Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
678/14.8TXPRT-K.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
GRAVIDADE
CRIME
MEIO DA PENA
Nº do Documento: RP20180418678/14.8TXPRT-K.P1
Data do Acordão: 04/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 757, FLS.46-52)
Área Temática: .
Sumário: I - A interiorização da ilicitude do crime deve presumir-se em face da conduta do condenado que perante o juiz de execução de penas assume de forma clara a sua responsabilidade e manifesta sentimentos de repulsa em relação ao mesmo.
II - A convicção de falta de credibilidade que o juiz atribua a tal comportamento deve ser expressamente motivado.
III - A gravidade do crime é elemento relevante para a concessão da liberdade condicional.
IV - As razões de prevenção geral têm a ver sobretudo com a preservação da ordem e paz social, só podendo ocorrer a libertação num momento em que já se tenham esbatido na sociedade os efeitos negativos do crime e a necessidade de execução da pena.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 678/14.8TXTPRT-K.P1
Comarca do Porto
1º Juízo do Tribunal de Execução de Penas do Porto
Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por decisão proferida em 11 de Dezembro de 2017 o Tribunal de Execução de Penas decidiu recusar ao condenado B… a concessão de liberdade condicional, ao meio da pena de 8 anos e 10 meses de prisão em que foi condenado por um crime de tráfico de produtos estupefacientes.
1.2 Recurso
1.2.1 O condenado recorreu do despacho, pedindo a revogação da decisão recorrida e a consequente concessão de liberdade condicional.
No essencial, concluiu a motivação do recurso invocando o seguinte (resumo nosso):
- O Tribunal não fez uma análise concreta do caso. Se no nosso sistema jurídico, existissem que pela sua natureza demandassem um período acrescido de reclusão ou outras especificidades relativamente aos demais, isso teria de resultar da lei.
- As necessidades de prevenção geral, que se faziam sentir foram tidas em conta na determinação da medida da pena. O cumprimento de metade da mesma é suficiente para a defesa da ordem e da paz social.
- A "acentuada gravidade", o "elevado desvalor objetivo dos factos subjacentes ao crime", bem como a "organização, a quantidade e o tipo de droga", referidos pelo tribunal na decisão recorrida, são circunstâncias que fazem parte do tipo legal de crime e foram já valoradas em sede de condenação, aquando da determinação da pena. A apreciação destas circunstâncias não pode voltar a ser renovada nesta fase, para conformar a decisão de não concessão da liberdade condicional, sob pena de violação do princípio in bis in idem.
- Do certificado de registo criminal do condenado consta apenas a condenação pelo crime cuja pena se encontra em cumprimento.
- No EP C… frequentou o 2o ciclo com êxito e aquando da entrada no EP D… deu de imediato continuidade aos estudos, tendo concluído o 3o ciclo, em Junho de 2017; No EP C… participou em várias atividades formativas e sócio culturais, tendo no EP D… frequentado, com assiduidade e empenho, o programa terapêutico interno de justiça restaurativa "G…"; No EP C… trabalhou na padaria e no EP C… está, desde 17/08/2017, a trabalhar no setor das obras/construção civil, apresentando competências;
- Os factos provados remetem para uma evolução comportamental positiva, em meio fechado, posto que o condenado adquiriu hábitos e horários de trabalho e investiu também, na sua formação.
- Nada consta do seu registo disciplinar; beneficiou de 2 licenças de saída jurisdicionais e uma saída de curta duração, que decorreram sem incidentes, estando atualmente colocado em RAI.
- Tendo respeitado as normas, adquiriu ferramentas para, em meio livre, continuar a pautar a sua conduta de acordo com o direito, indiciando, também, capacidade objetiva de readaptação.
- Não possui problemática aditiva.
- Tem apoio da companheira; e um projecto de vida virado para o trabalho, existindo a concreta possibilidade de trabalhar na empresa "E…, Lda", como comercial.
- Não é verdade que não tenha crítica suficiente, nem arrependimento pelos danos que poderiam ter resultado para as possíveis vítimas, caso o estupefaciente tivesse chegado ao destino final.
- Mas, ainda que fosse, isso era irrelevante para os presentes efeitos, pois o arrependimento não é requisito de concessão da liberdade condicional.

1.2.2 O Ministério Público no Tribunal de Execução de Penas respondeu manifestando-se pela improcedência do recurso.
Em síntese, alegou o seguinte:
- Nesta fase da execução da pena os factores de prevenção geral sobrepõem-se aos de prevenção especial, na avaliação dos pressupostos da liberdade condicional. Isso em nada afecta o princípio ne bis in idem, pois não se trata de apreciar os mesmos factos para nova condenação.
- Apesar de o crime de tráfico não ser impeditivo da libertação condicional ao meio da pena, essa decisão depende da gravidade do crime.
- Ainda não é segura a capacidade objectiva de readaptação, de modo a que as expectativas de reinserção sejam maiores do que o risco social da antecipação da liberdade.
- A decisão recorrida ponderou bem todos os factos e aplicou correctamente o direito.

1.2.3 O Ministério Público, nesta Relação, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Disse, sinteticamente, que o recurso merece provimento pelas razões expendidas na respectiva motivação e porque:
- A execução da pena cumpriu os objectivos de reinserção, sendo contraproducente prolonga-la, atenta a desmotivação que daí pode decorrer, em ganhos especiais quanto ao êxito daquele objectivo.
- O facto de não haver uma segurança absoluta sobre a abstenção de comportamentos criminosos futuros não impede a liberdade condicional, pois isso ocorre em qualquer fase da pena e é a razão que determina que a libertação antecipada seja sujeita a condições.
- As oportunidades de flexibilização da pena foram aproveitadas sem incidentes, dando mostras de interiorização da necessidade de orientação do percurso de vida no sentido normativo.
- As exigências de prevenção geral foram suficientemente consideradas na condenação numa pena bastante severa, não havendo qualquer diferença no sentimento comunitário, para o efeito da concessão de liberdade condicional, entre o crime de tráfico e os crimes de outra natureza.
2. Questões a decidir no recurso
O objecto do recurso respeita apenas à controvérsia sobre a verificação dos pressupostos para a concessão da liberdade condicional previstos no artigo 61º nº 1 e 2 do CP.
3. Fundamentação
3.1. Factualidade relevante para a decisão
No despacho recorrido consta o seguinte elenco de factos considerado relevante para a decisão (transcrição):
1. O condenado nasceu em 17/03/1979 e cumpre a pena de 8 anos e 10 meses de prisão, à ordem do processo nº 694/13.7TAMAI, no âmbito do qual foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes (o arguido e outros indivíduos, na sequência de um plano gizado entre todos, no dia 30/05/2013, deslocaram-se ao aeroporto F…, para procederem ao levantamento de 22,600kg de cocaína, proveniente de um voo com origem em Caracas e com destino ao Porto);
3. Atingiu o meio da pena em 30/10/2017, os dois terços estão previstos para 19/04/2019, os cinco sextos para 10/10/2020 e o termo para 30/03/2022;
4. Do certificado de registo criminal do condenado, junto aos autos, consta a condenação referida em 1;
5. Deu entrada no EP D… em 07/12/2015, vindo do EP C…;
6. Nada consta do seu registo disciplinar;
7. Beneficiou de 2 licenças de saída jurisdicionais, tendo a última decorrido de 29/09/2017 a 03/10/2017, sem registo de incidentes;
8. Foi colocado em RAI em 16/10/2017;
9. Beneficiou de 1 licença de saída de curta duração, que decorreu de 10/11/2017 a 13/11/2017, sem registo de incidentes;
10. No EP C… frequentou o 2º ciclo com êxito e aquando da entrada no EP D… deu de imediato continuidade aos estudos, tendo concluído o 3º ciclo, em junho de 2017;
11. No EP C… participou em várias atividades formativas e sócio culturais, tendo no EP D… frequentado, com assiduidade e empenho, o programa terapêutico interno de justiça restaurativa “G…”;
12. No EP C… trabalhou na padaria e no EP D… está, desde 17/08/2017, a trabalhar no setor das obras/construção civil, apresentando competências;
13. Não possui problemática aditiva;
14. Em 02/11/2017, foi sujeito a teste de despistagem de consumo de drogas ilícitas, tendo o resultado sido negativo;
15. Tem apoio da companheira, com a qual mantém uma relação de longa data, caraterizada pela solidariedade e coesão;
16. No atual contexto de residência, o condenado não foi identificado pelos moradores, sendo que no anterior é considerado como disponível, solidário e afável, não se perspetivando constrangimentos à sua presença;
17. Tem como projeto laboral, trabalhar na empresa “E…, Lda.”, como comercial;
18. Ouvido pelo tribunal em declarações, admitiu ter praticado o crime de tráfico de estupefacientes pelo qual se encontra condenado e a cumprir pena, afirmando «fiquei desempregado, a minha esposa trabalhava num cabeleireiro e só recebia metade de um ordenado, estava a passar dificuldades na vida, aceitei fazer este negócio»;
19. Acrescentou que «foi um ato muito grave, estou a pagar por ele, não culpo ninguém, a culpa é minha, estou arrependido porque pensei que era uma forma de resolver o problema e ainda compliquei mais a situação, tanto para mim, como para a minha esposa» e «nunca mais na vida cometo outro crime, sempre vivi no bairro, sempre me afastei disto, foi um ato de desespero, compliquei mais a vida, não tinha noção da gravidade do que estava a fazer»;
20. Consta do relatório dos serviços prisionais que «o recluso assume os crimes praticados, assim como as consequências gravosas dos mesmos, apresentando nesta fase de cumprimento da pena, arrependimento pela conduta protagonizada e capacidade de censura, nomeadamente face aos prejuízos e consequências para as vítimas, que no presente consegue identificar, em abstrato. Expressa ainda vergonha face à sua conduta criminal e situação de reclusão»;
21. Resulta do relatório da DGRSP que «B… afirmou compreender a gravidade dos crimes cometidos, as consequências para as vítimas, admitindo que o contexto de reclusão se revelou para o próprio intimidatório e contexto de reflexão sobre a sua prática criminal».
3.2 Mérito do recurso
Diante da enunciada matéria de facto importa agora verificar se o recorrente tem razão quando afirma que se verificam os pressupostos para lhe ser concedida a liberdade condicional e se, em consequência, o despacho recorrido errou na interpretação do artigo 61º nº 2 do CEPMPS.
Da leitura da decisão recorrida resulta que o tribunal seguiu, no essencial, este percurso interpretativo:
- As exigências de prevenção geral no crime de tráfico são especialmente agravadas;
- Apesar de as circunstâncias relativas à prevenção especial serem essencialmente favoráveis, por causa das especiais exigências de prevenção geral e por se tratar de um tráfico internacional mais grave, a reafirmação social da validade da norma violada é menos compatível com a libertação a meio da pena;
- A gravidade do crime suscita dúvidas sobre a preparação do condenado para respeitar as normas, se colocado já em liberdade;
- A justificação do crime por necessidades económicas, sem referência espontânea e primária às suas verdadeiras vítimas, revela a necessidade de reforçar as condições de autocrítica, através do prolongamento da execução da pena.
Muito embora isso não seja expressamente afirmado, parece-nos evidente que na base da decisão do tribunal está um entendimento mais restritivo em relação à possibilidade legal de libertação condicional a meio da pena nos crimes de tráfico de droga de gravidade superior à média.
Vejamos então se procede o entendimento do tribunal.
É pacífico que a finalidade da liberdade condicional visa facilitar a reintegração do condenado na sociedade, tendo em conta as finalidades da pena e os objectivos da sua execução, afirmados nos artigos 40º nº 1 e 42º nº 1 do CP. Trata-se de uma possibilidade típica que pode ocorrer no decurso da execução da pena, que depende de pressupostos que devem ser verificados com exigência. Isso é ainda mais evidente quando se trate de uma pena de prisão cumprida apenas em metade, em que os requisitos legais são mais apertados.
O artigo 61º nº 2 estabelece nas suas als. a) e b) dois requisitos cumulativos, intimamente conexionados com as finalidades de prevenção especial e geral que a imposição e execução da pena devem garantir. Por um lado, é necessário que existam elementos que permitam prever que o condenado, uma vez em liberdade, irá conduzir a sua vida de modo socialmente responsável e não cometerá novos crimes, tendo em conta as circunstâncias do caso, relativas ao crime cometido e à pena imposta, a sua vida anterior, a personalidade e a evolução dessa personalidade durante a execução da pena. O que está aqui em causa é sobretudo garantir que a interrupção antecipada do cumprimento da pena de prisão não vai frustrar a finalidade de reintegração social do agente do crime, afirmada no artigo 42º nº 1 do CP. Visa-se, pois, garantir o êxito dos fins de prevenção especial positiva – condução da vida com responsabilidade social – e de prevenção especial negativa – abstenção de novos comportamentos criminosos.
Por outro lado, agora já no plano da prevenção geral e da afirmação da validade dos valores protegidos pela norma jurídica violada, é também necessário que a execução da pena de prisão não cesse antes de decorrido um período compatível com a defesa da ordem e da paz social. A protecção dos bens jurídicos com tutela penal, que é também uma das finalidades da pena afirmadas no referido artigo 42º nº 1, exige que o facto criminoso, violador desses bens, seja objecto de uma acção reprovadora, que afirme a ordem e garanta a paz social. Esses valores não serão observados se a libertação antecipada do condenado ocorrer em momento que cause na sociedade incompreensão, insegurança ou dúvida sobre a validade das normas e sobre a utilidade das penas.
Não encontramos razões para dizer – como na decisão sob recurso – que as exigências de prevenção geral prevalecem sobre as de prevenção especial. O que resulta do artigo 61º nº 2 é que a concessão de liberdade condicional depende, em igual medida, da verificação dos pressupostos de prevenção especial e geral. O efeito é exactamente o mesmo, quer nas situações em que prognóstico de reinserção social seja positivo, mas a libertação não cumpra as exigências de defesa da ordem e paz social, quer naquelas em que não haja razões de prevenção geral impeditivas, mas as perspectivas de o condenado não vir a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável e afastado da criminalidade não existam. No fundo, o que se pretende com essa afirmação é elevar o valor das exigências de prevenção geral a um nível superior ao que a lei consente.
Por outro lado, também não sufragamos o entendimento, implícito na decisão recorrida, de que nos crimes de tráfico de estupefacientes as exigências de prevenção geral são mais elevadas. A necessidade de verificar em que medida a libertação antecipada do condenado é compatível com a defesa da ordem e paz social depende certamente das circunstâncias concretas do crime, relativas ao tipo de ilícito e ao tipo de culpa, mas vale por igual para todos os crimes com medidas de pena equivalentes.
Vejamos então aquilo que se apurou em relação à situação concreta do condenado.
O bom comportamento na fase do cumprimento da pena não pode deixar de ser considerado um índice de mudança pessoal no sentido da reabilitação. Ele pode revelar mais facilmente se o condenado compreendeu o sentido da condenação, se aceitou a censura por ter violado bens jurídicos e se adquiriu a vontade de se reintegrar na sociedade de maneira responsável e afastado da criminalidade.
No caso que estamos a analisar, o bom comportamento global do condenado é positivo e relevante. Todavia, sem deixar de o enunciar e considerar positivo, o tribunal não o teve como decisivo.
O condenado frequentou o ensino, com êxito, o que demonstra vontade de se apetrechar com qualificação escolar, que facilita o processo de reinserção. Participou noutras actividades formativas e sócio culturais com empenho e assiduidade. Releva, nomeadamente, a frequência do programa “G…”, vocacionado para a recuperação de pessoas condenadas por crimes. Tem trabalhado nos dois EP onde a pena vem sendo cumprida. Não possui problemática aditiva e os testes de despistagem de drogas assinalaram sempre resultados negativos. Beneficiou de duas licenças de saída jurisdicional e de uma licença de saída de curta duração, por três dias. Estas saídas são um teste importante, na medida em que permitem não só facilitar ao condenado a adaptação gradual à liberdade, mas também verificar a sua capacidade de manter comportamentos normativos fora do contexto prisional. Está em RAI desde Outubro do ano passado, o que implica uma vigilância mais atenuada e revela confiança da direcção do Estabelecimento Prisional. Nada consta no registo disciplinar. Tem apoio da companheira e projecto laboral.
Consideramos que este bom comportamento durante a execução da pena, dentro do estabelecimento prisional e fora dele, é um bom indício de evolução pessoal e comportamental.
Sendo esta a primeira condenação, numa pessoa com quase 40 anos de idade, nota-se que houve um percurso pessoal normativo, interrompido pela prática de um crime, grave, é certo, mas ainda assim pontual.
Sem deixar de reconhecer o valor positivo das perspectivas de reinserção social, o tribunal valorizou negativamente a atitude do condenado face ao crime, referindo que a justificação que deu revela uma necessidade de reforço da autocrítica quanto à ilicitude do seu comportamento. Não nos parece que essa conclusão se possa retirar das declarações do condenado. E se, como se sugere na decisão recorrida, existem factores apreendidos directamente pelo tribunal, nas expressões, linguagem corporal e facial, que influenciaram a percepção de forma relevante para a decisão, então teriam de estar descritos na decisão recorrida para que pudessem ser objecto de controlo jurisdicional por via do recurso. Não sendo esse o caso, apenas podemos ter em conta o que diz o auto, que é o seguinte:
«Pelo recluso foi dito que admite ter praticado o crime de tráfico de estupefacientes pelo qual se encontra condenado e a cumprir pena, afirmando “fiquei desempregado, e a minha esposa trabalhava num cabeleireiro e só recebia meio ordenado, estava a passar dificuldades na vida, aceitei fazer este negócio”.
Acrescentou que “foi um acto muito grave, estou a pagar por ele, não culpo ninguém, a culpa é minha, estou arrependido porque pensei que era uma forma de resolver o problema e ainda compliquei mais a situação, tanto para mim, como para a minha esposa”.
Disse ainda que “nunca mais na vida cometo outro crime, sempre vivi no bairro, sempre me afastei disto, foi um acto de desespero, compliquei mais a vida, não tinha noção da gravidade do que estava a fazer”.
Afirmou nunca ter sido toxicodependente.»
Não vemos que estas declarações revelem reduzida consciência crítica face ao crime e desvalorização do seu significado criminal. A ausência de uma referência directa aos danos causados às vítimas não pode ser isolada das outras afirmações igualmente relevantes para verificar o nível de consciência crítica do condenado face aos comportamentos que o levaram à prisão.
Não se encontra assim suficientemente motivada a conclusão abstracta a que o tribunal chegou, de que o condenado não interiorizou ainda de maneira suficiente o significado do crime. Não se percebem as razões que levaram o tribunal a desvalorizar a posição assumida diante de si pelo recorrente, em benefício de uma percepção contrária.
A interiorização da ilicitude do crime deve pelo menos presumir-se quando perante o juiz de execução de penas o condenado assume de forma clara a sua responsabilidade e manifesta sentimentos de repulsa em relação ao crime. Só assim não deverá ser se houver razões para acreditar que as palavras não têm correspondência com os sentimentos. Mas para isso é necessário que o tribunal motive essa convicção, sob pena de não poder ser objecto de controlo por via do recurso. No caso, a decisão recorrida diz que em geral a imediação permite ao tribunal apreender aspectos relevantes, mas não nos dá nota de quais foram eles para se concluir pela falta de credibilidade das declarações. Lendo a decisão sob recurso não nos é permitido concluir que estamos na presença de palavras ou actos sem conteúdo, com finalidade meramente táctica. E sendo assim, afigurando-se que as mesmas traduzem suficiente sentido crítico em relação ao ilícito, não podemos deixar de lhes dar valor.
No que respeita à existência de condições exteriores favoráveis à ressocialização, o tribunal deu como demonstradas condições que suportam a afirmação de que existe adequado suporte familiar e projecto laboral. Estes são também importantes factores de ressocialização, impulsionadores de comportamentos normativos.
Concluímos assim que no plano das exigências de prevenção especial, nada há que impeça a concessão de liberdade condicional. Resta ver se existe impedimento determinado pelas exigências de prevenção geral.
O tipo de ilícito pelo qual o arguido foi condenado é, nos crimes de tráfico de estupefacientes, de gravidade considerável. Tratou-se da importação de 22 kg de cocaína, apreendida depois da chegada ao aeroporto. No entanto, também se deve ter em conta que se tratou apenas de um acto e que a droga não chegou a entrar no mercado e a provocar dano da saúde das vítimas nem a permitir auferir o lucro que era esperado. Por isso, sem deixarmos de concordar que o crime de tráfico de droga é em abstracto muito grave, frequente e gerador de sentimentos sociais negativos, também não podemos ignorar que no caso em apreço o crime cometido não tem esse sinal de gravidade extrema que parece ter sido considerada na decisão recorrida.
A gravidade do crime é um elemento de ponderação relevante para a concessão de liberdade condicional, por razões que têm a ver com os fins de prevenção especial e geral. Actos criminosos mais ilícitos e praticados com maior grau de culpa exigem maiores cuidados na fase de execução da pena para garantir que o seu agente não incorrerá em novo acto criminoso e também para garantir que outras pessoas, através desse exemplo, serão positivamente influenciadas a respeitarem esses bens jurídicos. Quanto mais grave é o crime mais intensa é a necessidade de garantir o êxito das finalidades da prevenção geral e especial, precisamente porque o que está em causa nestes casos é a protecção de bens jurídicos mais valiosos.
As razões de prevenção geral que devem ser ponderadas no momento da decisão de conceder ou não a liberdade condicional têm a ver sobretudo com a preservação da ordem e paz social. A libertação só pode ocorrer num momento em que já se tenham esbatido na sociedade os efeitos negativos do crime e a necessidade da execução da pena. A validade das normas jurídicas, essencial para o sistema de protecção dos valores comunitários garantidos pela tutela penal, assenta numa relação de confiança. A imperatividade da norma é garantida pela confiança social na efectividade da consequência prevista para a sua violação.
O que está em causa é, portanto, saber se num crime de tráfico como este, que não se pode considerar de extrema ilicitude, a libertação é socialmente sustentável. Se a ordem e paz social são adequadamente defendidas, com a libertação a meio da pena de um condenado que, como vimos, interiorizou de forma suficiente a responsabilidade pelo ilícito e já operou uma mudança de personalidade e modo de vida compatível com o respeito pelos bens jurídicos ofendidos e em relação ao qual, em consequência, se pode razoavelmente afastar uma previsão de reincidência.
A nossa resposta é positiva.
O tribunal recorrido referiu em abstracto factores de prevenção geral associados à punição dos crimes de tráfico de estupefacientes, sem referência decisiva às circunstâncias do crime cometido. Mas, como vimos, o juízo sobre a garantia da prevenção geral, muito embora deva ter em conta a gravidade do tipo de crime, não pode deixar de assentar em factos individualizados. De outro modo o legislador teria criado um catálogo de crimes insusceptíveis de concessão de liberdade condicional ou com requisitos acrescidos. Não o fez e por isso o crime de tráfico não se distingue neste plano de qualquer outro. Obviamente que aceitamos a gravidade do crime de tráfico, o impacto das suas consequências na saúde pública e na segurança e a representação social muito negativa que sobre ele impende. Contudo, essa censura social não é unívoca. Não podemos comparar, neste plano, o tráfico de larga escala, em que o criminoso obtém lucros elevados e dissemina a droga por um conjunto vasto de pessoas, com um tráfico como aquele pelo qual o recorrente foi condenado, em que toda a droga foi apreendida imediatamente. A ilicitude expressa na lei, que nos dá a medida da gravidade do crime, é muito diferente numa e noutra situação. A censura social e as necessidades de prevenção geral também.
Na nossa avaliação, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso, que já referimos suficientemente, as razões de prevenção geral não são também impeditivas da concessão da liberdade condicional ao recorrente.
Consideramos, em conclusão, que o despacho recorrido interpretou e aplicou erradamente o artigo 61º nº 2 als. a) e b) do CP ao negar ao condenado a concessão de liberdade condicional e tem de ser revogado.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em conceder provimento ao recurso e em revogar a decisão recorrida, concedendo ao recorrente a liberdade condicional até ao termo da pena, sujeita às seguintes condições:
1) Residir na Rua …, nº …, …, …. - … – Matosinhos;
2) Aceitar a tutela da equipa de Reinserção Social responsável pelo acompanhamento em liberdade condicional;
3) Apresentar e manter um comportamento social ajustado e afastar-se de locais e indivíduos relacionados com práticas marginais;
4) Diligenciar e manter a inserção laboral, fazendo prova das acções realizadas no período do primeiro mês em liberdade condicional.
Determina-se, em consequência, que cesse de imediato o cumprimento da pena de prisão à ordem dos presentes autos.
Notifique-se de imediato o arguido do presente acórdão e comunique-se ao TEP.

Sem custas.
Porto, 18 de Abril de 2018
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado