Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
153217/12.8YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
BENS DESCARREGADOS
Nº do Documento: RP20131029153217/12.8YIPRT.P1
Data do Acordão: 10/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses ter-se-á em atenção, em primeiro lugar, o que se acha estabelecido em tratados, convenções e regulamentos comunitários.
II - O Regulamento (CE) nº 593/2008, de 17.6, refere-se à determinação da lei interna que se deve aplicar no âmbito das obrigações contratuais, situação que não se deve confundir com a definição da competência internacional de um tribunal de um estado membro da União Europeia.
III - Neste domínio deve antes aplicar-se o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22.12.2000, que é relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
IV - O regime regra que se acha definido no art. 2º, nº 1 deste Regulamento é o de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado.
V - Podem, porém, ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nas situações referidas no art. 5º do mesmo Regulamento, designadamente no caso da compra e venda de bens em que, não havendo convenção em contrário, é competente o tribunal onde os bens foram ou devam ser entregues.
VI - Num contrato de compra e venda em que os bens devem ser descarregados na Alemanha, país onde a compradora tem a sua sede, é aí que se situa o lugar do cumprimento da obrigação de entrega desses bens, cabendo, por isso, a competência para o conhecimento da acção correspondente aos tribunais alemães.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 153217/12.8 YIPRT.P1
Tribunal Judicial de Paredes – 1º Juízo Cível
Apelação
Recorrente: B…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
B…, com domicílio na Rua …, nº …., …, Paredes, através de procedimento de injunção, veio solicitar que seja notificada a requerida “C…”, com domicílio em …, … – Hamburg, no sentido de esta lhe pagar a quantia de 125.191,40€.
Em sede de exposição de factos alegou o seguinte:
1. O requerente é um empresário em nome individual que se dedica ao fabrico e comercialização de mobiliário.
2. No exercício da sua actividade comercial, o requerente estabeleceu relações comerciais com a requerida e constituiu-se credor desta.
3. Tendo o requerente fornecido à requerida e a solicitação desta bens em quantidade, qualidade e preços constantes das facturas com os números …., …., …. e …., emitidas e vencidas respectivamente a 11.4.2011, 16.5.2011, 27.5.2011 e 13.9.2011, e respectivamente no valor de 4.250,00€, 61.440,00€, 59.290,00€ e 10.110,00€.
4. Deste modo, o requerente forneceu bens à requerida no montante total de 135.090,00€.
5. Cumpre referir que, aquando da adjudicação da obra e antes da entrega dos bens, a requerida procedeu a dois pagamentos a título de sinal e início de pagamento.
6. O primeiro, no valor de 12.000,00€, foi creditado na conta bancária do requerente no dia 13.1.2011 e o segundo, no valor de 10.000,00€, foi creditado no dia 1.4.2011.
7. Deste modo, o requerente é credor da requerida no montante de 113.090,00€.
8. Apesar das diversas interpelações efectuadas, a requerida não liquidou, até á presente data, o supra referido valor.
9. Além do capital titulado pelas facturas, a requerida encontra-se também em dívida com os respectivos juros de mora, sobre a quantia em dívida, que perfazem, até à presente data, a quantia de 11.948,00€.
10. Os juros de mora foram calculados à taxa de 8,00% (aviso nº 2284/2011, de 21.1.2011), para o período compreendido entre 15.5.2011 e 30.6.2011, 8,25% (aviso nº 14190/2011, de 4.7.2011), para o período compreendido entre 1,7.2011 e 31.12.2011, 8,00% (aviso nº 692/2012, de 17.1.2012), para o período compreendido entre 1.1.2012 e 30.6.2012 e 8.00% (aviso nº 9944/2012, de 24.7.2012) para o período compreendido entre 1.7.2012 e a presente data.
11. Deve ainda a requerida liquidar os juros vincendos na pendência do presente procedimento injuntivo e até efectivo e integral pagamento.
A requerida veio deduzir oposição, referindo que não celebrou nenhum contrato no valor de 113.000,00€ e que a obra apresentou deficiências.
Os autos foram então remetidos para o Tribunal Judicial de Paredes, que determinou ouvir o autor, face ao preceituado no art. 4º, nº 2 do Regulamento (CE) nº 593/2008, de 17.6, uma vez que esta norma, no dizer da Mmª Juíza “a quo”, colocaria em causa a competência territorial deste Tribunal.
O autor veio então referir que a ré se deslocou a Portugal para escolher os produtos e negociar os preços, tendo arcado com as despesas de transporte das mercadorias de Portugal para a Alemanha. Sustentou pois a competência do Tribunal Judicial de Paredes para apreciar a presente acção.
Juntou documentação comprovativa do pagamento por parte da ré das despesas relativas ao transporte das mercadorias (fls. 26/7).
Depois, por despacho de fls. 31/4, a Mmª Juíza “a quo” declarou incompetente o Tribunal Judicial de Paredes, ao abrigo do disposto nos arts. 493º, nº 1, 494º, al. a), 495º, 101º e 102º, nº 1 todos do Cód. do Proc. Civil e no art. 4º, nº 2 do Regulamento (CE) nº 593/2008, de 17.6, tendo absolvido a requerida da instância.
Escreveu o seguinte na parte mais relevante do seu despacho:
“ (…)
No que respeito diz aos litígios em matéria civil e comercial colocados perante a jurisdição de um tribunal português e no que em concreto diz respeito a estes autos, importa ter em linha de conta, como delimitação negativa ou excludente da intervenção do direito interno o Regulamento (CE) n.º 593/2008, de 17.06, que se aplica, contudo, aos contratos celebrados após 17/12/2009.
Nomeadamente, o artigo 4º deste Regulamento (CE) n.º 593/2008, de 17.06, que dispõe que na falta de escolha nos termos do artigo 3º e sem prejuízo dos artigos 5º a 8º, a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo: a) O contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual; b) O contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual; c) O contrato que tem por objecto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel é regulado pela lei do país onde o imóvel se situa; d) Sem prejuízo da alínea c), o arrendamento de um bem imóvel celebrado para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos é regulado pela lei do país em que o proprietário tem a sua residência habitual, desde que o locatário seja uma pessoa singular e tenha a sua residência habitual nesse mesmo país; e) O contrato de franquia é regulado pela lei do país em que o franqueado tem a sua residência habitual; f) O contrato de distribuição é regulado pela lei do país em que o distribuidor tem a sua residência habitual; g) O contrato de compra e venda de mercadorias em hasta pública é regulado pela lei do país em que se realiza a compra e venda em hasta pública, caso seja possível determinar essa localização; h) Um contrato celebrado no âmbito de um sistema multilateral que permita ou facilite o encontro de múltiplos interesses de terceiros, na compra ou venda de instrumentos financeiros, na acepção do ponto 17) do nº 1 do artigo 4º da Directiva 2004/39/CE, de acordo com regras não discricionárias e regulado por uma única lei, é regulado por essa lei. Caso os contratos não sejam abrangidos pelo nº 1, ou se partes dos contratos forem abrangidas por mais do que uma das alíneas a) a h) do nº 1, esses contratos são regulados pela lei do país em que o contraente que deve efectuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual.
No caso destes autos a residência do contraente que tem o dever de prestar (o requerido) é em Hamburg (Alemanha).
Portanto,
Sendo pois este Tribunal de Paredes internacionalmente incompetente para a apreciação do litigio.
(…)”
Inconformado com o decidido, interpôs recurso o autor que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 – O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida nos autos supra referenciados e na qual o Tribunal Judicial de Paredes se declarou internacionalmente incompetente para apreciar o litígio.
2 – Com efeito, o A. deu entrada de uma injunção em que é requerida B…, sociedade comercial alemã.
3 – A R. opôs-se à injunção pelo que esta foi distribuída, não invocando tampouco a excepção da incompetência territorial.
4 – Aberta conclusão pelo Escrivão Auxiliar, com o seguinte termo: “Com a informação de que considerando que a ré é uma entidade estrangeira, suscitam-nos dúvidas quanto à subsequente tramitação dos presentes autos, atento o disposto no nº 2 do artº 4º do Regulamento (CE) nº593/2008 de 17/6”, foi pela Meritíssima Juíza, do Tribunal “a quo”, dada a palavra ao A. para se pronunciar, na medida em que “tendo em conta que de acordo com o previsto no n.º 2 do artigo 4º, do Regulamento (CE) nº593/2008 de 17/6, fica em causa a competência territorial deste Tribunal”.
5 – Dentro do prazo fixado pelo Tribunal “a quo”, o A. pugnou pela competência internacional do Tribunal Judicial de Paredes, indicando inclusivamente e fazendo prova por documentos, nomeadamente da factura da transportadora em nome da R. e respectivo comprovativo de pagamento do serviço de transporte efectuado directamente à transportadora pela R., que o local da entrega dos bens era …, na medida em que estes foram postos à disposição da R. nas instalações do A., em …, tendo aquela contratado e pago directamente à empresa de transportes.
6 – Por douta sentença proferida a fls., o Tribunal “a quo” absolveu a requerida da instância, com a consequente condenação do A. em custas, na medida em que se declarou internacionalmente incompetente para apreciar o litígio, nos termos “do disposto nos artigos 493º/1 e 2 494º, a), 495º, 101º e 102º/1 todos do Código de Processo Civil e do n.º 2 do artigo 4º do Regulamento (CE) n.º 593/2008, de 17.06”.
7 – A fundamentação da douta sentença alicerça-se no facto da “residência do contraente que tem o dever de prestar (o requerido) é em Hamburg (Alemanha)”.
8 – Cumpre primeiramente ressalvar que no que diz respeito à competência internacional entre tribunais de países de Estados-Membros, deve aplicar-se o Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12, em detrimento das Convenções de Bruxelas e de Lugano e, bem assim, das normas de origem interna, nomeadamente os artigos 61.º, 65.º, 65.º-A e 99.º do Código de Processo Civil.
9 – Já a definição da lei interna a aplicar às obrigações contratuais é aferida pelo Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Conselho de 17.06.
10 – Logo, a competência internacional de um Tribunal e a determinação da lei interna a aplicar ao caso são realidades diferentes, que podem não conduzir a situações coincidentes.
11 – Neste sentido, o Tribunal “a quo” não podia fundamentar a sua decisão num preceito do Regulamento (CE) n.º 593/2008, do Conselho de 17.06, como fez.
12 – O n.º 1, do art. 5.º, do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12, alude às acções que tenham por objecto matéria contratual, como é justamente o caso do presente pleito.
13 - A solução consagrada nessa norma é a do foro do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação. Na falta de convenção em contrário, a alínea b) concretiza o lugar de cumprimento da obrigação em dois tipos de contratos: a compra e venda de bens, em que o lugar que releva é o da entrega dos bens; e a prestação de serviços, em que o lugar relevante é o da prestação dos serviços.
14 – Ora, tal solução obriga a duas tarefas preliminares: primeiro, que se proceda à caracterização do contrato a que respeita a acção, tendo por referência a configuração descrita na petição inicial (causa de pedir); segundo, que se determine qual o lugar do cumprimento da obrigação em litígio ou da obrigação relevante.
15 - No seu requerimento de injunção e no seu requerimento de fls., o A. alegou que se dedica ao fabrico e comercialização de mobiliário e que, no exercício dessa actividade, forneceu à R. e a solicitação desta, bens em quantidades, qualidade e preços constantes das diversas facturas emitidas.
16 – O A. também alega que foi a R. que se deslocou a Portugal para escolher os produtos e negociar os preços e que foi também a R. que contratou e arcou com as despesas de transporte das mercadorias de Portugal para a Alemanha, tendo a A. disponibilizado os bens à R. nas suas instalações, em Portugal.
17 – Quer se considere que estas alegações configuram a existência de um contrato ou de vários contratos de compra e venda (artigos 874.º e seguintes, do Código Civil), a competência para a acção deve, de facto, ser cometida à jurisdição portuguesa.
18 - Com efeito, nenhum elemento do caso “sub judice” liga o A. à Alemanha porque até o lugar do cumprimento da obrigação era Portugal, tanto no que diz respeito à entrega dos bens, como ao pagamento do preço por parte da R., na medida em que esta obrigação deveria ter sido realizada para uma conta de depósito da A. domiciliada numa instituição bancária portuguesa.
19 - Portanto, as mercadorias foram entregues pela A. à R. nas instalações da primeira e pela R. transportadas por sua conta e risco.
20 - Nunca o A. foi à Alemanha promover, vender ou até mesmo entregar os seus produtos.
21 - Pelo que a única conexão do presente litígio com a jurisdição alemã é o facto da R. ser uma sociedade alemã, já que foi tudo realizado em Portugal, inclusivamente a entrega dos bens vendidos.
22 - Assim e no modesto entendimento do aqui recorrente, o Tribunal Judicial de Paredes é, nos termos do n.º 1, do art. 5.º, do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12, internacionalmente competente para conhecer do presente litígio.
23 - Cumpre referir que, mesmo que não seja pela regra do art. 5.º, do já referido regulamento comunitário, o que não se concebe e apenas se coloca em hipótese por mero exercício académico, a competência internacional dos tribunais portugueses também encontra fundamento no art. 24.º daquele mesmo regulamento.
24 - Na medida em que a R. se limitou a defender-se por impugnação e a invocar a excepção de não cumprimento, não arguindo sequer a incompetência internacional dos tribunais portugueses, sempre seria considerado competente o Tribunal “a quo” também à luz deste artigo.
25 – Isto porque concluímos que quando a R. compareceu em juízo, apresentando a sua contestação, mas sem arguir aí excepção de incompetência absoluta do Tribunal Judicial de Paredes, este tornou-se competente, verificando-se a prorrogação da sua competência, em consequência de acordo tácito entre as partes, nos termos previstos no art. 24.º do Regulamento.
26 – Ora, tendo-se verificado o efeito atributivo da competência resultante da comparência da R. em juízo, na contestação, sem aí ter suscitado a aludida excepção, já não é possível afastar esse efeito. De outro modo, estar-se-ia a destruir o pacto de jurisdição tacitamente formado.
27 – Face a todo o supra exposto, o Tribunal Judicial de Paredes é, na modesta opinião do aqui recorrente e nos termos dos arts. 5.º, n.º 1, e 24.º, do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12, internacionalmente competente para apreciar o litígio.
28 – Pelo que não poderia o Tribunal “a quo” decidir como decidiu.
29 – Por conseguinte, a douta sentença “sub judice” deverá ser revogada e ser declarado o Tribunal Judicial de Paredes internacionalmente competente para apreciar o caso, dando-se provimento ao presente recurso.
Não consta dos autos a apresentação de contra-alegações.
Por despacho de fls. 55, o recurso não foi admitido por se ter considerado o mesmo extemporâneo.
Desta decisão reclamou o autor ao abrigo do art. 688º do Cód. do Proc. Civil, reclamação que foi deferida pelo Tribunal da Relação do Porto por despacho do presente relator datado de 28.5.2013, que admitiu o recurso como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Remetido o processo a este Tribunal, cabe então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se o tribunal recorrido é internacionalmente competente para conhecer da presente acção.
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Os elementos factuais e processuais com relevo para o conhecimento do recurso são os que constam do precedente relatório para o qual se remete.
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Passemos à apreciação jurídica.
1. O art. 65º do Cód. do Proc. Civil de 1961, na sequência do art. 61º do mesmo diploma, estabelece os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses (cuja competência exclusiva vem definida no art. 65º-A), salvaguardando, desde logo, no seu proémio a primazia do direito comunitário ao referir «sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais (…)».
A primazia do direito comunitário neste domínio mantém-se no Novo Cód. do Proc. Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.6, conforme se alcança do seu art. 59º.[1]
Solução que, aliás, se compagina com o preceituado no art. 8º, nº 4 da Constituição da República, onde se consagra que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.»
Estabelece-se aqui o primado dos tratados que regem a União Europeia e das demais normas emanadas das suas instituições sobre o direito interno português, no mesmo se abrangendo, designadamente, os regulamentos europeus, definidos como actos não legislativos de carácter geral, actos normativos secundários, destinados, à semelhança dos regulamentos no direito interno, a dar execução a disposições da Constituição Europeia e aos actos legislativos emanados das instituições competentes da União.[2]
A fim de decidir, neste caso, da questão da competência internacional dos tribunais portugueses a Mmª Juíza “a quo” chamou à colação o Regulamento (CE) nº 593/2008, de 17.6.
Mas não o fez acertadamente.
Com efeito, este regulamento comunitário respeita à determinação da lei interna que se deve aplicar no âmbito das obrigações contratuais, situação que não se deve confundir com a definição da competência internacional de um tribunal de um estado membro da União Europeia.
2. Neste domínio deve antes aplicar-se o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, o qual substituiu, entre os Estados Membros, a denominada Convenção de Bruxelas (art. 68º, nº 1).
No seu Preâmbulo escreveu-se:
“(6) Para alcançar o objectivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, é necessário e adequado que as regras relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões sejam determinadas por um instrumento jurídico comunitário vinculativo e directamente aplicável”;
“(8) Os litígios abrangidos pelo presente regulamento devem ter conexão com o território dos Estados-Membros que este vincula. Devem, portanto, aplicar-se, em princípio, as regras comuns em matéria de competência sempre que o requerido esteja domiciliado num desses Estados-Membros”;
“(11) As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular-se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, excepto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão” (…);
“(12) O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça”;
“(14) A autonomia das partes num contrato que não seja de seguro, de consumo ou de trabalho quanto à escolha do tribunal competente, no caso de apenas ser permitida uma autonomia mais limitada, deve ser respeitada sob reserva das competências exclusivas definidas pelo presente regulamento”.
Sucede que o litígio em causa nos presentes autos envolve, como autor, um empresário em nome individual com domicílio em Portugal e, como ré, uma sociedade alemã.
Tratando-se ambos os países de membros da União Europeia, será aplicável à questão da competência internacional o dito Regulamento (CE) nº 44/2001.
O critério base para determinar tal competência internacional acha-se definido no art. 2º, nº 1 deste Regulamento, inserido na secção 1, “Disposições Gerais”, onde se estabelece o seguinte:
«Sem prejuízo do disposto no presente Regulamento, as pessoas domiciliadas no território dum Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.»
Significa isto que o regime regra será o do foro do réu.
Porém, no art. 5º do Regulamento, integrado na secção 2, “Competências Especiais”, estabelece-se que:
“Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues;
- no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)»
Consagra-se assim um caso de competência especial relativamente à matéria contratual, de tal forma que uma pessoa com domicílio no território de um Estado Membro pode ser demandada noutro Estado Membro, perante o tribunal onde foi ou deva ser cumprida a obrigação, sendo que, na falta de convenção em contrário, se concretiza, inclusive, o lugar de cumprimento de obrigação: na compra e venda, o lugar da entrega dos bens; na prestação de serviços, o lugar da sua prestação.
No caso dos autos estamos perante matéria contratual, o que desde logo leva a que lhe seja aplicável o art. 5º do Regulamento44/2001.
Todavia, duas operações teremos que fazer. Em primeiro lugar, proceder à caracterização do contrato a que respeita a acção, tendo por referência a forma como o mesmo está descrito na petição inicial (causa de pedir). Em segundo lugar, determinar qual o lugar de cumprimento da obrigação em litígio ou da obrigação relevante.[3]
Vejamos então.
No requerimento de injunção, o autor alegou que é um empresário em nome individual que se dedica ao fabrico e à comercialização de mobiliário e que, no exercício dessa actividade, forneceu à ré e a solicitação desta bens em quantidade, qualidade e preços constantes das facturas.
Depois, após ter sido notificado de que pela Mmª Juíza “a quo” iria ser proferido despacho relativo à questão da competência, veio alegar que a ré se deslocou a Portugal para escolher os produtos e negociar os preços e ainda que foi a ré que arcou com as despesas de transporte das mercadorias de Portugal para a Alemanha (fls. 24/5).
Juntou uma factura emitida por “D…, Lda.” em nome da ré, relativa ao transporte de mercadoria de Portugal para a Alemanha e um documento comprovativo do pagamento desse transporte por parte da mesma ré (fls. 26/7).
Deste modo, de acordo com os elementos de que dispomos é de caracterizar o contrato que subjaz à presente acção como compra e venda, havendo a seguir que determinar qual o lugar de cumprimento da obrigação.
A transferência para o comprador do direito de propriedade sobre as coisas que foram objecto do contrato de compra e venda dá-se por mero efeito desse contrato (art. 408º, nº 1 do Cód. Civil), o que implica para o vendedor, aqui autor, a obrigação de entregar a coisa vendida.
Obrigação esta caracterizada no art. 874º, al. b) do Cód. Civil como um dos efeitos essenciais da compra e venda.
Ou seja, a transferência da propriedade opera-se, directa e automaticamente, com a celebração do contrato, passando, em consequência desta, a impender sobre o vendedor a obrigação de entregar ao comprador a coisa vendida.
O cumprimento da obrigação de entrega corresponde a um acto material, a tradição física ou simbólica do bem, que permite ao comprador a sua apreensão física, se se trata de móveis, ou a aquisição do gozo sobre ele, se se trata de imóveis.[4]
Regressando ao caso dos autos, o que se verifica é que a obrigação de entrega dos bens vendidos, a que o vendedor (autor) se encontra vinculado perante a compradora (ré), tem como lugar de cumprimento aquele onde deveria ocorrer a sua descarga, situado na Alemanha.
A circunstância de as despesas de transporte das mercadorias de Portugal para a Alemanha terem sido suportadas pela ré compradora em nada altera a conclusão de que o local de cumprimento da obrigação de entrega, que impende sobre o autor vendedor, se situa neste segundo país.
Aliás, este facto em tudo se articula com o que se acha estatuído no art. 796º, nº 1 do Cód. Civil, do qual resulta que nos contratos que importam a transferência do domínio sobre certa coisa ou que transfiram um direito real sobre ela, o risco de perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente.
Daí que o pagamento das despesas acima referidas tenha sido efectuado pela ré, uma vez que estas se reportam não ao contrato de compra e venda, mas sim ao subsequente e implícito contrato de transporte.
Por conseguinte, embora por razões que em nada coincidem com as do despacho recorrido, terá que se concluir que os tribunais portugueses são incompetentes, em razão da nacionalidade, para o conhecimento do presente litígio.[5]
Para ele serão competentes os tribunais alemães, atendendo a que o local onde se concretizou a obrigação de entrega dos bens vendidos, a que o autor se achava adstrito, estava situado na Alemanha.
Não há pois razão para atribuir a competência aos tribunais portugueses, ao abrigo do preceituado no art. 5º, nº 1 do Regulamento (CE) nº 44/2001, invocado pelo autor nas suas alegações de recurso.
3. Por fim, o autor/recorrente sustentou ainda subsidiariamente a competência dos tribunais portugueses com base na regra de extensão de competência que está consagrada no art. 24º daquele mesmo Regulamento.
Estabelece-se nesta norma que «para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente Regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça», a não ser que a comparência tenha tido como único objectivo arguir a incompetência.
Entende o recorrente que a ré ao apresentar a sua oposição não arguiu a incompetência internacional dos tribunais portugueses, pelo que, na sua óptica, sempre o tribunal “a quo” seria de considerar como competente.
Mas não concordamos com a sua argumentação.
A singela oposição que a ré apresentou, subscrita pelo seu gerente, foi destinada não ao Tribunal Judicial de Paredes, mas sim ao Balcão Nacional de Injunções, por se inserir no âmbito de um procedimento de injunção.
A injunção trata-se de um processo pré-judicial tendente à criação de um título executivo extrajudicial na sequência de uma notificação para pagamento, sem a intervenção de um órgão jurisdicional, sob condição de o requerido, pessoalmente notificado, não deduzir oposição.[6]
Ora, não tendo sido a oposição deduzida pela requerida apresentada perante um órgão jurisdicional, tal circunstância impede que ao caso “sub judice” possa ser aplicada a regra de extensão da competência prevista no atrás citado art. 24º do Regulamento44/2001, com a consequente consolidação da competência internacional dos tribunais portugueses e mais concretamente do Tribunal Judicial de Paredes.
Deste modo, como já atrás se referiu, os tribunais portugueses são incompetentes, em razão da nacionalidade, para os presentes autos, o que, tratando-se de excepção dilatória, terá como efeito a absolvição da ré da instância – cfr. arts. 101º, 102º, nº 1, 288º, nº 1, al. a), 493º, nº 2, 494º, al. a) e 495º todos do Cód. do Proc. Civil de 1961 [arts. 96º, al. a), 97º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nº 2, 577º, al. a) e 578º do Novo Cód. do Proc. Civil].
Assim, embora com argumentação diversa, a decisão recorrida será confirmada, daí decorrendo, em conformidade, a improcedência do recurso interposto pelo autor.
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Sintetizando:
- Na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses ter-se-á em atenção, em primeiro lugar, o que se acha estabelecido em tratados, convenções e regulamentos comunitários.
- O Regulamento (CE) nº 593/2008, de 17.6, refere-se à determinação da lei interna que se deve aplicar no âmbito das obrigações contratuais, situação que não se deve confundir com a definição da competência internacional de um tribunal de um estado membro da União Europeia.
- Neste domínio deve antes aplicar-se o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22.12.2000, que é relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
- O regime regra que se acha definido no art. 2º, nº 1 deste Regulamento é o de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado.
- Podem, porém, ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nas situações referidas no art. 5º do mesmo Regulamento, designadamente no caso da compra e venda de bens em que, não havendo convenção em contrário, é competente o tribunal onde os bens foram ou devam ser entregues.
- Num contrato de compra e venda em que os bens devem ser descarregados na Alemanha, país onde a compradora tem a sua sede, é aí que se situa o lugar do cumprimento da obrigação de entrega desses bens, cabendo, por isso, a competência para o conhecimento da acção correspondente aos tribunais alemães.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo autor B…, confirmando-se, embora com argumentação diferente, a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente.

Porto, 29.10.2013
Rodrigues Pires
Márcia Portela
M. Pinto dos Santos
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[1] É a seguinte a redacção deste preceito: «Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.»
[2] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, 4ª ed., págs. 251 a 274.
[3] Cfr. Ac. Rel. Porto de 15.1.2013, p. 1816/08.5 TBVLG.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. III, 5ª ed., pág. 30.
[5] Cfr., neste sentido, Ac. STJ de 4.7.2013, p. 1816/08.5 TBVLG.P1.S2, disponível in www.dgsi.pt. Em sentido oposto o Ac. Rel. Porto de 15.1.2013, já atrás referenciado.
[6] Cfr. Salvador da Costa, “A Injunção e as conexas Acção e Execução”, 5º ed., pág. 151.