Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
149/16.8IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PERDA DE VANTAGENS
Nº do Documento: RP20170712149/16.8IDPRT.P1
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 724, FLS 277-282)
Área Temática: .
Sumário: I - A perda de vantagens do crime (artigo 111º do Código Penal) constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito.
II - Mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado/Administração Tributária que não deduziu pedido de indemnização civil e beneficia de outros meios coercivos de obter o pagamento da quantia em causa, isso não pode afetar o exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa, uma vez que a lei não prevê tal distinção.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 149/16.8IDPRT.P1
Data do acórdão: 12 de Julho de 2017

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Origem: Comarca do Porto-Este
Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira

Sumário:
1 - A perda de vantagens do crime (artigo 111º do Código Penal) constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito.
2 - Mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado/Administração Tributária que não deduziu pedido de indemnização civil e beneficia de outros meios coercivos de obter o pagamento da quantia em causa, isso não pode afetar o exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa, uma vez que a lei não prevê tal distinção.

Acordam, em conferência, os juízes acima identificados da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos em que figura como recorrente o Ministério Público.
I – RELATÓRIO
1. No dia 24 de Fevereiro de 2017 foi proferido nos presentes autos uma sentença condenatória, que terminou com o dispositivo seguidamente reproduzido:
"Em conformidade com o exposto, decide-se julgar a acusação pública procedente por provada, nos termos demonstrados e, em consequência:
- Manter a pena aplicada no Processo nº905/15.4IDPRT que corre termos por esta Comarca de Porto Este, Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira ao arguido B..., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. p. pelo artigo 105º, nº 1 do RGIT (aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06) e artigos 30º, nº2 e 79º, nº2 do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco) euros, num total de €1.500,00 (mil e quinhentos) euros.
- Condenar o arguido no pagamento das custas e encargos criminais, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC, já reduzida por efeito da confissão livre, integral e sem reservas, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 344º, nº 2, aI. c), 374º, nº4, 513º e 514º, todos do Código de Processo Penal, e artigos 1º, 2º, 3º, 5º e 8º, nº9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela Anexa III anexa ao mesmo. (…)"

2. Na mesma decisão, foi indeferida a perda da vantagem patrimonial emergente da prática do crime, contrariando pretensão expressa pelo Ministério Público em sede de acusação.
3. Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso da decisão final, terminando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
O despacho recorrido assenta numa premissa errada e que, por isso, inquina todo o raciocínio subsequente.
Com efeito entende-se, erroneamente, que dispondo a Autoridade Tributária, de meios legais para ser ressarcida das quantias que lhe são devidas e não tendo o Ministério Público deduzido pedido de indemnização civil é entendimento da Autoridade Tributária, serem suficientes os meios legalmente previstos no art. 148° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) para cobrança coerciva do imposto, em causa a perda de vantagem patrimonial requerida, pelo Ministério Público terá que improceder.
Ora, o Ministério Público requereu a perda de vantagens por entender que, sem prejuízo do direito de terceiro, tal perda porque legalmente imperativa, deve sempre ser declarada como consequência da prática do facto ilícito típico, como dispõe o art. 111° n°2 do CP.
A perda de vantagens patrimoniais deverá ser sempre declarada como consequência da condenação pela prática de um crime (por prevenção geral).
Tal medida visa repor a situação patrimonial do arguido anterior à data da prática do crime e não apenas salvaguardar o direito da vítima em ser ressarcida.
Neste sentido, discorre o Acórdão da Relação do Porto, de 22.02.17, afirmando: "I - A perda de vantagem patrimonial prevista no art. 111°CP, reveste caracter sancionatório com intuitos exclusivamente preventivos e não carácter indemnizatório. II - A renúncia ao direito de indemnização, a fixar judicialmente, devida pelo facto ilícito, por parte do credor/ofendido, não constitui obstáculo à decisão sobre a perda de vantagens. III - Prescindindo a A.T. da formulação do pedido de indemnização civil por crime de abuso de confiança fiscal, nada obsta ao decretamento da perda de vantagens obtidas com a prática do crime, traduzido no valor do imposto apropriado."
No referido Acórdão refere-se ainda: "Na verdade a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação da pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática de um ilícito (v.g. "o crime não compensa", nem os seus agentes dele retirarão compensação de qualquer natureza). (...)
O direito a indemnização, mesmo quando já se encontra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável, o mesmo não acontecendo com as medidas de caracter sancionatório."
Outra questão é o ressarcimento do lesado, situação em que o que for declarado a favor do Estado poderá reverter a favor da vítima, sendo o seu direito sempre salvaguardado.
Seguindo de perto a anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.11.20016, de João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, publicado in Julgar Online, janeiro de 2017, podemos afirmar que a letra do artigo 111.°, n.° 2, do Código Penal e, sobretudo, a sua conjugação com a letra e o espirito do artigo 130.°, n.° 2, do mesmo diploma legal (e, até, com o artigo 127.°, n.° 3, do CPP) não deixam espaço para qualquer dúvida. A obrigação de confisco é geral, sobrepondo-se à vontade individual, mas acautela, igualmente, os seus direitos, nomeadamente através da adjudicação dos bens declarados perdidos ou do produto da sua venda às vítimas, quando afirma "(...) o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objetos declarados perdidos ou o produto da venda, ou o preço ou o valor correspondente às vantagens provenientes do crime ( ... )"
Desde logo porque a lei não distingue: o artigo 130.°, n°2 do Código Penal é muito claro, não excecionando, a lei, nenhuma situação, designadamente aqueles casos em que a vítima já dispõe de formas legais para recuperar os ativos que lhe foram retirados. Por isso mesmo, uma vez que a lei não distingue, também nós não podemos distinguir.
O legislador português, deu preferência ao confisco enquanto manifestação do poder Estadual. Essas formas de reparação têm de sujeitar-se ao confisco e não o contrário, devendo a articulação ser feita a posteriori.
Por outro lado, também não poderemos considerar que a execução fiscal ou mesmo a dedução do pedido de indemnização civil constituem sempre formas suficientes para assegurar as finalidades subjacentes ao confisco.
Desde logo, na medida em que a efetivação da responsabilidade tributária depende não só do cumprimento das formalidades previstas pelo legislador tributário para a enunciação da exigibilidade do tributo devido, como do respeito pelo cumprimento de diversos prazos, nomeadamente de caducidade (v.g. 45.° da Lei Geral Tributária).
Estas exigências, sendo adequadas a garantir a efetividade da cobrança do tributo na generalidade dos casos, não se compadecem com as exigências que se verificam na deteção dos esquemas de evasão fiscal mais complexos, designadamente aqueles concretizados mediante a interposição de entidades não residentes em território nacional ou comunitário. Nas situações em que a Administração
Fiscal não pode cobrar o imposto porque este deixou de ser exigível no âmbito da responsabilidade tributária, não é sequer pacífico que possa obter tais montantes mediante recurso à dedução do respetivo pedido de indemnização civil.
Nestes casos, restará pois ao Estado recorrer ao mecanismo do confisco das vantagens, previsto no artigo 111.°, n.°s 2 e 4, do Código Penal, para, deste modo, demonstrando que o crime não compensa, assegurar o restabelecimento da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito.
Violou assim, a Juiz a quo, o disposto nos artigos 111° n°2 do CP, por interpretação de que este artigo no sentido de que a perda da vantagem patrimonial a favor do Estado, apenas existe se a Autoridade Tributária, não dispuser de meios legais para ser ressarcida das quantias que lhe são devidas, caso contrário a perda de vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público terá que improceder.
De tudo o exposto resulta que a decisão da Mma juiz a quo deve ser revogada e substituída por outra que defira deferida a pretensão do Ministério Público de perda da vantagem patrimonial, obtida com a prática do crime em questão, no valor de €10.177,23.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, que vossas excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão da Mma Juiz de Direito que indefere o pedido de perda da vantagem patrimonial obtida com a prática do crime em questão, no valor de €10.177,23. e substituída por outra que defira o referido pedido, assim se fazendo justiça."

4. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
5. O arguido não apresentou qualquer resposta ao recurso.
6. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer, sintetizando a motivação do recurso, com a qual concorda.
7. Não foi apresentada resposta ao parecer.
8. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].

Questões a decidir
Do thema decidendum dos recursos:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Tendo em conta o teor do relatório que antecede, importa solucionar o seguinte:

Erro em matéria de direito:
- na interpretação do disposto no artigo 111º do Cód. Penal, ao não decidir condenar o arguido a pagar ao Estado o montante equivalente ao valor da vantagem patrimonial que obteve com a prática do crime, pela circunstância do ofendido não ter deduzido pedido de indeminização cível.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Introdução
Um recurso ordinário que versa matéria de direito deve incluir nas conclusões da motivação de recurso:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento da recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Tais exigências legais resultam do disposto no artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Concretizado o âmbito e os termos de um recurso que versa matéria de direito – o que é o caso do recurso em apreço neste acórdão -, importa descer ao caso concreto.
Desde logo, importa reconhecer que o Ministério Público manifestou discordância em relação à interpretação que o tribunal a quo concretizou em relação a norma que identifica, satisfazendo as conclusões da motivação de recurso as supracitadas exigências legais.
A questão controvertida
O Ministério Público, fazendo uso da estatuição prevista no art. 111º do Código Penal, requereu nos presentes autos a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial, no valor de €10.177,23, que corresponde à quantia que era devida à Administração Tributária e de que esta ficou desapossada em virtude do facto ilícito típico cometido pelo arguido.
Realizado o julgamento, provou-se a prática, pelo arguido, do crime de abuso de confiança fiscal que lhe foi imputado em sede de acusação, tendo sido apurada a importância em dinheiro de que o arguido se apropriou indevidamente, que corresponde ao montante atrás referido.
Porém, a sua pretensão foi rejeitada com base nos seguintes fundamentos:
Dispondo a Autoridade Tributária de meios legais para ser ressarcida das quantias que lhe são devidas e não tendo o Ministério Público deduzido pedido de indemnização civil, revelam-se suficientes os meios legalmente previstos no art. 148° do Código de Procedimento e de Processo Tributário para a cobrança coerciva do imposto, o que determina a improcedência da perda de vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público.
O recorrente discorda, de forma motivada, desse entendimento, concretizando as razões da sua divergência na interpretação da norma em apreço:
A perda de vantagens patrimoniais deverá ser sempre declarada como consequência da condenação pela prática de um crime (por prevenção geral).
Tal medida visa repor a situação patrimonial do arguido anterior à data da prática do crime e não apenas salvaguardar o direito da vítima em ser ressarcida.
A lei não prevê como exceção a essa regra as situações em que o ofendido já dispõe de outras formas legais para recuperar os ativos que lhe foram retirados.
A efetivação da responsabilidade tributária depende não só do cumprimento das formalidades previstas pelo legislador tributário para a enunciação da exigibilidade do tributo devido, como do respeito pelo cumprimento de diversos prazos, nomeadamente de caducidade (v.g. 45.° da Lei Geral Tributária).

Apreciando e decidindo.
De jure
Recordando o estatuído no artigo 111º do Código Penal:
1 - Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio do facto ilícito típico.
4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
Não tendo sido possível apreender a importância em dinheiro - €10.177,23 - da qual o arguido se apropriou ao consumar o crime de abuso de confiança fiscal pelo qual veio a ser pacificamente condenado, não poderá ter lugar a entrega da mesma ao lesado (a Administração Tributária), nem ser declarada a sua perda a favor do Estado (nº 2 do artigo 111º do Código Penal).
Perante esse pressuposto e mesmo não tendo sido deduzido um pedido de indemnização civil por parte do lesado, tendo apenas sido requerida a condenação do arguido a pagar ao Estado aquela importância monetária, da qual o mesmo se apropriou ilegitimamente – e que foi fixada, na factualidade provada, no montante de €10.177,23 -, a pretensão do Ministério Público deverá ser deferida à luz do disposto no número 4 do mesmo artigo?
Conforme consta da fundamentação da própria sentença recorrida, este instituto (perda de vantagem do crime) constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança com intuitos exclusivamente preventivos. Sendo assim, contrariando a fundamentação da sentença recorrida, não se vislumbra como a atuação ou omissão do ofendido pode ser determinante para a inviabilidade da sua efetivação.
Desenvolvendo essa noção, constitui entendimento pacífico na doutrina[3] e jurisprudência que a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”]. [4].
Tal bastará para se concluir que a vontade do ofendido a propósito da obtenção do ressarcimento devido não pode afetar o exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa – mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado, uma vez que a lei não o distingue -: a norma legal atrás reproduzida (artigo 111º do Código Penal) tem caráter geral e abstrato, não prevendo a mesma qualquer exceção, mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado/Administração Tributária que não deduziu pedido de indemnização civil e beneficia de outros meios coercivos de obter o pagamento da quantia em causa.[5]
A circunstância do ofendido ser o próprio Estado, dotado de mecanismos de ressarcimento coercivo bem mais amplos que os concedidos aos particulares, não pode justificar solução diversa, sob pena de colocar em crise o ius imperium manifestado no aludido instrumento de política criminal e os fins preventivos do direito sancionatório.
Perante a amplitude dos aludidos mecanismos de ressarcimento, poder-se-á questionar a utilidade do instituto, uma vez que os interesses patrimoniais do Estado estariam sempre salvaguardados. Porém, sem razão. Conforme também evidenciado na motivação do recurso, os mecanismos de cobrança coerciva à disposição do Estado/Autoridade Tributária não deixam de estar sujeitos a determinados requisitos e condicionalismos, não havendo uma absoluta garantia de concretização do ressarcimento.
Daqui se conclui que o facto da Autoridade Tributária ter prescindido de formular pedido de indemnização nos presentes autos em nada obsta à pretensão do Ministério Público –realçando-se, para a devida transparência das consequências jurídicas desta decisão, que o Estado não poderá, em caso algum, obter o duplo pagamento das quantias em causa (se inteiramente coincidentes) -. Igualmente deverá ser ressalvado que o pagamento a ser determinado no âmbito dos presentes autos não prejudicará eventuais créditos financeiros da ofendida Autoridade Tributária que ultrapassem esse valor e, ainda, que deverá ser deduzido o montante de eventuais pagamentos por conta da dívida que o arguido já tiver realizado à ofendida.
Consequentemente, forçosa é a conclusão de que a decisão recorrida não poderá subsistir no segmento impugnado, impondo-se a sua revogação e a condenação do arguido no pagamento ao Estado do valor correspondente à importância da qual se apropriou, ilegitimamente, ao praticar o crime pelo qual foi condenado (€10.177,23), nos termos do disposto no artigo 111º, nº 4, do Código Penal. [6]
Das custas:
Sendo o recurso do Ministério Público julgado provido, sem oposição do arguido, não há lugar à sua tributação (artigo 513°, 1, in fine et a contrario sensu do Código de Processo Penal).
*
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores, em conferência e por unanimidade, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
- condenar o arguido no pagamento ao Estado do valor correspondente à importância da qual se apropriou, ao praticar o crime pelo qual foi condenado (ou seja, o montante de dez mil cento e setenta e sete euros e vinte e três cêntimos), nos termos do disposto no artigo 111º, nº 4, do Código Penal, com as seguintes ressalvas:
a) o Estado/Administração Tributária, em caso algum, poderá receber duplamente tal pagamento;
b) o pagamento não prejudica eventuais créditos financeiros da ofendida Autoridade Tributária que ultrapassem esse valor; e
c) será deduzido o montante de eventuais pagamentos por conta da dívida que o arguido já tiver realizado à ofendida.
Sem custas.

Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 12 de Julho de 2017.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
_________________
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1, este pesquisável, nomeadamente, através do aplicativo de pesquisa de jurisprudência disponibilizado, pelo ora relator, em http://www.langweg.blogspot.pt.
[3] Leia-se, a propósito, o escrito do Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 418, a propósito da natureza jurídica do regime da perda de vantagens, em que refere tratar-se de "uma providência sancionatória análoga à da medida de segurança (...), no sentido de que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso (e sublinharíamos o sempre e em qualquer caso) instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não atuado com culpa".
Com particular interesse, relativamente à questão controvertida em análise, o mesmo autor refere, quanto à articulação entre a responsabilidade civil (ou fiscal) e perda de vantagens, que o instituto da perda de vantagens marca sempre a sua autonomia, uma vez que “seja como for quanto a este ponto, também aqui há lugar e justificação autónomos para a perda.”
[4] Neste sentido, entre outros, o acórdão desta Secção do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de Fevereiro de 2017, relatado pela Desembargadora Dra. Maria Deolinda Dionísio e igualmente subscrito pelo ora relator.
[5] Conforme salientado na fundamentação do acórdão referido na nota 4, "O direito à indemnização, mesmo quando já se mostra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com as medidas de carácter sancionatório".
[6] Em sentido idêntico, veja-se, ainda, o nosso acórdão de 14 de Setembro de 2016 (processo nº 459/15.1GAPRD.P1), publicado no seguinte endereço da rede digital global (internet): http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/40af6c53ac5f59da8025803e004796b5?OpenDocument, além dos seguintes acórdãos deste Tribunal:
- Acórdão de 31 de Maio de 2017 (processo nº 259/15.9IDPRT.P1), relatado pela Desembargadora Dra. Lígia Figueredo, da 1ª Secção Criminal):
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/378ee5d485171f308025814c004ae10a?OpenDocument;
- Acórdão de 22 de Março de 2017 (processo nº 86/14.0IDPRT.P1), relatado pelo Desembargador Dr. Francisco Mota Ribeiro, da 2ª Secção Criminal:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f9f0bbbc2774814f802580ff0051845d?OpenDocument