Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1947/16.8T8OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
DAÇÃO EM FUNÇÃO DO CUMPRIMENTO
EXTINÇÃO DO CRÉDITO
ACEITAÇÃO
Nº do Documento: RP201810091947/16.8T8OVR-A.P1
Data do Acordão: 10/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 850, FLS 37-40)
Área Temática: .
Sumário: I – A distinção entre dação em cumprimento (datio in solutum), (837º CCiv) e dação em função do cumprimento (datio pro solvendo), (840º CCiv) passa por discernir se quem alega invoca o pagamento em si mesmo, ou então se se limita a invocar um meio de pagamento, sendo que, na dúvida, tenderá a presumir-se que a dação é mero meio de pagamento (840º nº2 CCiv).
II – Todavia, se decorre dos termos do contrato que se trata de “dação em cumprimento” (837º CCiv), mais dele decorrendo que a ora Exequente aceita a “extinção do crédito” que agora pretende executar, com a inerente desistência de anterior acção executiva, tal implica, sem qualquer possibilidade de dúvida ao declaratário normal (artº 236º nº1 CCiv), que nos encontramos perante uma dação em cumprimento ou in solutum, ou seja, em face do próprio pagamento enquanto facto extintivo da obrigação exequenda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: • Rec. 1947/16.8T8OVR-A.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão recorrida de 6/4/2018.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de embargos à execução comum, nº1947/16.8T8OVR-A, do Juízo de Execução de Ovar.
Embargante/Executada – B....
Exequente/Apelante – C..., Ldª.
Executada – D....

Tese da Exequente
Intenta processo de execução comum para pagamento da quantia de €176.490,68, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa supletiva de juros de mora relativa a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, com base no documento particular denominado “Confissão de dívida e Acordo de Pagamento”, datado de 29 de Dezembro de 2009, contra B... e D...,
que naquele documento figuram na qualidade de fiadoras e principais pagadoras da obrigação exequenda.
Até à presente data não obteve a satisfação do seu crédito (originariamente reclamado na execução n.º 56/11.0T2OVR), permanecendo em dívida a obrigação assumida pela embargante. Por efeito da celebração do referido contrato de “Cessão de créditos e dação em cumprimento” apenas se obrigou a desistir da instância na execução n.º 56/11.0T2OVR. Acrescenta que a cessão de créditos foi feita nos termos de dação “pro solvendo”.
Tese da Embargante
Correu termos no extinto tribunal da Comarca do Baixo Vouga – Ovar – Juízo de Execução, a execução com o n.º 56/11.0T2OVR, que foi instaurada em 05/01/2011 contra as aqui executadas, tendo por base o mesmo título executivo.
No âmbito daquela execução, em 06/06/2012, a ali exequente (e igualmente aqui exequente) celebrou um contrato de cessão de créditos e dação em cumprimento, através da qual se considerou paga da quantia exequenda reclamada na execução n.º 56/11.0T2OVR, pelo que, tendo o crédito da embargada sido satisfeito por meio do referido contrato de cessão de créditos, é inadmissível esta nova execução.

Sentença Recorrida
Na decisão recorrida, o Mmº Juiz “a quo” julgou procedentes os deduzidos embargos, com fundamento na inexigibilidade da obrigação exequenda, e, em consequência, julgou extinta a execução.

Conclusões do Recurso:
1. Na data de 29/12/2009, a Embargada outorgou, na qualidade de fiadora da sociedade E..., contrato de confissão de dívida e acordo de pagamento, tendente à liquidação de um débito desta sociedade em favor da Embargada, no montante de € 176.490,68.
2. Na data de 06/06/2012, a sociedade E... e a Embargada outorgaram entre si, um contrato de cessão de créditos e dação em cumprimento, com vista a promover a liquidação do crédito confessado dever e garantido pela Embargante em 29/12/2009.
3. A embargada não recebe qualquer valor através da cobrança dos créditos que lhe foram cedidos pela sociedade E....
4. Em sede de fundamentação ínsita na douta sentença, descerra-se que o Tribunal a quo concluiu que o contrato de cessão de crédito e dação em cumprimento fora celebrado com intenção in solutum.
5. Porém, compulsada a douta sentença, não se encontra entre a sua fundamentação, qualquer raciocínio lógico dedutivo que permita elucidar e perceber como é que o Tribunal chegou a tal conclusão;
6. Tampouco se alcança a realização de qualquer juízo que visasse perceber o sentido passível de extrair da letra do negócio, às circunstâncias que lhe precederam ou que lhe eram contemporâneas, as negociações concretizadas, a finalidade prática que se pretendia obter, o próprio tipo negocial, os termos do negócio, os interesses em jogo e a finalidade prosseguida;
7. Tudo questões que se impunham realizar, de molde a poder formular-se qualquer conclusão e cuja resposta carecia de resultar expressa na fundamentação ínsita na douta sentença proferida;
8. O que, reitere-se, compulsando-se a sua fundamentação, não se logra extrair da douta sentença ora posta em crise;
9. Pelo que enferma a douta sentença de nulidade insanável, por falta de fundamentação;
10. Nulidade que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.
11. Da fundamentação ínsita na douta sentença, decorre que o Tribunal a quo entendera que o contrato de cessão de créditos e dação e cumprimento outorgado pela Embargante fora com intenção in solutum;
12. Com o que se extinguiu a obrigação antes assumida pela Embargante.
13. Tal conclusão descerra grave erro de julgamento, mormente:
14. O entendimento de que a dação em cumprimento fora celebrada com intenção in solutum descerra errada integração dos factos provados no direito que lhe é aplicável, porquanto:
15. O tipo de negócio que as partes efetivamente celebraram foi uma dação em cumprimento e não uma dação em pagamento.
16. Da letra do contrato celebrado entre a devedora originária e a Embargada, não consta a obrigação da Embargada dar quitação imediata do seu crédito.
17. Procedendo-se à interpretação das cláusulas constantes do dito contrato, não é possível concluir-se que a dação fora celebrada com intenção in solutum;
18. Outrossim, conclui-se que a dita dação foi celebrada com intenção pro solvendo.
19. Nos termos do artigo 840º / 2 do Código Civil, a dação em cumprimento, quando tenha por objeto a cessão de créditos, presume-se pro solvendo.
20. Subsistindo datio pro solvendo, a divida antes constituída e garantida pela Embargante não se extinguiu pela mera entrega à embargada, dos créditos cedidos, mas apenas e só pela efetiva realização do seu valor;
21. Daí decorrendo que, não obstante a devedora originária ter entregue um novo crédito à credora, aqui embargada, e mais ainda, não obstante a mesma ter ficado logo investida da titularidade desse crédito, o primeiro débito apenas se deverá considerar quitado no momento em que o crédito cedido se possa considerar realizado;
22. Porém, a Embargada, reitere-se, não recebeu qualquer valor através dos créditos que lhe foram cedidos.
23. O dispositivo ínsito na douta sentença, impõe a extinção da execução por inexigibilidade da obrigação.
24. Porém, da sua fundamentação conclui-se que o Tribunal a quo fora do entendimento de que a obrigação originária já se encontrava extinta, mediante a celebração do contrato de cessão de crédito e dação em cumprimento.
25. O reconhecimento da inexigibilidade da obrigação importa o reconhecimento da sua existência, podendo sobrevir-lhe, contudo, circunstâncias que impedem o credor de exigir o seu cumprimento.
26. Ora, decorrendo da fundamentação da sentença que a obrigação assumida pela Embargante já se encontra extinta;
27. E decorrendo do dispositivo que a obrigação é inexigível, com o que se reconhece a sua existência;
28. Enferma a douta sentença de nulidade insanável, por contradição entre a decisão e a sua fundamentação.
29. Mediante a ponderação de tudo quanto se deixou retrovertido, deverá concluir-se que a obrigação garantida pela Embargada é certa, liquida e exigível;
30. Pelo que deverá a douta sentença ora posta em crise ser revogada e substituída por outra que ordene a continuação da instância executiva.
31. A sentença ora posta em crise faz errada interpretação da norma constante do artigo 840º / 2 do Código Civil.

Factos Provados
A - Por contrato de confissão de dívida e acordo pagamento de 29/12/2009, as ora Executadas, na qualidade de fiadoras, e E..., Ldª, na qualidade de devedora, assumiram e reconheceram que deviam à ora Exequente o montante de € 176 490,68, acrescido de juros moratórios à taxa comercial.
B - Seguidamente, por acordo de cessão de créditos e dação em cumprimento, de 6/6/2012, a sociedade E... cedeu e transferiu para a 1ª outorgante (a ora Exequente) a totalidade de diversos créditos identificados, como dação em cumprimento do débito que tem para com a cessionária, no apontado montante de € 176.490,68; a ora Exequente aceitou ali a cessão como forma de extinção do crédito identificado, mais se obrigando a desistir de imediato da execução comum nº 56/11.0T2OVR que corria termos no Juízo de Execução de Ovar, contra as ora Executadas fiadoras.
C - O documento particular denominado “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, mencionado na precedente alínea a) foi também dado à execução no processo n.º 56/11.0T2OVR, sendo ali exequente a sociedade “C..., Lda.”, e executadas B... e D....
D - Em 8 de Novembro de 2011, no âmbito da oposição deduzida à execução n.º 56/11.0T2OVR pelas executadas B... e D..., foi obtida e homologada a conciliação das partes nos seguintes termos:
“As oponentes desistem da oposição à execução;
As custas da execução, incluindo os honorários e despesas suportadas pelo agente de execução, ficam a cargo das oponentes.” – cf. certidão de fls. 58 e 59 dos presentes autos;
E - Em 28 de Setembro de 2012, no âmbito da diligência de abertura de propostas em carta fechada, realizada no processo n.º 56/11.0T2OVR, foi proferido o seguinte despacho judicial:
“Que fique nos autos a proposta apresentada.
Entretanto, notifique a exequente para se pronunciar, em 10 dias, sobre se pretende desistir do pedido executivo, contra todas as executadas, conforme acordado na cláusula 5.ª (quinta) do Acordo de Cessão de Créditos e Dação em Cumprimento, junto aos autos na presente data, 28-09-2012.
Face ao que antecede, suspende-se a presente diligência ‘sine die’. Notifique.”;
F - Em 28 de Junho de 2013, no âmbito da diligência de abertura de propostas em carta fechada (continuação), realizada no processo n.º 56/11.0T2OVR, foi proferido o seguinte despacho judicial:
“Notifique o credor exequente nos termos do Despacho de 28.09.2012, agora sob a cominação de nada dizer se entender que desiste do pedido executivo contra as executadas B... e D.... (…)”
G - Em 2 de Outubro de 2013, o agente de execução designado no processo n.º 56/11.0T2OVR, tomou a decisão conforme os dizeres do documento certificado junto a fls. 68 destes autos, terminando nos seguintes termos: “decide-se EXTINGUIR a presente execução.”;
H - Em 2 de Outubro de 2013, o agente de execução designado no processo n.º 56/11.0T2OVR, expediu, via telemática, a notificação relativa à decisão mencionada na alínea anterior para o mandatário da exequente, Dr. F... (cf. fls. 67 destes autos);
I - De acordo com a procuração forense junta pela exequente aos autos de execução n.º 56/11.0T2OVR, a constituinte apenas “confere os mais amplos poderes Forenses Gerais em Direito permitidos, com a faculdade de substabelecer.”;
J - O processo de execução com o n.º 277/11.6T2OVR encontra-se extinto nos termos do art. 4.º do Dec.-Lei n.º 4/2013, de 11/01;
K - O processo de execução com o n.º 400/11.0T2AGD encontra-se a aguardar a extinção nos termos do art. 281.º do nCPC;
L - O processo de execução com o n.º 3999/10.5T2AGD encontra-se suspenso nos termos do art. 88.º do CIRE;
M - O processo de execução com o n.º 430/08.0TBHRT encontra-se extinto por falta/insuficiência de bens (sem pagamento);
N - A embargada não recebeu qualquer valor através da cobrança dos créditos que lhe foram cedidos (art. 3.º da contestação).

Fundamentos
Em função das conclusões do recurso e da sentença em crise, a questão a apreciar no presente recurso será a de saber o acordo de cessão de créditos e dação em cumprimento, invocado nos embargos, teve a virtualidade de extinguir o crédito exequendo, proveniente de confissão de dívida e acordo de pagamento, incidentalmente conhecendo das nulidades relativas a falta de fundamentação da decisão recorrida, acrescendo contradição entre a decisão e a fundamentação.
Vejamos mais em detalhe.
I
Nos termos do artº 615º nº1 al. b) CPCiv, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A citada causa de nulidade da decisão quadra com o disposto no artº 154º nº1 CPCiv, de acordo com o qual as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo devem ser sempre fundamentadas.
Mas, conforme o Prof. Antunes Varela, Drs. José Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual, 1ª ed., §222, para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta ou não convincente; é preciso que exista falta absoluta de fundamentação, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
Esta é a doutrina usual nos tribunais superiores (cf., entre outros, S.T.J. 22/1/98 Bol.473/434, relatado pelo Consº Mário Cancela).
Ora, as menções relativas aos factos e ao direito aplicável constam efectivamente da decisão recorrida, decisão que é meridianamente clara nos seus fundamentos:
- classifica a dação de créditos como dação em cumprimento;
- engloba nos efeitos da dação o efeito extintivo da obrigação a que o Exequente tinha direito, emergente do respectivo título executivo.
Nos termos do artº 615º nº1 al. c) C.P.Civ., é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Tal nulidade só existe quando os fundamentos invocados pelo julgador devam conduzir logicamente a resultado oposto ao expresso na decisão (ut S.T.J. 22/1/98 cit. ou S.T.J. 26/1/95 Bol.446/296).
Nada tem a ver com interpretação de factos, mas com o próprio iter do raciocínio do julgador – é conduzido de tal forma que deveria chegar a conclusão diversa.
Mais uma vez, o dispositivo da sentença é perfeitamente conforme com os respectivos fundamentos – se se configura dação em cumprimento e se esta tem efeito extintivo da obrigação inicial, naturalmente que a execução não pode prosseguir.
II
Em matéria de direito, o que se encontra em causa no recurso é saber se a Embargante invocou validamente um facto extintivo da obrigação exequenda.
Ou seja, de outro ponto de vista, saber se a Embargante, com o denominado contrato de cessão de créditos e dação em cumprimento, se limitou a invocar um meio de pagamento, ou então invocou o pagamento em si mesmo, sendo que, na dúvida, tenderá a presumir-se que a dação é mero meio de pagamento, ou seja, será, na dúvida, uma datio pro solvendo ou dação em função do cumprimento – artº 840º nº2 CCiv.
Todavia, como se ajuizou na douta sentença recorrida:
“De acordo com as Cláusulas Segunda e Terceira do contrato denominado “cessão de créditos e dação em cumprimento”, cuja cópia se acha junta a fls.12V’ a 13V’, celebrado na pendência da execução n.º 56/11.0T2OVR entre as sociedades comerciais “C..., Lda.”, com o NIPC ........., e “E..., Lda.”, com o NIPC ........., estes outorgantes convencionaram que a segunda cede e transfere para a primeira a totalidade dos créditos identificados na Cláusula Primeira do mesmo instrumento de contrato, “como dação em cumprimento” do débito que tem para com aquela e que emerge do documento denominado “confissão de dívida e acordo de pagamento” celebrado em 29 de dezembro de 2009 – documento que serviu de fundamento à execução n.º 56/11.0T2OVR e no qual também se baseia apresente execução –, sendo que a primeira outorgante “aceita, incondicionalmente e sem reservas, a sobredita cessação de créditos com forma da extinção do crédito identificado no ponto a) dos Considerandos”, a saber, a quantia de € 176.490,68, emergente do documento denominado “confissão de dívida e acordo de pagamento” celebrado em 29 de dezembro de 2009.”
“Nessa “confissão de dívida e acordo de pagamento” celebrado em 29 de dezembro de 2009 também é parte devedora a sociedade cedente, como resulta da factualidade da al. a) dos factos provados.”
Portanto, dos termos do contrato – “dação em cumprimento” (artº 837º CCiv, “datio in solutum”), e do facto de a ora Exequente aceitar, no contrato, a “extinção do crédito” que agora pretende executar, com a inerente desistência de anterior acção executiva, decorre a nosso ver, e sem qualquer possibilidade de dúvida ao declaratário normal (artº 236º nº1 CCiv), que nos encontramos perante uma dação em cumprimento ou in solutum, ou seja, em face do próprio pagamento enquanto facto extintivo da obrigação exequenda, conduzindo à necessária confirmação da douta sentença recorrida.

Concluindo:
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Deliberação (artº 202º nº1 CRP):
Na improcedência do recurso de apelação, confirma-se a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

Porto, 9/X/2018
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença