Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
162/21.3JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CRIMES CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL
Nº do Documento: RP20230509162/21.3JAPRT.P1
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Em processo em que se investiga a prática de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual é obrigatória a tomada de declarações para memória futura, nos termos do artigo 271.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, se a vítima é menor.
II - Para [não] realização dessa diligência não podem interferir juízos de oportunidade suscitados pelo juiz de instrução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 162/21.3JAPRT-A.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 2


Decisão Sumária

I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 162/21.3JAPRT, a correr termos na 2.ª Secção do DIAP de Santa Maria da Feira, por despacho de 20-11-2022, rectificado a 02-01-2023, a Digna Magistrada do Ministério Público que conduzia o inquérito, após ordenar outras diligências, determinou o seguinte (transcrição):
«No âmbito dos presentes autos foram denunciados factos suscetíveis integrarem, em abstrato, a prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 176ºA, n.º 1 do Código Penal e um crime de pornografia de menores, na forma tentada, p. e p. pelo art. 176, n.º1, b), n.º9 e 22.º e 23.º do C. Penal, agravado nos termos do n.º6 do art. 177.º do mesmo diploma legal, na pessoa da menor AA, nascida aos ../../2006, conforme resulta da factualidade descrita a fls. 292.
Considerando as diligências de prova já realizadas entendemos que importa tomar declarações ao menor com vista a perceber o que se passou e até da respetiva credibilidade.
O menor tem apenas 15 de idade e, na nossa perspetiva já reúne condições para prestar testemunho quanto aos factos, sendo ainda testemunha especialmente vulnerável.
Considerando o supra exposto, remeta os autos à Mm.ª. Juiz de Instrução Criminal, a quem se promove seja designada data para tomada de Declarações para Memória Futura à menor AA, nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.»

Concluídos os autos à Senhora Juiz de Instrução do Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira (Juiz 2), pela mesma foi proferida, em 23-11-2022, a seguinte decisão (transcrição):
«Veio o Ministério Público promover a tomada de declarações à menor AA nos termos do disposto no art. 271º do Código de Processo Penal, justificando: «considerando as diligências de prova já realizadas entendemos que importa tomar declarações ao menor com vista a perceber o que se passou e até da respectiva credibilidade.».
Ocorre que a menor AA, agora com 16 anos de idade, foi já inquirida nestes autos, não por uma, mas por duas vezes, uma das quais junto da Polícia Judiciária, de forma muito exaustiva – cfr. fls. 267-269 -, e uma outra há precisamente uma semana pela Sra. Procuradora do Ministério Público titular do inquérito, na qual, por certo, terá tido oportunidade de aferir o que se passou e da credibilidade de tal depoimento.
Na verdade, não é a tal desiderato que se destina a previsão legal da possibilidade de tomar declarações para memória futura.
Trata-se de assegurar uma prova que será pré-constituída para valer na fase de julgamento, evitando a revitimização, não podendo o disposto no art. 271º/2 do Código de Processo Penal deixar de ser interpretado tendo isso em mente, sob pena de total subversão da ratio legis subjacente àquele dispositivo: poupar as vítimas de crimes de natureza sexual a sucessivas inquirições e reavivamento do sofrimento causado pelo crime.
Além do mais, o Ministério Público apresentou à menor uma proposta de resolução consensual por meio de suspensão provisória do processo, tendo a mesma requerido a sua aplicação e justificado que “considera ser do seu interesse que os presentes autos sejam suspensos, evitando-se o julgamento por todo o sofrimento que este lhe pode causar atendendo ao facto de o arguido ser pai do seu irmão, o qual continua a contactar com o arguido de 15 em 15 dias.”.
O que significa que, a ser decretada a suspensão provisória do processo, as declarações tomadas à menor, pela terceira vez, não terão qualquer utilidade, em violação do princípio processual genérico da proibição da prática de actos inúteis – art. 130º do Código de Processo Civil ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal -, mas também do princípio da necessidade constitucionalmente consagrado em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias, sob o art. 18º/2 da Constituição da República Portuguesa. Com a agravante de se submeter a vítima a uma terceira revitimização, em contradição com o fundamento último da previsão legal da tomada de declarações para memória futura nestes casos.
Assim, neste quadro, em que, além do mais, o Ministério Público perspectiva um desfecho para o processo que não passa pelo julgamento, sem prejuízo de reponderação do promovido caso tal desfecho se mostre inviabilizado ou com diverso fundamento dos invocados, indefere-se a promoção para tomada de declarações para memória futura.»
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Inconformado com este despacho, veio o Ministério Público junto da 2.ª Secção do DIAP de Santa Maria da Feira do mesmo interpor recurso, solicitando que seja revogada tal decisão e que seja substituída por outra que determine a tomada de declarações para memória futura à vítima menor AA.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1. Por despacho de fls. 305, o Ministério Público promoveu a tomada de declarações para memória futura à menor, AA, nascida aos ../../2006, por se encontrar indiciada nos autos a prática de crimes que atentam contra a sua liberdade e autodeterminação sexual - cfr. art. 271.º, n.ºs 1 e 2 do C. P. Penal.
2. Tal pretensão foi indeferida, por despacho de fls. 309, no qual, em síntese e no essencial, o Tribunal a quo considerou que tal diligência seria inútil e contribuiria para a revitimização da vítima, uma vez que se antevia a possibilidade de suspender provisoriamente o processo e que a vítima já havia sido inquirida duas vezes nos autos, a segunda das quais, perante a signatária, que a auscultou sobre a possibilidade da suspensão provisória do processo, nos termos do disposto no art. 281.º n.º 9 do C. P. Penal e n.º 4 do Capitulo II, da Secção I, da Directiva 1/2014, de 15/01, com as alterações introduzidas pela Directiva 1/2015, de 30/04.
3. Atenta a natureza dos factos indiciados, praticados sobre a vítima, menor de idade, é obrigatória a sua tomada de declarações para memória futura, antecipando-se assim a produção da prova que valerá em sede de julgamento e evitando-se a revitimização da menor com sucessivas inquirições – cfr. art. 271.º, n.ºs 1 e 2 do C. P. Penal.
4. Não deu, o legislador, qualquer margem à ponderação, por parte da autoridade judiciária, sobre a oportunidade de proceder ou não à tomada de declarações para memória futura de menor, vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente, face à possibilidade de suspender provisoriamente o processo.
5. Ainda que assim não se entendesse, a suspensão provisória do processo não seria garante de que os autos não chegariam a julgamento, uma vez que a suspensão pode ser revogada nos termos do n.º 4 do art. 282.º do C. P. Penal, seguindo os autos os seus termos subsequentes.
6. Pelo que, ainda que seja determinada a suspensão provisória do processo, mantém-se a total pertinência da tomada de declarações para memória futura da menor, evitando-se que, anos mais tarde, seja obrigada a reviver os factos ora sob investigação, acentuando-se a sua revitimização sem que se tenha assegurado, oportunamente, a espontaneidade e genuinidade da prova;
7. O facto de o Ministério Público auscultar a vítima sobre a eventual suspensão provisória do processo, para melhor ponderar o seu interesse, não pode determinar seja dispensada a tomada de declarações para memória futura da menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, nem retira oportunidade ou interesse à realização de tal diligência.
8. Por todo o exposto, ao indeferir a tomada de declarações para memória futura da menor, contra quem se indicia nos autos a prática de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 271.º, n.ºs 1 e 2, e 268.º, n.º 1, al. f), ambos do C. P. Penal e o disposto pelos arts. 219.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, 3.º da Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto.
9. Deverá assim ser proferida decisão que, cumprindo as normas invocadas, defira a tomada de declarações para memória futura à menor, tal como promovido.»
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Notificado, o arguido não apresentou resposta.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, sufragando a posição do recorrente.
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Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o arguido não apresentou resposta.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.
A única questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se a decisão recorrida errou ao indeferir o pedido de prestação de declarações para memória futura pela menor AA.
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Mostram-se já transcritos os despachos do Ministério Público, em que é requerida a diligência de declarações para memória futura, e da Senhora Juiz, que indeferiu essa pretensão.
Vejamos então a questão suscitada.
Analisado o requerimento para prestação de declarações para memória futura e o despacho recorrido, temos de reconhecer inteira razão ao recorrente.
Com efeito, estabelece o art. 271.º do CPPenal nos seus n.ºs 1 e 2 que, em fase de inquérito:
«1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.»

Os fundamentos enunciados no n.º 1 do preceito, e que permitem a tomada de declarações para memória futura, estão organizados em dois grupos distintos, por um lado, temos as circunstâncias que podem objectivamente obstar à audição de uma testemunha (qualquer testemunha) em julgamento, onde se insere a verificação de uma doença grave ou uma deslocação para o estrangeiro, e, por outro, temos as vítimas de crimes de catálogo – tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual (art. 271.º do CPPenal), às quais devem acrescer as vítimas de violência doméstica (arts. 23.º e 33.º da Lei 112/2009, de 16-09) ou as vítimas especialmente vulneráveis (ao abrigo dos arts. 1.º e 26.º a 28.º da Lei de Protecção de Testemunhas – Lei 93/99, de 14-07 – e dos arts. 21.º e 24.º da Lei 130/2015 (Estatuto de Vítima), de 04-12, em conjugação com o art. 67.º-A, n.ºs 1, al. b), e 3, do CPPenal).
Deste segundo grupo, o legislador destacou as vítimas nos processos por crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual quando mantêm ainda a menoridade, pois determinou a obrigatoriedade– com recurso ao termo sempre – da sua inquirição no decurso do inquérito.
A vítima dos presentes autos é menor – tem 16 anos – e nestes, de acordo com o despacho que solicita a tomada de declarações para memória futura e respectiva rectificação, investiga-se a prática de um crime de aliciamento de menores para fins sexuais, p. e p. pelo art. 176.º-A, n.º 1, do CPenal, e um crime de pornografia de menores, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 176.º, n.ºs 1, al. b), e 9, 22.º e 23.º do CPenal, agravado nos termos do n.º 6 do art. 177.º do mesmo diploma legal, crimes enquadrados, na estrutura do CPenal, na secção dos contra a autodeterminação sexual.
É o quanto basta para que seja obrigatória a tomada de declarações para memória futura, sem intromissão de quaisquer juízos de oportunidade, que, a admitirem-se, nunca caberiam ao juiz de instrução durante a fase de inquérito, posto que é ao Ministério Público que cabe a direcção do inquérito.
A diligência de tomada de declarações para memória futura nos casos de crime de catálogo procura não só para salvaguardar a vítima de futura exposição em julgamento – poupando-a «ao trauma de reviver vezes sem conta os acontecimentos e ao constrangimento inerente à solenidade e formalismo de uma audiência de julgamento»[1] –, mas também preservar a integridade da prova, evitando o esboroamento da memória das vítimas e o exercício de interferências na sua genuinidade.
E o legislador entendeu que no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual que fossem menores de idade aquelas razões que salvaguardam os interesses de protecção da vítima se sobrepunham, sempre, a juízos de oportunidade e até ao interesse de realização da justiça com pleno exercício da imediação e do contraditório em julgamento.
Nessa medida, é irrelevante invocar, como se faz no despacho recorrido, que a testemunha já foi anteriormente ouvida no processo, se nessas diligências não se acautelaram as exigências de forma a que deve obedecer a tomada de declarações para memória futura ao abrigo do art. 271.º do CPenal.
Assim como é irrelevante invocar que existe uma proposta de resolução consensual por meio de suspensão provisória do processo – que, entretanto, até foi decretada, pressupondo ainda a prática de crime contra a autodeterminação sexual, mas de diferente tipologia – crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 2, conjugado com os arts. 171.º, n.º 3, al. a), e 170.º, todos do CPenal –, pois essa decisão não impede um futuro julgamento (caso o arguido não cumpra as injunções e regras de conduta fixadas e/ou no período da suspensão cometa crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado, nos termos do art. 282.º, n.º 4, do CPPenal) e, nessa medida, impõe-se, ainda assim, a salvaguarda dos interesses da vítima menor e da integridade da prova.
A obrigatoriedade desta diligência, para além de resultar inequívoca da lei, tem sido afirmada de forma constante e pacífica pela jurisprudência – posição que o Tribunal a quo não rebateu, nem invocou qualquer decisão em apoio da sua perspectiva –, como decorre, por exemplo, das seguintes decisões (todas acessíveis in www.dgsi.pt):
- Acórdão do TRG de 09-11-2008, relatado por Fernando Ventura no âmbito do Proc. n.º 371/07.8TAFAF.G1;
- Acórdão do TRC de 24-04-2012, relatado por Jorge Dias no âmbito do Proc. n.º 374/2001.P1;
- Decisão sumária do TRP de 10-09-2014, relatada por Augusto Lourenço no âmbito do Proc. n.º 93/14.3JAPRT-A.P1;
- Acórdão do TRP de 11-02-2015, relatado por Elsa Paixão no âmbito do Proc. n.º 2246/11.7JAPRT.P1;
- Acórdão do TRE de 29-11-2016, relatado por Carlos Berguete Coelho no âmbito do Proc. n.º 232/15.7JDLSB.E1;
- Acórdão do TRE de 24-10-2017, relatado por Maria Leonor Esteves no âmbito do Proc. n.º 168/15.1JAFAR.E1; e
- Acórdão do TRP de 26-06-2019, relatado por Francisco Mota Ribeiro no âmbito do Proc. n.º 17392/16.2T9PRT.P1.
Em suma, o Tribunal a quo recusou realizar diligência a que estava obrigado, conforme foi já judicialmente apreciado e decidido de modo uniforme e reiterado no sentido mencionado – art. 417.º, n.º 6, al. d), do CPPenal.
Impõe-se, por isso, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que designe data para tomada de declarações para memória futura à vítima AA, ao abrigo do disposto no art. 271.º, n.º 2, do CPPenal, prosseguindo os autos com vista à sua realização.
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III. Decisão:
Face ao exposto, decide-se, ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 6, al. d), do CPPenal, revogar a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que designe data para tomada de declarações para memória futura à vítima AA, ao abrigo do disposto no art. 271.º, n.º 2, do CPPenal, prosseguindo os autos com vista à sua realização.

Sem tributação (art. 522.º, n.º 1, do CPPenal).

Notifique.

Porto, 09 de Maio de 2023

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo a assinatura autógrafa substituída pela electrónica aposta no topo esquerdo da primeira página)

Maria Joana Grácio
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[1] Cf. acórdão do TRL de 30-06-2011, relatado por Carlos Benido no âmbito do Proc. n.º 4752/10.1T3AMD-A.L1-9, in www.dgsi.pt.