Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9/17.5T8ALB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: INVENTÁRIO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RP202001289/17.5T8ALB.P1
Data do Acordão: 01/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Tendo havido inventário para partilha de bens de casal, no qual foi proferida sentença homologatória de partilha, já transitada em julgado, não há lugar, em momento posterior, à prestação de contas, relativamente à administração, de bens respeitantes ao período anterior à propositura daquele inventário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 9/17.5T8ALB.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha - Juiz 1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
B…, residente no lugar de …, …. - … Sever do Vouga, intentou a presente acção especial de prestação de contas contra C…, residente na Rua …, …, …, …. - … Sever do Vouga, peticionando que o Réu preste constas da sua administração relativamente às seguintes matérias:
- Valores existentes na conta …., conta empréstimo, titulada pelo ex-casal na sociedade “D…, Lda.”;
- Rendas respeitantes ao imóvel arrendado à sociedade “D…, Lda.”;
- Activos financeiros e respectivos juros de contas bancárias existentes no “Banco E…”.
Alegou, em súmula, para tal, que, desde Outubro de 2006, quando deu entrada a acção de divórcio, e Julho de 2007, quando foi proferida sentença nesse processo, o Réu administrou os bens comuns do casal, o que continuou a fazer desde essa data e até Abril de 2012, quando foi feita a partilha judicial do património do casal, sem que até hoje tenha prestado contas da sua administração.
Juntou os documentos de fls. 4-verso a 15 e 50 a 64.

Regularmente citado, o Réu deduziu contestação, na qual pugnou pela improcedência da pretensão da A., dizendo, em súmula, o seguinte:
- A. e Réu continuaram a viver em união de facto e em economia comum até 31 Março de 2010, pese embora o divórcio decretado, não tendo o demandado assumido na prática qualquer posição de cabeça-de-casal;
- A sociedade “D…” cessou actividade em Março de 2010, altura em que apresentou prejuízo de €22.756,19, e foi dissolvida em Agosto de 2012, sem activo nem passivo;
- Não existia qualquer conta de empréstimo do casal à empresa “D…”;
- O casal apenas possuía no E… dois PPR´s, cujos juros eram capitalizados e foram objecto de partilha entre o casal, nada mais havendo a dividir entre ambos.
Juntou os instrumentos de fls. 24 a 42.

Foi realizada tentativa de conciliação entre as partes, não tendo sido possível obter acordo que pusesse cobro ao litígio – fls. 75.

Seguidamente, procedeu-se à diligência de produção de prova a que alude o art.º 942º, 3, CPC, com observância de todas as formalidades legais, como das respectivas actas emerge – fls. 82 e 83.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:” Nos termos expostos, julga-se a presente acção improcedente, por não provada, e, consequentemente, decide-se:
a) Inexistir a obrigação do Réu C… de prestar contas à A. B…;
b) Condenar a A. nas custas do processo (art.º 527º, 1 e 2, CPC).”

B… interpôs recurso, concluindo:
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Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exs.ª mui douta e sabiamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a Douta Sentença substituída por Douto Acórdão que julgue o presente Recurso procedente e, em consequência, condene o R. a prestar contas, assim fazendo, como sempre, V. Exs.ª INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se o requerido deve ser condenado a prestar contas.
II - Fundamentação de facto
O tribunal recorrido considerou:
3.1. Factos provados
1- A A. B… e o Réu C… casaram-se em 22 de Dezembro de 1984, segundo o regime da comunhão geral de bens;
2- Em 6 de Outubro de 2006, a A. propôs contra o Réu acção de divórcio litigioso, a qual correu termos no Tribunal de Família e Menores de Aveiro sob o nº 637/06.4TMAVR;
3- O divórcio entre A. e Réu foi decretado por sentença de 4 de Julho de 2007, transitada em julgado em 11 de Setembro seguinte;
4- Por apenso a esse processo, correram termos os autos de partilha de bens comuns do casal, nos quais foi proferida sentença homologatória de partilha em 26 de Abril de 2012, transitada em julgado em 4 de Junho seguinte, tal como consta da certidão de fls. 10 a 15, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
5- Entre os bens comuns constava uma quota nominal, representativa de 60% do capital social, na sociedade “D…, Lda.”, com o NIF ………;
6- Tal empresa declarou cessada a sua actividade em 31 de Março de 2010;
7- No ano de 2010, a empresa apresentou prejuízo no valor de €22.756,19;
8- A “D…” foi dissolvida por deliberação de assembleia geral de 4 de Agosto de 2012, sem activos nem passivos;
9- A A. intentou acção contra aquela sociedade para cobrança de créditos salariais, tendo sido o Réu C… condenado a pagar-lhe a quantia global de €48.811,92, acrescida de juros, em vista da dissolução da empresa no decurso da acção, o que o Réu cumpriu;
10- A. e Réu eram titulares de dois PPR´s no banco “E…”, cujos juros eram capitalizados e foram objecto da partilha mencionada em 4);
11- Apesar da acção de divórcio referida em 2) e 3), A. e Réu continuaram a viver em comunhão de mesa, leito e habitação, em gestão conjunta do património, até, pelo menos, ao mês de Dezembro de 2009;
12- Durante o lapso temporal aludido em 11), a A. residiu por períodos não concretamente apurados em Oliveira do Bairro e Lisboa.
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2.2. Factos não provados
a) Que, desde a data da propositura da acção de divórcio até à data da respectiva sentença, o Réu administrou os bens comuns do casal;
b) Que, desde então e até à partilha referida em 4), o Réu administrou os bens comuns do casal na qualidade de cabeça-de-casal;
c) Que, nos períodos atrás mencionados, o Réu administrou em exclusivo os valores existentes na conta nº …., da “D…, Lda.”;
d) Que, nos períodos atrás mencionados, o Réu administrou em exclusivo as rendas respeitantes ao imóvel arrendado à sociedade “D…, Lda.”;
e) Que, nos períodos atrás mencionados, o Réu administrou em exclusivo os activos financeiros e respectivos juros de contas existentes no banco “E…”.
III – Do mérito do recurso
Argumenta a recorrente que deveria ter sido dado como provado que na pendencia da acção de divórcio e, pelo menos, a partir de Julho de 2008, cessou em definitivo, a partilha da vida privada e social dos então cônjuges, ou seja cessou a comunhão de mesa, leito e habitação e que o R. continuou, como já o faria na vigência do casamento, a administrar os bens elencados na petição inicial até partilha, em exclusivo e sem pedir consentimento e sem dar qualquer conhecimento destes à autora. Que deveriam ter sido dados como provados os factos a), b), c) e d) dados como não provados na douta sentença.
No caso, a recorrente pretende que o recorrido preste contas da administração de bens no período que decorreu entre Outubro de 2006, quando deu entrada a acção de divórcio e Julho de 2007, quando foi proferida sentença nesse processo, e desde essa altura até Abril de 2012, quando foi feita a partilha judicial do património do casal.
A obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios (cfr. Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, 303) e, por isso, deve prestar contas dessa administração.
Não há uma disposição legal que genericamente determine quando é que alguém tem a obrigação de prestar contas a outrem pelo que o artigo 941º do C.P.C. pressupõe a existência de preceitos substantivos que imponham aquela obrigação.
Esta obrigação de prestar contas pode emergir da lei, de negócio jurídico ou até dos ditames da boa-fé. Ela decorre de uma outra obrigação de carácter mais geral, a obrigação de informação.
E é uma obrigação que tem consagração genérica no artigo 573º do Código Civil, existindo sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência e do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.
Explica Vaz Serra, em Scientia Iuridica, vol. XVIII, 115, que a obrigação de prestar contas “tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou do princípio geral da boa fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte”.
A acção de prestação de contas é um processo especial cuja regulamentação está prevista nos artigos 941.º a 947.º do CPC, para as contas em geral.
Prestar contas implica, por sua natureza, descriminar despesas e receitas efectivamente realizadas, mas não tem a ver com a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem com a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado.
Contrariamente ao que acontece com a generalidade dos administradores de bens alheios ou de interesses próprios e alheios, o cônjuge administrador não é obrigado a prestar contas, respondendo apenas pelos danos resultantes de actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge, isto em vista, como explica Antunes Varela, in “Direito da Família”, 1.º; pág. 382, das “graves perturbações que as acções de indemnização de cada um dos cônjuges contra o outro, facilitadas pela obrigação periódica da prestação de contas, podem causar nas suas relações pessoais e em prejuízo da estabilidade familiar, havendo toda a conveniência em as evitar, na medida do possível, por virtude da relação bem mais ampla que une os cônjuges e por não se considerar razoável aplicar à gestão do cônjuge administrador os padrões normais de julgamento da administração isolada de bens alheios.”
Desde já se consigna que não se compreende o motivo pelo qual a recorrente vem agora pedir a prestação de contas relativamente a um período abrangido pela partilha de bens efectuada.
No caso, a acção de divórcio entre requerente e requerido deu entrada em Outubro de 2006 e a sentença que decretou o mesmo teve lugar em Julho de 2007. Não obstante requerente e requerida continuaram a viver em economia comum até, pelo menos, ao mês de Dezembro de 2009.
Existe efectivamente uma obrigação do cônjuge que conserva a posse dos bens do casal de prestar contas ao outro no período entre a dissolução da sociedade conjugal e a partilha.
O processo de inventário, na sequência do divórcio tem por objectivo a partilha dos bens do casal de acordo com o regime legal de bens estipulado para o casamento.
Como decorre da factualidade provada, houve lugar a processo de inventário de partilha de bens do casal, no qual foi proferida sentença homologatória de partilha em 26 de Abril de 2012, já transitada em julgado.
Efectivamente, a obrigação de prestação de contas pelo ex-cônjuge nasce a partir do decretamento do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, retroagindo os seus efeitos à data da entrada em juízo do requerimento apresentado nesse mesmo processo, conforme resulta do disposto no artigo 1795º-A do Código Civil ex vi artigo 1789º, nº 1, do mesmo diploma legal.
Ora tendo havido o dito processo de inventário, nos termos do disposto no artigo 947.º, epigrafado “Prestação de contas por dependência de outra causa”: ”As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita.”
Logo a pretensão da requerente, ora recorrente, só teria cabimento por apenso ao dito processo de inventário de partilha de bens do casal.
Não tendo sido suscitada, nessa altura, a prestação de contas aqui propugnada, com o trânsito em julgado da sentença homologatória de partilha, ficou esgotada toda a sua oportunidade, sendo, portanto, agora totalmente inadmissível.
Ante o direito agora visto de nada vale a impugnação da matéria de facto supra referida.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a presente apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 28 de Janeiro de 2020
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
José Carvalho