Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
277/13.1TAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
INDICAÇÃO DA DISPOSIÇÃO LEGAL APLICÁVEL
Nº do Documento: RP20180124277/13.1TAVFR.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 745, FLS 242-256)
Área Temática: .
Sumário: O RAI contém a indicação da norma legal aplicável, se a indicação é feita pela epígrafe do artigo que contém o nome do tipo de crime (homicídio por negligência) e não pelo número do respectivo artigo (137º CP).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 277/13.1TAVFR.P1
Comarca de Aveiro
2ª Secção do Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira

Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por despacho proferido em 4 de Julho de 2017 o tribunal de instrução criminal pronunciou o arguido B... por um crime de homicídio por negligência, previsto no artigo 137º nº 1 do Código Penal (CP), na sequência de requerimento de abertura de instrução (RAI) da assistente C....

1.2 Recurso
O arguido recorreu pedindo a revogação do despacho e a sua substituição por outro que determine a não pronúncia e o arquivamento do processo. Em suma, invocou os seguintes fundamentos:
- A decisão instrutória é nula por ter pronunciado o arguido por factos que constituem alteração substancial do RAI, que não continha os elementos objectivos e subjectivos do crime nem tão pouco a indicação da norma legal aplicável. Os factos aditados pelo tribunal, a pretexto de uma alteração não substancial, traduzem-se assim numa nova acusação.
- Foi violado o artigo 163º nº 1 do CPP, que confere à prova pericial um valor reforçado.
- Os factos imputados não estão suficientemente indiciados nos dados recolhidos em inquérito e instrução.

A assistente respondeu defendendo a improcedência do recurso por, em resumo, que os factos aditados resultam da prova feita em instrução e não constituem alteração substancial dos factos descritos no RAI, que a falta de indicação da norma legal aplicável é irrelevante, na medida em que indicou o tipo de crime e não causou prejuízo ao exercício dos direitos de defesa, que a perícia feita pelo IML é contraditória e inverosímil e o tribunal fundamentou a razão da sua divergência e que toda a prova recolhida aponta para a existência de indícios suficientes da prática do crime pelo arguido.

O Ministério Público respondeu limitando-se a manifestar concordância com a decisão recorrida e a defender a improcedência do recurso.

Na Relação o Ministério Público emitiu parecer favorável à procedência do recurso. Considera, em síntese, que o despacho de pronúncia é omisso quanto à causa da morte e à sua imputação à negligência do arguido e que deve prevalecer a conclusão da perícia médico-legal que afasta as ocorrências durante o internamento como causa da morte.

A assistente respondeu ao parecer, sustentando, de novo, a procedência do recurso.

2. Questões a decidir no recurso
As questões que temos de decidir são as seguintes:
- A decisão instrutória é nula por violação da limitação da alteração substancial dos factos do RAI?
- Foi violado o artigo 163º nº 1 do CPP?
- Há indícios suficientes da prática do crime imputado ao arguido?

3. Fundamentação
3.1. Súmula da decisão recorrida
3.1.1. Factualidade considerada indiciada e imputada ao arguido (transcrição):
1- D..., foi internado no dia 17/02/2013, pelas 19H38, no Hospital de Oliveira de Azeméis (HOAZ), com dor epigástrica desde há 3 dias e 38,6° de febre, ficando na sala de observações até cerca das 23h, hora a que, mercê das queixas apresentadas, viria a ser transferido para o Hospital São Sebastião, em Santa Maria da Feira (fls. 183).
2- No dia 18/02/2013, pelas 1:55h, já no Hospital de Santa Maria da Feira, D... foi observado pela médica especialista de cirurgia geral, a aqui arguida, Dr.a.E..., que determinou se aguardasse relatório de TAC abdominal e pélvico que havia sido pedido (fls. 183).
3- O relatório desse exame viria a ser concluído em 18/02/2013, pelas 02:32h, e relatado pelas 02:49h, dando conta de "extensa área não captante no rim esquerdo que relacionamos com trombose renal, apenas com pequena área irrigada no polo inferior" (fls. 167).
4- D... apresentava agravamento da função renal de 1,2 mg/dl em 29/09/2011 para 1,6mg/dl em 18/02/2013 e agravamento da função hepática, com AST/ALT de 21 e 26 U/L do dia 25/06/2010, para 55/62.
5- Por solicitação do aqui arguido, Dr. F..., foram realizadas análises clínicas a D..., com resultados conhecidos a 18/02/2013, pelas 01.05H, conforme relatório de fls. 1049 a 1054, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
6- Foi então na madrugada desse dia 18/02/2013 diagnosticado pelo Dr. F..., a cumprir turno das 20h de 17/02, às 8H de 18/02 (fls. 459), embolia e trombose da artéria renal aguda e, contactado o Serviço de Cirurgia Vascular do HGSA, determinada a sua transferência para esse Serviço, com requisição por aquele médico de evacuação de doente pelas 7.45H (fls. 324) e admissão no HGSA pelas 10.03H - cfr. fls. 326 e sg..
7- Já aí é observado pelo aqui arguido H... pelas 11.26H, que pede diversos exames e observação por cardiologia e nefrologia.
8- Cerca das 12H, a assistente recebeu um telefonema do HGSA para aí se deslocar com urgência a fim de levantar os pertences de D... porque iria dar entrada no bloco operatório para lhe extraírem o rim esquerdo; a assistente deslocou-se então cerca das 15H ao HGSA na companhia da filha, G..., vindo a encontrar o marido numa maca, despido, com um lençol a cobri-lo, a tremer, com os lábios roxos, e sem qualquer acompanhante; tendo pedido ao arguido H... apoio para o seu marido, este ordenou a uma enfermeira que lhe tirasse a febre, cujo resultado foi de 39,5°c, dando-lhe então um analgésico; a assistente e a filha regressariam à sua residência pelas 16H convencidas de que a cirurgia se iria realizar.
9- Ainda nesse mesmo dia, pelas 16.09H foi efectuado e relatado exame angio-TAC torácico-abdominal pedido para despiste de fonte embólica na aorta e avaliação da artéria renal esquerda, com o teor que consta de fls. 173 e aqui se dá por reproduzido, designadamente o seguinte: "Na artéria renal esquerda, identifica-se trombose mural excêntrica, a cerca de 3cm do ostio da artéria renal na aorta, condicionando uma estenose significativa, quase completa, do lúmen, com cerca de 1 cm de extensão. Identificam-se ainda outros trombos endoluminais em vários ramos da artéria renal ao nível do hilo renal esquerdo. O rim esquerdo apresenta múltiplas áreas hipocaptantes, extensas, sugestivas de enfarte mencionado na informação clínica.
10- Após tomar conhecimento do resultado deste e demais exames pedidos, o aqui arguido H... decidiu "apenas por hipocoagulação em dose terapêutica. Volta ao Hospital da área de residência.".
11- H... concluiu no relatório de episódio de urgência respectivo: "Embolia/trombose da artéria renal com indicação de hipocoagulação em dose terapêutica por tempo indefinido; sugere-se despiste de fonte cardioembólica e a vigilância das complicações que podem decorrer do enfarte renal. De momento, sem necessidade de outros cuidados por Cirurgia Vascular (fls. 166 e 1° Vol. Anexo de Documentos).
12- Cerca das 18H, foi efectuado telefonema recebido pela filha mais velha de D..., identificando-se a autora como administrativa do HGSA, e comunicando, sem qualquer explicação, que afinal aquele já não iria ser operado.
13- No mesmo dia 18/02/2013, D... viria a ser novamente transferido para o CHEDV, onde deu entrada no Serviço de Emergência cerca das 20h, onde prestava serviço o aqui arguido Dr. I... no turno das 14H às 22H (cfr. fls. 454), que o observou pelas 20.12h; pelas 21.50H regista no diário clínico a temperatura corporal de 39,0 °C e ainda o seguinte:
i. "Após discutir caso clinico com colega de Medicina Interna e Cirurgia Geral decide-se:
ii. - doente com isquemia rim esq 2° a trombose/embolia artéria renal; febre sustentada com subida da PCR + sinais indirectos de inflamação/infecção na TAC renal (HGSA)
iii. indicação de rediscussão do caso clinico com Urologia.
iv. Plano:
v. colhe-se 2 hemoculturas aeróbios e l urocultura
vi. medica-se com tazobac 4,5 g ev, gentamicina 240 gm ev, fluidoterapia ev e enoxaparina 60 mg sc
vii. permanece neste serviço devendo ser discutido caso clinico com colegas de Urologia. " (cfr. fls. 183 a 185 e 325).
14- Por solicitação da Dr.a J..., a prestar serviço no Serviço de Emergência Médica do CHEDV no dia 19/02/2013, são realizadas análises clínicas a D..., com resultados conhecidos nesse dia 19/02/2013, pelas 10.45H, conforme relatório de fls. 1055 a 1061, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
15- Em 19/02/2013, pela 16:26h a Dr.a J... "atendendo ao facto de não haver para já agravamento imagiológico", decide determinar o internamento de D... na Unidade de Cuidados Intermédios e emitiu nota de transferência cujo teor consta de fls. 170 a 172, e aqui se dá por reproduzido, designadamente:
i. "Após discutir caso clínico com colega de Medicina Interna e Cirurgia Geral decide-se:
ii. doente com isquemia rim esq 2° a trombose/embolia artéria renal; febre sustentada com subida da PCR + sinais indirectos de inflamação/infecção na TAC renal (HGSA)
iii- indicação de rediscussão do caso clínico com Urologia. (...)
iv. Contactada Urologia - Dr K... (CHVNG) que é de opinião que para já não há qualquer indicação para intervenção por parte da especialidade; Aconselhou realização de ecografia para verificar se houve agravamento do atingimento renal, nomeadamente lesões abcedadas. (...) A haver agravamento clínico e radiológico deve ser contactada novamente Urologia/Nefrologia".
16- Já na Unidade de Cuidados Intermédios, D... passou a estar aos cuidados do arguido Dr. L... desde as 20H do dia 19/02/2013 até às 8H do dia 20/02/2013 (fls. 1079 e sg.), tendo este efectuado registos relativos ao doente no diário clínico pelas 23.28H, 23.29H e 00.52H (cfr. fls. 186).
17- Por solicitação do Dr. L... são realizadas análises clínicas a D..., com resultados conhecidos a 20/02/2013, pelas 08.15H, conforme relatório de fls. 1062 a 1067, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
18- Nesse mesmo dia 20/02/2013, cerca das 10.05h a médica de serviço na UCI desde as 8H (fls. 1079 e sg.), Dr.a M..., contacta telefonicamente o seu colega do Serviço de Urologia do CHVNG/E, o aqui arguido N..., apresentando-lhe o caso clínico, ficando acordado repetição de TC renal para exclusão de lesão abcedada; nessa sequência regista no diário clínico (fls. 186): "A confirmar-se tal lesão haveria indicação formal para nefrectomia, se for excluído o abcesso a indicação poderá manter-se mas será a reavaliar. Comprometo-me a contactar de novo o colega. Contacto radiologia (Dra. O...) a solicitar a realização do exame com alguma rapidez dado o contexto. Iniciada profilaxia de nefropatia de contraste."
19- Nesse dia, pelas 12:14h é realizado e relatado pelas 15:14h TAC renal para exclusão de colecções abcedadas, com o seguinte teor: "Exame praticamente sobreponível aos anteriores, observando-se extensas áreas de isquemia renal esquerda pequenas áreas segmentares que evidenciam normal realce após administração de contraste EV. Estes aspetos sugerem trombose não oclusiva da artéria renal esquerda já confirmada por Angio-TAC. Atraso na excreção renal esquerda. Atualmente observa-se discreto espessamento da fáscia de Gerota bilateralmente com pequena lâmina de líquido no espaço peri-renal esquerdo e presença de líquido também de pequeno volume no espaço para-renal anterior direito. A gordura peri-renal encontra-se densificada. Estes aspectos sugerem quadro inflamatório associado. Derrame peritoneal de pequeno volume e derrame pleural Bilateral. Não são visíveis colecções líquidas tradutoras de abcessos (cfr. fls. 175).
20- Tendo tomado conhecimento deste relatório de exame, a Dr.a P..., médica especialista de medicina interna, que passou a estar de serviço na UCI, pelas 14H do dia 20/02/2013 (fls. 1079), contacta de novo o CHVNG/E, concretamente os seus colegas, aqui arguidos, Q... e N..., enviando e partilhando as imagens dos exames realizados até então a D..., e discute o caso com aqueles, concluindo que não tem indicação para qualquer intervenção cirúrgica do ponto de vista urológico; esta médica regista no diário clínico nessa sequência: "Sugerem a reavaliação de antibioterapia as 48h, com eventual alargamento do espectro para carbapnem e vancpmicina. Vigiar apertamente e se necessário voltar a contactar Urologia." - cfr. fls. 187.
21- Por solicitação da Dr.a P... são realizadas novas análises clínicas a D..., com resultados conhecidos a 21/02/2013, pelas 08.01H, conforme relatório de fls. 1068 a 1071, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
22- Em 21/02/2013, pelas 11:56h é realizada ecografia renal e supra-renal bilateral, cujo relatório consta de fls. 176 e aqui se dá por reproduzido.
23- Em 21/02/2013, pelas 12:04h, a aqui arguida S... a prestar serviço na Unidade de Cuidados Intermédios, onde D... permanecia internado, e com turno nesse dia das 8H às 20H (fls. 447 e 1079 e sg.), efectuou avaliação do doente na nota de transferência que consta de fls. 178 e sg. e decidiu então a transferência de D... para o Serviço de Urologia do CHEDV com o seguinte "plano" ali consignado: "O doente foi avaliado hoje de manhã na UCI pelo Urologista - Dr. D..., mantendo a estratégia de tratamento conservador. Atendendo à estabilidade clínica do paciente, decidido transferência para o Serviço de Urologia - cama 933.".
24- D... deu entrada no Serviço de Urologia cerca das 13:15H do dia 21/02/2013 com diagnóstico de "trombose da artéria renal esquerda", com indicação para vigiar picos febris e dejecções diarreicas - registos de enfermagem de fls. 189.
25- Por essa altura, o pessoal de enfermagem foi alertado pela assistente que D... deveria fazer a medicação habitual para a patologia cardíaca de que padecia, tendo-lhe sido dito que nada constava da capa do processo, devendo falar com o médico urologista.
26- No dia 22/02/2013 a filha da assistente, U..., foi falar com o arguido B... e, tendo-o informado da referida medicação, que tinha consigo, trazida de casa, e lhe exibiu, foi pelo mesmo dito que a levasse ao pessoal de enfermagem, pois daria instruções para que lhe fosse ministrada.
27- O arguido D... registou no Diário no dia 22/02/2013, pelas 10.23H, o seguinte: "sem febre, melhoria das queixas álgicas, cansaço fácil. P/ reinicia a medicação da cardiologia que fazia no domicílio. repouso." - cfr. fls. 378 e 400 a 404.
28- Pelas 13.18H desse mesmo dia 22/02/2013, este arguido registou no mesmo Diário o seguinte: "Peço avaliação urgente pela MI para optimização da parte cardíaca."
29- Nessa sequência, é efectuado registo no Diário nesse dia 22/02/2013, pelas 15.55H, Dr.a V... (Medicina Interna), em que se refere, além do mais o seguinte: "Pedida colaboração por dispneia. S/ Refere que não é propriamente falta de ar mas cansaço e que a respiração não lhe chega ao fundo dos pulmões e atribui tal ao facto de ter estado sem a sua medicação habitual. Sem toracalgia. (...) Discretos edemas pré-tibiais - Portanto, sem evidência de descompensação cardíaca. (...) P/ Não tomo qualquer atitude.
30- Nesse mesmo dia 22/02/2013, na visita a D..., cerca das 18H, a assistente e a filha mais nova, G..., encontraram-no debilitado, mais deprimido, com febre, falta de ar e dores no corpo, queixas que estas transmitiram às enfermeiras de serviço, pedindo a presença do médico, posto que o doente pedia que o tirassem dali; as enfermeiras informaram que o médico já não se encontrava e que, sendo sexta-feira, apenas regressaria segunda-feira de manhã.
31- No sábado, 23/02/2013, D... foi visitado pela filha, U... e o marido desta, cerca das 15H; esta, encontrando o pai queixoso, pediu à enfermeira que chamasse um médico, sendo-lhe dito que no fim-de-semana não havia médico, e que só o chamariam em caso de urgência, o que seria a avaliar pela enfermeira, não sendo esse o caso.
32- D... não seria examinado por qualquer médico durante todo o fim-de- semana.
33- O arguido Dr. B... registou no Diário no dia 25/02/2013, pelas 9.24H, o seguinte: "Mantém picos febris, melhoria das dores. Explicada novamente situação clínica (tb aos familiares) e a atitude expectante. Manifesta o desejo de "tirar o rim" - explico quais as indicações, nomeadamente existência de complicações da trombose. Tosse frequente. P/mantem plano. Peço análises. Peço Rx tórax."
34- Esse raio x viria a ser realizado pelas 16.15h desse dia 25 de Fevereiro de 2013, nele se evidenciando derrame pleural evidente à esquerda e esboço de derrame pleural à direita. No parênquima pulmonar, hipotransparência difusa sugestiva de estase pulmonar, ou seja, edema pulmonar (vulgo, encharcamento).
35- Durante o seu internamento no Serviço de Urologia D... verbalizou junto dos familiares que o visitaram: "eles vão deixar-me morrer", "querem-me aqui para cobaia", "então porque não me operam ...?", "por favor tirem-me daqui e elevem-me para outro hospital".
36- Durante o seu internamento no Serviço de Urologia, D... manteve hipertermia tratada com antipiréticos, apresentando progressivamente tosse irritativa, cansaço, falta de ar e edema dos membros.
37- Constam das "notas de evolução" do pessoal de enfermagem (fls. 189 a 192) os seguintes registos relativos à febre, queixas e sintomatologia associada:
a. 21/02/2013
i. 19.30H - administradoparacetamolpor Ta (t) = 38° C - Muito ansioso e apelativo referiu mau estar geral
ii. 23h - apresenta-se subfebril com 37,8°C
b. 22/02/2013
i. 3h - apresenta-se subfebril com 37,7°C
ii. 7h - apresenta-se febril com 38,2°C, tendo feito 1 grama de paracetamol endovenoso
iii. 18.30h - administrado paracetamol por Ta (t) 39°C
iv. Noite - Doente muito ansioso, muito apelativo. Sinais vitais estáveis - temp. 37,9 fica em arrefecimento natural (...) Não consegue adormecer, mantem-se apelativo. Refere mau estar, foi monitorizado com sinais vitais estáveis
c. 23/02/2013
i. 2.30H - Febril 38,7, administrado Paracetamol 1 gr que surtiu efeito + fez NBZ com SX por apresentar acessos de tosse;
ii. Manhã - fez Paracetamol 1 gr por apresentar hipertermia que foi cedendo (...) Refere diarreia que não se verificaram neste turno.
iii. 15h - Monitorizados os sinais vitais, estáveis. Apirético
iv. 21.15H - por Hipertermia 38,3°C foi administrado paracetamol EV que tem em S.O.S.
v. Noite - Consciente, apelativo.
d. 24/02/2013
i. 7.30H - Administrado BUR por febre - refere vontade de ir para casa com termo de responsabilidade assinado.
ii. 11H - Apirético. Permanece no leito grande parte do tempo a dormitar.
Almoço com boa tolerância. Sem queixas. Fica com T= 37,2°C
iii. Tarde - Doente consciente e orientado, sem queixas álgicas - Subfebril
iv. 21H - Doente com hipertermia (38°C). Fez Paracetamol 1 gr e fica em arrefecimento natural. Apresenta tosse irritativa, pelo que tem feito nebulizações.
v. 23H - Mantém febre fica em arrefecimento periférico que surte efeito (...) Dormiu por períodos longos. Fez nebulizações com SFpor referir tosse irritativa.
e. 25/02/2013
i. 7H - Apresenta tosse pouco produtiva e Hipertermia de 38°C, foi
administrado Paracetamol que se aguarda efeito. Utente muito apelativo. Pede avaliar a temperatura e dar um xarope - Teve visita médica que pediu RX Torax urgente (aguarda marcação)
ii. 14H- apirético
iii. 14.50H - Ainda não marcaram o RX (...) Apresenta episódios de tosse pouco produtiva
iv. Tarde - Doente que mantém-se apelativo. Apirético no início do turno (...) Foi no início do turno realizar RX Torax.
v. Noite - Doente consciente, orientado, debilitado, pálido, com cansaço fácil.
f. 26/02/2013
i. 2.05H - Sinais vitais estáveis - Alimenta-se à ceia e tolera - apresenta acessos de tosse seca - (...) - Micções no WC - Edemas dos membros, cumpre drenagem postural por períodos.
ii. 5.30H - Mantém acessos de tosse, (...) nebulização com SF [Soro Fisiológico].
iii. 5.45H - Foi à casa de banho
iv. 6.50H - Doente com PCR [Paragem Cardio-Respiratória], monitorizado o doente e iniciadas manobras de SBV [Suporte Básico de Vida]. Contactada Linha Vida + residente de cirurgia (...) o óbito foi verificado às 7H30.
38- O arguido W..., médico especialista de Urologia do CHEDV, Chefe do Serviço de Urologia em todo o período da assistência e de Equipa nos dias 21/2/2013 e 22/2/2013, neste último, apenas das 8h-14h (fls. 1081 e sg.), subscreveu, na sequência do óbito de D..., o registo clínico cujo teor consta de fls. 207, contendo uma resenha da evolução clínica do mesmo até ao decesso.
39- A realização de uma nefrectomia radical, com extracção do rim esquerdo, na condição de saúde apresentada por D... quando do seu internamento no CHEDV, com passagem e observação no Serviço de Cirurgia Vascular do HGSA, poderia ter evitado a sua morte.
40- A decisão de realizar essa intervenção cirúrgica coube, até ao dia 20/02/2013 aos arguidos N..., K... e Q..., urologistas do CHVNG, contactados para esse efeito pelos colegas da UCI do CHEDV onde D... esteve internado nesse período; e ao arguido B..., médico urologista no CHEDV, a partir do dia 21/02/2013, data em que o avaliou e emitiu parecer favorável à sua transferência para o Serviço de Urologia.
41- O arguido B... emitiu o parecer favorável à alta da Unidade de Cuidados Intermédios e transferência para o Serviço de Urologia do CHEDV continuando aí a prestar assistência a D... enquanto este ali permaneceu internado, estando escalado para esse efeito nos seguintes períodos: dia 21/2: 8H-14H; 22/2: 8H- 13H; 25/2: 8:00H-00:00H, neste dia, também como Chefe de Equipa (fls. 1081 e sg.).
42- Ao não tomar nesse período a decisão de proceder à nefrectomia, nem a de providenciar pela monitorização apertada da evolução do estado de saúde de D..., com reavaliação do mesmo em face da sintomatologia apresentada - tosse, falta de ar e edema dos membros -, como podia e devia, ficando numa atitude expectante, o arguido omitiu actos médicos necessários e urgentes, não observando o dever de cuidado que se lhe impunha enquanto médico urologista, e do qual era capaz.
43- O arguido tinha o dever profissional de analisar o quadro clínico de D... e, face aos sintomas apresentados, concluir que a não remoção do rim em causa estava a desencadear um processo infeccioso generalizado (septicémia), o qual afectava os demais órgãos vitais, podendo levar à morte do paciente, como veio a ocorrer.
44- Ao assim não actuar, o arguido não observou as legis artis que se lhe impunham no caso concreto, desse modo permitindo que D... morresse.
3.1.2. Motivação da convicção do tribunal (transcrição parcial):
Na senda da metodologia usada no requerimento de abertura de instrução, procuramos efectuar a cronologia do percurso hospitalar de D... desde a sua entrada pelo Serviço de Urgência do Hospital de Oliveira de Azeméis até ao seu decesso no Serviço de Urologia do CHEDV, porquanto nos pareceu de facto fundamental ao apuramento de responsabilidades penais na morte ocorrida, em face do elevado número de profissionais envolvidos no tratamento do paciente durante os cerca de 9 dias de internamento.
Procuramos ainda integrar essa cronologia dos elementos clínicos disponíveis à data, por forma a ser possível reconstruir o processo decisório relativo ao encaminhamento hospitalar dado ao doente e à terapêutica instituída em cada momento.
Para esse efeito, à míngua de qualquer explicação para a ocorrência por parte dos médicos intervenientes no tratamento hospitalar de D... - a maioria deles constituídos arguidos, todos remetidos ao silêncio, tendo os restantes, ouvidos como testemunhas, remetido para as notas escritas nos registos clínicos -, não nos restou senão a leitura minuciosa de todos esses registos disponibilizados pelo CHEDV, que foram sendo indicados naquele elenco, por remissão para as folhas do processo em que estão copiados, por facilidade de leitura.
Assim, o percurso hospitalar diário e detalhado de D... desde que deu entrada no Hospital de Oliveira de Azeméis com uma dor abdominal no dia 17/02/2013 até ao seu decesso já no internamento do Serviço de Urologia do CHEDV, é-nos dado pelos registos efectuados pelos médicos no Diário Clínico com cópia, em parte, de fls. 183 a 188 e noutra parte, de 375 a 379; existem ainda Registos de Enfermagem, Notas de Evolução, com cópias de fls. 189 a 192, para o Serviço de Urologia, e com cópias a fls. 405 e sgs. para a Unidade de Cuidados Intermédios.
Tivemos também em consideração todos os demais registos clínicos juntos aos autos, notas de transferência, relatórios de exames, juntos com o requerimento de abertura de instrução de fls. 163 a 182, fornecidos à assistente pelo CHEDV como correspondendo aos "registos clínicos integrais" - cfr. ofício de fls. 162 - e ainda os directamente remetidos a estes autos pelo CHEDV, com o ofício de fls. 307 e sgs., e já mais recentemente, a fls. 1041 e sgs. e 1110 e sgs. (todos os exames e análises realizados por D... no período do internamento e escalas dos médicos de serviço nesse mesmo período).
Socorremo-nos, por fim, de um perito pneumologista para leitura de RX ao Tórax realizado pouco mais de 12 horas antes da morte, e que foi remetido sem relatório - cfr. DVD de fls. 1083.
Quanto à actuação de cada um dos médicos intervenientes, aferição de eventuais contributos para o desfecho fatal e determinação do médico ou médicos aos quais cabia a responsabilidade de tomar a decisão do tratamento a ministrar a D..., incluída a nefrectomia, valeram também os mesmos registos clínicos, onde figura electronicamente a identificação do médico que procede ao registo, e a conclusão extraída no primeiro parecer médico-legal do Conselho Médico-Legal, em que o quesito foi directamente colocado - cfr. fls. 689 e 690.
Teve-se ainda presente o art. 9° do Código Deontológico dos médicos que prevê no seu n° 1: O médico é responsável pelos seus atos e pelos praticados por profissionais sob a sua orientação, desde que estes não se afastem das suas instruções, nem excedam os limites da sua competência; segundo o n° 2, Nas equipas multidisciplinares, a responsabilidade de cada médico deve ser apreciada individualmente.
Assim, o Sr. Perito, Prof. Doutor X..., de forma categórica, e não questionada por qualquer dos sujeitos processuais, concluiu que a decisão de proceder à intervenção cirúrgica de nefrectomia é da responsabilidade de Urologia, cabendo aos especialistas consultados ao longo do internamento essa tomada de decisão, ou seja, ao arguido B..., que seguiu o doente no Serviço de Urologia do CHEDV, e aos arguidos N..., Q... e K..., do CHVNG, a quem foi solicitada telefonicamente, com partilha de exames, opinião sobre estratégia terapêutica.
Quanto ao também Urologista W..., tal como se concluiu naquele parecer, nada existe nos autos que permita atribuir-lhe qualquer intervenção activa na terapêutica instituída no caso, apenas constando dos autos um registo clínico assinado pelo mesmo, a fls. 207, que mais não é do que um resumo breve acerca do percurso de D... desde a sua entrada no CHEDV até à sua morte.
Sabemos também que este médico é o Chefe do Serviço de Urologia, e nos dias 21, a partir das 8H, e 22 de Fevereiro de 2013, até às 13H, prestou assistência no internamento do Serviço, como Chefe de Equipa, como decorre do mapa de escalas/turnos, de fls. 1081 e sg., do mapa de fls. 1111 e da informação de fls. 1151 e sg..
Ora, se das regras do normal acontecer, integradas pelo que decorre dos depoimentos testemunhais prestados por médicos do CHEDV (J..., P... e M...) quanto à prática habitualmente seguida, será de esperar que o Chefe de Equipa seja ouvido nas decisões a tomar relativamente aos doentes internados, a verdade é que tanto não chega para concluirmos que a decisão tomada pelo arguido B... de manter a atitude terapêutica expectante, que redundaria na morte de D..., tenha sido conjunta com o então Chefe de Equipa, W..., ou que este tenha sequer sido ouvido a este propósito, na discussão do caso.
Nada do que consta do processo clínico de D... aponta nesse sentido, sendo sempre B... quem, em nome próprio, assume os actos adoptados em cada momento, efectuando o respectivo registo no diário clínico, sem qualquer menção a outros profissionais de que se pudesse ter socorrido, como fizeram as médicas da Emergência Médica e da UCI, respectivamente, J... e P..., indicando os contactos feitos com colegas de medicina interna e cirurgia geral para ordenar a transferência para a UCI, e os urologistas do CHVNG/Espinho para decidir da terapêutica a instituir.
Os próprios arguidos, no exercício do seu legítimo direito ao silêncio, não prestaram qualquer declaração.
Não podendo imputar-se responsabilidade criminal com base em meras suposições, excluímos da factualidade indiciada a atribuição a este arguido, W..., de conduta negligente causadora da morte de D....
Retomando ainda o parecer pericial médico-legal já citado, dele transparece que, exceptuando os urologistas chamados a tomar decisões sobre o estado de saúde de D..., no contexto hospitalar em que estava, nenhum outro poderia ter decidido a prática do acto médico que, segundo as legis artis, estaria indicado e evitaria a sua morte.
Assim, aos restantes médicos não especialistas de urologia competia apenas o encaminhamento adequado do doente dentro do estabelecimento hospitalar e respectivos serviços e valências, bem como implementar a terapêutica instituída segundo o parecer da especialidade de Urologia, o que, a nosso ver, foi sendo observado.
Efectivamente, como resulta dos registos clínicos a que se recorreu para alinhar os factos indiciados, todos os médicos da Unidade de Cuidados Intermédios onde D... esteve inicialmente internado, solicitaram e obtiveram acompanhamento e orientação de médicos Urologistas, concretamente os acima indicados, ora arguidos, Q..., N... e K..., sobre a terapêutica a instituir.
Por estas razões, o foco da nossa análise passa a centrar-se sobre os quatro médicos Urologistas, estes três a prestar serviço no CHVNG e um outro, do CHEDV, que tiveram nas mãos a decisão de avançar para a nefrectomia extractora do rim esquerdo de D..., optando pelo tratamento conservador que viria a desencadear a morte do paciente.
Mas antes de escalpelizar a actuação de cada um deles, importa explicitar a nossa convicção quanto à indiciação da factualidade relativa à terapêutica adequada ao estado de saúde de D..., tal como ele se apresentou aos médicos em questão.
Em suma, o que impunham as legis artis que estes médicos fizessem para evitar o resultado morte.
Neste capítulo, porventura o mais determinante da presente decisão, foi necessária uma análise detalhada dos dois elementos documentais que constavam nos autos com informação aparentemente contraditória, o parecer emitido pelo Conselho Médico-Legal, subscrito pelo Dr. AB..., a fls. 734 e sgs., com valor de prova pericial, e o parecer emitido pelo Dr. Z..., Chefe do Serviço de Urologia do IPO, a fls. 210 e sg..
Foram ainda preciosos todos os esclarecimentos, e foram muitos, solicitados e obtidos destes dois profissionais colocados em confronto numa diligência de instrução.
Não olvidando que, nos termos do disposto no art. 163°/1 do Código de Processo Penal, o juízo técnico-científico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, assim sucedendo com o parecer emitido pelo Dr. AB..., também não podemos demitir-nos de avaliar por nós próprios os dados considerados pelo perito, ainda que escorados noutra opinião médica, e por essa via fundamentar a nossa divergência daquele parecer, tal como permitido pelo n° 2 do mesmo preceito legal.
Neste sentido, em caso com contornos idênticos ao presente, se pronunciou a Relação de Lisboa, no acórdão de 23/05/2013, proferido no processo 5072/07.4TDLSB.L2-9, acessível em www.dgsi.pt, ordenando a pronúncia de arguida médica com base em parecer de um médico sueco, junto pela assistente e que contrariava o parecer médico-legal.
Na verdade, o confronto realizado entre os dois médicos, permitiu-nos descortinar algumas inconsistências do relatório pericial subscrito pelo Dr. AB..., ao mesmo tempo que nos forneceu instrumentos de explicação para fenómenos que aquele não conseguiu explicar seguindo a sua tese, de que o doente foi convenientemente tratado e estava em processo de melhoria progressiva em direcção à cura.
Mas vejamos com mais detalhe. AB... faz assentar o seu parecer escrito de que não havia neste caso indicação para nefrectomia no facto de estarmos perante uma trombose unilateral da artéria renal sem oclusão completa da artéria, caso em que as Guidelines de 2016 da Associação Europeia de Urologia recomendam o tratamento conservador.
No entanto, em esclarecimentos orais, acabaria por admitir a necessidade de realizar uma nefrectomia caso se instalasse um quadro infeccioso, que entende evidenciar-se-ia por abcesso detectável em exames imagiológicos, como as TAC realizadas, ou não sendo aí visível, revelar-se-ia nas análises clínicas à urina e ao sangue. Também explicou que a trombose renal é causa de desvitalização do rim afectado que, por passar como que a ser uma cavidade fechada fica propenso com mais facilidade à infecção.
No caso em mãos, sustenta a bondade da opção feita pelos seus colegas nas análises imagiológicas e analíticas, que não davam sinais de infecção, seja ao nível urinário, seja ao nível sanguíneo.
Mas também do que repetidamente designou por "alguma melhoria" do estado clínico do doente ao longo do internamento.
Tal análise não nos parece, porém, rigorosa, como passamos a explicar.
No que diz respeito aos resultados das análises clínicas e imagiológicas, como explicou de forma simples o Dr. Z..., o facto de não evidenciarem bactérias ou abcessos, não significa que eles não se encontrassem já no organismo de D....
Ora, como decorreu das explicações dadas pelo Sr. Perito pneumologista a propósito dos valores "espantosamente altos" (sic) da proteína C reactiva registados nas análises ao sangue de D..., de 19 a 21 de Fevereiro de 2013 - cfr. fls. 1049 a 1071 -, ninguém poderia "ficar descansado", pois havia que investigar e procurar a origem da infecção grave instalada.
Quanto às bactérias e à sua ausência das hemoculturas, seria natural que estivessem alojadas na cavidade do rim esquerdo, praticamente encerrada pelo trombo que impedia a sua normal irrigação sanguínea, como referiu também o Dr. AB... poder ocorrer nestes casos; e assim, não entrando na corrente sanguínea, também não poderiam aparecer nas hemoculturas, ou melhor, apareceriam apenas quando passassem para essa corrente sanguínea.
Note-se que este tipo de análises terá sido efectuada apenas enquanto o paciente esteve na UCI, com o último relatório conhecido a 21/02/2013 - cfr. fls. 343 e sgs. e 1047 e sgs..
Quanto à urina, o facto de este rim estar, como referido consensualmente pelos dois médicos, praticamente "morto", sem função renal, faria com que não fosse possível a colheita de urina filtrada pelo mesmo, pois que a urina colhida proviria do rim direito, o qual estava são.
Seja como for, como resulta da informação recentemente prestada pelo CHEDV, a fls. 1047 e sgs., não mais se realizaram este tipo de análises após transferência para o Serviço de Urologia.
No que concerne aos exames imagiológicos, como consta dos diversos registos clínicos nos autos, no exame ecográfico renal nem sequer era visível o enfarte renal, o que não impedia o médico relator de ressalvar que "complicação infecciosa não pode ser excluída com a negatividade deste exame" (cfr. fls. 362), ressalva feita constar dos vários registos clínicos subsequentes (v.g., fls. 334); na Angio-TAC relatada a fls. 363, identifica-se trombose mural excêntrica na artéria renal esquerda, condicionando uma estenose significativa, quase completa, do lúmen, com cerca de 1 cm de extensão, densificação da gordura perirenal esquerda e pequena quantidade de líquido ao longo da fáscia pararenal anterior e latero-conal.
Segundo o Dr. Z... esta gordura perirenal é sugestiva da formação de um abcesso. No entanto, depois desta TAC de 18/02/2013, realizada no HGSA, é realizada uma outra com resultados sobreponíveis a esta, em 20/02/2013, ainda na UCI (fls. 175), exame não repetido no Serviço de Urologia.
Em suma, como se vê, os elementos em que o Dr. AB... se apoiou em grande medida para justificar o diagnóstico e a terapêutica instituída pelos urologistas que trataram de D... são todos rebatíveis e não determinantes.
Mas mais: o Dr. AB... dá como boa e correcta a decisão de manter a atitude terapêutica expectante com base numa suposta melhoria do estado clínico de D... durante o seu internamento que em momento algum consegue sustentar em dados concretos, de entre os muitos que o processo fornece.
Na verdade, por muito que tenhamos feito um esforço para verificar os sinais dessas melhorias, não os encontramos, tendo ao invés constatado sinais vários do agravamento do estado de saúde de D... à medida que o tempo ia passando, como facilmente se constata da leitura do registo de enfermagem efectuado no período do internamento no Serviço de Urologia.
Mas também dos depoimentos colhidos na instrução aos familiares de D... que o visitaram no Hospital nos dias em que ele lá permaneceu, dando conta de um quadro em que nunca chegou a haver melhorias clínicas daquele, tendo outrossim constatado encontrá-lo pior de dia para dia, sempre com febre, e a dada altura com tosse e falta de ar, bem como inchaço de barriga, pernas e mãos.
E o Dr. AB... foi confrontado com tudo isso nos esclarecimentos que prestou oralmente, adoptando aí uma retórica repetitiva mas como veremos sem respaldo na realidade clínica objectivável e sem resposta para a questão óbvia:
- se o doente estava no processo e caminho da cura, devidamente acompanhado e tratado com a terapêutica adequada, então o que levou à sua morte "súbita" (sic) durante o seu internamento em Urologia, depois de apresentar, tosse irritativa, falta de ar e edema dos membros?
Não foi capaz de responder porque, como admitiu, não conseguiu perceber a causa da morte.
Acabaria por "atirar", num arremedo, com a questão das comorbilidades (sem concretizar) e a "morte natural" por paragem cardio-respiratória, como se esta não fosse sempre a causa última de qualquer morte.
Assim como não deu explicação plausível para a descrita sintomatologia, falando recorrentemente da patologia cardíaca como possível explicação, mas afastando-a logo de seguida por via da avaliação feita a esse nível ao doente, já no dia 22/02/2013, por Médica Internista.
Diga-se por último que a sua tese também não permite explicar a ponderação que claramente foi feita pelos médicos enquanto o doente esteve na UCI acerca da possibilidade de vir a ser submetido à nefrectomia.
Se as Guidelines 2016 dizem que em caso de enfarte da artéria renal não totalmente oclusivo não está indicada a realização da nefrectomia, e isso é determinante da resposta dada no parecer médico-legal de que a terapêutica instituída era a indicada pelas legis artis, então por que razão os médicos que cuidaram do doente na UCI do CHEDV ponderaram e tiveram em aberto a possibilidade de a realizar naquele caso concreto, como transparece dos registos clínicos, concretamente das conversas telefónicas estabelecidas com os Urologistas do CHVNG?
Se todos os exames davam suporte ao tratamento conservador e o estado do doente o aconselhava de forma tão evidente, então porque é que, já na posse da Angio-TAC e análises clínicas, dando conta de um aumento exponencial da proteína C Reactiva, indicativa de infecção, consta dos registos clínicos o contacto com Urologistas do CHVNG e a recomendação destes para monitorização apertada do doente, com repetição da TAC, e mesmo depois do resultado desta e de em face do mesmo se ter optado pela não realização da cirurgia, ter-se tido o cuidado de recomendar reavaliação da antibioterapia em 48 horas e vigilância apertada de possíveis complicações, aventando a possibilidade de cirurgia mesmo excluídas as tão faladas lesões abcedadas?
Veja-se a este propósito, os elucidativos registos médicos efectuados em diário clínico, constantes de fls. 175 e 187, indicados descritivamente de 18. a 20. dos factos indiciados.
Mas o Sr. Perito não deixou, ainda assim, de procurar justificar a sua posição, com o devido respeito, "tapando o sol com a peneira" ao repetir até à exaustão o argumento da evolução favorável do doente com "algumas melhorias".
Mas afinal em que se traduziam essas melhorias?
Chamado a descrever esse quadro positivo de melhoria, aludiu ao facto de o doente ter autonomia e deambular, produzir quantidade de urina desejável, alimentar-se e ter períodos de apirexia, ao contrário do seu estado inicial com temperaturas constantemente elevadas. Vejamos uma por uma estas "melhorias", e facilmente perceberemos que não estamos diante verdadeiras "melhorias", no sentido evolutivo usado pelo Sr. Perito.
Em primeiro lugar, porque não há qualquer registo de perda de autonomia de D... antes e durante o internamento, sendo sempre referenciado em todos os relatórios como independente nas AVD (actividades da vida diária), pelo que não nos parece um elemento válido para fundamentar uma evolução positiva do seu estado de saúde.
Veja-se a este propósito os registos de enfermagem de fls. 428 e 432, em que se escreve ter o doente se autocuidado no WC com autorização médica; também no relato efectuado pela Dr.a P... quando aquele se encontrava na UCI na noite de 20 para 21 de Fevereiro, se alude ao facto de ter ido sozinho ao WC - cfr. fls. 187.
O que sucedeu foi que na UCI, mercê da complexa e apertada monitorização que lhe era efectuada, era indicado que estivesse na cama, passando a ter outra liberdade de movimentos uma vez no Serviço de Urologia onde deixou (para o bem e para o mal, como veremos) de ter todo esse acompanhamento.
A família também refere sempre o estado de consciência de D... e, embora admita que deambulava, referem uma progressiva deterioração da sua condição de saúde, patente também nos registos de enfermagem, com tosse irritativa, cansaço fácil, falta de ar, palidez e edema dos membros.
Em segundo lugar, e agora quanto à alimentação, D..., segundo os registos clínicos, passou por prolongados períodos de jejum, em vista de uma possível intervenção cirúrgica (claramente equacionada durante a sua estadia na UCI), tendo começado a fazer alimentação regular apenas no Serviço de Urologia - cfr. registo da enfermeira AC..., a 20 de Fevereiro, como consta de fls. 186.
Os registos de enfermagem na UCI mencionam ter sido apenas dado o pequeno- almoço ao doente no dia 20/02, tolerado, com indicação para não tomar o almoço e ter a partir daí dieta zero - cfr. fls. 432; no Serviço de Urologia é referida tolerância à alimentação da ceia até à véspera da morte, e do almoço de sábado, dia 24 de Fevereiro.
Pelo que, também neste parâmetro não se vê como possa considerar-se ter havido melhoria, no sentido de que o doente antes não se alimentava, alimentava-se mal ou rejeitava a alimentação, por exemplo com vómito, e depois passou a alimentar-se ou tolerar a alimentação antes não tolerada.
Em terceiro lugar, e quanto aos débitos urinários, como ambos os Urologistas confirmaram, o facto de um dos rins não estar operacional, não é impeditivo da função renal, realizada pelo outro rim, função que se manteve em todos os exames realizados e disponíveis, embora com subida da creatinina, indicativa de agravamento da função renal; o que, como dissemos já, foi monitorizado apenas até ao internamento no Serviço de Urologia.
Em quarto lugar, vistos ainda os registos da enfermagem na UCI, concretamente os relativos à febre e à dor, não vemos traduzida nos gráficos a melhoria a que se refere o Dr. AB... como dado certo e indiscutível; outrossim, se analisa uma constância da dor e da febre, com picos de elevação e retorno aos valores iniciais - cfr. fls. 425 e 429 -, a que não será alheia a administração dos antipiréticos.
Mas vejamos com maior detalhe o elemento febre, considerando o relevo que assumiu na discussão relativa ao diagnóstico e adequação da terapêutica instituída. Na febre e na leitura diagnóstica da mesma, residiu o pomo de discórdia entre os urologistas Dr. AB..., Perito médico-legal, e Dr. Z..., quando postos em confronto perante nós.
O primeiro a defender ser normal a febre num quadro meramente inflamatório (não infeccioso), como os elementos analíticos e imagiológicos que analisou sugerem que ocorreu e seria normal num enfarte renal; o segundo, a argumentar que a febre registada, pelo período temporal de duração e valores registados, era sinal evidente de infecção, o que era ainda condizente com os demais sinais que viriam a ser dados pelo doente - tosse, edema e falta de ar -, próprios de um quadro de septicemia - infecção generalizada com falência multi-órgãos.
Pois bem.
Se, por um lado, o Sr. Perito AB... assume neste seu raciocínio um pressuposto, de que houve melhoria da febre, com diminuição das temperaturas corporais registadas e períodos de apirexia, pressuposto que não vemos exactamente materializado nos registos clínicos que analisou e estão disponíveis nos autos, por outro lado, não logra dar resposta satisfatória à objecção por mais de uma vez levantada à validade desta sua conclusão, e que se prende com os efeitos da medicação antipirética e antibiótica que estava a ser ministrada ao paciente.
Basta atentar em todos os registos disponibilizados e vertidos para a factualidade indiciada para se perceber que a febre foi constante e sustentada (como se escreve nos relatórios) ao longo de todo o internamento, não se divisando um seu abaixamento ou desaparecimento, exceptuando no seguimento temporal da toma dos antipiréticos e na véspera do óbito, facto para o qual o Dr. Z... apresenta como explicação, diga-se, inteiramente plausível, a desistência do corpo e do seu sistema imunitário em prosseguir o combate do agente infeccioso.
Como resulta do ponto 1. do elenco de factos atinentes ao percurso hospitalar de D..., ele entrou no Hospital de Oliveira de Azeméis com dor epigástrica desde há 3 dias e 38,6 °C de febre, não havendo indicação de que, por essa altura, estivesse a tomar antipiréticos.
Desde então, e já após a sua entrada na unidade hospitalar de Santa Maria da Feira do CHEDV na noite de 17/02/2013 para 18/02/2013 até ao dia anterior ao seu óbito, D... foi registando medições de temperatura corporal entre os 38 °C e os 39,7 °C (cfr. fls. 318, 319, 320, 387, 401, 407, 425, 429, 433), não ultrapassando, que haja registo, os 39°C no internamento no serviço de Urologia, tendo-lhe sido sempre ministrado Paracetamol por via oral e por via intravenosa (cfr. fls. 323, 330, 336, 337, 338, 339, 342, 381, 382, 384, 416, 418), a par da antibioterapia, medicação que, no seu conjunto, como confirmou o Dr. Z..., influencia a temperatura corporal.
Ou seja, não se divisa uma diminuição dos valores de febre medida no paciente e muito menos um seu efectivo desaparecimento, exceptuando o período pré-morte em que, mercê da sua aproximação, é característica a apirexia.
Mas, como em relação a todas as outras objecções à tese defendida no parecer médico- legal, o Dr. AB... procurou desvalorizar este elemento, apontando para um quadro inflamatório, mas não infeccioso.
Todavia, são os registos clínicos relativos ao internamento na UCI que dão nota da preocupação com os agentes infecciosos e a procura activa dos mesmos no organismo de D....
A dada altura do seu depoimento, U... alude mesmo a que teriam sido então informados da presença de uma infecção, embora desconhecessem a sua localização.
O que "bate certo" com os valores "espantosamente altos" (sic) da proteína C reactiva, incompatíveis com um mero quadro inflamatório, como explicitado pelo Perito pneumologista, Dr. AD....
Os médicos urologistas do CHVNG foram também recomendando a monitorização do doente, aferindo do seu estado clínico, certamente por recearem essa infecção, que vinha frequentemente mencionada nos exames e registos clínicos.
Como consta logo do primeiro registo de enfermagem do Serviço de Urologia, a indicação era para "vigiar picos febris e dejecções diarreicas", sinais típicos da infecção, como referido por Z....
O Dr. Z... referiu mesmo que os picos febris mantidos pelo doente e referenciados pelo arguido B... no seu registo clínico, com variações entre os 36 °C e os 38 °C podem ser já indicativos do processo infeccioso.
O próprio Perito Dr. AB... começou por, a nossa solicitação, indicar como situação justificativa da nefrectomia a do desenvolvimento de quadro infeccioso, com ocorrência facilitada num rim não irrigado, desvitalizado.
Essa seria mesmo a forma encontrada para evitar a morte do paciente se acometido de uma sepcticémia.
Em suma: o risco de infecção era muito sério e não podia ser negligenciado, antes merecia toda a atenção médica para qualquer sinal que a pudesse indiciar, como era o caso da febre renitente, e posteriormente a tosse, o edema dos membros e a falta de ar, mais a mais quando estamos perante pessoa com as comorbilidades que D... apresentava e que constavam exaustivamente de todos os registos clínicos inseridos no seu processo (prostatectomia anterior por cancro da próstata, doença cardíaca com instalação de pacemaker e doença psiquiátrica, maníaco-depressiva).
E aqui reside, em nosso entender, um segundo momento da actuação médica descuidada e desatenta.
Mesmo a entender-se, num primeiro momento, ainda não haver critérios para realizar a nefrectomia, como fizeram os urologistas do CHVNG atidos à ausência nos exames imagiológicos de evidência de lesões abcedadas e à permeabilização do trombo, como explicou a Dr.a P... nos registos clínicos por si subscritos e, de forma mais detalhada no depoimento prestado na instrução, face ao quadro clínico grave apresentado por D..., agravado pelas ditas comorbilidades, fica claro que não deveria o mesmo ter deixado a UCI, onde tinha a recomendada vigilância apertada, como nos referiu o Dr. Z... e, tendo deixado, não podia deixar de manter uma monitorização constante, com análises clínicas e imagiológicas que fossem dando o ponto da situação da evolução do estado clínico do doente, concretamente da evolução do já evidenciado fenómeno infeccioso.
Ao menos enquanto apresentasse febre e outra sintomatologia associada à trombose renal e às complicações possíveis da mesma, como a infecção.
De resto, na Unidade de Cuidados Intermédios onde D... se foi mantendo até ao internamento no Serviço de Urologia, foi sempre patente a preocupação com a monitorização do doente, em vista de aferir da necessidade de ser submetido à cirurgia de extracção do rim, havendo indicações várias, dadas pelos Urologistas do CHVNG, os arguidos N..., K... e Q..., para uma monitorização apertada do doente, pois qualquer alteração do seu quadro poderia determinar essa tomada de decisão.
Vejam-se a título de exemplo as seguintes:
- "sépsis grave", na informação clínica fornecida à médica radiologista que assina o relatório do TC renal feito a 20/02/2013 (cfr. fls. 175);
- "SIRS [systemic inflammatory response syndrome^ÁSepsis - vigilância de complicações locais", na informação clínica fornecida à médica radiologista responsável pela ecografia realizada a 21/02/2013 (cfr. fls. 176);
- "Trombose da artéria renal esquerda em doente sem factores trombóticos conhecidos, complicada com infecção urinária» para vigilância apertada e Ab de largo espectro, na nota de transferência subscrita pela arguida S..., como consta de fls. 177;
- "complicação infecciosa não pode ser excluída, com a negatividade deste exame", referindo-se às ecografias renais realizadas a D... que não apresentavam tradução ecográfica do enfarte do rim esquerdo - cfr. fls. 177;
- "Enfarte renal extenso com SIRS associado, sem qualquer isolamento nas hemoculturas, sob Piperacilina/Tazobactam.", na mesma nota de transferência, fls. 178.
- "Após discutir caso clinico com colega de Medicina Interna e Cirurgia Geral decide- se: - doente com isquemia rim esq 2° a trombose/embolia artéria renal; febre sustentada com subida da PCR + sinais indirectos de inflamação/infecção na TAC renal (HGSA)"; - indicação de rediscussão do caso clinico com Urologia", feita constar de todos os relatórios posteriores à transferência para o HGSA e readmissão no CHEDV, feitos na UCI (fls. 185);
- "A confirmar-se tal lesão haveria indicação formal para nefrectomia, se for excluído o abcesso a indicação poderá manter-se mas será a reavaliar... Comprometo-me a contactar de novo o colega. Contacto radiologia (Dra. O...) a solicitar a realização do exame com alguma rapidez dado o contexto. Iniciada profilaxia de nefropatia de contraste." - diário clínico (fls. 186);
- "Sugerem a reavaliação de antibioterapia as 48h, com eventual alargamento do espectro para carbapnem e vancpmicina. Vigiar apertamente e se necessário voltar a contactar Urologia.", registo da Dr.a P..., médica da UCI, no dia 20/02/2013 - cfr. fls. 187.
Note-se que não consta dos registos clínicos ora transcritos que, decorridas as tais 48 horas, portanto no dia 22/02/2013, tivesse sido feita essa reavaliação da antibioterapia recomendada pelos Urologistas do CHVNG já depois de conhecidos os resultados do exame e a negatividade de colecções abecedadas.
Ao invés, com o parecer favorável do arguido B..., o doente teve alta da UCI e foi transferido para o Serviço de Urologia, não constando aí qualquer monitorização/reavaliação neste capítulo, ficando-se a intervenção médica pela instituída terapêutica conservadora com anticoagulantes.
A Dr.a P... instada directamente sobre este ponto, logrou esclarecer que, em geral, a saída do doente da UCI ocorre quando já não precisa de vigilância apertada porque está num caminho de melhoria, podendo, porém, ali regressar caso volte a apesentar a sintomatologia debelada.
Ora, como vimos acima, não se vê que melhorias apresentava o doente que justificassem deixar de ter esta vigilância apertada, passando para o Serviço de Urologia.
Mas assalta-nos uma possível explicação: foi patente no depoimento de P... o incómodo gerado por D... que seria agressivo (compatível com o síndrome maníaco-depressivo diagnosticado), muito apelativo e autónomo, pretendendo deambular pelo serviço e arrancar os cabos da monitorização; a sua transferência viria a ocorrer na sequência da noite em que se verificou inclusivamente um desses episódios - cfr. fls. 377.
Note-se que esta decisão de transferência do doente para um Serviço de menor cuidado e vigilância ao doente não mereceu reparo do Sr. Perito Dr. N..., que desvalorizou alegando não se justificar a presença diária do médico junto de D..., sendo que em caso de necessidade poderia ser chamado um, pois as instituições tinham mecanismos para essas situações de urgência.
Mas surge ainda um terceiro momento que aponta para uma atitude descuidada e desconforme às legis artis.
Ainda que B... não tivesse aferido de tudo o que fica explicitado antecedentemente, no contacto tido com o doente, os seus familiares (veja-se a conversa com U... em que esta lhe faz ver o estado crítico do pai) e o seu processo clínico ao longo dos dias 21 e 22, quinta e sexta-feira, como podia e devia, forçosamente que o teria que fazer após o fim-de-semana, quando no dia 25, segunda-feira, fez a visita matinal a D....
Pelo menos nessa ocasião, no dia anterior ao da sua morte, este médico, responsável pelo tratamento de D... na especialidade de Urologia, tinha que ler e interpretar os sinais dados pelo mesmo de manutenção dos picos febris, edema dos membros, falta de ar e tosse frequente (alguns registados nesse dia no diário clínico), no sentido de requererem uma reavaliação urgente e subsequente replanificação da terapêutica a instituir, eventualmente com a sua estabilização e realização, por fim, da nefrectomia como forma de reverter o aparente quadro de septicémia.
Mas o que fez B...?
Segundo os registos de enfermagem e os do dito diário clínico feitos pelo próprio, logo pela manhã, 9.24H, pediu finalmente as análises e RX do tórax; no registo de enfermagem aparece o pedido urgente do RX do tórax.
Todavia, esse RX viria a ser realizado apenas pelas 16.15H desse dia, sendo notória a preocupação do pessoal de enfermagem com essa dilação, ao ponto de o registarem nas suas notas com as menções "aguarda marcação" e pelas 14.50H "ainda não marcaram o RX". Nunca chegaria o respectivo resultado a ser objecto de análise e registo por parte do médico requisitante, Dr. B..., que nesse dia chefiava a equipa no serviço de urologia, num turno das 8:00H às 00:00H (cfr. fls. 1082 e 1151), porquanto o doente viria a falecer na madrugada seguinte.
Todavia, a julgar pelo que já constava do relatório da autópsia, poderia ter visto nas imagens fornecidas por esse exame, entretanto fornecidas no DVD anexado a fls. 1083, algumas das alterações pulmonares ali registadas, como edema e congestão em ambos os pulmões, condizentes com o quadro de septicémia traçado por Z....
Neste exacto sentido se pronunciou o Sr. Perito médico pneumologista chamado a fazer o relatório desse exame, dizendo também que o que visualizou era ainda reversível se tratada a causa daquela infecção generalizada.
E este quadro, que viria a causar a morte a D... é ainda corroborado pelo relatório de autópsia e exame de anatomia patológica forense anexo, na leitura feita com recurso às explicações daquele médico.
Senão vejamos.
No relatório de autópsia médico-legal realizada a 27/02/2013, dia seguinte ao da morte, datado de 10/09/2013, concluiu-se que: "em face dos dados necrópsicos, da informação social e clínica, colhidas neste GML e atrás transcritas e do resultado do exame complementar de diagnóstico (anátomo-patológico), a morte de D... pode ter sido devida a alterações cardíacas, pulmonares e renais atrás descritas -
"Sinais de isquemia crónica severa do miocárdio associada a lesões graves de aterosclerose coronária, com obstrução até cerca de 60% da área de secção do lúmen do órgão. Enfarte renal em associação com trombose recente da artéria renal." Esta e causa de morte natural." (sublinhados nossos).
São as seguintes as alterações pulmonares registadas no mesmo relatório:
- "Pulmão direito e pleura visceral: Pulmão aumentado de volume com superfície lisa de cor acinzentada. Expandido, difusamente hipocrepitante, de aspecto elástico. Nas secções de corte da parênquima observa-se edema e congestão, com presença de áreas de condensação de aspecto gelatinoso de coloração acastanhada, friáveis. Sem sinais de tromboembolismo. Apresenta muco de coloração acastanhada nos brônquios. Peso: 935 g";
- "Pulmão esquerdo e pleura visceral: Pulmão aumentado de volume com superfície lisa de cor acinzentada. Expandido, difusamente hipocrepitante, de aspecto elástico. Nas secções de corte da parênquima observa-se edema e congestão, com presença de áreas de condensação de aspecto gelatinoso de coloração acastanhada, friáveis. Sem sinais de tromboembolismo. Apresenta muco de coloração acastanhada nos brônquios. Peso: 795 g";
São as seguintes as alterações renais registadas no mesmo relatório:
- "Rim esquerdo: Cápsula não aderida, sem evidência de lesões quisticas, cicatriciais ou tumores. Observam-se na superfície exterior múltiplas áreas de coloração amarelo-esbranquiçada, maiores das quais com 2 cm de diâmetro. Superfície de secção com congestão acentuada, boa diferenciação córtico-medular, arvore pielo-calicial com infiltração gorda. Peso: 205 g" (...)
- "Vasos: Observa-se na artéria renal a esquerda trombo de coloração vermelho- acastanhada, aderente a parede do vaso (...)."
São as seguintes as alterações cardíacas registadas no mesmo relatório:
- Artérias coronárias: Apresenta aterosclerose moderada sem sinais de calcificação, ocupando ate 75% da lúmen da artéria coronária esquerda descendente anterior, ate 25% da lúmen das artérias circunflexa e artéria coronária direita.
Realizado complementarmente exame de anatomia patológica forense, concluiu-se no respectivo relatório o seguinte: sinais de isquemia severa do miocárdio associada a lesões graves de aterosclerose coronária, com obstrução até cerca de 60% da área de secção do lúmen do órgão. Enfarte renal em associação com trombose recente da artéria renal. Foi aí escrito ainda: "não se identificam critérios histológicos definitivos de enfarte agudo do miocárdio estabelecido (...)".
Neste particular, uma nota: o Dr. Z… explicou e desmistificou de algum modo o relevo a dar a este elemento do foro cardíaco, que num primeiro impulso e dada a redacção ambivalente feita constar do relatório de autópsia, tenderíamos a sobrevalorizar no contributo para a morte de D...; assim, referiu ser normal na idade que o paciente tinha, de 59 anos, e bem assim em qualquer adulto, ter isquemias do miocárdio" fruto da acumulação de placas de gordura nos vasos sanguíneos, causadoras de lesões que se foram resolvendo.
Daqui nos permitimos concluir que terá sido de facto o enfarte renal e a trombose da artéria renal a causa de morte de D..., como de resto se fizera constar na certidão de óbito (fls. 14), do qual adviria a falência dos pulmões e do coração, mercê do que que Z... designou de "encharcamento" por via da infecção generalizada e choque séptico sofrido em consequência, com a falência multi-órgãos.
Veja-se que, neste particular, os esclarecimentos prestados pelo Perito Dr. AB… foram muito pouco esclarecedores.
Não soube explicar nem como deveria ser valorizada a tosse, falta de ar, febre, edemas dos membros, excluindo ao mesmo tempo a causa que lhe parecia mais provável, e que seria a da patologia cardíaca e/ou medicação própria para essa patologia, porquanto teria havido uma reavaliação a esse nível já no Serviço de Urologia, nada tendo sido detectado, o que se confirma pela leitura do diário clínico, em que a médica internista chamada a ver o doente conclui: "sem evidência de descompensação cardíaca" (cfr. fls. 378 e sg).
Sucede que, excluída então liminarmente essa causa da referida sintomatologia, o Sr. Perito fica sem explicação para a mesma.
Note-se que D..., no exame realizado pelo Dr. L… em 19/02/2013, pelas 23.29H e no que lhe é feito pela Dr.a P..., a 20/02/2013, pelas 19.32H, ambos na UCI, apresentava membros sem edemas (fls. 186 e 187), vindo a ser mencionados discretos edemaspré-tibiais pela cardiologista que o examinou já no Serviço de Urologia, no dia 22/02/2013, edemas que mereceram registo de enfermagem pouco antes da morte, pelas 2.05H do dia 26/02/2013, mas que foram já visualizados pelos familiares do doente que o visitaram durante esse fim-de-semana (23 e 24 de Fevereiro), não podendo deixar de ser também visíveis aos olhos de B... que, no entanto registou no diário clínico os picos febris e a tosse frequente, falando em melhoria das dores.
Mas o Sr. Perito Dr. AB... admite também, até com algum embaraço, a dificuldade em explicar a morte súbita do doente se, como é seu entendimento, apresentava um quadro de "alguma melhoria" e estava excluída a descompensação cardíaca; fala a este propósito nas comorbilidades do doente, mas não é capaz de apontar para uma que possa explicar a morte súbita do mesmo, assim como, sem explicação, exclui o quadro infeccioso, e o sinal de que poderia ter sido essa a causa de morte, designadamente o edema pulmonar, dizendo não estar presente.
No entanto, como vimos, analisando o relatório de autópsia a que o Sr. Perito teve acesso, facilmente constatamos que as suas conclusões apontam como causa imediata da morte a falência de órgãos como rins, pulmões e coração, com respaldo, além do mais, na descrição de edema e congestão dos pulmões, direito e esquerdo do cadáver de D..., o que acabaria por ser corroborado pela leitura do RX ao tórax realizado na véspera da morte.
Ou seja, D... apresentava efectivamente edema do pulmão, compatível com a sua sintomatologia à data do óbito - tosse irritativa e frequente, falta de ar e edema dos membros na posição horizontal -, o que terá levado a que o arguido B..., no dia 25 de Fevereiro, segunda-feira, logo pela manhã, solicitasse o RX ao tórax com urgência, urgência que, no entanto, não o levaria a esperar pelo resultado desse exame, ou, pelo menos, a pedir que o mesmo lhe fosse logo comunicado para permitir, se necessário, tomar também uma decisão urgente.
Do que antecede decorre a nosso ver fortemente indiciado que, tivesse B... decidido pela nefrectomia do rim esquerdo de D..., ou, pelo menos, na ausência dessa intervenção, valorizado e interpretado a sintomatologia apresentada, mantendo a monitorização mediante análises clínicas e outros exames de diagnóstico, por forma a detectar atempadamente sinais de infecção, e poderia ter evitado a sua morte.
Ao não fazê-lo, tudo indica terá infringido as regras da arte médica e omitido o dever de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz.
De realçar que se desconhecem as razões de B... para excluir a nefrectomia como terapêutica neste caso, porquanto, não tendo prestado declarações, tem nos seus registos clínicos uma única menção a este facto, escrevendo no dia 25/02/2013 às 9.24H ter explicado a atitude expectante ao doente e seus familiares, uma vez que aquele manifestava o desejo de "tirar o rim", e falando de complicações da trombose, sem especificar quais e razões pelas quais contra-indicavam a cirurgia.
Na realidade, a extracção do rim, mesmo no parecer o Perito médico-legal Dr. AB... seria a solução a adoptar num quadro infeccioso que tudo aponta se instalou de facto no organismo de D..., e o seu médico assistente, B..., tinha todas as condições para o detectar através dos meios complementares de diagnóstico, alterando em seguida o seu plano terapêutico, do até aí catastrófico estado expectante para a intervenção cirúrgica requerida pelas circunstâncias daquele paciente.
Conforme referiu o Dr. Z..., admitindo que as Guidelines 2016 recomendem o tratamento conservador do rim em caso de enfarte não totalmente oclusivo da artéria renal, o quadro clínico específico deste doente, que contava com várias comorbilidades (doença cardíaca, com pacemaker instalado, cancro da próstata já tratado por intervenção cirúrgica feita por si, doença psiquiátrica) e a febre renitente, com análises clínicas indicativas da subida da proteína C reactiva até valores que se fixaram pelo menos em 289 mg/l, obrigavam à realização do que designou, apelando à terminologia inglesa, por "life saving nefrectomy".
Neste concreto quadro, manter cegamente a posição de que não havia indicação médica para a nefrectomia só porque as Guidelines assim o determinam, alheio à clínica e às especificidades da situação do doente, como se qualquer um de nós pudesse instituir terapêuticas mediante simples consulta a essas Guidelines, quando não se tem uma explicação plausível para a "morte súbita" daquele doente, supostamente em processo de evolução clínica favorável em direcção à cura, retira a nosso ver a necessária consistência e credibilidade ao parecer pericial emitido por AB... em representação do Conselho Médico-Legal.
Dito isto, e voltando à questão dos médicos que podem responder criminalmente pelo verificado resultado morte de entre os quatro urologistas que, como vimos, tinham nas mãos a possibilidade de adoptar a atitude terapêutica que salvaria a vida de D..., parece-nos ter ficado razoavelmente claro que apenas a conduta do Dr. B... permite o enquadramento no imputado homicídio por negligência.
Na verdade, os arguidos Urologistas do CHVNG, tendo podido também decidir da realização da nefrectomia, à data em que foram consultados e chamados a opinar, optaram por aguardar os sinais da infecção que levariam à sua realização, mas recomendando sempre apertada monitorização e reavaliação, o que, mercê da intervenção posterior de B..., dando parecer favorável à transferência do doente para Urologia, deixou de ocorrer.
E assim:
- Sendo aquela terapêutica conservadora, em tese, uma das possíveis no caso, como é consensual entre os médicos ouvidos;
- Tendo aquela opinião médica sido emitida à distância, sem exame presencial do paciente;
- Tendo sido ressalvada e alertada a necessidade de monitorização apertada do doente, com reavaliação da antibioterapia e da terapêutica instituída, sem excluir a cirurgia;
- Havendo entretanto sido consultado pela UCI o urologista de serviço no Hospital do internamento, o ora arguido, Dr. B..., que, ignorando esses alertas, deu "luz verde" à transferência de Serviço para Urologia, sabendo que assim subtrairia o doente à recomendada monitorização apertada, contra as indicações daqueloutros urologistas;
Afigura-se-nos, podermos concluir, que resultou interrompido o eventual nexo causal que pudesse vir a ser estabelecido entre aquela consulta e opinião médica nela veiculada, e a subsequente morte do doente.

3.2. Mérito do recurso
3.2.1. Nulidade da decisão instrutória
Sustenta o arguido que a decisão instrutória é nula por violação do objecto temático da instrução, conforme o disposto no artigo 309º do CPP. O RAI não continha a descrição factual dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime imputado ao arguido e com a alteração dos factos promovida pelo tribunal, uma acusação improcedente foi transformada numa pronúncia.
Na Relação o Ministério Público acompanhou essa posição, afirmando que o despacho de pronúncia é omisso quanto à causa da morte e à sua imputação à negligência do arguido.
Diz-nos aquele artigo 309º que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial dos factos descritos no (…) requerimento para abertura de instrução.
Sucede que a lei não admite o recurso “directo” do despacho de pronúncia que altere substancialmente os factos do RAI. O artigo 309º nº 2 determina que essa nulidade tem de ser arguida perante o tribunal de instrução criminal no prazo de 8 dias. Só se for indeferida essa arguição será admissível a interposição de recurso – artigo 310º nº 3 do CPP.
O regime impugnação da nulidade do despacho de pronúncia acabado de referir é especial em relação ao previsto no artigo 379º nº 2 do CPP para a nulidade da sentença. Esta pode ser arguida perante o tribunal de primeira instância ou invocada como fundamento de recurso “directamente”.
Não é aplicável ao caso o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 7/2004 (publicado no DR, I Série A, nº 56, de 7 de Março de 2000) porque este se refere ao recurso da decisão instrutória que conhece das nulidades arguidas no inquérito ou na instrução e não daquelas praticadas na própria decisão, como é o caso da prevista no artigo 309º nº 1 do CPP.
Não poderemos assim conhecer da invocada nulidade por alteração substancial dos factos, dada a errada forma de impugnação do vício.

3.2.2. Nulidade do RAI
Depois da prolação do despacho que deu conhecimento da alteração não substancial dos factos, o arguido pediu prazo para se pronunciar e veio a invocar que o RAI viola os requisitos dos artigos 283º nº 3 al. b) e c), aplicável por força do disposto no artigo 287º nº 2, ambos do CPP, na medida em que não continha a descrição dos factos típicos nem a indicação das disposições legais aplicáveis.
Esta questão foi decidida pelo tribunal como invocação de nulidade do RAI. Nesta medida, visto vir agora também impugnado no recurso o indeferimento daquela nulidade, a questão deve ser apreciada, por força da jurisprudência fixada pelo referido acórdão nº 7/2004. Repare-se que o que aqui temos de analisar não é se o despacho de pronúncia é nulo por conter uma alteração substancial dos factos – pois já dissemos que esta questão não foi correctamente impugnada – mas sim se o RAI é nulo por omissão de factos e de indicação de normas legais.
Não há dúvida que no RAI em que a assistente visa a prolação de uma decisão de pronúncia para levar o arguido a julgamento, tem de ser deduzida uma acusação que observe os requisitos da narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis previstos no artigo 283º nº 3 als. b) e c), aplicável ex vi artigo 287º no 2, todos do CPP. É determinante que na sua substância o requerimento contenha uma acusação suficiente e clara para permitir a realização de um julgamento vinculado a um tema viável – isto é, que possa terminar numa condenação – e para assegurar a efectiva possibilidade de defesa, o que naturalmente pressupõe o conhecimento preciso dos factos imputados e a sua suficiência para integrar o tipo de crime em causa.
Portanto, dito isto, ou a acusação deduzida pela assistente, ainda que porventura formalmente imperfeita, contém perceptíveis os factos essenciais para imputar ao arguido o crime de homicídio por negligência e pode prosseguir; ou faltam-lhe factos, caso em que se imporia a sua rejeição na fase instrutória.
Os factos que a acusação há-de narrar são os que permitam, se provados em julgamento, preencher os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime. A todos eles se refere a al. b) do nº 3 do artigo 283º, pois a aplicação de uma pena ou medida de segurança só é possível se estiverem provados todos os pressupostos da infracção penal.
Ora, à luz destes princípios, parece-nos que a decisão recorrida, de indeferir a arguição do vício de omissão de factos típicos, está correcta.
O RAI, ainda que com muita imperfeição formal, não só na arrumação dos factos mas sobretudo na sua diluição numa amálgama narrativa dos acontecimentos que precederam a morte da vítima, contém, ainda assim, de forma suficientemente perceptível, os elementos necessários para imputar o crime ao arguido.
O RAI diz qual foi a causa da morte, na perspectiva da assistente: quadro inflamatório associado a sepsis grave e falência dos órgãos vitais (artigos 117, 169 e 171).
Diz também qual teria sido a acção médica indicada para evitar a morte: cirurgia para remoção do rim esquerdo (artigos 6, 10, 12, 47, 49, 60, 66, 70 e 168).
Diz ainda porque é que o alegado crime é imputável ao arguido a título de negligência: ele conhecia as circunstâncias do doente (factos 114, 130-141, 151-153 e 171), teve falta de cuidado por errada avaliação clínica (facto 57), omitiu o acto médico urgente, que era necessário para evitar a morte (factos 69 e 70) e não avançou para a nefrectomia (extracção do rim), que era exigível (factos 114-117 e 171).
Portanto, ao contrário do sustentado no recurso, o RAI contém uma descrição suficiente dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de homicídio por negligência.
Quanto à falta de indicação das disposições legais aplicáveis, também concordamos com a decisão recorrida.
No RAI, sem indicação do preceito legal correspondente, pede-se que o arguido seja pronunciado por um crime de homicídio por negligência (artigos 191 e 195). Não há dúvida que é causa de nulidade a omissão das disposições legais aplicáveis aos factos imputados. Mas a questão que temos de pôr é a de saber se a indicação do crime, não por referência ao número do seu artigo no código, mas sim à sua epígrafe, que nomeia o tipo legal, cumpre o dever de indicar a disposição legal aplicável. Isto é, posta a questão ao contrário, se a lei, quando se refere à indicação das disposições legais aplicáveis, exige necessariamente uma indicação com o número do artigo.
É claro que não há qualquer norma que determine que a indicação das disposições legais aplicáveis se tenha de fazer com o número do respectivo artigo. Mas também é evidente que ninguém desconhece que essa é a forma clássica de indicar as disposições legais dos códigos. E foi certamente essa que o legislador teve em vista no preceito em questão. Contudo, se a disposição legal, ainda que de outra forma, é indicada sem que possa haver qualquer dúvida sobre o tipo de crime imputado, ao ponto de não haver, com toda a certeza, qualquer violação do direito do arguido ao conhecimento preciso do crime relativamente ao qual terá de se defender, parece-nos que isso não afectará a validade do RAI.
A imputação ao arguido do crime de homicídio por negligência só pode referir-se ao crime tipificado no artigo 137º do CP, pois essa é a sua denominação jurídica. Face ao RAI, não há a mínima possibilidade de o arguido poder ficar na dúvida sobre a imputação que lhe é feita.
Concluímos assim que o RAI contém a indicação da disposição legal aplicável. Essa indicação foi feita pela epígrafe que contém o nome do tipo de crime e não pelo número do respectivo artigo, mas isso é no caso indiferente, visto que a imputação é suficientemente clara e precisa e não causa prejuízo substancial para o exercício dos direitos de defesa.
Improcede também este fundamento do recurso.

3.2.3. Violação do artigo 163º nº 1 do CPP
O arguido invocou violação da regra do artigo 163º nº 1 do CPP, que atribui à prova pericial valor reforçado. Segundo este preceito, o juízo técnico, científico artístico que está inerente a essa prova presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. Havendo divergência na convicção do julgador, deve ser fundamentada.
No recurso considera-se que se a perícia médico-legal concluiu que a causa da morte foi natural, isto é, não resultante das ocorrências do período de internamento, o tribunal não podia ter concluído o contrário.
Há um equívoco na alegação do recurso. É evidente que a norma referida foi respeitada, pois o tribunal fundamentou de forma exaustiva a sua divergência em relação às conclusões da perícia. Sendo assim, do que se trata não é de violação desta regra especial de valoração da prova e de motivação da decisão, mas sim de errada apreciação da prova – na perspectiva do arguido, claro.

3.2.4. Suficiência dos indícios
O arguido considera que não foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime que sustentem a pronúncia. A perícia médico-legal atribui a morte a causas naturais. O médico que fez o parecer junto com o RAI disse que nunca viu o doente, incorreu em erros de interpretação dos documentos, como dizer que havia uma obstrução total da artéria renal e atribuiu a causa da morte a uma hipótese e não a uma certeza. Não foi o arguido quem emitiu o parecer favorável à alta e transferência do doente, pois a própria pronúncia diz que foi outra médica. A partir do dia 21 de Fevereiro de 2013 a decisão de realizar ou não a cirurgia não era só do arguido. Não existiam evidências de risco antes da morte. Não pode ter havido uma septicémia porque as bactérias não podiam estar em circulação no sangue com o rim obstruído. Os TAC não davam indicação para cirurgia. E o doente teve melhoras antes de falecer.
Resulta do disposto no artigo 286º nº 1 do CPP que a instrução requerida pela assistente visa a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito. Segundo dispõe o artigo 308º nº 1 do CPP, essa comprovação exige que até ao encerramento da instrução tenham sido recolhidos indícios suficientes de que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Indícios suficientes serão aqueles dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (artigo 283º nº 2, aplicável ex vi artigo 308º nº 2 do CPP).
Como acontece com muitas outros preceitos que contêm conceitos abertos, o significado normativo do vocábulo “indícios suficientes” não é objecto de leitura uniforme na doutrina nem tão pouco tem sido interpretado e aplicado da mesma maneira pelos nossos tribunais. Tivemos oportunidade de analisar mais em detalhe este conceito no acórdão TRP, de 7DEZ2016[1], para o qual remetemos. Aí concluímos que “o juiz de instrução deverá proferir despacho de pronúncia quando considerar que os indícios disponíveis, avaliados em função do seu valor probatório no momento e de uma previsão prudente sobre a sua evolução dinâmica em julgamento, conduzem a uma conclusão racionalmente fundada em elementos objectiváveis de que é mais provável que o arguido venha a ser condenado do que absolvido e de que se justifica, no plano da proporcionalidade, comprimir o direito à presunção de inocência em nome da protecção do direito à realização da justiça e da protecção dos valores com tutela penal”.
Definida a nossa interpretação de que existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação, estamos já em condições de dizer que as objecções do arguido não procedem. Para abalar as conclusões da decisão recorrida sobre a suficiência dos indícios, não basta procurar sobrepor à interpretação das provas feita pelo tribunal, uma outra pertencente ao arguido. É preciso que se demonstre que o tribunal chegou a conclusões implausíveis ou não razoáveis. E isso o arguido não conseguiu fazer.
Como resulta da decisão recorrida que acima transcrevemos e para a qual remetemos, o tribunal fundamentou de forma detalhada, exaustiva e convincente as razões porque considerou indiciado que a causa da morte não foi a que consta na perícia médico-legal mas sim aquela que fez verter nos factos imputados. Analisou comparativa e criticamente o que consta nos documentos que descrevem o percurso da vítima nos dias de internamento, os exames realizados e o seu significado, as conclusões da perícia e do parecer junto com o RAI, os esclarecimentos prestados pelo perito e os depoimentos das testemunhas inquiridas. Aquilo que o arguido faz no recurso é confrontar a sua interpretação da prova, sem fundamentos que não tivessem sido já analisados, para chegar à conclusão que melhor se conforma com o seu interesse processual – legítimo, entenda-se.
Na decisão também se explica porque se considerou que, não obstante a intervenção de outros médicos no processo de acompanhamento e tratamento do doente, foi o arguido quem, a partir de 21 de Fevereiro, violou os deveres de cuidado ao não verificar o agravamento do estado de saúdo do doente e ao tomar a decisão de sujeitar o doente a cirurgia para extracção do rim. Portanto, o facto de existirem outros médicos envolvidos não afasta as conclusões a que o tribunal chegou.
A inexistência de evidências de risco que justificassem cuidados acrescidos em relação à evolução da saúde do doente está igualmente afastada na motivação, de forma cuidadosamente explicada. Os exames realizados e toda a evolução do estado de saúde do doente, de progressivo agravamento, dizem-nos o contrário do que se sugere no recurso.
O mesmo se pode dizer em relação à alegada melhoria do doente. Como o tribunal refere na motivação, essa melhoria ocorreu já como consequência do processo de infecção generalizada que precedeu a morte e não afasta a falta de cuidado ocorrida anteriormente.
Diz por fim o arguido que há contradição entre a conclusão de que o doente morreu em consequência de uma septicémia e o facto de ter o rim obstruído, na medida em que as bactérias localizadas nesse órgão não seriam detectadas nos exames ao sangue. Só que, para além de a afirmação do arguido não estar suportada em qualquer prova, está suficientemente descrito na motivação da decisão que a obstrução não era completa, o que não impediria, portanto, mesmo na lógica da argumentação do recurso, que as bactérias localizadas no rim não se tivessem espalhado pelo corpo através da circulação sanguínea.
Em suma, parece-nos que o recurso não nos fornece uma argumentação suficiente para dizer que os factos imputados ao arguido não estão indiciados ao ponto de ser mais provável do que improvável que venham a considerar-se demonstrados em julgamento. Obviamente que não estamos a afirmar que o arguido terá de ser condenado. Essa é uma conclusão descabida nesta fase do processo. Estamos apenas a dizer que há razões justificativas suficientes para que seja submetido a julgamento, momento em que o confronto entre as provas da acusação e da defesa deverá levar o tribunal a formular uma conclusão definitiva sobre a culpabilidade ou inocência.
Uma palavra final para afastar o argumento do parecer do Ministério Público, segundo o qual o despacho de pronúncia seria omisso quanto à causa directa e necessária da morte e à sua imputação à negligência do arguido.
Resulta da decisão recorrida que se considerou indiciado que a não remoção do rim desencadeou um processo de infecção generalizada (septicémia) que afectou os órgãos vitais e levou à morte do doente e que o arguido não tomou a decisão de se proceder à nefrectomia – cirurgia que teria salvo o doente – nem a de se monitorizar adequadamente a evolução do estado de saúde, por falta de cuidado na avaliação médica da sua condição.
Improcede portanto o recurso e confirma-se o despacho de pronúncia.

4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso improcedente e em consequência decidimos confirmar o despacho de rejeição da abertura de instrução.

Fixa-se em 5 UC a TJ a cargo do arguido.

Porto, 24 de Janeiro de 2018
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado
____________
[1] http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/0acdc0b44f5080608025808f00585546?OpenDocument