Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4644/18.6T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CRAVO ROXO
Descritores: INTERNAMENTO COMPULSIVO
TRATAMENTO AMBULATÓRIO
SESSÃO CONJUNTA DE PROVA
Nº do Documento: RP201807114644/18.6T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º766, FLS.194-196)
Área Temática: .
Sumário: Ocorrendo internamento urgente compulsivo e prevendo-se apenas a necessidade de tratamento ambulatório compulsivo, há que, antes de ser tomada decisão definitiva de se proceder à produção de prova com vista ao apuramento dos requisitos previstos na Lei de Saúde Mental par tal decisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4644/18.6T8PRT-A.P1
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Acordam em conferência na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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No processo comum nº 4644/18.6T8PRT-A, do 8º Juiz do Juízo Local Criminal do Porto, foi decretado o internamento compulsivo do requerido B…; após reavaliação médica clínico-psiquiátrica, foi o mesmo colocado em regime de tratamento ambulatório compulsivo.
Promovida, pelo Ministério Público, a realização de sessão conjunta, nos termos do disposto no Art. 27º, nº1 e nº 3, da Lei nº 36/98, de 24.7.
Foi então proferido o seguinte despacho, pelo Senhor Juiz titular do processo:
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Atento o teor do relatório de avaliação psiquiátrica que antecede (fls. 40-42), determino a substituição do internamento compulsivo de B…, por internamento em regime de tratamento compulsivo ambulatório (art. 33º da Lei 36/98, de 24/07).
Notifique e comunique à instituição hospitalar, sendo o ilustre defensor nomeado, também do teor do referido relatório.
Tendo em conta a situação supra referida, entende-se não haver lugar à realização de sessão conjunta, sem prejuízo do disposto nos arts. 342 e 35•2 (cfr. art. 33º, n.º 1) e 33º, n.º 4, da citada lei.
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Desta decisão recorre o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (sic), que balizam e limitam o âmbito do recurso (Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”):
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I - Tendo sido ordenada a nova avaliação clínico-psiquiátrica do internando B… nos exactos termos do art.º 27.°, n.° 1, veio a ser junta aos autos a comunicação do Exmo. Director da Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar C… a informar que o internando teve alta clínica a 02/04/2018 passando a Regime de Tratamento Ambulatório Compulsivo, acompanhada do relatório constante de fls. 41 e 42 dos autos, elaborado pelos Exmos. Psiquiatras que observaram o internando no dia 02/04/2018.
II - De acordo com o referido relatório, o internando sofre de anomalia psíquica grave, com diagnóstico de Psicose; medidas terapêuticas: Psicofármacos (antipsicóticos oral e injectável de absorção prolongada) concluindo os Exmos. Psiquiatras que o doente "se apresenta francamente melhorado do ponto de vista comportamental, tendo condições clínicas para continuação do tratamento em regime de Hospital de Dia. No entanto, tendo em conta manter completa ausência de crítica para o seu quadro clínico ou necessidade de tratamento, não assegura o cumprimento do mesmo. Assim, tem alta em regime de Tratamento Ambulatório Compulsivo."
III - Indeferindo a subsequente promoção do Ministério Público, exarada em termo de vista, no sentido da realização da sessão conjunta de prova prevista no artº 19.° da Lei de Saúde Mental (Lei n.° 36/98, de 24/07) proferiu o Tribunal a quo o seguinte despacho : "Atento o teor do relatório de avaliação psiquiátrica que antecede (fls. 40-42), determino a substituição do internamento compulsivo de B…, por internamento em regime de tratamento compulsivo ambulatório (art. 33.° da Lei 36/98, de 24/07). Notifique e comunique à instituição hospitalar, sendo o ilustre defensor nomeado, também do teor do referido relatório. Tendo em conta a situação supra referida, entende-se não haver lugar à realização de sessão conjunta, sem prejuízo do disposto nos arts. 34.° e 35.° (cfr. art. 33.°, n.°1) e 33.°, n.° 4, da citada lei."
IV - Sendo conhecidos diferentes entendimentos relativos à tramitação processual a adoptar, o douto despacho a quo, traduzindo uma substituição do internamento compulsivo por tratamento compulsivo ambulatório (art. 33.° da Lei 36/98, de 24/07), não obstante a referência a "internamento", não observa o procedimento do Internamento Compulsivo, designadamente previsto nas disposições conjugadas dos art.ºs 27.°, n.° 3, e 33.°, n.° 2 e 3, da citada Lei.
V - Tal procedimento é caracterizado por um modelo misto de decisão médica e judicial, nas palavras dc José Carlos Vieira de Andrade, "fazendo depender o internamento da junção de dois poderes e de dois juízos: por um lado, de uma decisão médica especializada, fundada em conhecimentos técnicos e obrigada por uma deontologia profissional exigente; por outro lado, de uma decisão judicial, fundada em conhecimentos jurídicos e garantindo aplicação correcta da Constituição e da lei." Refere ainda o mesmo autor que "o modelo legal confere sempre ao juiz o poder de decisão final, seja de primeira decisão, seja de confirmação de internamento urgente."
VI - No mesmo sentido se pronuncia M. Simões de Almeida, destacando a matriz garantística do referido modelo misto assente numa dupla apreciação que respeita os artigos 18.° da C.R.P. , quando determina que a "a lei só pode restringir os direitos, liberdade e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição" e 27.°, ao determinar que todos têm direito à liberdade e à segurança e estabelece taxativamente os casos em que alguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, designadamente o caso do "portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.
VII - Em reforço de tal entendimento prevê o art.° 33.° n.° 4, o (re)internamento do doente em tratamento compulsivo ambulatório, por incumprimento das condições estabelecidas pelo psiquiatra assistente, sem outra intervenção do tribunal além da intervenção em sede revisão, nos termos do art.° 35.° da mesma Lei.
VIII - O entendimento subjacente ao douto despacho a quo deixará o doente portador de anomalia psíquica indefinidamente sujeito a internamento compulsivo, com a inerente privação, parcial ou total, da liberdade, sem prévia decisão judicial.
IX - Como melhor se mostra expendido no douto Acórdão TRP de 10/11/2010 - Lígia Figueiredo e José Castela Rio que c.d.v. se transcreveu, com os fundamentos e referências jurisprudenciais e doutrinárias que se dão por reproduzidas e citadas, a natureza compulsiva não desaparece pelo facto de o internado aceitar o tratamento, já que esta aceitação apenas abrange, nos termos do artº 33° n°2, as condições fixadas para o tratamento em ambulatório e não o internamento, a que o processo sempre pode reverter nos termos do preceituado no n°4 daquele artigo.
X - No caso concreto, mostrando-se esgotada a tramitação especial prevista na Secção III da Lei de Saúde Mental, apenas mediante decisão judicial poderá ser determinado o internamento compulsivo do internando, em sessão conjunta, "pois a possibilidade de continuar a sujeitar o doente a tratamento compulsivo, pressupõe necessariamente a decisão final sobre o internamento, no momento próprio e pelo tribunal competente (art° 27°) conforme resulta inequivocamente da inserção sistemática e do teor do artº 33."
XI - Tal decisão, sempre apoiada numa prévia e em geral obrigatória avaliação clínico- psiquiátrica do internando, apenas mediante a realização da sessão conjunta poderá assegurar o respeito pelos direitos, liberdades e garantias das pessoas portadoras de anomalia psíquica, nos termos previstos nos artigos 7.°, alínea a); 8.°, n.° 1 e n.° 2 e 10.°, n.°1 e respectivas alíneas, maxime, as alíneas b) e c) da Lei n.° 36/98, de 24/07, em consonância com os princípios gerais ali enunciados e os direitos e deveres processuais do internando, e em conformidade com os imperativos constitucionais plasmados nos art.°s 18.° e 27º da C.R.P.
XII - Não designando data para a realização da sessão conjunta, incorre o douto despacho a quo em violação das normas e princípios constantes dos art.°s 1°, alínea a), 8.°, 10.° , 27.°, n.° 3 e 33.° da Lei 36/98, de 24/07, numa interpretação e aplicação contrária aos princípios constitucionais consagrados nos artigos 18.° e 21° da C.R.P.
Nestes termos e nos melhores de Direito, sendo concedido provimento ao presente recurso, deverá o douto despacho a quo ser substituído por outro que, a manterem-se os demais pressupostos que estiveram na base do internamento compulsivo de urgência, defira a promoção do Ministério Público, designando data para sessão conjunta de prova, seguindo-se os ulteriores termos.
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Não houve resposta.
Neste Tribunal, pelo Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto foi aposto o seu visto.
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Decidindo.
Com o presente recurso, pretende o Ministério Público que, após perícia médica ao internado, se realize sessão conjunta de prova, de harmonia com o disposto no Art. 19º, da Lei de Saúde Mental (Lei nº 36/98, de 24 de Julho), tal como havia promovido, depois do conhecimento da deliberação médico-psiquiátrica.
Não tendo sido esse o caminho seguido pelo Senhor Juiz titular do processo – que determinou a substituição do internamento compulsivo por tratamento ambulatório compulsivo, importa agora determinar se, assim mesmo, há lugar à sessão conjunta de prova.
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Por decisão do médico competente, foi ao requerido dada alta, mas sujeito ao regime de Tratamento Ambulatório Compulsivo.
O Senhor Juiz limitou-se a validar tal regime, sem ordenar qualquer outra diligência.
Ou seja, o despacho então proferido não se pronunciou sobre a validade da decisão médica, nem sequer fundamentou aquela decisão.
Tenhamos em conta que toda a Lei de Saúde Mental se destina a proteger os portadores de anomalias psíquicas graves e também a defender a sociedade.
Com efeito, segundo a Lei de Saúde Mental, pode ser internado contra a sua vontade o portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico; pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado.
Tratando-se de questões relacionadas ou derivadas de compressão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a única entidade que deverá superintender em tais situações é o Juiz, enquanto titular de um órgão de soberania, o qual deverá sempre sindicar e validar tudo o que se relacione com doentes portadores de graves perturbações mentais.
Não pode o Juiz, acriticamente, aceitar como boas as indicações de uma entidade que, podendo ser competente, não goza do exercício daquele poder soberano, sendo o Juiz sempre aquele que deve superintender as decisões daquele outro organismo.
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Seguiremos de perto – pela sua posição e porque a sufragamos na sua abrangência – o acórdão desta Relação, de 10 de Novembro de 2010, proferido no processo nº 2510/10.2TBVNG.P1.
Dele, retiramos, com particular interesse para os nossos autos, o seguinte extracto:
“Nos termos do artº 33º nº1 da Lei nº36/98 de 4 de Julho o internamento é substituído por tratamento compulsivo em regime ambulatório sempre que seja possível manter esse tratamento em liberdade, sem prejuízo do disposto nos artºs 34º e 35º. Da redacção deste preceito resulta claramente que o tratamento em regime ambulatório compulsivo pressupõe a possibilidade de sujeição do doente a internamento compulsivo e como tal fica sujeito ao procedimento previsto na Lei da Saúde Mental. Como tal e desde logo por força do referido nº 1 do artº 33º da LSM, sujeito às revisões obrigatórias (artº 35º da LSM) e só cessando quando cessarem os pressupostos que lhe deram origem (artº 34º da
LSM). Daí que a passagem do internado a regime ambulatório, não determine o arquivamento dos autos, antes os mesmos devendo prosseguir os termos normais até à decisão final, designadamente com a realização da sessão conjunta de prova, até porque como resulta do disposto no nº 4 do artº 35º da LSM, o internamento compulsivo é retomado sempre que o portador de anomalia psíquica deixe de cumprir as condições estabelecidas mediante comunicação ao tribunal competente.”
No mesmo sentido e ainda relevante em sede decisória, decidiu o acórdão da Rel. Coimbra, de 2.12.2015, no processo nº 5712/15.1T8CBR-A.C1: Depois de confirmado judicialmente o internamento urgente, deve ser proferida decisão definitiva sobre a necessidade de tratamento compulsivo, nos termos do artigo 27.º da Lei de Saúde Mental, a qual depende da verificação dos pressupostos previstos no artigo 12º.
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E com efeito, a ausência de decisão judicial neste Âmbito – nomeadamente na não realização da sessão conjunta de prova – teria duas consequências perversas: por um lado, toma-se uma decisão sobre o estado de um doente portador de anomalia grave, sem questionar as razões e os fundamentos para tal situação futura; por outro lado, a situação de tratamento compulsivo, a não existirem alterações do estado clínico do requerido, seria vitalícia, o que não será aceitável, numa análise menos perfunctória dos sedimentos desta lei e dos princípios constitucionais.
Deste modo, terá necessariamente de prosseguir o processo, com a realização das diligências previstas na LSM, quais sejam a sessão conjunta de prova e a decisão devidamente motivada da situação futura do requerido.
O que significa que o recurso haverá de proceder.
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Decisão.
Pelo exposto, acordam nesta Relação em julgar procedente o recurso do Ministério Público, ordenando que se proceda de modo a ter lugar a sessão conjunta de prova e diligências subsequentes, de harmonia com o disposto nos Arts. 18º, 19º e 20º da Lei de Saúde Mental.
Sem custas.
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Porto, 11.7.2018
Cravo Roxo
Horácio Correia Pinto