Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3504/19.8T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: ARROLAMENTO
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
Nº do Documento: RP202001273504/19.8T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 01/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 403º/2 CPC o arrolamento pode também ser declarado na dependência de ações que tenham por objeto a questão prévia da determinação de um estado, direito ou facto de cuja existência dependesse uma futura especificação, como seja a ação de anulação de testamento.
II - O pedido de anulação do testamento tem subjacente e está normalmente associado a discussão em torno do direito a determinados bens materiais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Arrolamento-3504/19.8T8AVR-A
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto
(5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
No presente procedimento cautelar de arrolamento, instaurado por apenso ao Proc 3504/19.8T8AVR, em que figuram como:
- REQUERENTES: B… e marido C…, emigrantes no Canadá onde residem em ….. - .. Street .., …, …, …. …, contribuintes nº ……….. e ………, e
- REQUERIDOS: D… e marido, E…, igualmente emigrantes no Canadá, onde residem em …, …, Ontario ……., pedem os requerentes que se decrete o arrolamento dos bens de que aquele pretendeu dispor a favor da requerida, por testamento.
Alegaram para o efeito e em síntese que a A. é filha de F… e de G…, os quais foram casados um com o outro no regime de comunhão geral de bens, em únicas núpcias de ambos, tendo falecido respetivamente, aos 12/02/2011 e aos 17/06/2019.
Alegaram, ainda, que por morte deste último, restaram como únicas e universais herdeiras as aqui A e R mulheres, como tal habilitadas. Por por óbito da primeira, não houve lugar a partilha da respetiva herança que, assim, permanece ilíquida e indivisa. Apesar disso, o viúvo outorgou, aos 23 de Outubro de 2018, em Toronto, Canadá, onde residia, testamento pelo qual pretendeu dispor da totalidade dos bens móveis e imóveis que integravam a dita herança e de que se juntou cópia à ação principal, dando o mesmo por reproduzido, no qual legaram à aqui requerida, além de bens sitos no Canadá, os seguintes imóveis, sitos na união de freguesias de … e …, concelho de Vagos:
a) Casa de habitação sita na Rua …, nº .., inscrita ma matriz sob o artº 85, com o valor patrimonial de 20.289,85€;
b) Quintal sito na mesma Rua …/… inscrito na matriz sob o artº 472, com o valor patrimonial de 11,36€;
c) Terrenos sitos nas …, inscritos na matriz sob os artigos 488 e 505, com os valores patrimoniais de 37,72€ e de 15,00€;
d) Prédio nas “…”, inscrito na matriz sob os artigos 381 e 366, com os valores patrimoniais de 9,62€ e de 27,09€.
Alegou, por fim, que impugnou a validade do testamento através da referida ação principal, uma vez que, no seu entender, é nulo, pois dispôs de bens específicos da herança aberta por óbito da sua pré-falecida esposa, que se encontrava ainda indivisa (art. 2251º 1. do CC).
Mais referem que com o dito testamento, a requerida poderá obter na respetiva
Conservatória, o registo a seu favor dos prédios legados, e desfazer-se deles, frustrando uma das finalidades da dita ação e podendo ocasionar aos requerentes prejuízo irreparável.
Concluem que a presente providência se enquadra na situação contemplada no artº 409º do CPC (herança jacente), pelo que estão isentos de fazer prova desse perigo.
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Proferiu-se despacho com o teor que se transcreve:
“ No intróito da providência, consignam os Requerentes: “vêm, por apenso à ação que ontem intentaram visando a nulidade do testamento outorgado pelo pai da Requerente, e ainda como preliminar do inventário que irão requerer, solicitar a V. Exª se digne decretar o arrolamento dos bens de que aquele pretendeu dispor a favor da Requerida pelo dito testamento …”.
O art. 362.º, nº 1, do CPC permite o requerimento de providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito.
Os Requerentes pedem apensação da providência (de arrolamento) à ação de processo comum nº 3504/19.8T8AVR.
A antes dita ação de processo comum tem por finalidade principal a declaração de nulidade do testamento, feito pelo pai da A. e da R. mulheres, no estado de viúvo.
Verdadeiramente é um pedido único, uma vez que os pedidos feitos em b) não têm autonomia.
Com efeito, o primeiro, de aceitação dessa (declaração de) nulidade é um pedido inútil; o segundo, de abrirem mão dos prédios legados – é pura consequência da declaração de nulidade do testamento (a proceder a ação, obviamente).
Sendo o pedido, na ação, o de declaração de nulidade do testamento, não se vê como tal pedido pudesse ser objeto de providência conservatória ou antecipatória – nº 1 do art. 362.º do CPC.
Por isso, não pode o arrolamento ser instaurado como incidente desta ação nº 3504/19.8T8AVR.
Por ver isso (talvez) é que os Requerentes da providência logo esclarecem que é preliminar do inventário que irão requerer.
Ora, não se compreende como é que a providência cautelar – o arrolamento – pode ser incidente da ação a que foi pedida a apensação e preliminar do inventário a requerer. O art. 364.º, nº 1, do CPC estabelece que o procedimento cautelar é, por regra, instaurado como incidente de uma causa já proposta ou como preliminar de uma causa a propor (podendo essas causas serem ação declarativa ou executiva).
Contudo, é óbvio que ou são propostas como incidente de causa já proposta ou como preliminar de uma causa a propor (o inventário).
Como a providência não pode antecipar a decisão a proferir na ação a que foi apensa, como se disse, só poderia ser aceita como preliminar do inventário a propor. Logo, veio mal dirigido o pedido de apensação.
Para além disso, a ser preliminar do inventário, cumpre dizer que, por incompetência absoluta, em razão da matéria – arts. 96.º, 99.º, nº 1, e 577.º, alínea a), e 578.º, todos do CPC – , este Tribunal não poderia aceitar a providência.
A tramitação do processo de inventário é, em geral (ainda é, em geral) da competência dos Cartórios Notariais – primeira parte do nº 4 do art. 3.º do RJPI2, sobrando para os Tribunais os casos em que os interessados são remetidos para os meios comuns – parte final do nº 4 do art. 3.º do RJPI, como acontece nos arts. 16.º, 17.º, nº 2, 36.º, 57.º, nº 4 e 66.º, nº 1, todos do mesmo RJPI.
Acresce que para a providência cautelar preliminar do processo de inventário ou instaurada como incidente deste nunca será competente o Juízo Central Cível, atento o disposto na alínea c) do nº 1 do art. 117.º da Lei nº 62/2013, de 26/07.
Temos, pois, para concluir.
1.º - Sendo pedido único da ação, a que foi pedida a apensação desta providência cautelar, a declaração de nulidade do testamento, não suporta a mesma ação a antecipação do direito (de anulação).
2.º - As providências ou são incidentes de causa proposta ou preliminares de causa a propor, não podendo, por contradição patente (contradictio in adjecto) ser requeridas como incidente da causa proposta sendo preliminar de causa a propor.
3.º - Esta providência é proposta para o seu resultado valer no inventário a propor. Para o inventário é incompetente, em razão da matéria, este Tribunal nos termos ditos.
Decide-se, pelo exposto, indeferir liminarmente a providência cautelar por falta de conexão com a ação nº 3504/19.8T8AVR, o que a torna manifestamente improcedente.
Em qualquer caso, sempre teriam os Requeridos de ser absolvidos da instância, por incompetência, em razão da matéria, deste Tribunal.
Custas pelos Requerentes”.
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Os requerentes vieram interpor recurso do despacho que indeferiu liminarmente a providência.
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Nas alegações que apresentaram os apelantes formularam as seguintes conclusões:
1ª O arrolamento foi requerido, em primeiro lugar, como apenso à ação a que os requerentes haviam dado entrada no Juízo recorrido no dia anterior;
2ª Nessa ação os requerentes pediram, em primeiro lugar, que fosse declarado nulo o testamento lavrado pelo falecido pais de requerente e requerida aos 23/10/18, na cidade de Toronto, Canadá;
3ª Em segundo lugar, os requerentes pediram a condenação dos RR a reconhecerem essa nulidade e devolverem à herança aberta por morte da mãe de A e R os prédios sitos em Portugal, que lhe foram legados por esse testamento;
4ª Os prédios sitos em Portugal, que o testador pretendeu legar à filha D…, integram a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de sua falecida esposa, F…;
5ª A única forma de assegurar efeito útil prático à dita ação, ou seja, que os prédios objeto desse legado não desaparecem na sua pendência e, em caso de procedência desta ação, voltam a integrar a herança aberta por óbito da esposa do testador, é o arrolamento;
6ª Encontram-se, assim, reunidos os pressupostos para ser decretada a requerida providência cautelar de arrolamento, enumerados nos art. s 403º e 409º do CPC, disposições que a douta decisão recorrida viola, pelo que se impõe a sua revogação, concluindo-se pela procedência do pedido de arrolamento formulado.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em apreciar se o requerimento de arrolamento se mostra manifestamente improcedente, em virtude de não poder ser objeto de providência conservatória ou antecipatória em relação à ação de anulação de testamento.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.
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3. O direito
Os apelantes insurgem-se contra o segmento do despacho que indeferiu liminarmente o requerimento de arrolamento, por se entender ser manifestamente improcedente tal pretensão, quando requerida como dependência de ação de anulação de testamento.
Argumentam os apelantes que na ação principal pretendem obter a anulação do testamento celebrado pelo pai da requerente e requerida e a devolução dos bens referenciados no testamento à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da mãe, constituindo o arrolamento a providência adequada para acautelar o efeito útil da ação, ou seja, evitar que os prédios objeto do legado desapareçam na pendência da ação.
A questão que se coloca consiste em saber se o pedido de arrolamento é manifestamente improcedente, quando requerido como incidente de ação de anulação de testamento.
Adiantando a solução, consideramos que a decisão recorrida merece censura, porque face ao disposto no art. 403º/2 CPC o procedimento cautelar de arrolamento constitui o procedimento próprio para acautelar o direito que se visa reconhecer na ação de anulação de testamento. O arrolamento é dependência da ação de anulação de testamento.
De acordo com o disposto no art.590º/1 CPC:
“[…]a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente […]”.
A petição “manifestamente improcedente” está associada a razões de fundo, por falta de condições necessárias para a procedência da ação.
Mostram-se atuais os ensinamentos de ALBERTO DOS REIS, quando considerava que se justificava o indeferimento liminar da petição inicial quando “[…] a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial”[2].
O vício em causa determina que a simples inspeção da petição leva o juiz a concluir que o autor não tem o direito que se arroga.
Nos termos do art. 403ºCPC sob a epígrafe “Fundamento” prevê-se:
“1. Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
2. O arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”.
O arrolamento enquanto providência cautelar, visando a conservação de bens no património, funda-se na descrição de bens de forma a assegurar que os mesmos não possam ser objeto de extravio, ocultação ou dissipação.
O âmbito de previsão da providência generalizou-se ao longo dos tempos, como disso dá nota, o Professor ALBERTO DOS REIS. Inicialmente esteve previsto como ato preparatório do inventário e de abandono de bens e herança jacente. O Código de Processo Comercial veio permitir que se lançasse mão do arrolamento como ato preparatório ou incidente da ação de dissolução de sociedade. O Decreto 03.11.910 passou a prever que a mulher podia requerer o arrolamento em conexão com a ação de divórcio, regime que era extensivo à ação de separação de pessoas e bens.
O Código de Processo Civil de 1939 passou a admitir o arrolamento sempre que houvesse interesse na conservação dos bens. O Professor ALBERTO DOS REIS ensinava, então, que o interesse na conservação dos bens podia assumir dois aspetos:” ser consequência do direito aos bens, direito já existente e constituído ou ser o resultado de uma pretensão jurídica que carece de ser apreciada e julgada”[3].
O Código de Processo Civil de 1961 veio acolher tal interpretação, com a redação do art. 422º/2 CPC. As alterações introduzidas pelo DL 329-A/95 não visaram introduzir uma alteração substancial[4].
Presentemente e como se prevê no art. 403º/2 CPC, o arrolamento de bens é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.
A formulação genérica da lei aponta para ação em que esteja em causa – ou de cuja procedência possa resultar estar em causa – a determinação, para qualquer fim, dos bens de um património, geral, separado ou colectivo[5].
O arrolamento pode assim ser declarado na dependência de ações em que se tenha que proceder à especificação dos bens, como seja, o processo de inventário, partilha de património conjugal, liquidação de sociedade, reivindicação de estabelecimento ou universalidade de facto, prestação de contas.
Contudo, pode também ser declarado na dependência de ações que tenham por objeto a questão prévia da determinação de um estado, direito ou facto de cuja existência dependesse uma futura especificação, nas quais se incluem as ações de divórcio, separação de pessoas e bens, anulação de casamento, dissolução de sociedade, interdição, investigação de paternidade ou maternidade, anulação de testamento ou de negócio translativo de uma universalidade.
Em Ac. Tribunal Relação de Coimbra 30 de abril de 2019, Proc. 3409/18.0T8LRA-A.C1 (acessível em www.dsgi.pt) considerou-se justificado o recurso ao procedimento cautelar de arrolamento, como incidente prévio à instauração de ação de anulação de testamento e em sumário, refere-se: “[j]ustifica-se a providência cautelar de arrolamento quando o requerente tenha interesse na conservação dos bens que integram determinado acervo hereditário e exista justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie, oculte ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens (cf. os art.ºs 403º, 404º, n.º 1 e 405º, n.ºs 1 e 2 do CPC)”.
No caso presente, o arrolamento foi requerido na dependência de ação de anulação de testamento, visando-se com a mesma que bens certos e determinados regressem à herança ilíquida e indivisa por óbito da mãe da requerente e requerida. Está em causa o reconhecimento prévio de um direito de que depende a concreta especificação dos bens, pois a requerente pretende ter direito a determinados bens, que fazem parte da herança ilíquida e indivisa de sua mãe. O pedido de anulação do testamento tem subjacente e está normalmente associado a discussão em torno do direito a determinados bens materiais.
O requerimento formulado não se mostra, assim, manifestamente improcedente, porque os fundamentos indicados justificam o recurso à providência de arrolamento, nos termos do art. 403º/2, parte final do CPC.
Procedem, desta forma, as conclusões de recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido, prosseguindo a providência os ulteriores termos.
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Nos termos do art. 539º/1 CPC as custas são suportadas pelos requerentes.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e nessa conformidade, revogar o despacho recorrido, prosseguindo a providência os ulteriores termos.
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Custas a cargo dos requerentes.
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Porto, 27 de janeiro de 2020
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição Reimpressão, Coimbra Editora, Lim, Coimbra 1982, pag. 385.
[3] Cfr. JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição Reimpressão, Coimbra Editora, Lim, Coimbra, 1981, pag. 105-106.
[4] JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, pag. 186.
[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, ob. cit., pag. 184.