Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
206/15.8T9ETR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DONAS BOTTO
Descritores: LITISPENDÊNCIA
DESPACHOS SOBRE A MESMA QUESTÃO
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RP20170927206/15.8T9ETR.P1
Data do Acordão: 09/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 47/17, FLS.177-183)
Área Temática: .
Sumário: Se no despacho proferido depois da apresentação da contestação, se decidiu, sem impugnação, julgar improcedente a ali invocada, excepção do caso julgado ou da litispendência e se ordenou o prosseguimento dos ulteriores e regulares termos do processo, sob pena de violação do caso julgado, não se pode depois na sentença voltar a apreciar a mesma matéria e, muito menos decidir em sentido contrário e julgar verificada a excepção da litispendência e declarar extinto o procedimento criminal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 206/15.8T9ETR.P1

Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto
I- RELATÓRIO
O Ministério Público acusou, em processo comum, com a intervenção do tribunal singular, os arguidos:
B…, filho de C… e de D…, nascido em 1.1.1951, natural de …, Lisboa, casado, comerciante, residente …, nº…, …, Estarreja;
E…, filha de F… e de G…, nascida em 12.10.1964, natural de Aveiro, casada, residente …, nº…, …, Estarreja;
H…, filha de I… e de J…, natural da …, Estarreja, nascida em 10.5.1936, viúva, reformada, residente na Rua …, …, …, Estarreja,
e
K…, filha de L… e de H…, natural da …, Estarreja, nascida em 07.03.1962, florista, residente na Rua …, …, …, Estarreja;

Imputando, aos primeiros dois arguidos, em co-autoria, a prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelos artigos 26º, 365º, nºs 1 e 2 do Código Penal, à arguida H… a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, nº1 do Código Penal e à arguida K… a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, nº1 do Código Penal e um crime de abuso e simulação de sinais de perigo, p. e p. pelo artigo 306º do código Penal.
Foi designado dia para audiência de discussão e julgamento.
Após aquele despacho não ocorreu qualquer nulidade.
M… constituiu-se como assistente, aderiu à acusação deduzida pelo Ministério Público e deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, por danos não patrimoniais, pedindo a condenação de B… e E… no pagamento de €1500,00 cada um, de K… na quantia de €1000,00 e H… na quantia de €750,00.
H… e K… apresentaram contestação, alegando não terem praticado os factos de que vêm acusadas e terem já sido julgadas pelos mesmos factos, no âmbito do processo nº 551/13.7GCETR.
E… deduziu contestação, alegando já ter sido julgada pelos factos que lhe são imputados neste processo, no âmbito do processo 551/13.7GCETR.
B… apresentou contestação, invocando, igualmente, já ter sido julgado pela prática destes factos.
Mantêm-se válidos os pressupostos formais da instância, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.
Procedeu-se a julgamento com intervenção do Tribunal Singular, após o que foi proferida sentença com a seguinte:
- DECISÃO:
Parte criminal
Em face do exposto, julgo verificada a excepção de litispendência, pelo que, declaro extinto o procedimento criminal contra os arguidos E… e B…, pela prática do crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365º do CP e contra as arguidas K… e H…, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, do Código Penal.
No mais, julgo a acusação improcedente por não provada e, em consequência absolvo a arguida K… da prática de um crime de simulação e abuso de sinais de perigo p. e p. pelo artigo 306º do Código Penal.
Custas pela assistente, que se fixam no mínimo legal – artigos 513º e 514º e 517º, a contrario, do CPP e artigo 8º, do RCP, e Tabela Anexa III.
Parte Cível
Julgo verificada a excepção de litispendência e, em consequência, absolvo os demandados E…, B…, K… e H… do pedido de indemnização cível contra si formulado com base nos ilícitos de denúncia caluniosa e falsidade de testemunho.
No mais, julgo totalmente improcedente por não provado o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante M… contra K… e, consequentemente, absolvo a demanda do pedido de indemnização cível contra si formulado
Custas cíveis pela demandante – artigos 523º do CPP e 527º do CPC.
*********
*******
***
Inconformada com esta decisão, dela veio a assistente M… interpor recurso, alegando, em síntese, que se verifica o caso julgado da decisão proferida a 16 de Junho de 2016, que julgou não verificada a violação do princípio ne bis in idem, na vertente da litispendência e impossibilidade de nova apreciação da matéria na sentença; Erro de julgamento da matéria de facto; Responsabilidade criminal pela prática dos crimes de denúncia caluniosa e de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução; Escolha e determinação da medida da pena; Condenação em indemnização civil.
Pede que se altere a sentença e se condenem os arguidos B… e E…, pela prática, como co-autores materiais e na forma consumada, de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365.º nº 1 e 2 do Código Penal e as arguidas K… e H…, pela prática, como autoras materiais e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, p. e p. pelo art. 360.º nº 1 do Código Penal.
***
O MP em 1ª Instância é de parecer que o recurso deve improceder.
Nesta Relação o Sr. PGA é de parecer que o recurso deve ser parcialmente procedente, uma vez que não existe litispendência entre o crime de difamação e os crimes destes autos por os bens protegidos serem diferentes, pois naquele está em causa a honra e consideração pessoais, e aqui os crimes em apreço visam a protecção da realização da justiça, pelo que entende que os arguidos B… e E… devem ser condenados pela prática do crime de denúncia caluniosa.
***
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
Questão prévia
Da excepção de litispendência no despacho proferido em 16 de junho de 2016 e formação de caso julgado formal.

Considera a recorrente que o Sr. Juiz que procedeu ao julgamento e à elaboração da sentença recorrida, decidiu em sentido contrário ao que já sido decidido pelo anterior magistrado titular do processo, julgando verificada a excepção da litispendência e, consequentemente, declarou extinto o procedimento criminal contra os arguidos E… e B…, pela prática do crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º do Código Penal, e contras as arguidas K… e H…, pela prática do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º do Código Penal, e absolveu-os, por isso, do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente.
Efectivamente, nas suas contestações, a arguida E… invocou que os factos objecto dos presentes autos estavam já a ser apreciados no âmbito do processo 511/13.7GCETR e os restantes arguidos que já aí tinham sido julgados.
Foi junta aos autos certidão da sentença proferida no referido processo e informação de que a mesma se encontrava pendente de apreciação em sede de recurso (cfr. fls. 448 e seguintes e informação de fls. 461), e, ouvidas a assistente e o Ministério Público, foram as excepções de caso julgado e da litispendência objecto de apreciação por despacho proferido em 16 de Junho de 2016.
Ora, neste despacho, foi julgada improcedente, por não verificada, a invocada excepção (violação do princípio ne bis in idem), e, em consequência, determinou-se o prosseguimento dos ulteriores e regulares termos do processo.
Este despacho foi regularmente notificado à assistente, aos arguidos e ao Ministério Público e não foi impugnado por recurso.
Porém, o Tribunal a quo, ao proferir a sentença, voltou a apreciar a mesma matéria e decidiu em sentido contrário, isto é, pela verificação da excepção da litispendência e, consequentemente, pela extinção do procedimento criminal contra os arguidos.
***
Perante estas duas decisões contraditórios que incidem sobre o mesmo tema, há que determinar a que predomina.
Vejamos.
Dispõe o nº 1 do artigo 311º do CPP, que: “Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.”
Por sua vez, o nº 1, alínea a), do artigo 595.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável, ex vi do artigo 4º do CPP, refere que o despacho saneador se destina a “conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente.” E a primeira parte do n.º 3 do mesmo artigo refere que tal despacho, “na hipótese prevista na alínea a), constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas;”, sendo que o nº 1 do artigo 620º dispõe que: “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”
Assim, a decisão que incida sobre a procedência ou improcedência da excepção de litispendência (excepção dilatória, artigo 577º, alínea i) e artigo 595º, nº 1, alínea a), do CPC), transitada em julgado, tem força obrigatória dentro do processo (artigos 595º e 620º do CPC).
Por isso, tendo o Sr. Juiz, então titular do processo, concluído pela improcedência da excepção da litispendência, decisão transitada em julgado, estava vedado a outro Sr. Juiz que veio a proferir a sentença sob recurso, debruçar-se novamente sobre a mesma questão.
Refira-se a este propósito o que se escreveu no Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Outubro de 2010, e citado pela recorrente, no âmbito do Processo 3554/02.3TDLSB.S2, disponível em www.dgsi.pt :
“…o caso julgado enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão.
Com o conceito de caso julgado formal refere-se a inimpugnabilidade de uma decisão no âmbito do mesmo processo (efeito conclusivo) e converge com o efeito da exequibilidade da sentença (efeito executivo). Por seu turno o caso julgado material tem por efeito que o objecto da decisão não possa ser objecto de outro procedimento. Como refere AE… a coisa julgada formal refere-se ao interior do processo enquanto que a coisa julgada material refere às relações exteriores desse processo já resolvido (vinculando outros processos em curso) ou seja o efeito exterior ao primeiro processo.
Na verdade, e conforme refere Castro Mendes, o caso julgado formal consubstancia-se na mera irrevogabilidade do acto, ou decisão judicial, que serve de base a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, uma inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo. No caso julgado formal (art. 672° do Cód. Proc. Civil), a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidente com o fenómeno de simples preclusão.
Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicatï) - cfr. Acs. do Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 2002, Proc. 3924/01, e de 3 de Março de 2004, Proc. 215/04. O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo-, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.
Para Damião da Cunha os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional - querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no pro-cedimento). Este raciocínio, adianta o mesmo Autor vale, não só em primeira instância, como em segunda ou terceira instância (embora o grau de vinculação dependa da especificidade teleológica de cada grau de recurso). E este mecanismo vale - ao menos num esquema geral - para qualquer tipo de decisão, independentemente do seu conteúdo, isto é, quer se trate de uma decisão de mérito, quer de uma decisão «processual».
Neste sentido, qualquer decisão que se dirige apenas às decisões de mérito contém um efeito de vinculação intra-processual. Do que se trata é, pois, e nesta medida, de um qualquer exercício de poderes públicos (em que incontestavelmente se insere a função jurisdicional) ter que percorrer um determinado iter formativo para que legitimamente se possa manifestar; assim o que está em causa é que, no exercício da função jurisdicio-nal (repetindo, todavia, que não se trata de um problema exclusivo da função jurisdicional), uma determinada decisão sobre a culpabilidade, tomada por forma legítima (porque, supostamente, se percorreu um iter formativo) e incontestável (porque dela não se interpôs recurso), produza os seus efeitos: a) o efeito negativo, no sentido de não poder ser colocada novamente em «juízo»; e b) positivo, no sentido de que, no decorrer da actividade jurisdicional, as questões subsequentes que estejam numa relação de «conexão» não coloquem em causa o já decidido - ou seja, existe o dever de retirar as consequências jurídicas que decorrem da anterior decisão.»

Assim sendo, ocorre caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução. O caso julgado respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito (cfr. Ac.s do STJ de 02.12.2010 no proc. n.º 3564/10.7TXLSB-F.S1); e de 12.11.2008, proc. n.º 08P2868).
Não desconhecemos que o STJ, no AUJ nº 2/95, uniformizou jurisprudência no sentido de que “A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento.”.
Porém, esta jurisprudência vale para as situações em que o tribunal se pronuncia genericamente sobre elas, daí que não fique impedido de, posteriormente, voltar a pronunciar-se sobre as mesmas, a menos que sobre elas tenha emitido pronúncia expressa e não se verifique alteração superveniente (cfr. anotação ao art.º 311º do CPP pelo Sr. Conselheiro Oliveira Mendes, in CPP comentado, pág. 1029, Almedina, 2014).
Ora, no caso concreto, a questão foi levantada pelos arguidos na contestação e sobre ela recaiu um despacho específico que lhe deu uma resposta concreta (despacho de 16 de Junho de 2016).
Assim, temos que concordar que a decisão definitiva sobre a excepção da litispendência que consta do despacho proferido em 16 de junho de 2016 constitui caso julgado formal, impedindo qualquer nova apreciação, estando vedada qualquer apreciação da mesma questão, pois aquela decisão já era definitiva.
Assim sendo, há que determinar agora, qual a consequência para a decisão ou a sentença, que violam o caso julgado formal.
Sobre este ponto, passamos a citar o que, a propósito, se diz no Ac. STJ de 15-2-2007, in www.dgsi.pt:
A consequência jurídica «…Não é a nulidade, pois o art.º 118.º do CPP indica que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. E nem os art.ºs 119.º e 120.º a enumeram nas nulidades insanáveis e sanáveis, nem o art.º 672.º do CPC comina a violação do caso julgado formal com nulidade.
Esta última norma indica que tem força obrigatória, pelo que, obviamente, pode ser conhecida oficiosamente, a todo o tempo, no decorrer do processo. Mas essa força obrigatória também não conduz à inexistência jurídica, pois o despacho ou a sentença existem, «desde que reúna(m) o mínimo de requisitos indispensáveis ao acto jurisdicional; o que sucede é que a sua eficácia jurídica está prejudicada, ou melhor, paralisada, pela força e autoridade do julgado anterior» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 196 e 197).
A sua sanção é, pois, essa e, logicamente, prejudicada fica também a eficácia de todas as decisões que se produziram como consequência necessária da violação do caso julgado formal.»

Não podemos deixar de concordar com o que acaba de se expôr.
Por tudo isto, não obstante a bondade e a bem fundamentada decisão, ora sob recurso, temos de admitir que a mesma não tem eficácia jurídica, bem como todo o processado que se lhe seguiu, ficando desde logo prejudicadas as demais questões levantadas no recurso pela assistente, pois se encontram interligadas.

Pelo exposto, acorda-se em declarar sem qualquer eficácia a sentença recorrida e todo o processado posterior, devendo ser proferida outra decisão que respeite o caso julgado formal em relação á sobredita questão da litispendência e conheça do mérito do julgamento.

Sem tributação.

Porto, 27-09-2017
Donas Botto
José Carreto