Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1185/07.0TBPRD-H.P1
Nº Convencional: JTRP00042308
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITOS LABORAIS
HIPOTECA
APLICAÇÃO RETROACTIVA DA LEI
Nº do Documento: RP200903101185/07.0TBPRD-H.P1
Data do Acordão: 03/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 302 - FLS 108.
Área Temática: .
Sumário: I - A aplicação do art° 377° do CT a situações anteriormente constituídas (por força do art° 8°, no 1, do diploma preambular) consubstancia uma retroactividade normal ou de grau mínimo (aplicação retrospectiva ou imediata a situações duradouras, derivadas de factos passados), que aflora particularmente na previsão da 2 parte do n° 2 do artigo 12° do C.Civil, mas que não constitui uma retroactividade em sentido próprio (aliás, a jurisprudência constitucional alemã tem-na mesmo qualificado de retroactividade imprópria ou inautêntica), na medida em que há ainda aplicação para futuro, embora sobre situação jurídica iniciada na vigência da lei antiga.
II - A preferência do legislador pelos privilégios creditórios dos créditos laborais em detrimento da hipoteca não significa uma «afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas jurídicas» — pelo que se conclui inexistirem, in casu, expectativas dignas de tutela através da aplicação do princípio da confiança, insito no artigo 2° da Constituição, assim improcedendo a arguição de inconstitucionalidade formulada pela apelante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1185/07.0TBPRD-H.P1 (2009)
Apelação
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 138º, nº 5-CPC)
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ACORDAM NA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I – RELATÓRIO:

No âmbito do processo de insolvência, que corre termos na comarca de Paredes, em que foi declarada insolvente «B………., Lda.», por sentença datada de 18/3/2008, já transitada em julgado, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, ao abrigo do artº 130º, nº 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3. Nessa sentença, homologou-se a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e graduaram-se os créditos constantes dessa lista, estabelecendo duas ordens de graduação, uma quanto aos bens móveis (verbas 1 a 73 do auto de apreensão de bens) e outra quanto ao produto da venda de bem imóvel (descrito sob o nº 00399/101088, na Conservatória do Registo Predial de Paredes), ocorrida em execução fiscal e cujo valor se encontra apreendido nos autos (verba 74 do auto de apreensão de bens).

Quanto a esta segunda graduação, definiu-se a seguinte ordem: em 1º lugar, créditos laborais (dos trabalhadores da empresa), privilegiados; em 2º lugar, crédito reclamado por «C………., SA», garantido por hipoteca voluntária (registada em 11/11/2003, sob a inscrição «Ap. 20/……..», conforme documento de fls. 17-18); em 3º lugar, crédito reclamado pela Fazenda Nacional, até ao montante de 72.852,13 €, garantido por hipoteca voluntária; em 4º lugar, crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, até ao montante de 476.360,13 €, garantido por hipoteca legal; em 5º lugar, créditos reclamados pela Fazenda Nacional e pelo Instituto de Segurança Social, de 7.825,25 € e de 8.494,01 €, respectivamente; em 6º lugar, restantes créditos comuns; em 7º lugar, crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, de 5.426,46 €, subordinado. Para justificar a preferência dos créditos laborais, designadamente sobre a hipoteca constituída a favor do C………., SA, argumentou-se com a atribuição àqueles de privilégio imobiliário geral pelo artº 4º da Lei nº 96/2001, de 20/8, e de privilégio imobiliário especial pelo artº 377º do Código do Trabalho (CT), e deu-se por assente, com base em informação prestada pelo administrador da insolvência (na lista de créditos reconhecidos, junta a fls. 3-14), segundo a qual «esse imóvel fazia parte do estabelecimento da devedora, sendo que os trabalhadores [aí] exerciam as suas funções».

Proferida essa sentença, veio o C………., SA requerer (a fls. 60-61) a sua rectificação, de modo a ser o seu crédito graduado em 1º lugar (passando os créditos laborais para 2º lugar), com o argumento de que só por lapso se afirmou que o imóvel vendido fazia parte do estabelecimento da devedora, uma vez que, conforme havia antes declarado o administrador da insolvência, se tratava de terreno sito em frente das instalações fabris da empresa insolvente, pelo que inexistiria o privilégio atribuído aos créditos dos trabalhadores. Para a eventualidade de indeferimento, formulou-se logo pretensão de interposição de recurso.

Sobre esse requerimento recaiu despacho (de fls. 60-62) que indeferiu o pedido de rectificação. No essencial, sustentou-se que o Banco reclamante não deduziu tempestivamente (no prazo assinado no artº 130º, nº 1, do CIRE) impugnação da lista de credores desconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência, pelo que o pedido de rectificação consubstanciaria uma impugnação extemporânea.

Perante esse indeferimento, admitiu-se o recurso interposto, como apelação, a subir imediatamente, no apenso de reclamação de créditos e com efeito meramente devolutivo.

Pelo C………., SA foram então apresentadas alegações de recurso, que culminam com as seguintes conclusões:

«I. O Tribunal a quo fundamenta esta sua decisão, em substância, no seguinte facto: “Esse imóvel fazia parte do estabelecimento da devedora, sendo que os trabalhadores exerciam as suas funções”.
II. Este facto é falso e não foi objecto de contraditório em virtude de o Sr. administrador de insolvência não ter dado, como devia, cumprimento ao n° 4 do art. 129° do CIRE.
III. Porque o prédio constante da verba 74 não se trata do imóvel onde a firma laborava e/ou os seus trabalhadores exerciam as suas funções.
IV. E este facto foi expressamente explicado ao Tribunal e aos credores pelo senhor administrador de insolvência aquando da apresentação do relatório previsto no artigo 154° do CIRE.
V. O administrador de insolvência alterou a sua posição aquando da apresentação da lista prevista no artigo 129° do CIRE e, desse facto não notificou o ora recorrente, impossibilitando a impugnação da lista apresentada nos termos do art. 130° do mesmo diploma.
VI. Deve assim a douta sentença em crise ser revogada na parte em que gradua o crédito do banco em segundo lugar, atrás dos créditos dos trabalhadores devendo, em conformidade, o Tribunal a quo ordenar ao administrador de insolvência que dê cumprimento ao n° 4 do art. 129° do CIRE, permitindo assim ao banco recorrente a impugnação dos créditos constantes da lista de credores reconhecidos.
VII. E, em conformidade, deverá o Tribunal a quo proferir sentença de graduação de créditos nos presentes autos após ser dada a possibilidade do exercício do contraditório ao recorrente nos termos do art. 130° do CIRE, após ser dado cumprimento ao n° 4 do art. 129° do mesmo diploma.
Sem prescindir e na eventualidade de entendimento diverso:
VIII. A sentença de graduação de créditos graduou incorrectamente os créditos dos ex-trabalhadores, ao considerá-los com preferência sobre o produto da venda do imóvel dado de hipoteca, em detrimento dos créditos garantidos pela hipoteca constituída sobre o prédio constante da verba 74.
IX. A hipoteca sobre o dito imóvel foi registada em 13/11/2003.
X. Desta forma, o artigo 377° do Código do Trabalho não é aplicável aos presentes autos.
XI. Paralelamente, a segunda parte do n° 1 do artigo 8° do diploma preambular da Lei n° 99/2003, de 27 de Agosto, estatui que o Código de Trabalho não é aplicável quanto “aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento” (leia-se momento de entrada em vigor do Código do Trabalho).
XII. Deste modo, tendo a constituição da garantia ocorrido em data anterior à data da entrada em vigor do Código do Trabalho este, designadamente o seu artigo 377°, não é aplicável aos presentes autos.
XIII. Assim sendo, por não ser aplicável aos presentes autos o artigo 377° do Código do Trabalho, deve ser revogada a douta sentença de graduação de créditos recorrida e substituída por outra que gradue o crédito hipotecário do recorrente à frente dos créditos reclamados pelos ex-trabalhadores da “B………., Lda”.
XlV. E que deveria a douta sentença em crise ter feito uma análise dos factos à luz do direito vigente anteriormente – leia-se as Leis n° 17/86, de 14 de Junho, e n° 96/2001, de 20 de Agosto.
XV. Pois o artigo 751° do Código Civil contém um princípio insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, por este não incidir sobre bens determinados, e pelo facto de os privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual Código Civil.
XVI. O que implica que, dizendo o n° 3 do artigo 735° do Código Civil que os privilégios imobiliários são especiais, só a privilégios imobiliários especiais o artigo 751º se pode referir – e só estes! –, preferindo, portanto, à hipoteca.
XVII. De harmonia com a referência aos privilégios especiais feita no dito art° 686°, n° 1.
XVIII. O legislador não integrou os privilégios imobiliários gerais no regime do art° 751° e não procedeu à alteração do regime que tal determinaria no que respeita àqueles n° 3 do art° 735° e n° 1 do art° 686° – ambos do Código Civil –, deixando subsistir enormes dúvidas susceptíveis de provocar grave insegurança no comércio jurídico e concorrendo para defraudar legítimas expectativas dos credores hipotecários, por ele próprio criadas.
XIX. A sentença recorrida deveria pois fundamentar a decisão à luz do direito anteriormente vigente, para não defraudar as legítimas expectativas do credor hipotecário, ora recorrente.
XX. Que, legitimamente, esperava a graduação do seu crédito à frente do crédito dos ex-trabalhadores;
XXI. Por tudo quanto ficou dito deve, igualmente, ser revogada a douta sentença de graduação de créditos, e substituída por outra que gradue o crédito hipotecário do recorrente à frente dos créditos reclamados pelos ex-trabalhadores da “B………., Lda”.
XXII. Paralelamente, é entendimento do recorrente ser o artigo 377° do Código do Trabalho inconstitucional por violação do artigo 2° da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de o mesmo ser aplicável a hipotecas/garantias constituídas em data anterior à entrada em vigor do Código do Trabalho.
XXIII. Tal inconstitucionalidade resulta, e deriva, do facto de o artigo 377° do Código do Trabalho ter vindo instituir um ónus “surpresa”, que põe em causa a fiabilidade que o registo predial merece, afectando, dessa forma, as legítimas e fundadas expectativas do recorrente, na qualidade de credor hipotecário, “apunhalando pelas costas” o princípio da confiança ínsito no principio do Estado de direito democrático, constituindo ainda uma lesão desproporcionada e aviltante do comércio jurídico.
XXIV. À data que o banco recorrente reputa como sendo a data da declaração de falência da “D……….” – 25 de Junho de 2003 – não estava em vigor (nem tampouco publicada em Diário da República) a Lei n° 99/2003, de 27 de Agosto.
XXV. Desta forma, o artigo 377° do Código do Trabalho, ao ser aplicado pela sentença recorrida aos presentes autos, é inconstitucional, por violação do artigo 2° da Constituição da República Portuguesa.
XXVI. O artigo 377° do Código do Trabalho, como norma inconstitucional que é, encontra-se vedada a sua aplicação, devendo ser revogada a douta sentença de créditos recorrida e substituída por outra que gradue o crédito hipotecário do recorrente à frente dos créditos reclamados pelos ex-trabalhadores da “B………., Lda”.
XXVII. Já que o referido artigo 377° viola de forma clamorosa, e aviltante, o princípio da confiança ínsito no principio do Estado de direito democrático.
XXVIII. Desta forma, e também por este motivo, deve ser revogada a douta sentença de créditos recorrida e substituída por outra que gradue o crédito hipotecário do recorrente à frente dos créditos reclamados pelos ex-trabalhadores da “B………., Lda”.»

Não houve contra-alegações.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artos 660º, nº 2, e 664º, ex vi do artº 713º, nº 2, do CPC).

Do teor das alegações da apelante extraem-se as seguintes questões essenciais a discutir:
1) averiguação da aplicabilidade, neste momento, do artº 129º, nº 4, do CIRE, que não teria sido cumprido (notificação para impugnar, querendo, a lista de credores reconhecidos);
2) no caso de não proceder essa pretensão, averiguação de alegado erro na graduação dos créditos laborais com preferência sobre o crédito da apelante garantido por hipoteca – e, a esse propósito, apreciação das questões da aplicabilidade ao caso do artº 377º do Código do Trabalho ou das Leis nos 17/86 e 96/2001, e da inconstitucionalidade do artº 377º do CT.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:

1. A primeira questão colocada reporta-se à alegada omissão de uma formalidade legal: o administrador da insolvência terá apresentado nos autos a lista de credores reconhecidos, nos termos do artº 129º do CIRE, sem disso ter notificado a ora apelante, enquanto credor reclamante, ao abrigo do nº 4 daquela disposição legal, de modo a poder impugnar, em conformidade com o nº 1 do artº 130º do CIRE, a informação incluída na lista de que o prédio (ou o seu correspectivo valor) objecto da graduação fazia parte do estabelecimento da devedora em que os trabalhadores exerciam as suas funções (contrariamente a informação antes prestada pelo administrador da insolvência).

As normas invocadas apresentam o seguinte teor:

– o artº 129º, nº 4, do CIRE estabelece que «Todos os credores não reconhecidos, bem como aqueles cujos créditos forem reconhecidos sem que os tenham reclamado, ou em termos diversos dos da respectiva reclamação, devem ser disso avisados pelo administrador da insolvência, por carta registada, com observância, com as devidas adaptações, do disposto nos artigos 40º a 42º do Regulamento (CE) nº 1346/2000, do Conselho, de 29 de Maio, tratando-se de credores com residência habitual, domicílio ou sede em outros Estados membros da União Europeia que não tenham já sido citados nos termos do nº 3 do artigo 37º»;
– por sua vez, o artº 130º, nº 1, dispõe que «Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no nº 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos».

A pretensa aplicação dessas normas ao presente caso pressuporia o seguinte: que, em primeiro lugar, o crédito que aquela reclamou e viu reconhecido na lista do artº 129º do CIRE pudesse ser classificado como crédito reconhecido «em termos diversos dos da respectiva reclamação»; e, em segundo lugar, que essa menção à situação do prédio objecto da graduação constante da lista do artº 129º pudesse ser caracterizada como «indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos». Só nessas duas circunstâncias poderia sustentar-se que a apelante tinha o direito a ser notificada por carta registada, nos termos do artº 129º, nº 4, do CIRE, e o direito de impugnar a lista de credores reconhecidos com fundamento na prestação de informação sobre aquele prédio diversa da anteriormente fornecida pelo administrador da insolvência. Com os elementos disponíveis, não é líquido que tivesse esses direitos.

Porém, e independentemente de a apelante ter ou não tais direitos, há desde logo um argumento que inviabiliza a possibilidade dessa questão ser suscitada nos termos expostos, em sede de recurso.

É que a invocação da preterição de uma formalidade legal (neste caso, da aludida notificação pessoal, por carta registada, nos termos do artº 129º, nº 4, do CIRE) consubstancia, afinal, a arguição de uma nulidade, ao abrigo do artº 201º, nº 1, do CPC («omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva», que produz nulidade «quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa»). E, como diz o conhecido aforismo, «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»: ou seja, o meio de reagir contra a prática ou omissão ilegal de acto ou formalidade é a arguição de nulidade, e não a interposição de recurso, que só terá lugar quando a infracção processual seja ordenada ou autorizada por despacho judicial (neste sentido, cfr. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2º, Coimbra Editora, Coimbra, 1945, pp. 507-508).

Isto significa que a irregularidade ora invocada pela apelante tinha de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância, em que a mesma terá sido (alegadamente) praticada, no prazo-regra de 10 dias (artº 153º do CPC), a contar do seu conhecimento (ou da respectiva presunção de conhecimento) da prática da nulidade (nos termos do artº 205º do CPC) – e só depois desse tribunal se pronunciar sobre a pertinente arguição de nulidade poderia a parte interessada, sendo-lhe desfavorável a decisão, interpor recurso para que este tribunal de 2ª instância apreciasse a questão.

Aliás, é sabido que não é, em regra, admissível a suscitação de questões novas em sede de recurso, na medida em que «aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la», sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 5). Ora, a questão em apreço só foi trazida aos autos no recurso, sem que aquela tenha sido suscitada no tribunal a quo – pelo que a mesma se encontra necessariamente fora do âmbito do presente recurso, não devendo ser, em rigor, apreciada.

Mesmo admitindo que só com a sentença recorrida a apelante (conforme sustenta) teve conhecimento da (alegada) nulidade, o certo é que o prazo de arguição de 10 dias, contado a partir desse conhecimento, já estava há muito decorrido quando a invocação da irregularidade vem a ter lugar nas alegações de recurso (não estando, portanto, configurada a hipótese excepcional de a nulidade poder ser arguida e conhecida no tribunal superior, prevista no nº 3 do artº 205º do CPC). E mesmo no caso de nulidades conhecidas após a sentença, ainda que anteriores a ela, continua a valer a regra geral de julgamento da nulidade pelo tribunal perante o qual a nulidade ocorreu ou a que a causa estava afecta no momento em que a nulidade foi cometida (assim, ALBERTO DOS REIS, ob. cit., pp. 513-514).

Uma vez que a apelante não suscitou tempestivamente, perante o tribunal de 1ª instância, a arguição de nulidade respeitante à irregularidade processual ora invocada (em sede de recurso), encontra-se precludida a questão – e definitivamente assentes (por falta da impugnação do artº 130º do CIRE) os dados constantes da lista de credores reconhecidos e em que o tribunal fundou a sua sentença homologatória, designadamente a informação respeitante à inserção do prédio objecto de graduação no estabelecimento da insolvente e no qual os seus trabalhadores exerciam funções.

Excluída a apreciação da questão da aplicabilidade, a posteriori, do artº 129º, nº 4, do CIRE (de que, a ser apreciada e a proceder, decorreria a anulação da sentença recorrida), caberá então apreciar a substância da decisão sob recurso, com vista a apurar se houve ou não o erro de graduação subsidiariamente invocado pela apelante – com o que se passa à segunda questão.

2. O problema nuclear que se coloca é apenas o de saber se, na graduação de créditos a ser pagos pelo produto da venda de bem imóvel, os créditos dos trabalhadores da entidade insolvente prevalecem (ou não) sobre crédito garantido por hipoteca, ainda que anterior.

As respostas poderão ser diferentes consoante sejam aplicáveis as Leis nos 17/86 e 96/2001 ou o Código do Trabalho.

Para os créditos emergentes de contrato individual de trabalho, por salários em atraso, estabeleceu o artº 12º, nº 1, al. b), da Lei nº 17/86 que esses créditos gozavam de privilégio imobiliário geral. Esse regime veio a ser estendido a todos os demais créditos laborais não abrangidos pela Lei nº 17/86, através da Lei nº 96/2001, em cujo artº 4º, nº 1, al. b), foi igualmente consagrado um privilégio imobiliário geral para esses créditos.

Por sua vez, esse anterior quadro normativo veio a ser substituído pelo CT, o qual instituiu, para «os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação», um privilégio imobiliário especial «sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade» (artº 377º, nº 1, al. b)). A revogação desse anterior regime foi diferida para a entrada em vigor das normas regulamentares do CT, por força do disposto nas als. e) e t) do artº 21º, nº 2, do diploma preambular do CT, pelo que o novo regime só entrou em vigor em 28/8/2004, finda a vacatio legis de 30 dias fixada no artº 3º da Lei nº 35/2004, de 29/7, diploma que veio regulamentar o CT. Refira-se ainda que o artº 8º, nº 1, do diploma preambular do CT estabeleceu a seguinte regra de aplicação no tempo: «Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento».

Perante os dois regimes em confronto, coloca-se então a questão de saber qual o momento determinante para definir o regime aplicável a cada graduação de créditos. Ora, é pacífico o entendimento de que a data determinante para tal é a da declaração de insolvência, com trânsito em julgado, na medida em que nesse momento se tornam imediatamente exigíveis as obrigações do insolvente: essa declaração determina o vencimento das obrigações do insolvente e com ela abre-se a fase do concurso de credores (v. artos 91º e 128º e ss. do CIRE). Com efeito, a jurisprudência tem afirmado unanimemente que «declarada a falência de uma sociedade, com trânsito em julgado, é a essa data que se deve atender para definir a lei aplicável à graduação de créditos», já que é nessa ocasião que «surge o direito ou situação jurídica de os credores verem graduados os seus créditos em face das garantias constituídas» (assim, entre outros, Acs. STJ de 30/11/2006, Proc. 06B3699, in www.dgsi.pt, e de 1/4/2008, Proc. 08A329, idem).

Como se referiu no relatório, a insolvência no presente caso foi declarada por sentença datada de 18/3/2008 e entretanto transitada em julgado. Não oferece, pois, dúvida que à situação dos autos é aplicável de pleno o regime constante do artº 377º do CT, vigente desde 28/8/2004. E esse regime, por força do citado artº 8º, nº 1, do diploma preambular do CT, aplica-se a situações laborais já constituídas em momento anterior à entrada em vigor do CT (como serão os contratos de trabalho dos trabalhadores reclamantes que tenham sido celebrados ou aprovados antes dessa entrada em vigor), não tendo cabimento enquadrar essas situações na excepção (à aplicação imediata do diploma) prevista no segmento final desse nº 1 do artº 8º («efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento»), porquanto os contratos de trabalho subjacentes aos créditos laborais reclamados vigoraram até à sentença declaratória da insolvência.

Não assiste, assim, razão à apelante quando sustenta que o momento determinante para definição do regime aplicável seria a data da constituição da sua garantia (não sendo também exacta a referência feita pela apelante a uma declaração de «falência» datada de 25/6/2003, que se reportará, por lapso, a uma outra empresa, como sugere a denominação indicada no ponto XXIV das suas conclusões).

Daqui resulta que os créditos laborais reclamados nos autos gozam do privilégio imobiliário especial instituído pelo artº 377º, nº 1, al. b), do CT. É, assim, plenamente aplicável neste caso o disposto no artº 751º do C.Civil (na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8/3: «Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores». Deste regime resulta a conformidade com a lei da graduação operada pelo tribunal recorrido: os créditos laborais dos trabalhadores da insolvente preferem ao crédito da apelante garantido por hipoteca (ainda que esta garantia seja anterior), devendo aqueles ser graduados à frente deste – assente que está, como vimos, a verificação da condição prevista no artº 377º, nº 1, al. b), do CT (i.e. que o trabalhador preste a sua actividade no bem imóvel do empregador). Essa orientação vem sendo, aliás, firmada pela jurisprudência nos casos de aplicação do artº 377º do CT (cfr., entre outros, o Ac. STJ de 5/6/2007, Proc. 07A1279, idem, e o Ac. RP de 15/3/2007, Proc. 0730967, idem).

Solução diversa poderia resultar se fosse aplicável ao caso o regime emergente das Leis nos 17/86 e 96/2001. Estas consagraram, como se disse, um privilégio imobiliário geral (e não especial), pelo que tem prevalecido na jurisprudência o entendimento de que os créditos dos trabalhadores não podem, segundo esse regime, ser graduados à frente de crédito garantido por hipoteca. Argumenta-se que a lei não regula expressamente o regime dos privilégios imobiliários gerais (figura inexistente na versão originária do C.Civil), pelo que será aplicável o regime dos privilégios gerais, previsto no artº 749º do C.Civil, segundo o qual «o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente» – de que resultaria a preferência da hipoteca (neste sentido, cfr. o paradigmático Ac. STJ de 11/10/2007, Proc. 07B3427, idem, para além dos já citados Acs. STJ de 30/11/2006 e de 1/4/2008). Tem sido minoritária a tese de que aquele privilégio creditório preferiria sobre a hipoteca, com base numa aplicação analógica do artº 751º do C.Civil.

Considerado aplicável in casu o artº 377º do CT, de que decorre a preferência de créditos laborais sobre créditos hipotecários, surge então a questão (suscitada pela apelante) da inconstitucionalidade daquele preceito legal. Pretende-se que essa norma violaria o princípio da protecção da confiança, corolário do princípio do Estado de Direito democrático, ínsito no artigo 2º da Constituição – na medida em que a sua aplicação (a situações anteriormente constituídas) implicaria um grave prejuízo para expectativas da apelante de prevalência de garantia hipotecária constituída em data anterior à vigência do CT.

Comece-se por notar que a aplicação do artº 377º do CT a situações anteriormente constituídas (por força do artº 8º, nº 1, do diploma preambular) consubstancia uma retroactividade normal ou de grau mínimo (aplicação retrospectiva ou imediata a situações duradouras, derivadas de factos passados), que aflora particularmente na previsão da 2ª parte do nº 2 do artigo 12º do C.Civil, mas que não constitui uma retroactividade em sentido próprio (aliás, a jurisprudência constitucional alemã tem-na mesmo qualificado de retroactividade imprópria ou inautêntica), na medida em que há ainda aplicação para futuro, embora sobre situação jurídica iniciada na vigência da lei antiga.

Ora, esta retroactividade inautêntica ou imprópria não é imune à possibilidade de poder ofender o princípio da protecção da confiança, corolário do princípio do Estado de Direito democrático, ínsito no artigo 2º da Constituição. É, no entanto, sabido que o Tribunal Constitucional tem entendido que só a afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas jurídicas é susceptível de ofender o princípio da confiança (v., por todos, os Acórdãos nos 287/90, de 30 de Outubro, in DR, II, de 20 de Fevereiro de 1991, e 556/2003, de 12 de Novembro, in DR, II, de 7 de Janeiro de 2004).

Segundo essa orientação, tem-se entendido que «o princípio do Estado de direito democrático (consagrado no artigo 2º da Constituição) postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas, razão pela qual a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica». São apontados, por essa jurisprudência, dois critérios para aferir da «afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas jurídicas»: primeiro, «a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar»; e, segundo, «quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes». Daí se deduzem as seguintes asserções: «(…) não é suficiente que se demonstre que um novo regime legal vem afectar expectativas dos seus destinatários para que, automaticamente, se conclua pela sua inconstitucionalidade por violação do referido princípio da confiança jurídica. Essencial é ainda que essas expectativas sejam consistentes de modo a justificar a protecção da confiança e (…) que na ponderação dos interesses público e particular em confronto, aquele tenha de ceder perante o interesse individual sacrificado, o que acontecerá sempre que as alterações não forem motivadas por interesse público suficientemente relevante face à Constituição (cf. o artigo 18º, nos 2 e 3), caso em que deve considerar-se arbitrário o sacrifício excessivo da frustração de expectativas».

Munidos destes critérios de aferição caberá, então, avaliar em que medida a norma do artº 377º, nº 1, al. b), do CT afecta de modo inadmissível expectativas jurídicas dos credores hipotecários.

Recorde-se que, na vigência do regime emergente das Leis nos 17/86 e 96/2001, já o Tribunal Constitucional havia decidido não ser inconstitucional a norma do artº 12º, nº 1, al. b), da Lei nº 17/86, consagradora de privilégio imobiliário geral para os créditos laborais, quando interpretada no sentido da tese (minoritária, como vimos) de que esse privilégio deve preferir à hipoteca (assim, Ac. TC nº 498/2003, de 22/10/2003, in DR, II, de 3/1/2004). Aí se reconheceu que, não obstante a prevalência hipotecária encontrar apoio no princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito, não se poderia deixar de atender a que, em contraponto, se posicionava um direito constitucionalmente tutelado, incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores e de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias – o direito à retribuição do trabalho, que visa garantir uma existência condigna, consagrado no artº 59º, nº 1, al. a), da Constituição (e cuja protecção se deve estender, por identidade de razões, aos créditos indemnizatórios emergentes do despedimento). E, no quadro desse conflito, entendeu-se ser perfeitamente aceitável, do ponto de vista de um critério de proporcionalidade, que o legislador ordinário tenha solucionado o conflito pela prevalência do direito à retribuição.

Entretanto, já perante a vigência do CT, veio a pronunciar-se o Tribunal Constitucional no sentido de não julgar inconstitucional o artº 377º, nº 1, al. b), daquele Código, com argumentação próxima da que fora utilizado na citada jurisprudência anterior (v. Ac. TC nº 335/2008, de 19/6/2008, in www.tribunalconstitucional.pt). Assim, considerou-se que a expectativa dos credores hipotecários numa graduação preferencial dos seus créditos não era particularmente sólida (seja porque a garantia não se estende à sua posição relativa em sede de graduação, seja pela incerteza legislativa quanto à criação de novos privilégios creditórios, seja pelas divergências jurisprudenciais que já vinham do regime anterior), ao mesmo tempo que se reconheceu «a dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando uma tutela constitucional reforçada». Já anteriormente tomara o STJ idêntica posição no citado Ac. STJ de 5/6/2007.

Aderindo às razões expendidas no aludido aresto do Tribunal Constitucional (nº 355/2008), também nós cremos que a preferência do legislador pelos privilégios creditórios dos créditos laborais em detrimento da hipoteca não significa uma «afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas jurídicas» – pelo que se conclui inexistirem, in casu, expectativas dignas de tutela através da aplicação do princípio da confiança, ínsito no artigo 2º da Constituição, assim improcedendo a arguição de inconstitucionalidade formulada pela apelante.

Consequentemente, e quanto à parte impugnada (pela apelante) da decisão recorrida, não se encontram motivos para alterar a graduação determinada pelo tribunal a quo, devendo manter-se, em relação à graduação decidida quanto ao produto da venda do bem imóvel identificado supra, a ordem ali estabelecida: em primeiro lugar, créditos laborais (dos trabalhadores da empresa), garantidos por privilégios creditórios imobiliários especiais; e, em segundo lugar, crédito reclamado por «C………., SA», garantido por hipoteca voluntária.

3. Em suma: concorda-se com o juízo decisório formulado pelo tribunal a quo na decisão recorrida, não se mostrando violadas as disposições constitucionais e legais invocadas nas alegações de recurso.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 10/03/2009
Mário António Mendes Serrano
António Francisco Martins
António Guerra Banha