos requisitos a demonstrar.
O fiduciário deu nota do incumprimento.
O credor “D…” informa nada ter a opor à cessação antecipada atento o incumprimento comunicado.
A declaração de não oposição não é equiparável processualmente ao pedido de declaração de cessação antecipada – o que se refere já que na decisão recorrida é afirmado que a D… pugnou por tal cessação antecipada.
Como já antes referido, recai sobre quem requer a cessação antecipada o ónus de alegar e provar os requisitos de que depende tal decisão.
Tal alegação e prova não foram feitos e tão pouco foram analisados na decisão recorrida todos esses pressupostos.
Não bastando, repete-se, o incumprimento do insolvente que entendemos ser merecedor de censura na medida em que apesar de notificado para regularizar os valores em falta se remeteu ao silêncio.
Concluindo, perante os elementos constantes do processo não se mostram preenchidos os requisitos de que dependia a decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração e consequente recusa do pedido de exoneração do passivo restante[5].
Implicando a revogação do decidido.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto consequentemente revogando a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.

Porto, 2020-07-14
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
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[1] Notificação pessoal que veio devolvida com a informação “não reclamada”.
[2] Diploma legal a que faremos referência, quando em contrário nada se diga.
[3] Vide neste sentido Ac. STJ, Relatora Ana Geraldes de 17/11/2016; ainda e entre outros, Ac. TRC de 14/01/14, Relatora Maria Inês Moura; Ac. TRP de 16/10/2017, Relator Miguel B. Morais e Ac. STJ de 07/07/2016 Relator Gonçalves Rocha, todos in www.dgsi.pt.
[4] Sendo aliás discutido na jurisprudência se a determinação oficiosa da cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento em violação do devedor das obrigações ao mesmo impostas é admissível – cfr. Ac. TRC de 06/03/2018 nº de processo 3221/12.0TBLRA.C1 in www.dgsi.pt
[5] Cf. no mesmo sentido Ac. TRC de 04/02/2020, nº de processo 695/13.5TBLSA.C1; Ac. TRP de 29/04/2019, nº de processo 8991/15.0T8VNG.P1; Ac. TRL de 02/04/2019, nº de processo 17273/11.6T2SNT.L1-1 in www.dgsi.pt