Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1084/19.3T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA SÁ LOPES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO NÃO PARTICIPADO
INCIDENTE DE REVISÃO
Nº do Documento: RP202009241084/19.3T8MAI.P1
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; ALTERADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: No âmbito do Incidente de Revisão de Incapacidade nas situações em que, sendo responsável uma seguradora, o acidente não tenha sido participado ao tribunal por o sinistrado ter sido considerado curado sem incapacidade, é possível a pensão por IPP ser fixada, sem que antes o tenha sido, não se tratando, na reapreciação da sua situação clínica, de manter aumentar ou reduzir a pensão, mas é ainda possível, no âmbito do mesmo incidente, aferir do direito à reparação por ITA e outras prestações como despesas médicas, se as situações que o justifiquem surjam após a alta da seguradora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1084/19.3T8MAI.P1
4ª Secção
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto,
Juízo do Trabalho da Maia – Juiz 1
Relatora: Teresa Sá Lopes
1ª Adjunto: Desembargador Domingos Morais
2ª Adjunta: Desembargadora Paula Leal de Carvalho
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório:
Nos presentes autos relativos a incidente de revisão de incapacidade em juízo, em que é Sinistrado B… e Entidade responsável “C…, S.A.” (anteriormente designada por “Companhia de Seguros D…, S.A.”), veio o Sinistrado, em 26 de Março de 2019, formular contra “Companhia de Seguros D…, S.A.” e contra “E…, SAD” o pedido de revisão de incapacidade, requerendo a sua sujeição a exame médico, fixando ulteriormente a Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de que padece e condenando a responsável ou as responsáveis ao pagamento da respetiva pensão anual e vitalícia, bem como dos valores referentes aos períodos de Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 25.04.2018 até 17.02.2019, não pagos, no valor de €15.946,66 e do valor da consulta médica que suportou, no valor de €50,00.
Aduziu, sustentando que nem a referida Seguradora, nem a Entidade patronal participaram a ocorrência do acidente de trabalho a Tribunal, por o Sinistrado ter sido considerado curado sem desvalorização, sendo certo que a Entidade patronal transferiu para a Seguradora a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pelo Sinistrado, através do contrato de seguro titulado pela apólice identificada no artigo 14º da petição inicial, tendo-se agravado as sequelas resultantes do acidente de trabalho objeto destes autos.
Foi ordenada a citação da Seguradora para os termos do presente incidente e para juntar os elementos clínicos e nosológicos que tem em seu poder, boletim de alta, cópia da apólice e dos seus adicionais, documento comprovativo do pagamento das indemnizações por incapacidades temporárias posteriores à alta (havendo-as), e, bem assim, indicar o valor da remuneração transferida à darta do acidente.
A seguradora não deduziu oposição, limitando-se a juntar os referidos elementos.
Foi solicitado ao Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) a elaboração do exame médico em conformidade com o preceituado no artigo 145º, nº1, do Código de Processo do Trabalho.
A Sr.ª Perita médica, após a observação do Sinistrado, emitiu o relatório de 09-06-2019, considerando que as lesões sofridas pelo Sinistrado, em consequência do acidente, sofreram agravamento, sendo a correspondente IPP fixável em 3%, que a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 19-12-2018, que a ITA é fixável num período total de 213 dias e a Incapacidade Temporária Parcial (ITP) num período total de 641 dias, que as sequelas permanentes que atualmente advêm para o Sinistrado de tais lesões são luxação do ombro esquerdo tratada cirurgicamente, ainda apresenta dor e rigidez, tendo penso na região anterior do ombro que não foi levantado.
Notificados do resultado do aludido exame médico, o Sinistrado e a Seguradora nada vieram dizer nem requerer aos autos.
Por despacho de 5.09.2019, o Tribunal a quo determinou que fossem solicitados esclarecimentos ao Gabinete Médico Legal sobre os períodos de incapacidade temporária para poder proceder ao cálculo da indemnização por IT’s e refleti-la na decisão final no processo, bem como a notificação das partes do mesmo despacho.
Nenhuma das partes se pronunciou.
Foram prestados os esclarecimentos.

Em 12.12.2019, foi proferida decisão no incidente, em causa, a qual terminou desta forma:
“Por todo o exposto, e sem necessidade de ulteriores considerações, aplicando os citados normativos à matéria de facto apurada:
1) julgo verificada a exceção da ilegitimidade processual passiva da ré entidade empregadora E…, SAD e em consequência absolvo a aludida ré entidade empregadora E…, SAD da instância;
2) nos termos do disposto no art.145º, do C.P.T. julgo o pedido de revisão procedente e em consequência:
A) Decido que o sinistrado B…, em consequência do acidente de trabalho em apreço nos presentes autos, se encontra afetado de uma desvalorização permanente parcial para o trabalho (IPP) de 3%, sendo a data da consolidação médico-legal das lesões fixada em 19 de Dezembro de 2018;
B) Condeno a responsável “C…, S.A.” (anteriormente designada por “Companhia de Seguros D…, S.A.”) a pagar ao sinistrado o capital de remição correspondente a uma pensão anual de €672,00, devido a partir de 20-12-2018, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, a calcular a partir de 20-12-2018 até integral e efetivo pagamento.
C) Condeno a responsável “C…, S.A.” (anteriormente designada por “Companhia de Seguros D…, S.A.”) a pagar ao sinistrado a quantia de €4.832,00, a título de indemnização pelas incapacidades temporárias ainda em débito, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, a calcular a partir da respetiva data de vencimento até integral e efetivo pagamento.
D) Condeno a responsável “C…, S.A.” (anteriormente designada por “Companhia de Seguros D…, S.A.”) a pagar ao sinistrado a quantia de €50,00, a título de reembolso da consulta de ortopedia de fls.14, acrescida dos juros de mora, á taxa legal de 4% ao ano, a calcular a partir do dia 12-09-2018 até integral e efetivo pagamento.
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Encargos com os exames realizados a cargo da Seguradora -artigo 17º, nº8, do RCP”.

Notificada, a Seguradora veio interpor recurso, suscitando a nulidade da sentença, terminando, após a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
“Quanto à nulidade da douta sentença
A) Resulta do disposto nos artigos 70.º n.º 1 da LAT e n.º 6 e 8 do artigo 145.º do CPT, que o incidente de revisão da incapacidade ou pensão se destina, apenas, a alterar as prestações decorrentes da incapacidade permanente do sinistrado e já não a reparação das consequências temporárias do sinistro, ou qualquer outra prestação.
B) Este incidente não é, por isso, o meio processual adequado à avaliação da existência, ou não, do direito do sinistrado a obter a reparação por perdas salariais e despesas decorrente de uma incapacidade temporária.
C) Salvo melhor opinião, não se pode confundir a existência do direito a indemnização por perdas salarias ou despesas médicas decorrentes de uma recidiva, com a forma como deve ser exercido.
D) O sinistrado recorreu à ação está prevista no artigo 145.º do CPT.
E) E esta ação, como decorre claramente do n.º 6 desse normativo, tem em vista, apenas, a alteração da pensão e não qualquer outra prestação, tanto mais que, a final, o juiz apenas deve pronunciar-se quanto à incapacidade permanente, “aumentando ou reduzindo a pensão ou declarando extinta a obrigação de a pagar” (cfr n.º 6 do artigo 145.º do CPT).
F) Ou seja, mesmo que exista o direito à reparação pelas incapacidades temporárias ou despesas médicas decorrentes de uma recidiva ou agravamento, não é esta (a prevista no artigo 145.º do CPT) a ação adequada a fazer valer esse direito, o qual deve ser apreciado noutro processo, nomeadamente na ação especial por acidente de trabalho, prevista no Capítulo II do título VI do CPT.
G) Assim, ao condenar a Ré no pagamento ao autor dos montantes de 50,00€ e 4.832,00€ por, respetivamente, despesas e períodos de incapacidade temporária, o julgador pronunciou-se sobre questão de que não poderia tomar conhecimento.
H) O que acarreta a nulidade da douta sentença na parte em que condenou a Ré no pagamento de indemnização por incapacidades temporárias sofridas pelo A e despesas médicas suportadas, a qual, expressamente, se invoca, nos termos do disposto nas alíneas d) do artigo 615.º CPC.
Quanto às demais questões suscitadas
I) A Ré reitera as conclusões que formulou quanto à questão da nulidade da douta sentença por excesso de pronúncia (conclusões A a H)
J) Como aí se referiu e ressalvado sempre o muito e devido respeito por opinião contrária, uma coisa é a existência do direito a indemnização por incapacidades temporárias e despesas médicas decorrentes de uma recidiva ou agravamento das lesões e outra é a forma como deve ser exercido esse direito em juízo.
K) O incidente de revisão previsto no artigo 145.º do CPT destina-se, apenas, a alterar as prestações por incapacidade permanente e não a fixar indemnização por incapacidades temporárias ou outras prestações.
L) Assim, não poderia ter sido atribuída neste incidente qualquer indemnização por perdas salariais ou despesas médicas,
M) Impondo-se por isso, caso se entenda que não está em causa uma nulidade da douta sentença, mas antes uma violação de norma processual (mais precisamente a do artigo 145.º n.º 6 do CPT), a revogação da douta sentença na parte em que condenou a Ré no pagamento ao autor das quantias de 50,00€ e 4.832,00€ por, respetivamente, despesas e períodos de incapacidade temporária, o que se requer.
N) Ainda que se viesse a entender ser devida no presente procedimento indemnização por perdas salariais, estas não ascenderiam ao montante fixado.
O) Tendo em conta o salário anual do demandante e os períodos de incapacidade temporária sofridos pelo autor – e antes da consideração do que a Ré já pagou e da franquia – o autor teria direito a uma indemnização global de 15.144,06€ por perdas salariais, conforme cálculo efetuado no corpo destas alegações.
P) Como resulta da apólice de seguro e é referido na douta sentença, está prevista na apólice de seguro celebrada com a ora recorrente, nos termos do disposto no artigo 6.º da Lei 27/2011, uma franquia de 60 dias no que toca a incapacidades temporárias.
Q) Assim, atendendo a que nos primeiros 60 dias de incapacidade o autor esteve 54 dias em situação de ITA (entre 18/08/2016 e 03/10/2016 e entre 10/10/2016 e 16/10/2016) e 6 dias em situação de ITP de 10% (04/10/2016 a 09/10/2016), deve considerar-se não devida pela Ré a indemnização referente a esse período, no valor de 3.350,82€ (61,37€ x 54 dias de ITA = 3 313,98€ e 61,37€ x 0,1 = 6,14€ x 6 = 36,84€).
R) Está, também, documentado nos autos que a Ré pagou ao autor, a título de indemnização pela incapacidade temporária, o valor de 7.916,54€ (conforme “nota discriminativa de indemnizações pagas” junta a estes autos).
S) Face ao exposto, subtraindo ao valor total da indemnização que seria devida por incapacidade temporária (15.144,06€) os ditos valores de 3.350,82€ e 7.916,54€, a indemnização ainda não paga ao demandante ascende a 3 876,70€
T) Deve, pois, ser revogada a sentença na parte em que atribuiu ao demandante a quantia de 4.832.00€ a título de perdas salariais, acrescida de juros, reduzindo-se esse valor para a quantia de 3.876,70€, acrescida de juros desde o vencimento das indemnizações devidas, mas com a consideração, para o cálculo desses juros, dos pagamentos efetuados.
U) Se assim não se entendesse, sempre estaria, pelo menos, incorretamente calculada a indemnização pela incapacidade temporária parcial de 641 dias, ocorrida entre 04/10/2016 e 09/10/2016, 08/02/2017 e 07/03/2017 e 08/03/2017 a 04/11/2018.
V) Com efeito, com referência ao período em causa a indemnização por perdas salariais ascende a 2 072,25€, conforme cálculos efetuados no corpo destas alegações-
W) Não é, pois, devida a verba de 2.131,37€ fixada esse propósito na sentença, mas sim aquela de 2.072,25€, a qual, somada com a indemnização pelo período de ITA de 05/11/2018 a 19/12/2018 (2.700,27€), ascenderia a 4 772,52€ e não os 4.8342€ fixados.
X) Requer-se, por isso, subsidiariamente, a redução da indemnização por perdas salariais para o indicado montante.
Y) A douta sentença sob censura violou as normas dos artigos 70.º da LAT, 145.º do CPT e 608.º n.º 2 do CPC”, (realce e sublinhado nossos).

O Sinistrado contra-alegou, pronunciou-se no sentido de o recurso não merecer provimento, terminando com as seguintes conclusões:
“a. O Tribunal recorrido não usou de excesso de pronúncia ao condenar a recorrida também no pagamento ao recorrido da quantia de 50,00 € para reembolso de despesas médicas e da quantia de 4.832,00€, referente a indemnizações por incapacidades temporárias verificadas entre 04/10/2016 e 09/10/2016, 08/02/2017 e 07/03/2017 e entre 05/11/2018 e 19/12/2018.
b. Pagamentos que constavam do pedido do requerimento com que iniciou o processo.
c. A recorrente, citada, para, querendo, deduzir oposição ao requerimento inicial não o fez, juntando somente documentação clínica referente ao sinistro, nem se pronunciando sobre o pedido, confessando o peticionado, por força dos efeito conjugados dos artigos 145º, n.º 8, 130º e 57º do CPT, e aceitando que o Tribunal decidisse sobre a totalidade do pedido.
d. Ainda que o pedido não fosse apto a ser decidido na sua totalidade num incidente de revisão de incapacidade – o que não se aceita -, haveria, quanto muito, erro parcial na forma do processo, que, deveria levar o Tribunal recorrido, no caso de a recorrente ter suscitado o pretenso vício atempadamente, a determinar subdivisão em dois processos: uma para apreciar a revisão de incapacidade e o pagamento da competente pensão anual e vitalícia, e, um outro, para apreciar o pagamento das prestações devidas por incapacidades temporárias e despesas médicas.
e. Por despacho de 5.09.2019, com a referência 406868541, o Tribunal recorrido informou as partes de que precisava ver esclarecidos pelo Gabinete Médico Legal os períodos de incapacidade temporária para poder proceder ao cálculo da indemnização por ITs e refleti-la na decisão final no processo, ao que novamente a recorrente nada disse, nada reclamou, aceitando, desse modo, que aquela questão fosse também decidida nos autos.
f. Pelo que tal alegado vício a existir (que não existe) mostrar-se-ia sempre sanado.
g. Ao abrigo dos princípios da adequação e economia processuais, todos os atos praticados teriam de / poderiam ser aproveitados, o que, em última instância, o Tribunal recorrido fez.
h. A circunstância da recorrente ter omitido pronúncia sobre as questões suscitadas no requerimento inicial e no despacho de 5.09.19, e vir agora a fazê-lo, representa um manifesto e intolerável abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pelo que, também por este motivo, a pretensão da recorrente terá de ser sempre tratada como se o alegado direito invocado não existisse (que não existe), improcedendo.
i. A alteração/o agravamento das lesões do sinistrado com implicações na (im)possibilidade momentânea de exercer a sua atividade laboral, naturalmente resulta para a seguradora na obrigação de indemnizar o sinistrado desse prejuízo, o que decorre da lei e se encontra no âmbito do seguro e na obrigação transferida para a recorrente.
j. O artigo 71º da LAT não discrimina as prestações por incapacidade temporal se resultantes de participação, se de revisão de incapacidade.
k. Aliás, se não for no processo de revisão de incapacidade, e dado que nunca houve processo nascido por mera participação, onde poderá o sinistrado reclamar/exigir da recorrente as prestações por incapacidade temporal devidas e as despesas médicas em que incorreu?
l. O próprio regime regra do artigo 145º do CPT sofre a especificidade introduzida pelo seu número 8º, nas situações em que não tenha havido participação e a entidade responsável ter considerado o sinistrado curado sem incapacidade, falando em “necessárias adaptações”, como as no caso concreto.
m. A jurisprudência entende que o instituto da revisão de incapacidade pode ir além da simples alteração de IPP, mas condenar no pagamento de indemnizações por IT e despesas médicas.
n. O exame pericial do GML fixou incapacidades temporárias anteriores à data do exame, o que foi dado a conhecer atempadamente à recorrente, que igualmente não se pronunciou, nem impugnou, pelo que as aceitou.
o. O Tribunal recorrido, ao abrigo do art.º 74º do CPT, podia sempre condenar para além da forma do processo ou do próprio pedido.
p. As pensões por incapacidade temporária e as despesas médicas são devidas”, (realce e sublinhado nossos).

Em 02.03.2020, foi proferido despacho no qual o Mmº. Juiz a quo depois de julgar prestada a caução pela Apelante, se pronunciou sobre a invocada nulidade (infra transcrito) e a admitir o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

Remetidos os autos a este Tribunal, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido do recurso não ser provido, aí se lendo:
“(…) Entendemos, (…), inexistir qualquer nulidade processual suscetível de influir na decisão da causa.
Entendemos tal como o Mº Juiz “a quo” que, será de atender no presente incidente aos períodos de incapacidade temporária e outras prestações tendo por base o raciocínio de que o artigo 70.º da LAT alude a “prestações” e não apenas a pensão por incapacidade permanente, englobando, por isso, as indemnizações decorrentes de IT’s e ainda que da recidiva resulta o direito quer às prestações por incapacidade permanente, quer temporária.
Sendo este o sentido da jurisprudência citada pelo Mº Juiz :
Com efeito, o nº 1 do artigo 70º da LAT determina que «quando se verifique uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação (…) a prestação pode ser alterada ou extinta, de harmonia com a modificação verificada», sendo certo que «a expressão “ prestações” tem um sentido mais abrangente do que “ pensões” pois engloba também as indemnizações decorrentes de Its.», (Ac. RC, de 12-02-2009; www.dgsi.pt/jtrc- Proc. nº602/04.6TTAVR.C1).
“O que importa, para o efeito, é que tenha havido um acidente de trabalho e que este tenha dado origem a incapacidades mesmo que temporárias, com o recebimento das correspectivas indemnizações, para além do nexo causal entre o sinistro e as actuais lesões”, (Ac. RP, de 19-11-2012; www.dgsi.pt/jtrp- Proc. nº337/10.0TTVFR.P1), não se encontrando quaisquer “razões jurídicas para fazer distinção entre o direito à pensão e o direito às indemnizações por ITA e ITP na medida em que ambas têm por pressuposto a «redução da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado»”, (Ac. RP, de 21-09-2015; www.dgsi.pt/jtrp-Proc. nº138/09.9TUMTS-A.P1).
Por outro lado, “as pensões e indemnizações decorrentes de acidente de trabalho são um direito de natureza irrenunciável” e “assim, a condenação pode ir além do pedido”, (Ac. RL, de 11.10.2006; CJ, 2006, 4º-146).
Conforme decidido no acórdão do STJ de 1.2.2011, procº 133/04.4TBCBT.G1.S1.dgsi.Net: “Não se mostra violado o principio do dispositivo, por excesso de pronúncia, quando o tribunal conhece, oficiosamente, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes”.
Inexiste, qualquer nulidade da decisão, por conhecimento de questões de que não podia ter conhecimento.
A decisão recorrida efetuou correta avaliação dos factos e aplicação do direito, devendo ser mantida”.

Foi cumprido o disposto na primeira parte do nº2 do artigo 657º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06., aplicável “ex vi” do artigo 87º, nº1, do Código de Processo do Trabalho.
Objeto do recurso:
Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º, nº4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – aplicável “ex vi” do artigo 87º, nº1 do Código de Processo do Trabalho) – integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a resolver:
- saber se ocorre nulidade da decisão por o juiz ter conhecido de questão que não podia conhecer;
- saber se por invocar o erro na forma de processo, a Apelante incorre em abuso de direito;
- saber se a decisão recorrida violou a norma processual do artigo 145º nº 6 do Código de Processo de Trabalho (CPT).
- em caso de resposta negativa, saber qual o montante a que ascende a indemnização por perdas salariais.
2. Fundamentação:
2.1. Fundamentação de facto:
Pelo Tribunal a quo, foi considerada a seguinte factualidade, ainda que não elencada autonomamente:
“No caso, (…), a Srª Perita médica, após a observação do sinistrado, emitiu o relatório de 09-06-2019, considerando que as lesões sofridas pelo sinistrado em consequência do acidente sofreram agravamento tendo consequentemente o sinistrado uma IPP fixável em 3%, com uma data da consolidação médico-legal das lesões fixável em 19-12-2018, para além de uma ITA (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde 18-08-2016 até 03-10-2016, desde 10-10-2016 até 07-02-2017, desde 05-11-2018 até 19-12-2018, fixável num período total de 213 dias e de uma ITP (correspondente ao período durante o qual foi possível à vítima desenvolver a sua atividade profissional, ainda que com certas limitações) desde 04-10-2016 até 09-10-2016 (10%), desde 08-02-2017 até 07-03-2017 (10%) e desde 08-03-2017 até 04-11-2018, fixável num período total de 641 dias.
Em esclarecimento determinado por despacho de fls.45 e v., a Srª Perita Médica veio esclarecer, a fls.47 e 48, que a ITP desde 08-03-2017 até 04-11-2018 foi de 5%, (cfr. fls.48).
O relatório de exame médico de revisão, complementado com o esclarecimento de fls.47 e 48, encontra-se fundamentado e alicerçado na Tabela Nacional de Incapacidades, (cfr. fls.38 a 43)”, (realce nossos).
Consideramos ainda relevante a factualidade que resulta do relatório que antecede e ser de elencar a seguinte factualidade, mesmo que implícita na decisão recorrida:
1.O acidente ocorreu em 17.08.2016;
2.O salário anual do demandante transferido à data do acidente é de €32.000,00;
3. A Seguradora considerou o Sinistrado curado sem incapacidade, tendo atribuído alta ao mesmo em 07.02.2017;
4. A Sr.ª Perita médica, após a observação do Sinistrado considerou que as lesões sofridas pelo Sinistrado, em consequência do acidente, sofreram agravamento, sendo a data da consolidação médico-legal das lesões fixável em 19-12-2018;
5. A mesma Sr.ª Perita considerou que ser a IPP fixável em 3%, que, a ITA fixável num período total de 213 dias e a ITP num período total de 641 dias;
6. Ainda que as sequelas permanentes que atualmente advêm para o Sinistrado de tais lesões são luxação do ombro esquerdo tratada cirurgicamente, ainda apresenta dor e rigidez, tendo penso na região anterior do ombro que não foi levantado.
7. A Seguradora pagou ao sinistrado a incapacidade temporária absoluta referente ao período de 22-10-2016 até 07-02-2017.
2.2. Fundamentação de direito:
2.2.1. Nulidade da sentença:
Vejamos:
Lê-se na decisão recorrida:
“Acresce que importa atender, ainda, aos períodos de incapacidades temporárias fixadas no aludido relatório, com o aludido esclarecimento.
Com efeito, o nº 1 do artigo 70º da LAT determina que «quando se verifique uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação (…) a prestação pode ser alterada ou extinta, de harmonia com a modificação verificada», sendo certo que «a expressão “ prestações” tem um sentido mais abrangente do que “ pensões” pois engloba também as indemnizações decorrentes de Its.», (Ac. RC, de 12-02-2009; www.dgsi.pt/jtrc- Proc. nº602/04.6TTAVR.C1).
“O que importa, para o efeito, é que tenha havido um acidente de trabalho e que este tenha dado origem a incapacidades mesmo que temporárias, com o recebimento das correspetivas indemnizações, para além do nexo causal entre o sinistro e as atuais lesões”, (Ac. RP, de 19-11-2012; www.dgsi.pt/jtrp- Proc. nº337/10.0TTVFR.P1), não se encontrando quaisquer “razões jurídicas para fazer distinção entre o direito à pensão e o direito às indemnizações por ITA e ITP na medida em que ambas têm por pressuposto a «redução da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado»”, (Ac. RP, de 21-09-2015; www.dgsi.pt/jtrp-Proc. nº138/09.9TUMTS-A.P1)”.
Vejamos:
Sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença” dispõe o artigo 615º do CPC:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…)”.
Não assiste razão à Seguradora quanto à invocada nulidade.
Começamos por transcrever a fundamentação do Tribunal a quo a propósito desta questão, no despacho em que admitiu o recurso:
“(…) importa atentarmos a que, como é sabido, “as pensões e indemnizações decorrentes de acidente de trabalho são um direito de natureza irrenunciável” e “assim, a condenação pode ir além do pedido”, (Ac. RL, de 11.10.2006; CJ, 2006, 4º-146).
Com efeito, está-se no âmbito da aplicação do disposto no artigo 74º do CPT, norma especialíssima do nosso Processo do Trabalho, que permite (e impõe, por se tratar de um autêntico poder-dever) a condenação extra vel ultra petitum, nos termos da qual “o juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação á matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 412º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”.
Ora, como escreve Maria José Costa Pinto “partilham inequivocamente desta natureza de ‘preceitos inderrogáveis de leis’, as normas legais que estabelecem o direito a reparação por virtude de acidente de trabalho”, (Violação de Regras de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho: Perspetiva Jurisprudencial, em Prontuário do Direito do Trabalho, nºs74º/75º, 2006. pág.224).
Tal decorre, aliás, claramente do disposto no artigo 12º da LAT.
O que necessariamente implica que o referido artigo 74º do CPT constitui uma exceção legal ao disposto no artigo 609º do CPC, não se podendo, por isso, considerar que a aplicação do disposto no aludido artigo 74º do CPT, com a consequente condenação extra vel ultra petitum faça a correspondente sentença enfermar do vício de nulidade previsto no artigo 615º, nº1, al.d) do CPC por o tribunal ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento.
Ao invés, ao aplicar o disposto no aludido artigo 74º do CPT em ações referentes a acidentes de trabalho o juiz mais não faz do que ocupar-se de questões de cujo conhecimento oficioso a lei lhe permite ou impõe, nos termos previstos na 2ª parte do nº2 do artigo 608º do CPC.
(…)”.
Acompanhamos o assim afirmado.
De todo modo, cumpre aqui aludir ao pedido formulado pelo Sinistrado: “Termos em que se requer a V.ª Ex.ª se digne ordenar que o sinistrado seja submetido a exame médico, fixando ulteriormente a IPP de que padece e condenando a responsável ou as responsáveis ao pagamento da respetiva pensão anual e vitalícia, bem como dos valores referentes aos períodos de ITA mencionados não pagos e do valor da consulta médica que suportou.”.
Não se nos afigura assim que a condenação efetuada, englobando indemnização por ITA e reembolso de despesas médicas, tenha ido para além do que foi pedido pelo Sinistrado.
Invoca ainda a Apelante a nulidade da sentença, não podendo o Tribunal a quo pronunciar-se sobre a reclamada indemnização por ITA e despesas médicas, por ocorrer erro na forma do processo.
Concluiu, em suma, a este propósito:
- O Sinistrado recorreu à ação prevista no artigo 145º do CPT mas esta ação, como decorre claramente do nº 6 desse normativo, tem em vista, apenas, a alteração da pensão e não qualquer outra prestação, pois a final, o juiz apenas deve pronunciar-se quanto à incapacidade permanente, “mantendo, aumentando ou reduzindo a pensão ou declarando extinta a obrigação de a pagar”.
- O direito à reparação pelas incapacidades temporárias ou despesas médicas decorrentes de uma recidiva ou agravamento, deve ser apreciado noutro processo, nomeadamente na ação especial por acidente de trabalho, prevista no Capítulo II do título VI do CPT.
Por seu turno, o Sinistrado concluiu, em suma, a este respeito:
- Ainda que o pedido não fosse apto a ser decidido na sua totalidade num incidente de revisão de incapacidade, haveria, quanto muito, erro parcial na forma do processo, que, deveria levar o Tribunal recorrido, no caso de a Recorrente ter suscitado o pretenso vício atempadamente, a determinar subdivisão em dois processos: uma para apreciar a revisão de incapacidade e o pagamento da competente pensão anual e vitalícia, e, um outro, para apreciar o pagamento das prestações devidas por incapacidades temporárias e despesas médicas.
- Assim não tendo sucedido, o alegado vício a existir mostrar-se-ia sanado, representando a conduta do Autor um abuso do direito.
- Todos os atos processuais teriam de ser aproveitados.
- O artigo 71º da LAT não discrimina as prestações por incapacidade temporal se resultantes de participação, se de revisão de incapacidade.
- Nunca houve processo nascido por mera participação.
- O regime regra do artigo 145º do CPT sofre a especificidade introduzida pelo seu número 8º, nas situações em que não tenha havido participação e a entidade responsável ter considerado o sinistrado curado sem incapacidade, falando em “necessárias adaptações”, como as no caso concreto.
- Ao abrigo do artigo 74º do CPT, o Tribunal recorrido podia condenar sempre para além da forma do processo ou do próprio pedido.
Cumpre assim, desde logo, apreciar se ocorreu erro na forma de processo.
A resposta a tal questão é negativa.
Começamos por deixar aqui a fundamentação do acórdão do STJ de 30.03.2017, in www.dgsi.pt, no qual é feita referência à Lei nº 100/97, de 13 de Setembro (LAT/97), aplicável atenta a data de ocorrência do acidente de trabalho ali em causa, Lei essa anterior à Lei nº98/2009, de 04 de Setembro (LAT), aplicável no caso destes autos, atenta a data em que ocorreu o acidente (17.08.2016).
Lê-se no citado acórdão que «O sentido e a razão de ser deste Incidente de Revisão de Incapacidade radica no facto de se permitir legalmente que o Sinistrado, já após a fixação da sua incapacidade para o trabalho e a atribuição da consequente pensão por decisão judicial, confrontado que seja com um agravamento do seu estado de saúde, recidiva ou recaída, resultante das lesões sofridas em consequência do acidente de trabalho que deu origem à reparação, possa requerer em juízo a reapreciação do seu estado de saúde e a alteração da incapacidade anteriormente fixada.
Aliás, a própria denominação de “revisão” só pode querer dizer que a sua situação clínica irá ser reapreciada (“revista”).
E para que tal aconteça necessário se torna que o Sinistrado o tenha requerido em Tribunal, fundamentadamente, indicando – e provando – as razões desse agravamento e os termos em que se repercutam na sua capacidade de ganho, enquanto geradora de uma incapacidade maior do que aquela que lhe foi fixada judicialmente.
Provada a modificação, nos termos alegados, após a realização das respetivas diligências que se mostrem necessárias, com o Sinistrado a ser submetido à indispensável perícia médica, maxime por Junta Médica, estão reunidas as condições para que o Tribunal decida o incidente de revisão e fixe a incapacidade resultante dessas perícias.
É o que resulta do disposto no art. 25.º da LAT (Lei nº 100/97, de 13 de Setembro) que, sob a epígrafe Revisão das prestações, estabelece o seguinte:
1. Quando se verifique modificação da capacidade de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de prótese ou ortótese, ou ainda de formação ou reconversão profissional, as prestações poderão ser revistas e aumentadas, reduzidas ou extintas, de harmonia com a alteração verificada. (…)
2. A revisão só poderá ser requerida dentro dos 10 anos posteriores à data da fixação da pensão, uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos.
3. (…)”
2.2. Este normativo conjugado com o nº 6, do art. 145º, do CPT, permite ao Juiz, realizada que se mostre a respetiva perícia médica, decidir por despacho se mantém, reduz ou aumenta a pensão a pagar ou até, se for caso disso, declarar extinta a obrigação de a pagar.».
Ora, estipula o nº8 do mesmo artigo 145º do CPT que o incidente, em causa, «(…), é aplicável, com as necessárias adaptações, aos casos em que, sendo responsável uma seguradora, o acidente não tenha sido participado ao tribunal por o sinistrado ter sido considerado curado sem incapacidade».
Permite este normativo que quando não tenha havido participação do acidente por a entidade responsável ter considerado o sinistrado curado sem incapacidade, o incidente de revisão de incapacidade seja suscitado, considerando o sucedido após a alta dada por aquela entidade.
É o que sucede no caso em análise.
Por seu turno, o artigo 70º da LAT, aqui aplicável, sob a epígrafe “Revisão das prestações”, prevê expressamente que «(…) a prestação pode ser alterada ou extinta, de harmonia com a alteração verificada».
O âmbito de tal incidente não se circunscreve à fixação de pensão por IPP antes permite outrossim aferir do direito à reparação por ITA e outras prestações como despesas médicas, nas situações em que, sendo responsável uma seguradora, o acidente não tenha sido participado ao tribunal por o sinistrado ter sido considerado curado sem incapacidade e após a alta, a situação clínica do Sinistrado venha a revelar necessitar de ser reapreciada.
Ou seja, decorre do artigo 145º, nº8 do CPT que no referido circunstancialismo de o acidente não ter sido participado ao tribunal por o sinistrado ter sido considerado, pela seguradora responsável, curado sem incapacidade, é possível a pensão por IPP, ser fixada sem que antes o tenha sido, não se tratando nesse caso, na reapreciação da sua situação clínica, de manter aumentar ou reduzir a pensão, mas é ainda possível, no âmbito do mesmo incidente, não só fixar a pensão como atribuir outras prestações, como indemnização por ITA ou despesas médicas ocorridas, se as situações que o justifiquem surjam após a alta da seguradora.
Assim sendo, não ocorre o apontado erro na forma do processo, não se mostrando a decisão recorrida ferida de nulidade por com tal motivo nela se terem conhecido de questões de que não se podia tomar conhecimento.
Mesmo que assim não se entendesse, sempre importa aqui referir, como bem salientado pelo Sinistrado, que a Apelante foi citada, para, querendo, deduzir oposição ao requerimento inicial, onde como se referiu, foi peticionado, não só o pagamento de pensão anual e vitalícia, mas também o pagamento de indemnização pelos períodos de ITA e por consulta médica, não tendo aquela última deduzido oposição a que o Tribunal decidisse sobre a totalidade do pedido.
Acresce que por despacho de 5.09.2019, as partes foram notificadas de que o Tribunal a quo precisava ver esclarecidos pelo Gabinete Médico Legal os períodos de incapacidade temporária para poder proceder ao cálculo da indemnização por IT’s e refleti-la na decisão final no processo, ao que a Apelante nada disse.
Afigura-se-nos assim não ter o vicio do erro na forma do processo sido atempadamente invocado pela Apelante- artigos 193º, 196º e 198º, nº1, todos do Código de Processo Civil - que ao invés aceitou tacitamente que aquela questão fosse também decidida nos autos.
Improcede assim nesta parte a apelação.

2.2.1.1. Pelo Autor foi alegado o abuso do direito por parte da Apelante ao invocar a nulidade por o juiz ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento, por erro na forma do processo.
De harmonia com o disposto no artigo 334º do Código Civil, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A consagração legal do instituto do abuso de direito no nosso ordenamento jurídico adotou uma conceção objetiva. Não é, assim, necessário que o agente tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, bastando que o seja na realidade.
Na definição apresentada pelo Prof. Coutinho de Abreu (cfr. “Do Abuso de Direito”, Almedina, 1983, pág. 43) «há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem».
Como se escreveu no Acórdão do STJ de 12.06.2012 (in www.dgsi.pt), a figura do abuso do direito surge, assim, como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Pode dizer-se (seguindo, ainda, de perto o citado aresto) que o abuso do direito, na configuração expressa no artigo 334º do Cód. Civil tem um carácter polimórfico, sendo a proibição do venire contra factum proprium uma das suas manifestações. A proibição do venire corresponde à primeira parte da formulação legal: é ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites da boa fé. Trata-se portanto de uma aplicação do princípio da responsabilidade pela confiança, de uma concretização do princípio ético-jurídico da boa fé.
O princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamental e a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; e assegurar expectativas é uma das funções primárias do direito (cfr. Prof Baptista Machado, “Estudo sobre a Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, in Obra Dispersa, Vol. I, págs. 345 e ss.).
Nos casos em que é aplicável a proibição do venire, a responsabilidade pela confiança funciona em regra em termos preventivos, paralisando o exercício de um direito ou tornando ineficaz aquela conduta declarativa que, se não fosse contraditória com a conduta anterior do mesmo agente, produziria determinados efeitos jurídicos.
Uma modalidade especial da proibição do venire – se não mesmo uma figura autónoma na fisionomia polimórfica do abuso do direito – é a chamada «verwirkung» e também apelidada supressio (Prof. António Menezes Cordeiro, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, Setembro de 2005, págs. 356 a 358) e que, ainda segundo o aludido Mestre, se pode assim caracterizar:
a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer;
b) com base neste decurso de tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido;
c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adotou programas de ação na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.
Retomando, agora, a análise do caso concreto, não consideramos que a Apelante tenha adotado algum comportamento gravemente atentatório da boa fé, por em sede alegações de recurso ter vindo invocar o erro na forma do processo para o pedido relativo a indemnização por ITA e despesas médicas, não o tendo feito anteriormente, nomeadamente, não obstante ter sido citada do pedido formulado pelo Sinistrado, a esse respeito.
Com efeito, afigura-se-nos que não ocorre abuso de direito por parte da Apelante ao ter invocado o vício analisado, em sede de alegações de recurso, antes tratando-se do direito de defesa que independentemente da improcedência da respetiva pretensão, com tal fundamento, a esse nível não merece censura.
Do exposto resulta não se ter verificado a invocada situação de abuso do direito.

2.2.2. Quanto à terceira questão, pela fundamentação que se deixou vertida em 2.2.1., limitamo-nos a referir que não ocorre a violação da norma processual do artigo 145º nº 6 do CPT.
Improcede assim também nesta parte a apelação.

2.2.3. Cumpre por último saber qual o montante a que ascende a indemnização por perdas salariais.
Lê-se na sentença recorrida:
“(…), nos termos do disposto no artigo 6º da aludida Lei nº27/2011 (cuja epígrafe é precisamente a de Incapacidades temporárias) “nos contratos de seguros celebrados entre as entidades seguradoras e as entidades empregadoras dos segurados podem ser estabelecidas franquias para os casos de incapacidades temporárias.”
Ora, é o caso dos presentes autos, onde resulta a fls.28 v., que quanto às franquias aplicáveis ficou acordado e aceite pelas partes que “de acordo com o previsto no artigo 6º da Lei nº 27/2011, de 16 de Junho, nas incapacidades temporárias será aplicada uma franquia de 60 dias”.
Sendo certo que resulta do documento junto a fls.27, conjugado com o período de ITA reconhecido no relatório médico-legal realizado pela Senhora Perita, que a Seguradora aplicou a referida franquia de 60 dias à incapacidade temporária absoluta referente ao período de 18-08-2016 até 03-10-2016 e de 10-10-2016 até 22-10-2016, tendo já pago ao sinistrado a incapacidade temporária absoluta referente ao período de 22-10-2016 até 07-02-2017, (cfr. fls.27).
Está, assim, em falta o pagamento ao sinistrado a ITA desde 05-11-2018 até 19-12-2018, fixável num período de 44 dias e a ITP desde 04-10-2016 até 09-10-2016 (10%), desde 08-02-2017 até 07-03-2017 (10%) e desde 08-03-2017 até 04-11-2018 (5%), fixável num período total de 641 dias”.
A este propósito concluiu a Apelante:
- As perdas salariais não ascendem ao montante fixado.
- Tendo em conta o salário anual do demandante e os períodos de incapacidade temporária sofridos pelo autor – e antes da consideração do que a Ré já pagou e da franquia – o autor teria direito a uma indemnização global de 15.144,06€ por perdas salariais.
- Está prevista na apólice de seguro, nos termos do disposto no artigo 6º da Lei nº 27/2011, uma franquia de 60 dias no que toca a incapacidades temporárias.
- Atendendo a que nos primeiros 60 dias de incapacidade o Sinistrado esteve 54 dias em situação de ITA (entre 18/08/2016 e 03/10/2016 e entre 10/10/2016 e 16/10/2016) e 6 dias em situação de ITP de 10% (04/10/2016 a 09/10/2016), deve considerar-se não devida pela Ré a indemnização referente a esse período, no valor de 3.350,82€ (61,37€ x 54 dias de ITA = 3 313,98€ e 61,37€ x 0,1 = 6,14€ x 6 = 36,84€).
- Está, também, documentado nos autos que a Ré pagou ao autor, a título de indemnização pela incapacidade temporária, o valor de 7.916,54€.
- Subtraindo ao valor total da indemnização que seria devida por incapacidade temporária (15.144,06€) os ditos valores de 3.350,82€ e 7.916,54€, a indemnização ainda não paga ao demandante ascende a 3 876,70€
- Deve, pois, ser revogada a sentença na parte em que atribuiu ao demandante a quantia de 4.832.00€ a título de perdas salariais, acrescida de juros, reduzindo-se esse valor para a quantia de 3.876,70€, acrescida de juros desde o vencimento das indemnizações devidas, mas com a consideração, para o cálculo desses juros, dos pagamentos efetuados.
Na sentença considerou-se que “A Seguradora aplicou a referida franquia de 60 dias à incapacidade temporária absoluta referente ao período de 18-08-2016 até 03-10-2016 e de 10-10-2016 até 22-10-2016, tendo já pago ao sinistrado a incapacidade temporária absoluta referente ao período de 22-10-2016 até 07-02-2017”.
Ou seja, relativamente ao período em que foi aplicada a franquia, a Apelante entende que os 54 dias de ITA, decorreram entre 18/08/2016 e 03/10/2016 e entre 10/10/2016 e 16/10/2016 enquanto na sentença de 18-08-2016 até 03-10-2016 e de 10-10-2016 até 22-10-2016.
Assiste razão à Apelante uma vez que a contagem efetuada na sentença quanto ao período de franquia corresponde a 59 dias de ITA, o que com os 6 dias de ITP, ultrapassa os 60 dias de franquia. Igualmente entendemos não estar correto que se considere em dívida a ITP desde 04-10-2016 até 09-10-2016, por tal período estar incluído na franquia.
Assim e como conclui a Apelante, deve considerar-se não devida pela Ré a indemnização referente a ao período de franquia, no valor de 3.350,82€ (61,37€ x 54 dias de ITA = 3 313,98€ e 61,37€ x 0,1 = 6,14€ x 6 = 36,84€).
Acresce que do teor do documento de fls. 27, resulta que a Apelante, a título de Incapacidade Temporária Absoluta, procedeu ao pagamento da quantia de 7.916,54, correspondente ao período de 22-10-2016 a 07-02-2017.
Importa assim aferir qual o montante que seria devido por indemnização por incapacidade temporária – sem considerar o período de franquia- deduzindo ao mesmo os ditos valores de 3.350,82€ e 7.916,54€.
Incluímos aqui os cálculos efetuados pela Apelante na respetiva motivação, os quais se nos afiguram corretos.
“(…) resulta do exame pericial realizado nestes autos que o autor esteve em situação de incapacidade temporária nos seguintes períodos:
. ITA entre:
* 18/08/2016 e 03/10/2016 – 47 dias
* 10/10/2016 e 07/02/2017 – 121 dias
* 05/11/2018 e 19/12/2018 – 45 dias
. ITP de 10% entre
* 04/10/2016 e 09/10/2016 – 6 dias
* 08/02/2017 e 07/03/2017 – 28 dias
. ITP de 5% entre
* 08/03/2017 e 04/11/2018 – 607 dias
Assim, tendo em conta o salário anual do demandante e os indicados períodos de incapacidade – e antes da consideração do que a Ré já pagou e da franquia – o autor teria direito às seguintes indemnizações por perdas salariais:
Salário anual: 32.000,00€
Retribuição diária: 32.000,00€ / 365 dias = 87,67
. ITA entre:
* 18/08/2016 e 03/10/2016 – 47 dias – 87,67€ x 0,7 = 61,37€ x 47 = 2 884,39€
* 10/10/2016 e 07/02/2017 – 121 dias - 87,67€ x 0,7 = 61,37€ x 121 = 7 425,77€
* 05/11/2018 e 19/12/2018 – 45 dias - 87,67€ x 0,7 = 61,37€ x 45 = 2 761,65€
. ITP de 10% entre:
* 04/10/2016 e 09/10/2016 – 6 dias- 87,67€ x 0,7 = 61,37€ x 0,10 = 6,14€ x 6 dias = 36,84€
* 08/02/2017 e 07/03/2017 – 28 dias- 87,67€ x 0,7 = 61,37€ x 0,10 = 6,14€ x 28 dias = 171,92€
. ITP de 5% entre:
* 08/03/2017 e 04/11/2018 – 607 dias- 87,67€ x 0,7 = 61,37€ x 0,5 = 3,07€ x 607 dias = 1 863,49€
Total: 15.144,06€
(…)
(…)
Face ao exposto, subtraindo ao valor total da indemnização que seria devida por incapacidade temporária (15.144,06€) os ditos valores de 3.350,82€ e 7.916,54€, a indemnização ainda não paga ao demandante ascende a 3 876,70€”, (realce nosso).
Procede, pois, parcialmente a Apelação, revogando-se parcialmente a decisão recorrida, reduzindo-se o valor em dívida, a título de perdas salarias para a quantia de 3.876,70€, acrescida de juros desde o vencimento das indemnizações devidas.
4. Decisão:
Por tudo o exposto, decide-se revogar parcialmente a decisão recorrida, no que respeita ao pedido de indemnização por incapacidades temporárias ainda em débito, alínea C) do dispositivo e em conformidade:
C) condena-se a responsável “C…, S.A.” (anteriormente designada por “Companhia de Seguros D…, S.A.”) a pagar ao Sinistrado a quantia de 3.876,70€, a título de indemnização pelas incapacidades temporárias ainda em débito, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, a calcular a partir da respetiva data de vencimento até integral e efetivo pagamento.
Confirma-se no mais a sentença recorrida.

Custas da apelação pela Apelante na proporção do respetivo decaimento.

Porto, 24 de setembro de 2020.
Teresa Sá Lopes
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho