Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2692/19.8T8STS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
FACTI SPECIES
Nº do Documento: RP202110282692/19.8T8STS-A.P1
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ALÍNEAS A) E D) DO Nº 2 DO ARTIGO 186º DO CIRE
Sumário: I - A sociedade devedora tem plena legitimidade para recorrer da sentença que decrete a sua insolvência como culposa, mas já não é parte legítima para impugnar o segmento decisório do decretamento de inibição dos seus gerentes ou administradores para o exercício de funções de direção societária no futuro, assim como da obrigação destes em indemnizar os titulares dos créditos não satisfeitos.
II - No entanto, o recurso da sociedade devedora pode ser extensivo aos seus dirigentes societários não recorrentes na parte em que estes possam aproveitar daquela impugnação recursiva, ou seja, quando a questão submetida a recurso (insolvência culposa) esteja intimamente conexionada e seja potencialmente prejudicial para a condenação dos não recorrentes (período de inibição de funções de direção e obrigação de indemnizar).
III - Os actos típicos contemplados na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE reconduzem-se a actos de gestão dos dirigentes societários conducentes à insolvência ou ao seu agravamento, quando tenham por base ações de dano (destruição, danificação ou inutilização) ou ações de descaminho (ocultação ou desaparecimento) do património do devedor, na sua totalidade ou parcialmente, desde que esta última seja numa dimensão avultada.
IV - O património compreende o conjunto de bens, rendimentos ou valores, de natureza material ou imaterial, pertencentes a uma pessoa, individual ou coletiva, e que tenham relevância económica.
V - O enquadramento legal da alínea d), do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, compreende as ações de gestão dos dirigentes societários conducentes à insolvência ou ao seu agravamento, quando no âmbito de uma disposição de bens a conduta daqueles resulta num “proveito pessoal ou de terceiros”, obtido de modo direto ou indireto, o qual terá como reverso a existência de prejuízo para a empresa, os seus trabalhadores, clientes ou credores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 2692/19.8T8STS-A.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos: António Paulo Vasconcelos, Filipe Caroço

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1.1. No processo n.º do Juízo do Comércio n.º 2692/19.8T8STS-A do Juízo de Comércio de Santo Tirso, J1, da Comarca do Porto Este, em que são:

Recorrente/Requerida: B…, Lda.

Recorridos/credores: C…, Lda.; D…, Lda.

Recorrido: Ministério Público

foi proferida sentença em 14/jun./2021, cuja parte dispositiva foi a seguinte, corrigindo-se a parte final da alínea c), por se tratar de manifesto lapso:
“a) Qualificar a insolvência de B…, Lda. como culposa;
b) Declarar afetado por tal qualificação E…;
c) Decretar a inibição de E… para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa de ... pelo período de 2 (dois) anos;
d) Condenar o afetado a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, pelo valor dos créditos incluídos na lista definitiva de credores € 105.442,32 (cento e cinco mil quatrocentos e quarenta e dois euros e trinta e dois cêntimos).
e) Absolver os Requeridos F… e G… do pedido de afetação pela qualificação da insolvência contra os mesmos formulado.”
1.2. As sociedades recorridas vieram em 07/jan./2020 suscitar o incidente de qualificação de insolvência.
1.3. A Senhora Administradora judicial emitiu parecer em 24/abr./2020 no sentido de que a insolvência é fortuita.
1.4. O Ministério Público em 26/mai./2020 promoveu no sentido de a insolvência ser classificada como culposa, com afetação de E…, F…, G….
1.5. Por despacho proferido em 27/mai./2020 foi determinada a citação da sociedade insolvente e das pessoas anteriormente mencionadas.
1.6. A sociedade insolvente veio em 16/jun./2020 deduzir oposição à requerida insolvência culposa.
1.7. As sociedades requerentes do incidente vieram em 02/jul./2020 responder à mencionada oposição, sustentando a sua improcedência.
1.8. A sociedade insolvente veio em 15/jul./2020 replicar à resposta anterior, mantendo o que já tinha sido por si alegado.
2. A sociedade insolvente interpôs recurso em 16/jul./2021 sustentando a revogação da referida sentença, apresentando conclusões, das quais extraímos as passagens a seguir referenciadas:
1. A recorrente não aceita a matéria facto dada como provada e não provada e a conclusão de direito que existiu insolvência culposa por verificação do disposto no artº 186 nº 2, a) e d) do CIRE.
2. Tem que ser alterada a matéria de facto no sentido da não inclusão de matéria dada como provada que está em manifesta contradição com outros factos dados como não provados na sentença.
3. Tem que ser aditada matéria de facto dada como provada no dispositivo da sentença e não tida em conta nos factos provados relevante, como seja que no “momento da venda da embarcação a insolvente ainda tinha a intenção de continuar a actividade com a aquisição de uma embarcação mais pequena e mais barata” sic da sentença.
4. Tem que ser dado como não provado que sabia que não ia liquidar créditos de todos os credores (item 20º da matéria dada como provada na sentença)
5. A matéria de facto a dar como não provada é a constante do item 20º da matéria de facto da sentença, (que é extremamente relevante para o que se discute nos autos e afastar o intuito de prejudicar credores e beneficiar outros).
6. Tinha que ser dada como não provada com base no próprio teor do dispositivo da sentença que refere expressamente, como supra se referiu, que momento da venda da embarcação a insolvente ainda tinha a intenção de continuar a actividade com a aquisição de uma embarcação mais pequena e mais barata”.
7. Matéria fundamentada nas declarações que se anexam, (não sendo feita qualquer prova em contrário), do E…. Isto é, não tinha a intenção de parar a actividade, o que resulta do minuto 1.30.05 a 01.32.02, minuto 01.10.00 a 1.12.30, 01.20.29 a 1.20.50 do depoimento do E….
8. E declarações da administradora judicial, nomeadamente dos minutos 24.31 a 27.5.
9. E aditada a matéria de facto referida no dispositivo da sentença com base na prova anteriormente referida que “no momento da venda da embarcação a insolvente ainda tinha a intenção de continuar a actividade com a aquisição de uma embarcação mais pequena e mais barata”.
10. Conjugando toda a matéria de facto e o supra e o mencionado nos itens 17º a 33º da matéria provada e o item 2º da matéria de facto não provada tem que ser dada como provada e não provada a seguinte matéria: ...
12º Com a alteração da matéria de facto nos moldes requeridos, o que se faz nos termos do artº 640 do CPC e que corresponde à efectiva prova produzida, facilmente se constata que não tem aplicação o disposto no artº 186 nº 2 a) e d) do CIRE.
13º Dado que, foi fortuita esta insolvência, fruto das vicissitudes da actividade empresarial e da dependência da empresa a uma única embarcação para o exercício da sua actividade, que correu mal.
14º Com o problema surgido na construção/reconstrução como resulta do apenso da sentença junta como prova aos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
15º O recorrente não teve qualquer intenção de beneficiar os credores nem de ficar com qualquer quantitativo dado que liquidou todas as dívidas e gastou todo o dinheiro recebido da venda do barco a pagar dívidas de credores, sem fazer seu qualquer montante.
16º Os actos praticados foram actos de gestão o âmbito de uma empresa a funcionar e com perspetivas de funcionar no futuro, sem querer beneficiar ou prejudicar credores e continuou já muito depois da venda a pagar a credores, nomeadamente a quem veio deduzir este incidente.
17º Em suma, este recurso por uma questão de direito e de justiça tem que ser julgado procedente, pois “in casu” não se verificou qualquer insolvência culposa, mas tão só uma insolvência fortuita.
18º Não tendo aqui aplicação o disposto no art.º 186 nº 2 a) e d) do CIRE.
19º Existe violação, por isso, da norma referida no item anterior.
20º Tem que ser julgado procedente o presente recurso e assim revogada a sentença que decretou a insolvência culposa da recorrente e os demais efeitos estabelecidos na mesma.
3. O Ministério Público respondeu em 20/jul./2021 pugnando pela improcedência do recurso.
4. As recorridas C…, Lda.; D…, Lda. contra-alegaram em 13/ago./2021, suscitando previamente a ilegitimidade da sociedade insolvente para recorrer, assim como no sentido da improcedência do recurso, apresentando o que deviam ser “sínteses conclusivas”, mas que pela sua extensão, extraímos as seguintes passagens, mantendo a numeração original:
2- A sentença recorrida qualifica a insolvência de B…, Lda. como culposa, tendo-se concluído na mesma declarar como afetado da qualificação o sócio E…, veio apenas aqui INSOLVENTE apresentar Recurso, sem que o único afetado pela Decisão condenatória - “E…”, recorresse ou se juntasse ao recurso.
4- O que decidido ficou na sentença foi em qualificar a insolvência como culposa, dela não decorrendo que a Insolvente tivesse ficado prejudicada, pelo que não assiste legitimidade à recorrente.
8- De ressalvar, que a única pessoa (singular ou colectiva) que ficou prejudicada com a prolação da decisão do tribunal a quo, f oi apenas a pessoa singular, a saber o sócio-gerente E…, que vê o seu património pessoal ser afetado à qualificação da insolvência como culposa.
9- Consequentemente, aquele E… seria o único com legitimidade e interesse em agir, pelo que, só este teria verdadeiro interesse em impugnar a decisão proferida, e por via disso recorrer e nunca a insolvente.
12- O que aliás decorre da circunstância do Administrador de Insolvência, como representante daquela para todos os efeitos, não t er deduzido qualquer impugnação e/ou recurso da decisão proferida, como decorre expressamente do disposto no artigo 81º, nº4 do CIRE.
23- Sendo por isso de concluir pela ilegitimidade da Insolvente para o Recurso apresentado da sentença de qualificação de insolvência como culposa, com designação de afetação ÚNICA do sócio-gerente E…, sendo este quem, por sua vez, tinha todo o interesse e legitimidade em apresentar as suas alegações de recurso - o que não fez.
24 - Toda a tese recursiva da Insolvente de "alegada" contradição da matéria de facto dada como provada e não provada, de erro no julgamento, bem como da matéria de facto provada a aditar, assenta em exclusivo nas declarações de parte - do sócio afetado E…, inexistindo outros elementos probatórios que sustentem o Recurso, embora, tenham sido várias as testemunhas que prestaram o seu depoimento em Tribunal, e de nenhuma delas a Recorrente fez prova.
25-O único e singelo momento que se referiu em Tribunal que a insolvente ainda poderia ter a convicção de poder continuar o exercício da atividade com a aquisição de uma embarcação mais pequena e barata, foi APENAS E PRECISAMENTE o afetado pela decisão da qualificação da insolvência – E… - em sede de declarações de parte - cuja valoração está na disponibilidade do tribunal recorrido.
26- Porém, os depoimentos de parte dos sócios G… (gravado de 00:13:37 a 00:24:25) e F… (gravado de 00:00:20 a 00:14:27.) prestados a 03-03-2021 referem que o irmão E… os informou que com o dinheiro da venda do barco em Agosto de 2017, pagaram-se as dívidas, mas o dinheiro não chegou para todas.
27- Assim, com dívidas por pagar e sem qualquer atividade que gerasse receita desde Agosto de 2017, e outras despesas correntes que se iam avolumando e gerando mais dívidas por pagar, bem como o histórico de dívida à banca de várias prestações, resulta provado que a insolvente NUNCA poderia adquirir uma nova embarcação!
30- Como tal, resultou provado que era e foi intenção do sócio E…, após a venda da embarcação em Agosto de 2017, não só encerrar a empresa, como também não pagar os créditos já vencidos pelo menos desde 2016 à ... C…, Lda. e,
31- Bem como não pagar o crédito em discussão no tribunal da Póvoa de Varzim desde 2014, à credora D…, Lda., isto tudo, após o pagamento a outros credores da insolvente, alguns até “especialmente relacionados”, que o sócio em questão pretendeu logo pagar, por neles ter interesses próprios.
33- Preferindo pagar outros créditos ainda NÃO VENCIDOS, nomeadamente o crédito do pai deste no valor de 338.000,00€, o que gera uma atitude inqualificável e VERDADEIRAMENTE CULPOSA do sócio-gerente H….
34- Existiram credores que em 2017, 2018 e 2019, já após a venda da embarcação pelo valor de 900.000,00€ não receberam os seus créditos e ainda são credores da insolvente, conforme resulta dos extratos de conta da insolvente juntos aos autos a 22-12-2020 pelo TOC da insolvente, com a refª citius 27691125, como a I…, Lda. no valor de 19.943,96€, como J… no valor de 2.780,00€, como o K… de 1.116,00€.
35- Pelo que, o Tribunal a quo e bem, ao não dar como provado que “no momento da venda do barco a insolvente ainda tinha convicção de poder continuar o exercício da atividade com a aquisição de embarcação mais pequena e barata”, fez uma análise ponderada da prova produzida, tanto mais que, tal fato dispensava de prova, por resultar notório e do conhecimento comum que a insolvente não podia nem conseguia, manter a atividade e adquirir nova embarcação.
36 - Pretendia a recorrente que os pontos 19 e 20 da matéria de facto seja considerada como não provada, porém, resultou inclusive dos depoimentos de parte dos sócios F… e G…, Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 03-03-2021, que embarcação foi vendida porque empresa não conseguia suportar as dívidas e sustentar o barco, tendo ambos confessado que o sócio irmão E… comunicou que existiam dívidas e que o dinheiro da venda não chegou para pagar aos credores.
38- Pelo que, o tribunal a quo e bem, considerou a matéria do facto 20 como provada, pois toda a prova produzida foi nesse sentido, além de ser matéria confessada pela Parte.
39- Quanto ao facto vertido no ponto 19 da matéria de facto dada como provada, veja-se o depoimento da testemunha L… (dia 17 de Maio de 2021 do minuto 00:19:31 a 00:20:05), testemunho de L…, bem como de seu pai, o TOC da sociedade, o que foi corroborado pela prova documental – os Balancetes Analíticos do ano de 2017, de fls…juntos a 22-12-2020, segundo os quais o pai dos sócios - o Sr. G… era credor da insolvente no ano de 2017 da quantia total de 177.455,31€.
40- Não obstante, após a venda da embarcação que ocorreu a 17 de Agosto de 2017, mais precisamente no DIA SEGUINTE 18 de Agosto de 2017 é efetuada uma transferência pela insolvente, no valor de 338.036,29€ para aquele G… - pai dos requeridos e sócios da insolvente, conforme resulta de prova documental junta pela insolvente a 16-06-2021, com a refª citius 26019302, como sob o Doc. 2 - correspondente ao extrato bancário de Agosto de 2017, beneficiando o pai dos sócios da insolvente de forma injustificada da AVULTADA quantia de 160.580,98€.
41- Não restando assim qualquer dúvida, face à prova documental corroborada pelos documentos e funcionários da contabilidade da insolvente que, uma GRANDE FATIA DE CENTENAS DE MILHARES DE EUROS, recebida pela venda da embarcação, foi “astutamente desviada” a pretexto de uma alegada dívida ao Pai, pelo que, face ao supra exposto bem andou o Tribunal recorrido ao considerar os factos 19 e 20 como provados.
42- Em sede de recurso pretendeu a insolvente ainda aditar factos à matéria de facto dada como provada, baseando-se para o efeito no depoimento de parte do E…, porém, tais declarações revelaram-se durante as mesmas interessadas, parciais e não isentas, tanto mais que, este sócio era quem geria de facto e administrava a insolvente, conforme resulta da sentença dos pontos 36, 37 e 38 - da matéria de facto dada como provada e que não foi objecto de recurso.
43- Sendo este sócio E… o único que detêm manifesto interesse no incidente da qualificação de insolvência, as suas declarações teriam que ser corroboradas por outros meios de prova - o que não aconteceu no caso em questão, pois NÃO foram confirmadas por mais nenhuma testemunha e/ou corroboradas por documentos, nem mesmo, pelos restantes sócios, impondo-se por via disso, que os factos em causa não possam ser dados como provados, como determina inúmera jurisprudência nesse sentido, desde logo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.11.2014, disponível em www.dgsi.pt.
49- Da prova produzida e dos factos dados como provados pelo tribunal a quo e que não foram alvo de recurso, resultou demonstrado que após a venda da embarcação, mais precisamente o dia 18-08-2017 um dia após a venda e entrada do cheque (Conforme Extrato Integrado do N… - junto a fls… com requerimento datado de 16-06-2020 e refª citius nº26019302), foi liquidado ao pai dos sócios da insolvente – G… a quantia de 338.036,29€, pessoa que também foi considerado administrador da insolvente, conforme resulta do facto provado sob o ponto nº 37.
51-Atentos todos os factos acima expostos, bem como, toda a matéria dada como provada na sentença do tribunal a quo - encontram-se reunidos fatos bastantes para que a presente insolvência seja qualificada como culposa visto que, desde logo, o nº 2 do artigo 186º do CIRE elenca diversas situações concretas em que a insolvência há-de sempre ser considerada como culposa com afetação do E…, instituindo a lei consequentemente uma presunção “iuris et de iure”, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, sendo que o fato de ter sido feito desaparecer 160.000€, bem como, o fato de ter sido favorecido o pai dos sócios da insolvente em prejuízo dos demais credores, são fatos suficientes para o preenchimento de pelo menos as alíneas a) e d) do artigo 186º/nº 2 do CIRE.
52- Verificada qualquer uma das situações tipificadas taxativamente, pelo art. 186º/ n.º 2 do CIRE, bem esteve o Julgador ao qualificar a insolvência como culposa, afetando à qualificação o sócio E….
5. Admitido o recurso, foi este remetido a esta Relação onde foi autuado em 22/set./2021, procedendo-se a exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
6. Questão prévia da (i)legitimidade da sociedade insolvente para recorrer
O Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/mar., DR I-A, n.º 66, sucessivamente alterado – CIRE) estabelece uma regulamentação fragmentária da disciplina dos recursos, razão pela qual iremos aplicar subsidiariamente o Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013, de 26/jun., DR I, n.º 121 – NCPC) e a sua tramitação unitária, sempre que a mesma não se oponha àquele regime específico, atento o preceituado no artigo 17.º, n.º 1 do CIRE – aqui preceitua-se que “Os processos regulados no presente diploma regem-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”.
O NCPC dispõe no seu artigo 631.º, n.º 1 que “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido”, acrescentando o n.º 2 que “As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias” – o n.º 3 não tem aqui qualquer relevância. Mais será de referir, face ao preceituado no artigo 634.º do NCPC, que os efeitos do recurso podem ser extensíveis aos compartes não recorrentes, desde logo pela observância do seu n.º 1, onde se estipula que “O recurso interposto por uma das partes aproveita aos seus compartes no caso de litisconsórcio necessário”. Mas também se estipula no subsequente artigo 635.º, do NCPC, relativamente à delimitação subjetiva e objetiva do recurso, atendendo apenas no que se dispõe no seu n.º 2, que “Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre”, precisando-se no n.º 3 que “Na falta de especificação, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente”.
Retomando o CIRE na tramitação do incidente de qualificação da insolvência, será de convocar o disposto no artigo 188.º, n.º 6, no qual estipula-se que “Caso não exerça a faculdade que lhe confere o número anterior, o juiz manda notificar o devedor e citar pessoalmente aqueles que em seu entender devam ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias; a notificação e as citações são acompanhadas dos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público e dos documentos que os instruam” – sendo nosso o negrito. Deste segmento normativo podemos extrair três conclusões: (i) a primeira é que o devedor insolvente é parte principal neste incidente; (ii) a segunda é que aqueles que podem ficar afetados pela declaração de insolvência culposa, devem ser igualmente demandados, sendo partes obrigatórias; (iii) a terceira é que estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário pelo lado passivo.
Nesta conformidade e no que concerne ao incidente de qualificação da insolvência, a sociedade devedora tem plena legitimidade para recorrer da sentença que decrete a sua insolvência como culposa, mas já não é parte legítima para impugnar o segmento decisório do decretamento de inibição dos seus gerentes ou administradores para o exercício de funções de direção societária no futuro, assim como da obrigação destes em indemnizar os titulares dos créditos não satisfeitos. No entanto, o recurso da sociedade devedora pode ser extensivo aos seus dirigentes societários não recorrentes na parte em que estes possam aproveitar daquela impugnação recursiva, ou seja, quando a questão submetida a recurso (insolvência culposa) esteja intimamente conexionada e seja potencialmente prejudicial para a condenação dos não recorrentes (período de inibição de funções de direção e obrigação de indemnizar).
No caso em apreço, podemos constatar que a sociedade insolvente nestes autos tem legitimidade para recorrer da parte decisória identificada na alínea a) da sentença em apreço. Mas já não tem essa legitimidade para impugnar a parte respeitante ao seu sócio-gerente E…, as quais estão elencadas nas alíneas b), c) e d) da parte dispositiva da sentença, porquanto nesta parte a mesma não foi desfavorável à sociedade insolvente. No entanto, o sócio-gerente não recorrente pode beneficiar do recurso da sociedade insolvente se for revogado o segmento decisório que qualificou a insolvência como culposa.
No seguimento dos fundamentos expostos, o recurso em apreço fica delimitado nos termos agora expressos.
7. Não existem outras questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer, sendo o objeto do recurso dirigido ao reexame da matéria de facto impugnada (a) e à qualificação da insolvência como culposa (b).
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida: factos e motivação
“A. De facto:
Discutida a causa, resultaram, ainda, provados os seguintes factos:
1. A Insolvente tem por objeto a exploração da indústria da pesca e tinha sede na Avenida …, …, em Matosinhos.
2. São gerentes da mesma E…, F… e G….
3. Apresentou-se à insolvência a 26 de agosto de 2019.
4. O crédito de D…, Lda. foi objeto de ação judicial, tendo a sentença sido proferida em junho de 2019. (cf. sentença junta em Apenso “anexo”)
5. Não foram apreendidos bens para a massa.
6. O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente.
7. Foram reconhecidos créditos no valor global de € 105.442,32.
8. A Insolvente, por escritura pública de 16.08.2017 procedeu à venda da Embarcação “M…” registada na capitania de Vila do Conde sob o nº VC-…-C, pelo preço de € 900.000,00€. (cf. documento junto aos autos a 11.05.2020, que se dá por reproduzido).
9. Sob a embarcação incidiam duas hipotecas a favor de N….
10. G… não reclamou crédito nos autos.
11. Por escritura pública de 17 de dezembro de 2010, intitulada de “Compra e Venda” O… e mulher, como primeiros outorgantes e a insolvente, como segunda outorgante, declaram que “(…) os primeiros outorgantes vendem à Sociedade B…, Lda. (…) um casco em aço de embarcação (…), dando como contrapartida a embarcação “P…”, L- …-C”, que o preço de trezentos e quarenta e quatro mil quinhentos e setenta
e sete euros e quarenta cêntimos (€ 344.577,40), que vai ser pago pela sociedade compradora no prazo de 10 anos.” (cf. documento junto aos autos a 23.03.2021, que se dá por reproduzido)
12. Por escritura pública de 17 de novembro de 2011, intitulada de “Rectificação” O… e mulher, como primeiros outorgantes e a insolvente, como segunda outorgante, declaram que retificam a escritura de compra e venda celebrada em 17 de dezembro de 2010 nos seguintes termos: “(…) os primeiros outorgantes vendem à Sociedade B…, Lda. (…) um casco em aço de embarcação (…) para futura substituição da embarcação “P…”, L- …-C, que o preço de trezentos e quarenta e quatro mil quinhentos e setenta e sete euros e quarenta cêntimos (€ 344.577,40), que vai ser pago pela sociedade compradora no prazo de 10 anos, não vence quaisquer juros.” (cf. documento junto aos autos a 16.01.2020, que se dá por reproduzido)
13. A embarcação P… naufragou a 11 de novembro de 2011.
14. E…, F… e G… são filhos de O… e de Q…. (cf. assentos de nascimento juntos com o requerimento de 15.09.2020, que se dão por reproduzidos)
15. A sociedade insolvente encontra-se sem qualquer atividade desde 16 de agosto de 2017.
16. A embarcação referida em 8. dos factos assentes era o único bem da insolvente[1].
17. Desde essa data não gera qualquer receita.
18. Antes de 16 de agosto de 2017 a sociedade tinha créditos vencidos.
19. Utilizou parte da quantia recebida pela venda da embarcação para liquidar créditos a familiares dos requeridos.
20. Sabia que não ia liquidar créditos de todos os credores.
21. A contabilidade apresentava movimentos contabilísticos em atraso.
22. Para poder prosseguir com a sua atividade, em dezembro de 2010, a sociedade B…, Lda. adquiriu ao ex-sócio O… o casco de uma embarcação, nos termos constantes da escritura referida em 11..
23. A insolvente foi acumulando dívidas a fornecedores e atrasos no pagamento dos serviços de reparação e manutenção da embarcação e na Banca.
24. Considerou a insolvente que a única salvação era vender a embarcação e pagar as dívidas.
25. O produto da venda não chegou para pagar todo o passivo da sociedade.
26. Após a venda da embarcação, os sócios pagaram parte das dívidas da sociedade.
27. Do valor recebido pela venda da embarcação foi pago o crédito hipotecário ao Banco N…, nos seguintes montantes: cobrança de prestações e juros em atraso: € 84.026,83 e pagamento antecipado dos créditos para desoneração da hipoteca: € 327.843,69.
28. Por declarações datadas de 26.02.2021 e 08.03.2021, a N… declarou que no período de 12.07.2017 a 18.08.2017 a insolvente liquidou a essa instituição o valor global de €511.876,54. (documentos juntos a 02.03.2021 e 16.03.2021, que se dão por reproduzidos)
29. O crédito de N… encontrava-se garantido por hipoteca sobre a embarcação e prédio urbano. (documento junto a 16.03.2021, que se dá por reproduzido)
30. A sociedade insolvente, cerca de um mês antes da escritura, tinha recebido o sinal da venda da embarcação no montante de € 100.000,00.
31. Com o produto da venda da embarcação foi pago a O… o montante de € 338.036,29.
32. Ainda com o produto da venda da embarcação foram liquidadas, desde a data [da] venda do barco até finais de 2018, quantias em dívida aos credores S…, T…, Unipessoal, U…, Lda., C…, Lda., I…, V…., J…, Lda., X…, Y… e Z….
33. O passivo total liquidado pela sociedade insolvente desde a data da venda da embarcação foi superior a € 900.000,00.
34. Aquando da venda da embarcação em 2017, o crédito de D…, Lda. era litigioso.
35. A credora C…, Lda. foi recebendo pagamentos parciais até setembro de 2018.
36. F… e G… nunca praticaram qualquer ato de gestão, exercendo a atividade de pescadores.
37. A devedora sempre foi administrada por O… e E….
38. Os demais requeridos atuavam sob as suas ordens e orientação.
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B - Factos não provados:
1. Antes de 16 de agosto de 2017 a sociedade tinha créditos vencidos em montante que sabia não ter meios para liquidar.
2. Utilizou parte da quantia recebida pela venda da embarcação para liquidar créditos pessoais dos sócios-gerentes e/ou dos seus familiares, com intuito de prejudicar os credores.
3. A sociedade, propositadamente e com intuito de impedir a resolução do negócio de venda, apenas de apresentou à insolvência depois de decorridos dois anos sob a celebração do mesmo.
4. Tudo o que fizeram foi para reduzir o passivo da sociedade.
5. Mesmo depois da venda da embarcação ainda continuaram a pagar empréstimos pessoais que contraíram junto de familiares e pessoas amigas para injetar dinheiro na firma.
Não se apuraram quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir.
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C – Motivação:
A factualidade dada como demonstrada alicerçou-se nos vários documentos existentes nos presentes autos e nos autos de insolvência e seus apensos, referidos nos factos provados, nas declarações de Administrador de Insolvência, depoimentos de parte, declarações de parte e nas testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.
Uma nota específica para mencionar que por facilidade de exposição são dados por provados factos que não passam de atos processuais, como seja a data de apresentação à insolvência e a sua declaração.
O montante global dos créditos dos insolventes e créditos reconhecidos resulta da lista de créditos reconhecidos apresentada nos termos do artigo 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e da sentença proferida no apenso B, transitada em julgado.
No que se refere à prova documental, assumiram relevância as escrituras públicas juntas a 16.01.2020, 11.05.2020 e 26.04.2021, nos termos constantes dos factos provados (encontrando-se justificada a retificação da primeira, por naufrágio da embarcação “P…” em novembro de 2011), os documentos juntos com o requerimento de 16.01.2020 (cheques emitidos pela insolvente, que apesar de não demonstrarem o pagamento, quando conciliados com a prova testemunhal e declarações de parte, criaram clara convicção de realização de pagamentos a credores após venda da embarcação); os documentos referentes à matricula da embarcação, juntos com o requerimento de 11.05.2020; requerimento de injunção intentada pelo credor requerente, junto com o mesmo requerimento, em que peticiona o pagamento de crédito superior a 40.000,00 (muito superior ao reconhecido nos autos), bem como documentos de interpelação da insolvente ao pagamento, juntos com requerimento de 12.05.2020; assentos de nascimento dos requeridos juntos a 15.09.2020; declarações de IVA e de IRC juntas a 03.11.2020; que demonstram a total ausência de atividade desde da data de venda do barco; documentos juntos com a oposição, nomeadamente extratos bancários da conta da insolvente que, em conjunto com os documentos contabilísticos (contas correntes de fornecedores, mapas de amortização dos anos de 2016 a 2019, extratos de conta, declarações bancárias e contratos celebrados, juntos a 21.12.2020, 05.02.2021, 02.03.2021 e 26.04.2021, permitem verificar os pagamentos efetuados após venda do barco, que foram dados como provados; informação do Banco de Portugal de 27.11.2020, demonstrativa de inexistência de dívidas a entidades bancárias; documentos juntos a 09.04.2021 demonstrativos de ação instaurada pela insolvente contra o credor requerente da qualificação da insolvência – D…, Lda., em que é peticionada a sua condenação no pagamento de € 9.982,94, à insolvente, pendente à data da declaração da insolvência (este documento em conciliação com a demais prova, nomeadamente declarações de parte e depoimentos de AB… e AC…) é demonstrativo de o crédito deste credor não ser liquido à data da venda da embarcação); documentos juntos a 23.04.2021, que demonstram a data de naufrágio da embarcação P… e que fundamentou a retificação da escritura de compra e venda de 2010.
Foram relevados os depoimentos de parte nos termos das assentadas lavradas em ata de audiência de julgamento e os depoimentos prestados em audiência, sendo de relevar que todos denotaram sinceridade nas suas declarações no que se refere aos factos de que tinham conhecimento.
Ponderada toda a prova produzida resultou evidente ao Tribunal que a insolvente era uma sociedade familiar, que foi sempre gerida, de facto, pelo pai dos Requeridos com a colaboração do Requerido E…, sendo os demais requeridos pescadores que apenas exerciam a atividade de pesca, sem qualquer intervenção na gestão da insolvente (este facto foi admitido por todos os depoentes em audiência); que na data em que foi celebrada a escritura pública de compra e venda de casco da embarcação, a real intenção era a modificação do barco para utilização de licença de pesca de sardinha que detinham de barco naufragado (este facto foi também admitido por todos os depoentes em audiência); que, por isso, pediram financiamento bancário e iniciaram processo de modificação da embarcação (que não se encontrava apta a pesca de sardinha), dando a mesma de garantia e, ainda, imóvel dos pais dos requeridos; em consequência de delongas nas obras de modificação do barco e de pesca em quantidade inferior à projetada, viram-se em situação de dificuldades económicas que, aliadas a litígio judicial com um dos credores, determinaram a venda do barco e o fim da atividade (também este facto resulta de todos os depoimentos prestados).
A prova produzida foi unânime no que se refere ao facto de que os requeridos F… e G… não exerciam qualquer ato de gestão da insolvente; que após a venda nenhuma atividade foi exercida pela insolvente, embora o tribunal tenha ficado convicto de que, nessa data a mesma, ainda pensava ser possível exercer atividade com um barco mais pequeno, como referiu E… e que apenas quando foi proferida decisão no processo judicial intentado pelo credor e em que a insolvente deduziu reconvenção (sentença de junho de 2019) ficou com a convicção que não conseguiria recuperar o negócio, tendo, de seguida, sido pedida a declaração de insolvência (a petição inicial deu entrada em agosto de 2019) - cf. sentença junta em apenso “Anexo”, depoimentos de AD… e L….
Mais resultou que o produto da venda foi utilizado para pagamento a credores (cf. depoimentos de Administradora de Insolvência, E…, AB…, AE…, AF… e AG…), que a contabilidade da empresa não refletia a realidade por falta de documentos, embora não originado por facto intencional de alterar a contabilidade ou de a tornar enganosa, mas por exercício do negócio por método arcaico e informal (cf. depoimentos de AD… e L…).
A questão que se coloca é a do destino dado ao produto da venda que foi aplicado no pagamento a instituição bancária (o que se mostra justificado uma vez que a mesma gozava de garantia sobre a própria embarcação e apenas aceitaria a venda da mesma após distrato), no pagamento de crédito aos pais (no montante de mais de € 338.000,00, cujo montante não tem justificação em termos contabilísticos uma vez que da contabilidade resulta apenas crédito de € 177.455,31) e a parte dos credores (escolhidos pela insolvente sem critério claro). É certo que a prova produzida foi no sentido de o pai dos sócios da insolvente (que inicialmente também foi sócio) ser credor da mesma e não só pelo montante referente à venda do casco da embarcação, mas também a empréstimos que fazia à sociedade (cf. declarações de Administradora de Insolvência, AD…, sendo por todos referido que o mesmo era o “motor da sociedade” ou mesmo que era sócio da mesma. No entanto, não foi produzida prova cabal do montante do seu crédito.
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Relativamente aos factos não provados, assim foram considerados por não se ter efetuado prova segura dos mesmos.
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a) Reexame da matéria de facto
O Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 41/2013, de 26/jun. - NCPC) estabelece no seu artigo 640.º, n.º 1 que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”. Acrescenta-se no seu n.º 2 que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Nesta conformidade e para se proceder ao reexame da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente: (i) indicar os factos impugnados; (ii) a prova de que se pretende fazer valer; (iii) identificar o vício do julgamento de facto, o qual se encontra expresso na motivação probatória. Nesta última vertente assume particular relevância afastar a prova ou o sentido conferido pelo tribunal recorrido, demonstrando que o julgamento dos factos foi errado, devendo o mesmo ser substituído por outros juízos, alicerçados pela prova indicada pelo recorrente.
Assim, tal reexame passa, em primeiro lugar, pela reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (recurso de apelação limitada). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia, possibilitando-se o seu conhecimento pela Relação, que formará a sua própria convicção sobre a factualidade impugnada (Acs. STJ de 04/mai./2010, Cons. Paulo Sá; 14/fev./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt). Porém, fica sempre em aberto, quando tal for admissível, a possibilidade do tribunal de recurso, designadamente por sua iniciativa e perante o mesmo, renovar ou produzir novos meios de prova (662.º, n.º 2, al. a) e b) NCPC), alargando estes para o reexame da factualidade impugnada (recurso de apelação ampliada). Mas em ambas as situações, sob pena de excesso de pronúncia e de nulidade do acórdão (666.º, 615.º, n.º 1, al. d) parte final), o tribunal de recurso continua a estar vinculado ao ónus de alegação das partes (5.º) e ao ónus de alegação recursiva (640.º) – de acordo com a primeira consideram-se como não escritos o excesso de factos que venham a ser fixados, face à segunda o tribunal superior não conhece de questões não suscitadas, salvo se for de conhecimento oficioso (Ac. STJ de 11/dez./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt).
Por sua vez, estipula-se no artigo 607.º, n.º 5 que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”. A estes últimos condicionantes legais de prova, seja os de natureza substantiva elencados no Código Civil, seja adjetiva enunciados na mesma lei do processo civil (410.º - 422.º; 444.º - 446.º; 463.º; 446.º, 489.º, 490.º, 516.º NCPC), com destaque para a prova ilícita (417.º, n.º 3 NCPC), acrescem e têm primazia aqueles outros condicionantes resultantes dos direitos humanos e constitucionais, os quais têm desde logo expressão no princípio a um processo justo e equitativo (20.º, n.º 4 Constituição; 10.º, DUDH; n.º 14.º, n.º 1 PIDCP; 6.º, n.º 1 CEDH; 47.º § 2 CDFUE). Nesta conformidade, podemos assentar que o regime da legalidade da prova, enquanto “imperativo de integridade judiciária”, tanto versa sobre os meios de prova, que correspondem aos elementos que servem para formar a convicção judicial dos factos submetidos a julgamento, como sobre os meios de obtenção de prova, que são os instrumentos legais para recolha de prova. Tal regime acaba por comprimir o princípio da livre apreciação da prova, estabelecendo as correspondentes proibições de produção ou valoração de prova. Por tudo isto, o princípio da livre apreciação das provas é constitucional e legalmente vinculado, não tendo carácter arbitrário, nem se circunscrevendo a meras impressões criadas no espírito do julgador. O mesmo está desde logo sujeito aos princípios estruturantes do processo justo e equitativo (a) – como seja o da legalidade das provas –, como ainda condicionado pelos critérios legais que disciplinam a sua instrução (b), estando, por isso, submetido às regras da experiência e da lógica comum (i), e nalguns casos expressamente previstos (v.g. 364.º exigência legal de documentos escrito) subtraído a esse juízo de livre convicção (ii), sendo imprescindível que esse julgamento de factos, incluindo a sua análise crítica, seja motivado (c).
Antes de procedermos à análise da impugnação de facto, não podemos deixar de mencionar duas pequenas notas. A primeira é que na audição dos depoimentos prestados em audiência, as quais ocorreram ao longo de seis (6) sessões (03, 17, 23 de março; 12, 28 de abril, 17 de maio de 2021), demos conta da existência de autênticas “conversas”, para utilizar uma expressão da testemunha E… (00:41:15), o que pode explicar, mas não justificar a extensão dos depoimentos. A segunda é que apesar de as actas de julgamento precisarem as passagens dos correspondentes depoimentos, podemos constatar que o registo áudio não identifica as pessoas depoentes, o que dificulta o reconhecimento de quem presta as mesmas – as únicas pessoas identificadas nos registos áudios foram a Senhora Juíza, as/os Senhoras/es escrivãos-auxiliares e uma ou outra vez o Senhor Procurador da República, quando os mesmos não prestaram qualquer depoimento. Mas passemos ao reexame da matéria de facto.
A sociedade recorrente impugna os itens 19.º e 20.º dos factos provados, pugnando que no primeiro seja aditado “e sem o intuito de prejudicar”, tal com resulta dos factos não provados, enquanto o segundo passe a constar nos factos não provados. Mais pretende que passe a constar dos factos provados que “no momento da venda do barco a insolvente ainda tinha a intenção de poder continuar o exercício da actividade, com a aquisição de embarcação mais pequena e barata”. Para melhor percebermos o que está em causa, iremos transcrever, mais uma vez, os itens impugnados:
“19. Utilizou parte da quantia recebida pela venda da embarcação para liquidar créditos a familiares dos requeridos.
20. Sabia que não ia liquidar créditos de todos os credores.”
Para suportar o seu reexame dos factos, a sociedade recorrente convoca essencialmente as declarações de parte do seu sócio-gerente E…. No que concerne ao aditamento ao item 19 este tem também por base uma leitura a contrario do que se encontra no item 2 dos factos não provados, cuja redação é a seguinte: “2. Utilizou parte da quantia recebida pela venda da embarcação para liquidar créditos pessoais dos sócios-gerentes e/ou dos seus familiares, com intuito de prejudicar os credores”.
Ora e como é sabido, de um facto não provado não se pode extrair o seu contrário, mas apenas que aquela factualidade não ficou demonstrada e nada mais. Por outro lado, não existe qualquer contradição entre o constante nos itens 19 e 20 dos factos provados, por um lado, com a redação do item 2 dos factos não provados, por outro lado. E isto porque os itens 19 e 20 dizem respeito a débitos da sociedade, ou seja, credores/créditos sobre a sociedade e o item 2.º dos factos não provados reporta-se, como aí se diz expressamente a “créditos pessoais dos sócios-gerentes e/ou dos seus familiares”, ou seja, créditos – ou débitos – estranhos à sociedade insolvente.
No que diz respeito à menção de que “no momento da venda do barco a insolvente ainda tinha a intenção de poder continuar o exercício da actividade, com a aquisição de embarcação mais pequena e barata”, o que constatamos das declarações de parte do seu sócio-gerente E… (dia 17/mar./2021, 00:59:40 – 02:05:55) é que a sua narração, nesta parte da matéria impugnada, não passam de meras suposições, sem que as mesmas estejam minimamente sustentadas em factos indiciários conducentes a esse propósito. E isto porque tais declarações de parte não concretizam como é que se poderia materializar tal desígnio, mais precisamente as dimensões dessa outra embarcação, ainda que fosse usada, o seu valor de compra, como obteriam o respetivo financiamento, numa situação em que a sociedade recorrente tinha sérios constrangimentos financeiros. E isto já para não falar das possibilidades do licenciamento dessa específica atividade profissional de pesca comercial, assim como dessa “nova” embarcação, que na altura estava regulada pelo Decreto-Lei n.º 278/87, de 07/jul. e do Decreto-Regulamentar n.º 43/87, de 17/jul. – agora encontra-se vigente o Decreto-Lei n.º 73/2020, de 23/set.. Isto significa, que não basta fazerem-se certas afirmações no sentido de uma certa factualidade, mormente se esta é essencialmente evasiva (v.g. a ocorrer no futuro) ou totalmente subjetiva (v.g. intencionalidade), para que se demonstre a mesma. Para o efeito é necessário aferir-se da correspondente razão de ciência, revelando-se a fonte do seu conhecimento, procedendo-se a uma análise crítica da prova a partir dos indícios-facto, sendo necessário aferir-se a sua razoabilidade e credibilidade. E o que sabemos é que a disponibilidade financeira da sociedade requerente apenas provinha de provimentos dos sócios ou de empréstimos bancários, já que não foram concedidos quaisquer apoios estatais, designadamente do IFADAP, como constam nessas declarações de parte (01:05).
No que concerne aos itens 19 e 20 dos factos provados, o que podemos constatar dessas mesmas declarações de parte (01:08 – 01:10) é que não havia um registo contabilístico minimamente sustentado e sustentável, pois como o mesmo referiu “apontava à minha maneira” (01:09), tendo vendido o barco porque já “não tínhamos hipóteses de suportar os encargos do banco, ... juros em cima de juros” (01:11). O outro depoimento invocado foi o da Senhora Administradora Judicial AH…, com domicílio profissional em Lisboa. A propósito não resistimos em transcrever a seguinte passagem: “Não me choca que seja liquidado ao N… ..., com também não me choca que seja liquidado a (... impercetível) acabado de ser sócio” a venda do imobilizado de uma empresa (02:19 – 02:37). Porém, afirma que não viu qualquer contrato sobre esta matéria ou não tem memória que o tenha visto (07:49 – 7:55), quando tais contratos estão junto aos autos. Mas o que está em causa é tratar-se do único ativo da sociedade e tal tem nítido impacto na continuação do desenvolvimento da sua atividade. E uma empresa sem imobilizado e sem empreendimento, não é certamente uma empresa. Como podemos constatar e decorre ao longo deste depoimento o mesmo corresponde a meras opiniões, sem conhecimento da realidade empresarial em causa, não traduzindo qualquer narração dos acontecimentos.
Assim, a convicção probatória desta Relação é coincidente com a motivação probatória expressa pela sentença recorrida e que passamos a transcrever: “A questão que se coloca é a do destino dado ao produto da venda que foi aplicado no pagamento a instituição bancária (o que se mostra justificado uma vez que a mesma gozava de garantia sobre a própria embarcação e apenas aceitaria a venda da mesma após distrato), no pagamento de crédito aos pais (no montante de mais de € 338.000,00, cujo montante não tem justificação em termos contabilísticos uma vez que da contabilidade resulta apenas crédito de € 177.455,31) e a parte dos credores (escolhidos pela insolvente sem critério claro). É certo que a prova produzida foi no sentido de o pai dos sócios da insolvente (que inicialmente também foi sócio) ser credor da mesma e não só pelo montante referente à venda do casco da embarcação, mas também a empréstimos que fazia à sociedade (cf. declarações de Administradora de Insolvência, AD…, sendo por todos referido que o mesmo era o “motor da sociedade” ou mesmo que era sócio da mesma. No entanto, não foi produzida prova cabal do montante do seu crédito.”. Nesta conformidade e sem necessidade de mais considerações, não temos qualquer censura a realizar à sentença recorrida nos termos em que foram suscitados pelo recurso da sociedade insolvente.
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b) A qualificação da insolvência como culposa
O CIRE no que concerne à qualificação da insolvência como culposa, começa por estabelecer no seu artigo 186.º, n.º 1 uma cláusula geral enunciando que tal ocorre “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”, sendo este período de 3 anos uma fronteira temporal delimitadora e intransponível das práticas de insolvência fraudulenta. Mais adiante no seu n.º 2 começa-se por enunciar que “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham” – sendo nosso o negrito. De seguida descrevem-se, ao longo de diversas alíneas, essas situações caracterizadoras de uma superior censura e, em consequência, de uma máxima responsabilização. O Código Civil no seu artigo 350.º e ao regular as presunções legais, preceitua no seu n.º 1 que “Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz”, acrescentando no n.º 2 que “As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrária, excepto nos casos em que a lei o proibir”. Por sua vez e como se aponta no Ac. do TC n.º 70/2012 (DR II, n.º 51, 12/mar./2012, p. 9119, a “«insolvência culposa» é uma categoria normativa, a que corresponde um regime próprio, que genericamente se pode caracterizar como punitivo e dissuasor de práticas violadoras de deveres funcionais dos administradores”.
Tais circunstâncias têm carácter disjuntivo, bastando a verificação de apenas uma delas para ocorrer essa qualificação culposa. Para o efeito, não pode restar quaisquer dúvidas que neste n.º 2 do citado artigo 186.º do CIRE, consagra-se um conjunto de descrições típicas de insolvência culposa, estabelecendo-se uma nítida presunção jure et de jure, revelando as mesmas, por isso, um carácter absoluto. Na enumeração das circunstâncias de insolvência culposa de carácter absoluto, podemos constatar que o legislador tentou ser minucioso na descrição típica das mesmas. Porém, é notória a sua heterogeneidade. Assim, enquanto as alíneas a) a g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE dizem respeito a actos de gestão conducentes à situação de insolvência ou ao seu agravamento, as demais alíneas h) e i) reportam-se a atos de incumprimento, tanto de ocultação sobre a situação contabilística “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor”, como dos “deveres de apresentação e colaboração” no decurso do processo de insolvência. Tanto num caso como noutro, podemos ainda convocar os deveres fundamentais exigidos a qualquer gerente ou administrador societário, os quais estão elencados no artigo 61.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais (Decreto-Lei n.º 262/86, de 02/set., DR I, n.º 201, sucessivamente alterado – CSCom.), os quais confluem nos deveres de cuidado (a) e de lealdade (b), designadamente em relação aos seus trabalhadores, clientes e credores.
A sentença recorrida considerou verificadas as alíneas a) e d) do n.º 2 do citado artigo 186.º do CIRE, insurgindo-se a recorrente quanto a essa qualificação, pelo que importa “decifrar” a estrutura normativa destas alíneas, de modo que a partir do seu “texto-norma”, se possa delimitar o correspondente “âmbito-norma”, estabelecer o devido “programa-norma” e encontrar-se a “concretização-norma”.
Aquela alínea a) reporta-se a quem tiver “Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;”.
A jurisprudência, como sucedeu com o Ac. TRC de 23/nov./2010 (Des. Carlos Querido, acessível em www.dgsi.pt, como os demais a que se faça referência) tem vindo a assinalar que tais ações “concretizam-se na prática de actos que determinem a perda ou subtracção de parte considerável dos bens que constituíam o património do devedor”. Posteriormente, o Ac. do TRC de 28/mai./2013 (Des. Moreira do Carmo) veio considerar que “A ocultação prevista no art. 186º, nº 2, a), do CIRE basta-se com uma actuação que, alterando a situação jurídica do bem - por ex: vendendo um imóvel a terceiro, com uma relação próxima directa ou indirecta com o alienante, ou ocultando o preço recebido - impeça ou dificulte a sua identificação, acesso ou accionamento pelo credor” – sendo nosso o negrito. Neste mesmo sentido seguiu o Ac. TRG de 09/jul./2020 (Des. Moreira Dias) donde extraímos o seguinte sumário: “Preenche a presunção inilidível da al. a) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, o gerente da sociedade devedora/insolvente que, em nome desta, vende o pavilhão industrial onde aquela sociedade exercia a sua atividade industrial a uma sociedade terceira e, bem assim toda a maquinaria com que esta exercia essa sua atividade industrial a uma outra sociedade, de modo que a sociedade devedora/insolvente fica impossibilitada de exercer o seu giro industrial e de manter as relações de trabalho que mantinha com os seus trabalhadores, e que deposita o produto dessas vendas numa conta aberta em nome da sociedade devedora/insolvente e que paga, com parte do produto dessas vendas, os débitos dessa sociedade a determinados credores, que escolhe, em detrimento de outros credores, a quem nada paga (os trabalhadores da sociedade), dando destino desconhecido ao restante produto dessas vendas e quando apenas vem a ser apreendido para a massa insolvente escassas centenas de euros e uma máquina de bordar” – sendo nosso o negrito.
Tentando precisar esta alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, podemos constatar que esta abrange as ações de gestão dos dirigentes societários conducentes à insolvência ou ao seu agravamento, às quais está subjacente uma pluralidade de ações típicas, umas enquadráveis em ações de dano e outras em ações de descaminho do património da sociedade devedora. As ações de dano são direcionadas à substância (i), aparência (ii) e funcionalidades (iii) do património do devedor. A destruição significa a aniquilação da integridade patrimonial (i), enquanto a danificação corresponde à deterioração da sua substância (ii) e a inutilização reporta-se à supressão ou diminuição das suas utilidades funcionais (iii). Por sua vez, as ações de descaminho consistem no extravio do património, ocultando-o, mediante a deslocação do domínio societário ou pessoal para um domínio encoberto (iv) ou fazendo-o desaparecer, colocando-o num domínio desconhecido (v).
Por sua vez, a etimologia de património está no vocábulo latino patrimoniu [patri (pai) + moniu (recebido)], dando a ideia de tudo aquilo que era arrecadado e economizado por uma pessoa. Partindo desta sua fonte etimológica e tendo uma compreensão contemporânea de património, porquanto este é cada vez mais diversificado, de que são último exemplo as bitcoins (cripto moeda descentralizada, vulgarmente designada como “dinheiro eletrónico”), a sua noção deve ser intensamente ampla, abrangendo tudo o que tenha sido “recebido” e com significado económico. Assim, o património compreende o conjunto de bens, rendimentos ou valores, de natureza material ou imaterial, pertencentes a uma pessoa, individual ou coletiva, e que tenham relevância económica.
Em suma, podemos sustentar que os actos típicos contemplados na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE reconduzem-se a actos de gestão dos dirigentes societários conducentes à insolvência ou ao seu agravamento, quando tenham por base ações de dano (destruição, danificação ou inutilização) ou a ações de descaminho (ocultação ou desaparecimento) do património do devedor, na sua totalidade ou parcialmente, desde que esta última seja numa dimensão avultada.
Ora dos factos provados não encontramos qualquer ação de dano ou então uma ação descaminho, não podendo aí ser enquadrado a compra e venda da embarcação “M…” registada na capitania de Vila do Conde sob o nº VC-…-C, pelo preço de € 900.000,00€ (8.º dos factos provados). Ainda que os mesmos tenham sido dirigidos para o pagamento de alguns credores (19, 20, 24, 25 factos provados), porquanto não consta dos factos provados qualquer ocultação desses procedimentos.
Resta-nos a alínea d), que ocorre quando se tenha “Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”.
A jurisprudência tem assinalado a propósito, de que é exemplo o Ac. TRG de 01/jun./2017 (Des. Pedro Damião e Cunha), que “No âmbito da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, ter-se-ão de apurar factos de onde decorra que os Administradores, de direito ou de facto, da devedora/Insolvente realizaram: 1) actos de disposição; 2) de bens do devedor; 3) em proveito pessoal (do Administrador) ou de terceiros” – no mesmo sentido o já citado Ac. TRG de 09/jul./2020. Partindo deste critério operativo, a jurisprudência não tem sido unânime na leitura deste segmento normativo. Para o efeito, alguma jurisprudência tem acrescentado um plus, o qual reside na necessidade do apuramento do valor da disposição dos bens, como resulta do citado Ac. TRG de 01/jun./2017, cujo sumário é o seguinte “Embora a citada alínea d) do n.º 2 do art. 186.º não faça menção à importância económica dos bens de que o administrador dispôs em proveito pessoal ou de terceiros, se não estiver demonstrado o seu valor ou que os bens tinham algum relevo económico, a insolvência não deve, com fundamento nessa norma, ser qualificada como culposa”. No entanto, outra jurisprudência vai mais no sentido da demonstração do referenciado “proveito pessoal ou de terceiros”, como sucede com o Ac. TRL de 11/mai./2017 (Des. Anabela Calafate), donde extraímos o seguinte sumário: “Para que opere a presunção estabelecida no art. 186º nº 2 al. d) do CIRE, necessário é que se prove que a disposição dos bens da insolvente tenha sido em proveito pessoal dos seus administradores/gerentes de facto ou de terceiro, não bastando que se tenha provado a transmissão de bens da insolvente para terceiros”.
Tentando agora precisar o enquadramento legal da alínea d), do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, consideramos que o mesmo compreende as ações de gestão dos dirigentes societários conducentes à insolvência ou ao seu agravamento, quando no âmbito de uma disposição de bens a conduta daqueles resulta num “proveito pessoal ou de terceiros”, obtido de um modo direto ou indireto. Atento o enunciado deste segmento normativo e estando em causa os atos de gestão conducentes à situação de insolvência ou ao seu agravamento, o proveito pessoal ou de terceiros, terá que ser aferido mediante os deveres de cuidado e de lealdade exigidos aos gerentes e administradores de uma sociedade. Deste modo, na disposição de bens do devedor, o proveito pessoal dos dirigentes societários ou de terceiros, terá de ter como reverso a existência de prejuízo para a empresa, os seus trabalhadores, clientes ou credores.
No caso em apreço, a venda da embarcação realizada em 16/ago./2017, ocorreu no âmbito temporal dos três (3) anos, estipulado no artigo 186.º, n.º 1 do CIRE, porquanto este processo de insolvência iniciou-se em 26/ago./2019 (3.º, 8.º dos factos provados). Desde então que a sociedade insolvente encontra-se sem qualquer atividade, sendo aquela embarcação o único bem dessa sociedade (15 e 16 factos provados). A quantia recebida no âmbito dessa compra e venda, no valor de € 900.000,00 foi dirigida para liquidar créditos a familiares dos sócios-gerentes, como seja ao seu pai O…, no valor de € 338.036,29 (14, 31 factos provados), assim como para pagar a outros credores, designadamente o crédito hipotecário do N…, no valor global de € 511.876,54 (19, 28, 29, 32 factos provados). No entanto o passivo da insolvente era superior a € 900.000,00 e sabia-se que com este valor não seriam pagos todos os credores societários (20 e 33 factos provados).
A propósito não se pode dizer que a venda da referida embarcação corresponda, de um modo direto, a um proveito pessoal do referenciado sócio-gerente ou de terceiros, mas antes de um modo indireto, mediante o destino posterior que foi dado ao dinheiro do preço, recebido como contrapartida, pois houve um proveito de terceiros, ainda que credores, mas sem qualquer justificação. Assim, muito embora existissem garantias reais hipotecárias de um credor (Banco N…), os demais eram credores comuns e o pai dos requeridos sócios-gerentes era titular de um crédito subordinado. Deste modo, o pagamento privilegiado a alguns credores em detrimento de outros, foi, sem quaisquer dúvidas, em nítido prejuízo dos credores societários que continuaram a manter o seu crédito por liquidar. E com esta conduta, o único gestor de direito e de facto da sociedade insolvente violou os seus deveres de cuidado societário e de lealdade para com os demais credores que não foram pagos. Nesta conformidade, será de manter nesta parte a sentença recorrida.
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Na improcedência do recurso, ainda que mediante fundamentos parcialmente distintos da sentença recorrida, as suas custas ficam a cargo da Recorrente – 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se negar provimento ao recurso interposto pela sociedade B…, Lda. e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, ainda que por fundamentos distintos.

Custas deste recurso a cargo da recorrente.

Notifique

Porto, 28 de outubro de 2021
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço
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[1] Procedeu-se à correção deste item, por se tratar de manifesto lapso, remetendo-se para o item 8 e não para o item 7 dos factos provados.