Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1159/22.1T9VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
PROCESSO ADMINISTRATIVO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRRECORRIBILIDADE
EXCEPÇÕES
Nº do Documento: RP202305171159/22.1T9VCD.P1
Data do Acordão: 05/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO APRESENTADA PELO RECORRENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No processo administrativo autónomo visa-se apenas produzir uma ordem de cassação da carta de condução, após verificação da ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao respetivo titular – art.º 148º, nº 10, do Código da Estrada (CE). Ou seja, uma decisão que é proferida após, apenas e por causa da verificação da soma negativa dos pontos correspondente ao somatório das contraordenações ou crimes praticados, entretanto já objeto de decisões transitadas em julgado.
II – A decisão do tribunal de primeira instância sobre o mérito da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o recorrente, nos termos do art.º 148º, nºs 4, al. c), e 10, do CE, não será suscetível de recurso para o tribunal da relação, se tal recurso tiver por base as normas das al. a) a c) do nº 1 do art.º 73º do RGCO, ex vi art.º 186º do CE, na medida em que nelas se pressupõe que esteja em causa a aplicação de uma coima ou de uma coima e uma sanção acessória, que a decisão de cassação de todo não contempla. E também não será suscetível de recurso nos casos em que não se verifique nenhum dos pressupostos de admissibilidade previstos no nº 1, al. d) e e), ou no nº 2 do mesmo artigo, ou seja, que a impugnação judicial tenha sido rejeitada, ou o tribunal tenha decidido através de despacho, não obstante o recorrente se ter oposto a tal modo de decisão ou que, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, haja fundamento para o tribunal da relação aceitar o recurso da sentença proferida em primeira instância, por tal se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
III – Resulta claro da norma do art.º 73º, nº 1, al. d), do RGCO que a recorribilidade ali prevista se fundamenta no facto de a rejeição da impugnação judicial se traduzir numa recusa por parte do tribunal de primeira instância em conhecer do mérito daquela impugnação. Sendo o direito a uma decisão de caráter jurisdicional, efetiva e não meramente formal, que se visa garantir com esse fundamento de possibilidade de recurso.
IV – Como vem sendo reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, a garantia do acesso ao direito e aos tribunais, não significa a imposição constitucional da generalização do duplo grau de jurisdição. Isto é: “salvo em processo penal, não pode afirmar-se a vigência de um direito ao recurso de toda e qualquer decisão jurisdicional, podendo o legislador restringir esse direito, para garantia de outros valores constitucionais”.
V – Se considerarmos que no direito das contraordenações rege o princípio da irrecorribilidade das decisões, sendo estas recorríveis apenas nos casos previstos na lei, in casu, para o tribunal da relação, nos termos expressamente previstos no art.º 73º do RGCO, então poderá dizer-se que as normas deste artigo comungam da natureza jurídica das normas excecionais, porquanto o regime regra é a irrecorribilidade das decisões, sendo a recorribilidade um regime àquele oposto, determinado de um modo perfeitamente delimitado, constituindo um verdadeiro ius singulare, “diretamente determinado por razões indissociavelmente ligadas ao tipo de casos que a norma excecional contempla”. Sucedendo o contrário no direito processual penal, por razões atinentes à diferente natureza das normas em causa, em que a regra é a recorribilidade das decisões e a exceção a sua irrecorribilidade – art.ºs 399º e 400º do CPP. Mas em qualquer caso sendo de se considerar que em matéria de recursos a sua admissibilidade está perfeitamente regulada, não ocorrendo por isso, nem podendo ocorrer, quaisquer lacunas. Devendo a interpretação de tais normas ser feita de molde a evitar que “mediante uma interpretação excessivamente lata das disposições excecionais, ou mediante a sua aplicação analógica, o propósito de regulação do legislador se transmute afinal no seu contrário”.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1159/22.1T9VCD.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO
1.1. No dia 14 de abril de 2023, ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 417º, nº 6, al. b), 414º, nºs 2 e 3, e 420º, nº 1, al. b), do CPP, o relator proferiu nestes autos a seguinte decisão sumária, que, após retificação de lapso material, é do seguinte teor:
1. Relatório
1.1. Em processo administrativo autónomo de cassação do título de condução, com o nº 628/2020, considerando estarem verificados os pressupostos da cassação previstos na al. c) do nº 4 e no nº 10 do art.º 148º do Código da Estrada, pelo Senhor Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), foi ordenada a cassação do título de condução nº ..., de que é titular AA.
1.2. Não se conformando com tal decisão administrativa, veio AA, ao abrigo do disposto no art.º 148º, nº 13, do CE, impugná-la judicialmente no Juízo Local Criminal de Vila do Conde, Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, impugnação essa que correu termos sob o Processo n.º 1159/22.1T9VCD, culminando com a prolação de sentença, depositada na secretaria a 10/01/2023, na qual foi decidido manter aquela decisão administrativa.
1.3. Não se conformando novamente com o decidido, vem agora AA interpor recurso para este Tribunal da Relação do Porto.
1.4. O recurso foi admitido pelo despacho de 08/02/2023, e com fundamento no disposto nos art.ºs 73º, 74º e 75º do DL nº 433/82, de 27/10 e dos art.ºs 399º e 401º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal.
1.5. O Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso.
1.6. O Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo também pela improcedência do recurso.
1.7. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
1.8. Tendo em conta os fundamentos do recurso, e os poderes de cognição deste Tribunal, importa antes de mais apurar se o recurso interposto é legalmente admissível.
2. Fundamentação
O despacho proferido nos autos (pese embora haja sido denominado sentença na primeira instância), nos termos do qual, ao abrigo do art.º 64º do RGCO, ex vi art.º 148º, nº 13, do CE, se conheceu do mérito da impugnação judicial da decisão administrativa, que havia ordenado a cassação do título de condução de que é titular AA, só seria suscetível de recurso para este Tribunal se o art.º 73º do RGCO o permitisse.
É isso que exatamente resulta da remissão do art.º 186º do Código da Estrada, ao dizer que “As decisões judiciais proferidas em sede de impugnação de decisões administrativas admitem recurso no termos da lei geral aplicável às contraordenações”, norma que nos remete para o art.º 73º do RGCO, que diz o seguinte:
“1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.”
Ora, a decisão administrativa objeto da impugnação judicial, não conheceu de nenhuma contraordenação, não tendo sido por isso aplicada através dela qualquer coima e logicamente também nenhuma sanção que dela pudesse ser considerada acessória, assim como não foi decidida a absolvição ou o arquivamento de processo, no qual a autoridade administrativa tivesse aplicado uma coima, para que a possibilidade de recurso para o tribunal da relação coubesse nas al. a), b) e c), do art.º 73º. Aliás, nem sequer se poderá falar da prolação de uma decisão no âmbito de um processo contraordenacional, ou chamar ao recorrente arguido, porque em verdade não o é, sendo que para tal necessário seria que a decisão administrativa assentasse num procedimento administrativo, no qual se tivesse decidido a aplicação de uma coima e eventualmente também de uma sanção acessória, nos termos previstos nas disposições conjugadas dos art.ºs 1º e 33º do RGCO, e sabemos que não foi isso que aconteceu no caso autos, porquanto as coimas e sanções acessórias que, após o trânsito em julgado das respetivas decisões, determinaram a abertura do procedimento administrativo autónomo onde foi comunicada a decisão de cassação que deu origem à impugnação judicial, e que constituem o seu primeiro e último fundamento material, foram aplicadas em processos já extintos, dois deles processos de contraordenação e o terceiro um processo crime, nos quais, aí sim, foram aplicadas as seguintes sansões, a título principal e acessório:
1- No processo de contraordenação n.º ..., o arguido foi condenado, por decisão proferida em 20.05.2019, transitada em julgado em 05.07.2019, pela prática, em 29.11.2017, da contraordenação muito grave p. e p. pelos artigos 81º nºs 1 e 6 al. b) e 146º al. j), ambos do Código da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 dias, com consequente perda de cinco pontos, nos termos previstos na al. b) do nº1 do artigo 148º do Código da Estrada;
2- No processo de contraordenação nº ..., o arguido foi condenado, por decisão proferida 14.08.2018, transitada em julgado em 04.12.2018, pela prática, em 08.11.2017, da contraordenação grave p. e p. pelos artigos 150º nºs 1 e 2 e 145º nº 2, ambos do Código da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, com consequente perda de dois pontos, nos termos previstos na al. a) do nº1 do artigo 148º do Código da Estrada;
3- No processo nº 117/18.5GBVLG do Juízo Local Criminal de Valongo, J2, Comarca do Porto, o arguido foi condenado, por sentença proferida em 10.04.2019 e transitada em julgado em 05.07.2019, pela prática, em 11.04.2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a) do Código Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses e 15 dias, com consequente perda de seis pontos, nos termos previstos no artigo 148º nº 2 do Código da Estrada.
Também nos autos se não verifica o pressuposto contido na al. e) do nº 1 do art.º 73º, que prevê a admissibilidade do recurso para o tribunal da relação quando o tribunal de primeira instância decida a impugnação judicial através de despacho não obstante o recorrente a tal se ter oposto, pois no caso dos autos o recorrente declarou nada ter a opor a um tal meio de decisão.
Finalmente, também não vislumbramos o preenchimento da hipótese prevista no nº 2 do mesmo artigo, ou seja, que o recurso fosse de admitir, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, por “tal se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”. Não só porque não se vislumbra onde o mesmo pudesse ser manifestamente necessário, com o sentido de se poder concluir que a decisão judicial padeceria de “erros claros”, pelos quais, face ao “entendimento jurisprudencial amplamente adotado, repugne manter na ordem jurídica a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito”[1], mas também porque tal não foi requerido pelo arguido ou pelo Ministério Público, requerimento no qual teriam de fazer a menção prévia dos factos demonstrativos daquela manifesta necessidade[2].
Se considerarmos que no direito das contraordenações rege o princípio da irrecorribilidade das decisões[3], sendo estas recorríveis apenas nos casos previstos na lei, in casu, e para o tribunal da relação, nos termos expressamente previstos no art.º 73º do RGCO, então poderá dizer-se que as normas deste artigo comungam da natureza jurídica das normas excecionais, porquanto o regime regra é a irrecorribilidade das decisões, sendo a recorribilidade um regime àquele oposto, determinado de um modo perfeitamente delimitado, constituindo um verdadeiro ius singulare, “diretamente determinado por razões indissociavelmente ligadas ao tipo de casos que a norma excecional contempla”[4]. Sucedendo o contrário no direito processual penal, por razões atinentes à diferente natureza das normas em causa, em que a regra é a recorribilidade das decisões e a exceção a sua irrecorribilidade – art.ºs 399º e 400º do CPP. Mas em qualquer caso sendo de se considerar que em matéria de recursos a sua admissibilidade está perfeitamente regulada, não ocorrendo por isso, nem podendo ocorrer, quaisquer lacunas[5].
Valendo para a interpretação das normas do art.º 73º do RGCO as considerações tecidas por Karl Larenz para a interpretação das normas excecionais, no sentido de que com as mesmas se pretende evitar que, “mediante uma interpretação excessivamente lata das disposições excecionais, ou mediante a sua aplicação analógica, o propósito de regulação do legislador se transmute afinal no seu contrário”[6]. E, ainda mais eloquentemente, no âmbito da fundamentação da impossibilidade da aplicação analógica, impossibilidade, aliás, expressamente prevista no art.º 11º do Código Civil, cuja norma apenas admite a interpretação extensiva, o Professor José Dias Marques, quando diz: “(…) a natureza da relação existente entre a norma exceção e a norma-regra, não é compatível com a existência de lacunas ou casos omissos. Uma vez que a norma exceção se traduz, como foi dito, em uma subtração ao campo virtual de aplicação da norma-regra, daí resulta que esta possui vocação para alcançar todos os casos não abrangidos por aquela. Entre o espaço ocupado pela norma-exceção e o ocupado pela norma-regra não há lugar a qualquer brecha ou lacuna que necessite de colmatagem, pois a elasticidade própria da regra faz que o seu campo de aplicação vá exatamente até onde não chega a exceção. Ora, sendo assim, isto é, se o que não cabe na exceção há de por força caber na regra, um caso omisso é, em tais circunstâncias, inconcebível”[7].
Ora, voltando ao caso dos autos, voltemos também ao art.º 148º do Código da Estrada, no qual apenas se refere a possibilidade de impugnação judicial da decisão administrativa de cassação da carta de condução, e ao art.º 186º, que estabelece a admissibilidade do recurso, mas nos termos em que a mesma esteja prevista na lei geral aplicável às contraordenações. Logo, apenas nas hipóteses previstas no art.º 73º do RGC.
Diz o art.º 148º, nº 13, que “A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações”.
Tal norma, inicialmente contida no nº 5 do art.º 148º do CE, foi o resultado da alteração operada pela Lei nº 72/2013, de 03/09, ao complexo normativo anteriormente existente, também na sequência da alteração ao nº 2 do mesmo artigo, no qual se passou a determinar, ao contrário do que antes sucedia, que a cassação do título seria ordenada logo que as condenações pelas contraordenações se tornassem definitivas, organizando-se, tal como agora sucede, após a alteração operada ao mesmo artigo pela Lei 116/2015, de 28/08, um processo autónomo para a verificação dos pressupostos da cassação. Diz-se agora no nº 10 do mesmo artigo: “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.” Ou seja, após o trânsito em julgado das condenações pela prática das contraordenações ou dos crimes que determinam ou constituem o fundamento material para a cassação da carta, porquanto é com tais condenações e o trânsito em julgado das respetivas decisões, que se opera a perda dos pontos, cujo somatório levará automaticamente à cassação do título de condução.
Ora, os factos constitutivos das contraordenações ou dos crimes que, na soma pontual a eles correspondente, impõem a cassação da carta, não voltam nem poderiam voltar a ser julgados no processo administrativo de cassação, sob pena de violação do princípio ne bis in idem[8].
O que no processo administrativo autónomo se visa é apenas produzir uma ordem de cassação da carta de condução, após verificação da ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao titular da carta de condução – cf. art.º 148º, nº 10, do CE. Ou seja, decisão que é proferida após e apenas por causa da verificação da soma negativa dos pontos correspondente ao somatório das contraordenações ou crimes praticados, entretanto objeto de decisões já transitadas em julgado. Soma essa que está pré-anunciada, de um modo perfeitamente previsível, transparente, tanto quanto pedagógico, para o respetivo titular da licença, que não pode ignorar ou deixar de saber que a cassação da carta é um resultado meramente reflexo do trânsito em julgado daquelas decisões condenatórias e não da ordem administrativa de cassação, que apenas executa a consequência jurídica daquelas adveniente. E tanto assim é que a efetivação da cassação ocorre com a sua notificação ao titular da carta (“A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação” - art.º 148º, nº 12, do CE) e desse modo também lhe comunicando algo que já deveria saber, por força das anteriores condenações e da perda total de pontos que as mesmas representavam, isto é, que deixou de ter as condições de aptidão que estiveram na base da concessão do título de condução, e assim se verificando a caducidade do título de condução que inicialmente lhe tinha sido atribuído – art.º 130º, nº 1, al. d), do CE.
Assim, é bom de ver que a cassação da carta a que se refere o art.º 148º do CE não é uma sanção contraordenacional, porquanto não traduz em si a aplicação de qualquer coima – art.º 1º do RGCO -, nem é uma sanção acessória da coima, porquanto lhe falta o requisito de simultaneidade, no sentido de que as sanções acessórias têm de ser objeto de decisão condenatória e aí aplicadas ao mesmo tempo que é aplicada uma coima, de cuja imposição a título principal dependem, bem como o requisito de proporcionalidade (seja quanto ao âmbito, seja quanto à própria decisão da sua aplicação, ou não, e sempre em função da gravidade da infração cometida, ou ainda da existência de outras sanções acessórias que com ela possam ser concorrentes, nomeadamente as descritas no nº 1 do art.º 21º do RGCO ou as previstas no Código da Estrada, nomeadamente no seu art.º 138º), e o requisito da não automaticidade, isto é, que a sua aplicação dependa, não só da gravidade da infração cometida mas também da culpa do respetivo agente - art.º 21º, nº 1, do RGCO.
A cassação do título de condução pela verificação da perda total dos pontos de que era beneficiário o respetivo titular, é assim determinada automaticamente, não havendo necessidade de ponderação ou avaliação de qualquer comportamento ilícito e culposo daquele, ou da necessidade e adequação daquela medida à satisfação de quaisquer necessidades de prevenção, porquanto uma tal ponderação já foi efetuada a montante, assentando a inaptidão para o exercício da condução, que a cassação da carta pressupõe, nas anteriores condenações de que foi alvo o titular da carta de condução pela prática de infrações penais ou contraordenacionais graves ou muito graves, nas quais, além das penas e coimas, lhe foram aplicadas sanções acessórias de proibição ou de inibição de conduzir.
Do que fica exposto, somos levados a concluir que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância sobre o mérito da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o recorrente, nos termos do art.º 148º, nºs 4, al. c), e 10, no CE, não é suscetível de recurso para o tribunal da relação, desde logo por não se verificar a possibilidade de preenchimento de qualquer dos requisitos constantes das al. a) a c) do nº 1 do art.º 73º do RGCO, os quais pressupõem que esteja em causa a aplicação de uma coima ou de uma coima e de uma sanção a ela acessória. E ademais porque no caso dos autos também se não verifica nenhum dos pressupostos de admissibilidade do recurso, previstos no nº 1, al. d) e e) ou no nº 2 do mesmo artigo, ou seja, que a impugnação judicial tivesse sido rejeitada, ou o tribunal tivesse decidido através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal modo de decisão ou que, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, houvesse fundamento para este Tribunal da Relação aceitar o recurso da sentença proferida em primeira instância, por tal se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Sobre a questão da irrecorribilidade ou recorribilidade das decisões judiciais proferidas em sede de impugnação de decisões administrativas de cassação do título de condução, já se pronunciou este Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 28/04/2021[9], no qual foi relatora a Exma. Sra. Juíza Desembargadora Dra. Eduarda Lobo, aí se considerando inadmissível tal recurso, por não estar verificado um qualquer pressuposto dos previstos no art.º 73º do RGCO. Aí também se considerando que a regra vigente no direito das contraordenações é a não recorribilidade das decisões proferidas sobre a impugnação judicial das decisões administrativas[10]. Aí se acrescentando que a decisão administrativa de cassação da carta não traduz a aplicação de qualquer coima ou sanção acessória, para que da sentença proferida sobre a impugnação judicial daquela decisão fosse possível interpor recurso, à luz do art.º 73º do RGCO, ademais por a primeira ser “uma decisão que não envolve necessidade de interpretação de regras de direito, sendo o grau de impugnação para os tribunais judiciais a que alude o nº 13 do art.º 148º do CE manifestamente suficiente para garantia de defesa dos interesses em causa.”
Razão por que, não estando este Tribunal vinculado à decisão de admissão do recurso proferida pelo Tribunal a quo, e de harmonia com as disposições conjugadas dos art.ºs art.º 414º, nºs 2 e 3, e 420º, nº 1, al. b), do CPP, deverá ser rejeitado o recurso interposto, por inadmissibilidade legal.
Uma vez que o recorrente vê rejeitado o recurso, além de ser responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu causa (art.ºs 515.º e 514.º, nº 3, do Código de Processo Penal), deverá ser ainda condenado numa importância situada entre 3 UC e 10 UC, nos termos do art.º 420º, nº 3, do CPP.
Nos termos do disposto no art.º 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa no mínimo legal e em 3 UC a importância a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP.
3. Dispositivo
Face ao exposto, decido:
a) Rejeitar o recurso interposto pelo recorrente AA;
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC, e ainda no pagamento da importância de 3 UC, a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP.”
1.2. Não se conformando, veio o recorrente, ao abrigo do disposto no art.º 417º, nº 8, do CPP, reclamar para a conferência, quer da decisão sumária, quer da condenação nas custas e na sanção prevista no art.º 420º, nº 3, do CPP, alegando como fundamento, em síntese, que a posição defendida naquela decisão, no segmento da não admissibilidade do recurso, “é naturalmente intolerável e ofende, se mais não for, o princípio constitucional à defesa consagrado no art.º 20º da CRP que, inserido no âmbito dos direitos liberdades e garantias (núcleo “duro” e inatacável de direitos), justamente ordena que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”. Concluindo que não pode existir uma qualquer decisão administrativa que não seja fiscalizável ou controlável pelo sistema judiciário”.
Além disso, contrapõe à fundamentação da decisão agora posta em crise, a sua opinião, de que, “considerando o sistema judicial como um todo (…) a regra é a da recorribilidade pela aplicação das leis processuais penais ao regime contraordenacional”, fazendo a comparação entre a decisão “gravosa”, em que se traduz a cassação da carta com uma “menos gravosa”, como a aplicação de uma simples coima de 250,00€, ou aplicação de uma sanção acessória. Além disso, invoca o argumento de que a admissão do recurso caberia na al. d) do nº 1 do art.º 73º, porquanto, no seu entender, “o termo ‘rejeitada’ pode e deve ser atendido de uma forma mais ampla do que a mera não admissão formal do recurso” ou, quando muito, deveria ser admitido à luz do art.º 73º, nº 2, do RGCO, pela “necessidade de se efetuar uma discussão alargada” sobre a admissibilidade do recurso.
A argumentação tecida pelo recorrente, finalisticamente dirigida à defesa, a todo o custo, dos seus interesses no presente processo, não tem em conta o que de específico se deixou expresso na decisão sumária ora reclamada, nomeadamente o facto de as normas do art.º 73º do RGCO comungarem da natureza das normas excecionais e não admitirem por isso a sua aplicação analógica, que é precisamente o que o recorrente pretende ao invocar o sistema judicial como um todo (…) para a partir dessa invocação concluir que a regra nos recursos de contraordenação é a recorribilidade, por aplicação das leis processuais penais ao regime contraordenacional. Olvidando o que ficou referido na decisão sumária proferida, com apoio doutrinal claro, de que no regime geral das contraordenações a regra é a irrecorribilidade e a recorribilidade a exceção.
Mas seguindo a ordem das questões colocadas pelo recorrente, a primeira delas tem por objeto a inconstitucionalidade da decisão sumária proferida, considerando que a posição nela adotada “ofende, se mais não for, o princípio constitucional à defesa, consagrado no art.º 20º da CRP, que, inserido no âmbito dos direitos, liberdades e garantias (núcleo ‘duro’ e inatacável de direitos), justamente ordena que a ‘A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos’”.
Porque não só as leis como também as próprias decisões judiciais se devem sujeitar aos mesmos princípios constitucionais[11], seria passível de crítica a decisão recorrida, nomeadamente a que lhe vem dirigida pelo recorrente, caso a mesma traduzisse uma violação da garantia constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, prevista no art.º 20º da CRP, assim como, ou especialmente, o direito ao recurso previsto no art.º 32º, nº 1, da CRP.
Como vem sendo reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, a garantia do acesso ao direito e aos tribunais, não significa a imposição constitucional da generalização do duplo grau de jurisdição.
Entre outros, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 143/2016, de 09 de março de 2016 o seguinte:
«Da jurisprudência sedimentada do Tribunal Constitucional decorre que a garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da CRP não implica a generalização do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de ampla margem de conformação no que toca a determinar os requisitos de admissibilidade dos recursos. Assim já o afirmou o Tribunal Constitucional por diversas vezes. Vejamos.
No Acórdão n.º 415/2001, afirmou-se que não pode extrair-se dos artigos 20º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP, qualquer ‘direito absoluto e irrestringível ao recurso’, cabendo ao legislador – em função da necessidade de proteção de outros bens jurídicos com dignidade constitucional, tal como o direito a um processo jurisdicional célere – uma ampla margem de liberdade quanto à fixação das matérias e situações justificadores desse mesmo recurso. Escreveu-se aí:
“(...) A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32º.
(...)
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer’. ‘Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados Acórdãos nº 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos nº 359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), nº 24/88, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e nº 450/89, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307)(…).»
‘Daqui resulta que, salvo em processo penal, não pode afirmar-se a vigência de um direito fundamental ao recurso de toda e qualquer decisão jurisdicional, podendo o legislador restringir esse direito, para garantia de outros valores constitucionais’.
Por seu turno, nos Acórdãos n.º 659/2006, n.º 95/2008 e n.º 355/2012, o Tribunal Constitucional realçou que o ‘direito fundamental ao recurso’ apenas é alvo de expressa garantia constitucional no caso de sanções penais, na medida em que o n.º 10 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa (CRP) apenas exige, em sede de processo jurisdicional de impugnação de contraordenações, que sejam garantidos os ‘direitos de audiência e de defesa’”»
Ou seja, como é referido no Acórdão do Tribunal Constitucional citado, “salvo em processo penal, não pode afirmar-se a vigência de um direito ao recurso de toda e qualquer decisão jurisdicional, podendo o legislador restringir esse direito, para garantia de outros valores constitucionais”.
Ora, foi no sentido da restrição do recurso aos casos previstos no art.º 73º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), que o legislador, na ampla margem de liberdade de que dispõe, deixou de fora de uma tal possibilidade o recurso da decisão judicial proferida pelo tribunal de primeira instância sobre o mérito da impugnação judicial da decisão administrativa de cassação da carta. E materialmente fundada, porquanto, como deixámos referido na decisão sumária ora reclamada, “a cassação do título de condução pela verificação da perda total dos pontos de que era beneficiário o respetivo titular, é assim determinada automaticamente, não havendo necessidade de ponderação ou avaliação de qualquer comportamento ilícito e culposo daquele, ou da necessidade e adequação daquela medida à satisfação de quaisquer necessidades de prevenção, porquanto uma tal ponderação já foi efetuada a montante, assentando a inaptidão para o exercício da condução, que a cassação da carta pressupõe, nas anteriores condenações de que foi alvo o titular da carta de condução pela prática de infrações penais ou contraordenacionais graves ou muito graves, nas quais, além das penas e coimas, lhe foram aplicadas sanções acessórias de proibição ou de inibição de conduzir.” Porquanto, como também aí é referido, “O que no processo administrativo autónomo se visa é apenas produzir uma ordem de cassação da carta de condução, após verificação da ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao titular da carta de condução – cf. art.º 148º, nº 10, do CE. Ou seja, decisão que é proferida após e apenas por causa da verificação da soma negativa dos pontos correspondente ao somatório das contraordenações ou crimes praticados, entretanto objeto de decisões já transitadas em julgado. Soma essa que está pré-anunciada, de um modo perfeitamente previsível, transparente, tanto quanto pedagógico, para o respetivo titular da licença, que não pode ignorar ou deixar de saber que a cassação da carta é um resultado meramente reflexo do trânsito em julgado daquelas decisões condenatórias e não da ordem administrativa de cassação, que apenas executa a consequência jurídica daquelas adveniente. E tanto assim é que a efetivação da cassação ocorre com a sua notificação ao titular da carta (“A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação” - art.º 148º, nº 12, do CE) e desse modo também lhe comunicando algo que já deveria saber, por força das anteriores condenações e da perda total de pontos que as mesmas representavam, isto é, que deixou de ter as condições de aptidão que estiveram na base da concessão do título de condução, e assim se verificando a caducidade do título de condução que inicialmente lhe tinha sido atribuído – art.º 130º, nº 1, al. d), do CE.”
Assim sendo, não vislumbramos como a decisão reclamada possa ter violado qualquer garantia de acesso ao direito ou à tutela jurisdicional efetiva, desde logo porque o mesmo já dispôs dela, na impugnação judicial que deduziu no tribunal de primeira instância, que dela conheceu, proferindo decisão sobre o respetivo mérito, exercendo tal tribunal o seu poder jurisdicional, segundo prerrogativas de independência e imparcialidade, sendo certo, por outro lado, que o recurso para o tribunal da relação de uma tal decisão foi vedado pelo legislador, nos termos expostos na decisão reclamada.
Por outro lado, para sustentar a posição que defende, parte o ora reclamante de uma premissa que não é verdadeira. Diz o reclamante: “a verdade é que não existe – não pode existir – uma qualquer decisão administrativa que não seja fiscalizável ou controlável pelo sistema judiciário”. E acrescenta: “Se admitíssemos, como esta decisão sumária entende, que a decisão de cassação se possa subtrair à ação judicial estaríamos a desproteger intoleravelmente o cidadão, expondo-o a possíveis abusos por parte da administração do Estado”.
Ora, não é verdade que a decisão administrativa não seja fiscalizável ou controlável pelo sistema judiciário, porquanto esse controlo existe e existiu no caso dos autos, através do julgamento e decisão proferida por um tribunal judicial.
Ignora o recorrente, por outro lado, e mais uma vez, o que foi dito na fundamentação da decisão sumária, e a doutrina aí citada sobre o princípio da irrecorribilidade das decisões, que vigora no direito das contraordenações, sendo estas apenas recorríveis nos casos expressa e taxativamente previstos na lei, mais exatamente no art.º 73º do RGCO. E ainda que as normas deste artigo “comungam da natureza jurídica das normas excecionais, porquanto o regime regra é a irrecorribilidade das decisões, sendo a recorribilidade um regime àquele oposto, determinado de um modo perfeitamente delimitado, constituindo um verdadeiro ius singulare, “diretamente determinado por razões indissociavelmente ligadas ao tipo de casos que a norma excecional contempla”. E que em matéria de recursos a sua admissibilidade está perfeitamente regulada, não ocorrendo por isso, nem podendo ocorrer, quaisquer lacunas, porquanto o que com tais normas se pretende evitar, citando-se Karl Larenz, é que, “mediante uma interpretação excessivamente lata das disposições excecionais, ou mediante a sua aplicação analógica, o propósito de regulação do legislador se transmute afinal no seu contrário”[12].
E seria isso que aconteceria se deslocássemos, como faz o recorrente, ignorando os processos criminal e contraordenacionais anteriores, que são o verdadeiro fundamento material e formal da cassação da carta, a gravidade de tais decisões ali proferidas, no lugar e tempo próprios, para a decisão administrativa posterior, como se fossem a esta inerentes, quando esta, afinal, visa apenas a execução do resultado de tais decisões, limitando-se o decisor a verificar os respetivos pressupostos, ou seja, fundamentalmente o trânsito em julgado das condenações pela prática das contraordenações ou dos crimes que determinam ou constituem o fundamento material para a cassação da carta, ademais porque, como se deixou expresso na decisão sumária, é com tais condenações e o trânsito em julgado das respetivas decisões que se opera a perda dos pontos que levam à cassação da carta.
Por isso, a decisão administrativa não pode sequer ser comparada a um qualquer processo decisório de aplicação de uma coima de 250,00€ ou de uma pena acessória, porquanto a aplicação de tais sanções ocorre num processo verdadeiramente contraordenacional, e a decisão administrativa de cassação da carta não.
Como foi referido na decisão sumária reclamada, “a cassação da carta a que se refere o art.º 148º do CE não é uma sanção contraordenacional, porquanto não traduz em si a aplicação de qualquer coima – art.º 1º do RGCO -, nem é uma sanção acessória da coima, porquanto lhe falta o requisito de simultaneidade, no sentido de que as sanções acessórias têm de ser objeto de decisão condenatória e aí aplicadas ao mesmo tempo que é aplicada uma coima, de cuja imposição a título principal dependem, bem como o requisito de proporcionalidade (seja quanto ao âmbito, seja quanto à própria decisão da sua aplicação, ou não, e sempre em função da gravidade da infração cometida, ou ainda da existência de outras sanções acessórias que com ela possam ser concorrentes, nomeadamente as descritas no nº 1 do art.º 21º do RGCO ou as previstas no Código da Estrada, nomeadamente no seu art.º 138º), e o requisito da não automaticidade, isto é, que a sua aplicação dependa, não só da gravidade da infração cometida mas também da culpa do respetivo agente - art.º 21º, nº 1, do RGCO.
A cassação do título de condução pela verificação da perda total dos pontos de que era beneficiário o respetivo titular, é assim determinada automaticamente, não havendo necessidade de ponderação ou avaliação de qualquer comportamento ilícito e culposo daquele, ou da necessidade e adequação daquela medida à satisfação de quaisquer necessidades de prevenção, porquanto uma tal ponderação já foi efetuada a montante, assentando a inaptidão para o exercício da condução, que a cassação da carta pressupõe, nas anteriores condenações de que foi alvo o titular da carta de condução pela prática de infrações penais ou contraordenacionais graves ou muito graves, nas quais, além das penas e coimas, lhe foram aplicadas sanções acessórias de proibição ou de inibição de conduzir.”
A natureza, portanto, das normas do art.º 73º do RGCO, decorrente do princípio da irrecorribilidade das decisões para os tribunais de relação, fora dos casos ali taxativamente previstos, impossibilita a existência de uma qualquer lacuna, afastando assim também a possibilidade da sua aplicação analógica, sob pena de se trair o propósito de regulação do legislador e de se decidir em contrário do que por ele foi estatuído. Sendo precisamente isso que o recorrente pretende, ao estabelecer, ademais sem qualquer suporte material que o possibilitasse, como deixámos referido supra, uma analogia entre a aplicação das coimas e das sanções acessórias em processo contraordenacional, para por essa via abrir uma janela através da qual fizesse entrar um fundamento de recorribilidade que legalmente não existe e que juridicamente, mesmo de um ponto de vista da estrita realização da justiça material, não tem justificação.
Um outro argumento apresentado pelo reclamante é o de que o termo “rejeitada”, inscrito na norma do art.º 73º, nº 1, al. d), do RGCO, “deve ser entendido de acordo com o significado natural das expressões verbais utilizadas, isto é, preterido, reprovado, improcedente (sinónimos)”, e que a previsão do art.º 73º, nº 1, al. d), apenas terá alguma utilidade se se referir precisamente a casos em que haja uma improcedência (rejeição) da impugnação judicial emitida em primeira instância (pela falta de referência ao art.º 63º.” E acrescenta que a decisão sumária, no que toca a tal previsão normativa “é deveras fugaz, dizendo-se apenas que não se verifica nenhum dos pressupostos de admissibilidade do recurso, previstos no nº 1, al. d) e e) ou no nº 2… mas sem o justificar concretamente”.
A linearidade da hipótese e da estatuição contidas na norma do art.º 73º, nº 1, al. d), dispensam grandes considerações normativas sobre o seu sentido e alcance.
Resulta claro da norma em causa que a recorribilidade ali prevista se fundamenta no facto de a rejeição da impugnação judicial se traduzir numa recusa por parte do tribunal de primeira instância em conhecer do mérito daquela impugnação. Sendo por isso o direito a uma decisão de caráter jurisdicional, efetiva e não meramente formal, que se visa tutelar com esse fundamento de possibilidade de recurso para o tribunal da relação.
A essa teleologia da norma soma-se o elemento sistemático a ter em conta na sua interpretação, que o recorrente simplesmente oblitera, na interpretação que propugna, baseada numa sinonímia meramente informal ou comum, com um caráter extensivo, pretendendo que o termo “rejeitada” seja o mesmo que preterida, reprovada, improcedente, o que, pela abrangência assim dada, teleológica e sistematicamente insustentável, tornaria inútil as demais normas contidas nas várias alíneas do nº 1 do art.º 73º, porque todas elas envolvem uma improcedência das pretensões deduzidas pelo respetivo interessado.
Razão por que, também aqui, não assiste razão ao reclamante.
Também não lhe assiste razão quando pretende subsumir ao art.º 73º, nº 2, do RGCO a divergência jurisprudencial que possa haver relativamente à admissibilidade do recurso, questão relativamente à qual, em boa verdade, invoca apenas dois acórdãos, um com sentido de decisão contrário à do outro, sendo que o objeto de tal controvérsia resulta também tratado na decisão sumária ora reclamada, assim como no presente acórdão que decide tal reclamação, não se alcançando o paradoxo de o recorrente argumentar que a admissão por este Tribunal do recurso por si interposto, permitiria uma melhor discussão acerca da admissibilidade legal ou não do recurso, porquanto uma tal admissão seria logicamente a negação dessa mesma possibilidade.
Finalmente, insurge-se o recorrente contra a condenação na sanção especial a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP e nas custas, que no caso se circunscrevem à taxa de justiça.
Ora, também neste segmento não lhe assiste razão, pois a condenação na sanção especial a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP é legalmente imposta para além das custas devidas ou, nas palavras do Senhor Juiz Conselheiro Pereira Madeira: “A rejeição do recurso, qualquer que seja o motivo, implica sempre para o recorrente, salvo sendo o Ministério Público, independentemente das custas, a sanção processual a que alude o nº 3”[13]
Assim sendo, e dada a falta de fundamento para a admissibilidade legal do recurso para este Tribunal da Relação, era inevitável a condenação do recorrente na sanção a que alude o art.º 420º, nº 3, do CPP. Sanção essa que foi fixada no mínimo legalmente possível (3 UC entre um mínimo de 3 e um máximo de 10 UC). E sendo a mesma cumulável com a condenação em custas, nos termos dos art.ºs 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, e do art.º 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, mesmo assim a respetiva taxa de justiça foi também fixada no mínimo legalmente previsto, ou seja, 3 UC (entre um mínimo de 3 e um máximo de 6 UC).
Razão por que irá ser indeferida a reclamação.
2.2. Responsabilidade pelo pagamento das custas
Uma vez que o recorrente decaiu na reclamação, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal).
Nos termos do disposto no art.º 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 1 a 3 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.
Tendo em conta o grau de complexidade do processo, sobretudo aferido pela prolixidade dos fundamentos da reclamação deduzida, julga-se adequado fixar essa taxa em 2 ½ UC.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Indeferir a reclamação apresentada pelo recorrente AA.
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça devida pela reclamação em 2 ½ UC.

Porto, 2023-05-17
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva
______________
[1] Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 538.
[2] Neste sentido, António Bessa Pereira, Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Anotado, 8ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 180.
[3] No sentido de que no direito contraordenacional rege o princípio da irrecorribilidade, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 298
[4] J. Baptista Machado, Introdução ao Estudo do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p. 95.
[5] Neste sentido, Ac. do STJ, de 15/11/2006, Proc.º nº 06P3180, em cujo sumário se fez constar o seguinte:
VI - O legislador do CPP87 conferiu ao sistema dos recursos em processo penal «uma tendencial autonomia relativamente ao processo civil. Salvo pormenores de regulamentação que devem procurar-se, por via analógica, no Código de Processo Civil (…), os recursos penais passaram a obedecer a princípios próprios, possuem uma estrutura normativa autónoma e desenvolvem-se segundo critérios a que não é alheia uma opção muito clara sobre a necessidade de valorizar a atitude prudencial do juiz. O Código rompe abertamente com a tradição que, há quase um século, geminou os recursos penais e cíveis» (Cunha Rodrigues, Recursos, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 384). E, confirmando este princípio, o STJ, na fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2002 (DR Série I-A, de 21-05-2002), afirmou unanimemente que as regras básicas e universais em matéria de admissibilidade do recurso são as dos arts. 399.º e 400.º do CPP.
VII - Por isso se deve entender que o CPP esgota a disciplina da matéria da admissibilidade do recurso, sem hipótese, pois, de apelo às regras do CPC, por não se verificar aí (não ser suscetível de se verificar) qualquer lacuna.”. E no mesmo sentido, Ac. do STJ, de 18/05/2022, Proc.º nº 48/17.6GCALM.L1-A.S1. Ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 7ª Edição, Tradução de José Lamego, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2014, p. 503.
[7] José Dias Marques, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1979, página 216
[8] Sobre a inexistência de violação do princípio ne bis in idem, com a prolação da decisão de cassação do título de condução, e a relação entre esta decisão e as que as de condenação por infrações penais ou contraordenacionais que a precederam, ver, por todos, Acórdão do Tribunal Constitucional nº 154/2022, de 17/02/2022.
[9] No Processo nº 194/20.9T9ALB.P1, acórdão publicado em www.dgsi.pt.
[10] Aí citando os Senhores Juízes Conselheiros António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral (em Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 3ª Edição, Almedina, 2009, p. 255): “A natureza dos ilícitos de mera ordenação social e o carácter meramente económico da coima intimamente dela dependente justificam as limitações ao recurso para o tribunal da relação das decisões judiciais proferidas no processo de contraordenação. A regra é da irrecorribilidade das decisões.”
[11] Cf. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Vol. I, 4ª edição revista, p. 388.
[12] Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 7ª Edição, Tradução de José Lamego, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2014, p. 503.
[13] Pereira Madeira, in Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal Comentado, 4ª Edição revista, Almedina, Coimbra, 2022, p. 1397. E no mesmo sentido, por todos, Decisão Sumária, Tribunal da Relação de Évora, de 28/02/2012, Processo nº 119/09.2GTABF.E1.