Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
47/19.3T8AMT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
Nº do Documento: RP2022022147/19.3T8AMT.P2
Data do Acordão: 02/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Apenas determina o vício de nulidade da sentença por excesso de pronúncia (al. d), do nº1, do artigo 615º, do CPC) a apreciação de “questões” que extravasem os pedidos formulados, com as respetivas causas de pedir, e as exceções deduzidas (isto é, o conhecimento de “questões” que não integram o objeto do litígio) e em que se não imponha o conhecimento oficioso, não originando tal vício um erro na decisão da matéria de facto, por indevida recolha, para o compósito fáctico, de factos não alegados e considerados sem o confronto das partes;
II - Suscitada no recurso a questão da indevida inclusão no composto fáctico provado da sentença de factos não alegados pelas partes e considerados de relevo somente na sentença, têm os mesmos de ser dele eliminados.
III - Neste conspecto, e na falta de factos carreados para os autos que preencham os requisitos impostos para a procedência da ação, tem a pretensão deduzida de soçobrar.
IV - No caso, não alegados factos a densificar o direito de propriedade dos Autores relativamente a imóvel para o qual se propagou o incêndio, sendo a existência de tal direito controvertida, na falta de verificação de requisito necessário ao preenchimento da responsabilidade civil extracontratual - o dano dos Autores -, isto é, na falta de específica alegação e de demonstração de serem eles os lesados, de os prejuízos decorrentes do incêndio se ter produzido na sua esfera jurídica, não se constitui o direito dos mesmos a indemnização (v. nº1, do art. 342º, do CPC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 47/19.3T8AMT.P2
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Amarante
Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Maria José Simões

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO


Recorrentes: os Réus AA e esposa BB
Recorridos: os Autores CC e mulher DD


Os autores CC e mulher DD intentaram a presente ação comum contra os réus AA e mulher BB e EE, pedindo a condenação dos réus, solidariamente, no pagamento da indemnização total de €7.780 euros, sendo €3.000 euros pela perda de chance da venda dos pinheiros, €1.000 euros pela perda do mato rasteiro, €1.280 euros do custo da limpeza da área ardida, €1.000 euros para compra de novas árvores e €1.500 euros do custo da plantação das novas árvores, acrescido ainda dos juros de mora, à taxa legal.
Alegam, para tanto, e resumidamente, serem donos do prédio rústico inscrito na matriz, da freguesia ..., ..., sob o artigo matricial ..., com a área de 8.850 m2, com plantação de eucaliptos, pinheiros e mato, e os danos que sofreram em consequência de, no dia 5 de Maio de 2018, os Réus terem juntado pequenos montes de sobrantes do mato cortado e os terem queimado e, por volta das 12 horas, terem saído do local para almoçarem, deixando os sobrantes a arder, sendo que, em consequência de estar tempo seco, quente e vento, devido à queima dos sobrantes e ao abandono das fogueiras, arderam 1,2 hectares de mato, onde se inclui a área dos autores, constituída por mato, pinheiros e eucaliptos.
Os Réus contestaram, impugnando factos alegados pelos Autores e dizendo que antes de saírem do local se certificaram que o mato se encontrava depositado na cova, totalmente ardido e o lume apagado.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e proferida a sentença foi a mesma anulada por Acórdão deste Tribunal de 26 de outubro de 2020, junto a fls. 129 a 135, a fim de serem supridas as deficiências e omissões nele referidas e ampliada a decisão de facto como dele consta.
Produzida prova adicional, foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
“Pelo acima atravessado, julgo a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condeno os réus, solidariamente, a pagarem aos autores:
a) As quantias, a apurar em incidente de liquidação de sentença, nos termos do art. 358 n.º 2 do CPC, correspondentes, respectivamente, ao valor de perda de venda das árvores até ao tecto de €3.000 euros, valor do mato ardido até ao limite de €1.000 euros e o custo de limpeza da área ardida até à baliza de €1.280 euros, quantias essas a apurar em liquidação de sentença, nos termos do art. 609 n.º 2 do CPC;
b) A soma de €2.500 euros (dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros à taxa legal desde a data da citação (14/01/2019) e até integral pagamento.

Custas pelos réus e pelos autores, na proporção do decaimento e que se fixam em 9/10 para os réus e 1/10 para os autores (só decaíram na liquidação dos prejuízos)”.
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Os Réus AA e mulher apresentaram recurso de apelação, pugnando por que seja conhecida da nulidade da sentença por excesso de pronúncia, seja alterada a matéria de facto provada e não provada e revogada a sentença recorrida, proferindo-se, em sua substituição, Acórdão que julgue a ação improcedente, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Não foram apresentadas contra alegações.
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O Tribunal a quo pronunciou-se sobre arguida nulidade, nos termos do art. 617º n.º 1 do CPC, considerando que a mesma se não verifica, pois que os factos em causa estão compreendidos no art. 1.º e seg. da petição em que os autores se arrogam proprietários do imóvel, referindo que na existência de “um lastro de alegação e a junção de um documento indiciário de posse e propriedade (a certidão matricial com a inscrição em nome do autor marido), optámos por suprir essa deficiência pela nossa mão, tanto mais que o juiz, além dos factos articulados deve considerar e contemplar ainda os factos que sejam complemento ou concretização dos alegados e que resultem da instrução da causa, tendo tido os réus ampla possibilidade de os contraditar – art. 5 n.º 2 alínea b) do CPC.
Assim, em nossa perspectiva, não se incorreu em vício de nulidade ou favorecimento indevido de uma das partes, ao considerar provados factos que foram, embora remota ou difusamente concedemos, alegados”.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1º- Se se verifica o vício da sentença consagrado na parte final da al. d), do nº1, do art. 615º, do CPC - nulidade da sentença por excesso de pronúncia, dada a inclusão nos factos provados de tal peça de factos não alegados pelos Autores, a quem o ónus de alegação e da prova cabia.
2º- Do erro da decisão da matéria de facto por inclusão nos factos provados de factos não alegados e da sua eliminação do composto fáctico (a implicar inutilidade da reapreciação no demais suscitado quanto a tal decisão).
3º- Da modificabilidade da decisão de mérito.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados em 1ª instância, com relevância, para a decisão (transcrição):
Provenientes do Saneador
A. Encontra-se inscrito na matriz em nome do autor CC, casado com a autora DD, sob o artigo ..., o prédio rústico denominado Bouça ..., composto de pinhal e mato, com a área de 8.850 m2, sito no lugar e freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte e poente com FF, do sul com GG e do nascente com HH.
B. No dia 5 de Maio de 2018, deflagrou um incêndio num espaço florestal, sito na Rua ... e na Rua ..., ..., ....
C. Os réus juntaram pequenos montes de sobrantes do mato cortado e queimaram-nos.
D. O incêndio deu origem ao processo crime nº 62/18.4GCAMT.
Provenientes da Audiência de Julgamento
1- Há mais de 20 anos que os autores, por si e antepossuidores, utilizam o prédio referido em A, ali mantendo mato e cultivando pinheiros e eucaliptos, à vista de toda a gente, sem oposição ou interrupção, com a convicção de serem os únicos donos e de a ninguém prejudicarem;
2- Os terrenos onde ocorreu o incêndio são pertença e utilização pelos réus AA e mulher BB e EE;
3- Na manhã do dia da ocorrência, os réus limparam o monte junto à área ardida, procedendo ao corte do mato;
4- Por volta das 12 horas os réus saíram do local para almoçar e regressaram às 13 horas;
5- Em consequência de estar um tempo seco, quente e vento, a queima dos sobrantes e o abandono das fogueiras pelos réus levou a que ardessem 1,2 hectares de mato;
6- Nestes 12 000 m2, estava incluída área do prédio dos autores referido em A;
7- Na área ardida dos autores, existiam pinheiros e eucaliptos com mais de 20 anos e, pinheiros e eucaliptos plantados ao longo dos anos pelos autores, com estrume e adubo;
8- As árvores ardidas tinham um valor não concretamente apurado.
9- A perda das árvores e o incêndio causou aos autores sobressalto, angústia, mal-estar, desespero, depressão e tristeza;
10- Os autores receberam, 2 meses antes do incêndio, uma proposta, por parte da empresa “J..., Lda.”, para compra dos pinheiros verdes e eucaliptos;
11- O mato rasteiro ardido, que daria para alimentar animais, tinha um valor de mercado não apurado.
12- A plantação de novas árvores acarreta uma despesa de €1.500 euros, correspondente ao trabalho de 2 pessoas, durante 15 dias à razão de €50 euros/dia;
13- E ainda um custo de €1.000 euros, correspondente a 2.000 árvores ao custo de €0,50/ árvore.
14- Os réus fizeram a queima do mato numa cova junto a um penedo; (facto instrumental, art. 6 da contestação)
15- Os réus procederam ao corte do mato à volta da cova. (facto instrumental, art. 7 da contestação)
16- Mal se aperceberam do incêndio os réus tentaram combatê-lo e impedir a sua propagação e, quando se aperceberam que não conseguiam extingui-lo, chamaram os bombeiros: (arts. 11 e 13 da contestação) .
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2. FACTOS NÃO PROVADOS (transcrição):
- Que o prédio dos autores tenha, na realidade, a área de €11.000 m2; Tema 1
- Que os réus deixassem os sobrantes a arder; Tema 5 parte;
- Que nos 12.000 m2 ardidos existissem 9.000 m2 de área do prédio dos autores; Tema 7 parte;
- Que nos 9.000 m2 de área ardida dos autores, metade fossem pinheiros e eucaliptos com mais de 20 anos e a outra metade fosse constituída por pinheiros e eucaliptos plantados ao longo dos anos pelos autores, com estrume e adubo; Tema 8 parte;
- Que as árvores ardidas tivessem um valor não inferior a €5.000 euros; Tema 9 parte;
- Que a proposta de compra dos pinheiros verdes e eucaliptos se cifrasse em €3.000 euros; Tema 11 parte;
- Que o valor do mato ardido tivesse um valor de mercado não inferior a €1.000 euros; Tema 12 parte;
- Que para limpar a área ardida os autores tenham de despender soma não inferior a €1.280 euros; Tema 13 parte;
- Que os réus antes de saírem para almoçar, deixassem a fogueira completamente extinta; Tema 16;
Da contestação, por ninguém o ter aventado:
Art. 6 parte: Que a cova tivesse 3,4 metros de profundidade;
Art. 7.º parte; Que os réus cortassem o mato à volta da cova, em cerca de 2 a 3 metros;
Art. 9 parte: Que o fogo começasse numa zona localizada acima da cova e afastada de esta, cerca de 3 a 4 metros;
Art. 10: Que o incêndio não tivesse início no local onde os réus efectuaram a queima do mato;
Art. 12; Que por o fogo iniciar-se no cimo do monte os réus aí não conseguissem aceder;
Art. 18: Que o mato existente no prédio dos autores já tivesse mais de 10 anos e que eles não o limpassem desde então.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1- Da nulidade da sentença por verificação do vício, previsto no art.º 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, excesso de pronúncia
Arguem os Réus Apelantes, a nulidade da sentença por o Tribunal ter ido longe de mais, ao dar como provados factos não alegados pelas partes, vício previsto na alínea d), do nº1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência.
O nº1, do art.º 615º, que consagra as “Causas de nulidade da sentença”, estabelece que é nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Como decorre do referido preceito, a sentença é passível do mencionado vício quer por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação quer das que balizam o conteúdo e os limites do poder jurisdicional ao abrigo do qual tal ato foi decretado. Para além da falta de assinatura do juiz, suprível oficiosamente em qualquer altura, contam-se, como vícios da sentença uns que respeitam à sua estrutura e outros que se reportam aos limites da mesma, sendo atinentes aos primeiros os das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão) e aos segundos os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)[1].
Assim, as nulidades da sentença são vícios intrínsecos (quanto à estrutura, limites e inteligibilidade) da peça processual que é a própria decisão (trata-se, pois, de um error in procedendo), nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in judicando) seja em matéria de facto seja em matéria de direito. De vícios meramente formais de tal peça processual se trata, taxativamente consagrados no referido nº1, sendo tipificados vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[2]. São, pois, apreciados em função do discurso lógico desenvolvido em tal peça processual, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito.
Sendo frequente a confusão entre a nulidade da decisão e a discordância do resultado obtido, cumpre reforçar que os vícios da sentença não são erros de julgamento (error in judicando), estes erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido se não mostra corresponde ao legalmente estabelecido. E, efetivamente, as causas de nulidade da decisão, conforme exposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2017, visam tão só o “erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei. Como tal, a nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608º e 609º, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada”.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, mas o mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[3].
Sustenta a apelante que a decisão recorrida é nula, pois que nela o tribunal a quo deu como provados factos que sequer alegados foram, pelo que incorreu em excesso de fundamentação fáctica.
Em termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz a obrigação de, na sentença, discriminar os factos que considera provados e não provados, devendo, de forma clara e especificada, analisar criticamente as provas e expor os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção em relação a cada facto (art. 607º, n.ºs 3, 4 e 5), explicitando desse modo, não só a respetiva decisão como, também, quais os motivos que a determinaram. E em sede de fundamentação da matéria de direito, a lei faz impender sobre o juiz iguais obrigações, impondo-lhe o ónus de, na decisão, identificar as normas e os institutos jurídicos de que se socorreu e a interpretação que deles fez em sede de subsunção jurídica ao caso concreto (n.º 3 daquele art. 607º).
Assim, “ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade (no sentido de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (ac. do STJ de 17.10.90, Roberto Valente, AJ, 12, p. 20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. do TRP de 6.1.94, CJ, 1994, I. p 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentação suficiente da decisão[4].
Distinguindo-se, como vimos, os erros de construção da sentença, geradores de nulidade a que se reporta o nº1, do art. 615º, dos erros de julgamento, que apenas afetam o valor doutrinal da decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada[5] atacáveis em via de recurso e não determinativos daquela invalidade, a deficiente fundamentação, em que apenas se verifica uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou uma deficiente enunciação e interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, ou a errada aplicação de normas adjetivas, não constitui omissão de fundamentação, determinativa de nulidade da sentença mas tão só mero erro de julgamento, atacável e sindicável em via de recurso[6].
Nos casos em que o vício da deficiente fundamentação se coloque ao nível da decisão sobre a matéria de facto, esse vício tem de ser solucionado mediante as regras próprias enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do art. 662º do CPC.
Invocam os apelantes que a decisão é nula por o juiz ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento. Ora, como resulta da leitura da sentença recorrida, o tribunal explicitou a formação da sua convicção, relativamente aos factos provados e não provados mediante indicação dos meios de prova produzidos sobre tal matéria e analisando criticamente as provas. Verifica-se que dela transparecem os factos, as provas e as razões da decisão, bem como normas que se entenderam aplicáveis. Contrariamente ao sustentado pelos apelantes, a decisão recorrida, fundamentadamente, conheceu das questões que lhe cabia apreciar, não padecendo do vício que aqueles lhe atribuem, podendo, eventualmente, padecer de erro, seja de facto seja de direito, a levar à revogação, caso a solução de mérito nela sufragada não colha fundamento legal, sendo tal error in judicando, atacável e a ser apreciado em via de recurso.
O vício que a apelante aponta à sentença, respeitante a limites da mesma -consagrado na alínea d), referente a “excesso de pronúncia” não se verifica.
Com efeito, “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado”[7]. A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronúncia) há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Mas, a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os factos alegados, os argumentos suscitados ou as considerações tecidas.
A questão a decidir está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta.
Se eventualmente não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão por si tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos mesmos, designadamente por opostos à solução adotada.
Face ao que dispõe o nº2, do art. 608º, do CPC,“O juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”[8]. E, na verdade, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras[9]e o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção[10].
O dever imposto no nº2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz[11].
A sentença deve, pois, “começar pelo conhecimento das questões processuais que podem conduzir à absolvição da instância, devendo nela ser consideradas todas as que as partes tenham deduzido, a menos que prejudicadas pela solução dada a questão anterior de que a absolvição tenha já resultado. Se, porém, puder ter lugar uma decisão de mérito inteiramente favorável à parte cujo interesse a exceção dilatória vise tutelar, o juiz deve proferi-la em vez de absolver o Réu da instância (nº5, do art. 278º).
Não havendo lugar à absolvição da instância, segue-se a apreciação do mérito da causa.
O juiz vai agora respondendo aos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, a todos devendo sucessivamente considerar, a menos que, dependendo algum deles da solução dada a outro, a sua apreciação esteja prejudicada pela decisão deste, assim acontecendo quando procede o pedido principal, não havendo lugar à apreciação do pedido subsidiário (ver o nº2, do art. 554), quando, ao invés, não é atendido um pedido prejudicial relativamente a outro cumulativamente deduzido (ver o nº3 do art. 555) e quando identicamente, a procedência ou, ao invés, a improcedência do pedido principal acarreta a não apreciação do pedido reconvencional (…) O mesmo fará relativamente às várias causas de pedir invocadas, se mais do que uma subsidiariamente fundar o pedido, bem como quanto às exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo Réu ou pelo autor reconvindo e àquelas de que deva tomar conhecimento oficioso. (…) “Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas (Alberto dos Réis. CPC anotado cit., V. p. 143)”[12], até porque a sentença não é uma “obra doutrinária: o juiz tem de resolver um litígio concreto e não deve perder de vista que o deve fazer com economia processual”[13].
O vício da nulidade por omissão ou excesso de pronúncia apenas se verifica em relação a “questões”, nunca quanto a factos. Quanto a estes, sendo julgados provados factos essenciais, referentes à causa de pedir ou a exceções invocadas pelas partes, não alegados, em violação do estatuído no nº1, do art. 5º, e, consequentemente, dos princípios do dispositivo e do contraditório, ou factos complementares ou instrumentais fora dos condicionalismos legais enunciados nas als. a) e b) do n.º 2 desse art. 5º, do CPC, impõe-se a eliminação de tais factos da sentença, nenhuma nulidade configurando.
Assim equacionados os vícios a que alude a alínea d), referentes aos limites da decisão, debrucemo-nos, agora, sobre o caso.
Como vimos, o vício determinativo da nulidade da sentença por excesso de pronuncia, a que alude a referida al. d), do nº1, do art. 615º, ocorre quando o tribunal conheça de “questão” que não lhe foi colocada pelas partes, isto é, de pedido, causa de pedir ou de exceção por elas não invocados. “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608-2), é nula a sentença em que o faça”[14]
Com efeito, configura nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, o conhecimento de questões não suscitadas na ação ou na defesa e de que não era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente, por o tribunal, a assim proceder, ir além dos poderes de cognição, delimitados pelas partes e pela lei, em violação dos princípios do dispositivo e do contraditório.
Não existe nulidade da sentença por excesso de pronúncia quanto a questões de que o tribunal possa conhecer oficiosamente, dado que, nesses casos, é a própria lei que impõe ao juiz o conhecimento dessa questão, ainda que não suscitada pelas partes.
E, apenas se verificando o vício da nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, no caso de apreciação de questões que extravasem os pedidos formulados, exceções deduzidas (isto é, que não integram o objeto do litígio) e em que se imponha o conhecimento oficioso, não existe nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, quando nela o tribunal se limita a dar como provados ou não provados factos e a fazer a qualificação jurídica dos factos, com livre subsunção do caso à norma que entendeu aplicável.
Contrariamente ao pretendido pelos apelantes, ao dar como provados factos, mesmo que não alegados, o tribunal a quo não incorreu em excesso de pronúncia, não foi longe de mais, antes decidiu a matéria de facto e apreciou de mérito, com livre qualificação e subsunção jurídica, no exercício dos poderes de cognição que lhe são conferidos por lei e ao abrigo do princípio da oficiosidade consagrado no nº3, do referido artigo 5º.
Conhecendo o Tribunal, tão só, de “questão” fáctico-jurídica que se prende com pedido deduzido e respetiva causa de pedir, improcede o arguido vício da sentença, sendo que da indevida seleção de factos se passa a apreciar em sede de impugnação da decisão da matéria de facto.
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2- Da reapreciação da decisão da matéria de facto

Consagra o artigo 342º, do Código Civil, que regula a questão do ónus da prova, e, por isso, a pressupor o, correlativo e antecedente, ónus de alegação:
“1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.
Assim, cabendo ao Autor provar, nos termos do nº1, os factos constitutivos do seu direito e sobre o Réu impendendo a prova de facto impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo Autor, em obediência ao estatuído no nº2, do referido artigo, cada uma das partes sofre as consequências do seu incumprimento.
Com efeito, sendo as regras sobre o ónus da prova regras de decisão, sendo que “no nosso direito processual, ter o ónus da prova significa sobretudo determinar qual a parte que suporta a falta de prova de determinado facto”[15], com esse ónus se encontra correlacionado o, prévio, ónus de alegação.
O critério de distribuição do ónus da prova tem por base a relação jurídica material, sendo o ónus da prova distribuído em função da natureza dos factos alegados, e, tendencialmente, o direito invocado na ação é-o pelo Autor, sendo a este, por conseguinte, que compete a prova dos factos constitutivos. Os factos constitutivos do direito são aqueles que constituem pressuposto do respetivo aparecimento; impeditivos aqueles que, sendo contemporâneos da formação do direito, obstam ao seu aparecimento, modificativos os que alteram o direito posteriormente à sua constituição e extintivos os que fazem cessar a respetiva produção de efeitos[16]. A Doutrina desenvolveu critérios auxiliares na aplicação, para superar dúvidas de qualificação. Entre outros (como o critério cronológico, da alegação, da normalidade, do tipo de defesa do Réu, etc.) destacou-se a teoria da norma da autoria de Rosenberg (ROSENBERG, 2002:123 e ss). A referida teoria assenta na estrutura da norma. Consequentemente, aquele que se queira fazer valer da estatuição da norma terá o ónus da prova relativamente aos factos integrantes da previsão. Estes serão os factos constitutivos do respectivo direito. Já as normas que constituam fundamento de excepção ao direito invocado contêm na sua previsão os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, pelo que aí se identificarão os factos cujo ónus da prova cabe àquele contra quem o direito seja invocado. Isto significa que, na base da aplicação da teoria de Rosenberg, é fundamental qualificar, dentro do âmbito jurídico aplicável ao caso concreto, diferentes classes de normas (Rosenberg, 2002:124) que se relacionam entre si como regra e exceção, norma e contra-norma, cada uma delas aproveitando às diferentes partes do litígio, sendo o ónus da prova distribuído em conformidade[17].
Na decisão da matéria de facto, com concreta e especificada exposição de factos provados e não provados, o juiz deve garantir a recolha de todos os factos (cfr. art. 5º, do CPC) que se mostrem dotados de relevância jurídica,
Contudo, para os recolher, necessário é que tenham sido alegados e concretizados no confronto das partes.

Pretendem os Apelantes que se elimine o constante do facto provado nº1 - “1. Há mais de 20 anos que os autores, por si e antepossuidores, utilizam o prédio referido em A, ali mantendo mato e cultivando pinheiros e eucaliptos, à vista de toda a gente, sem oposição ou interrupção, com a convicção de serem os únicos donos e de a ninguém prejudicarem” – por os referidos factos não terem sido alegados no processo, não vindo alegada a aquisição do direito de propriedade, nem a originária nem a derivada, sequer invocada foi qualquer presunção que faça presumir tal direito.
E assim acontece, na verdade, como resulta da petição inicial e como, até, o considerou o tribunal a quo, que bem reconheceu, no despacho supra aludido, em que aquele tribunal se pronunciou sobre a nulidade arguida. Os referidos factos condensados no ponto 1, mencionado, não foram alegados pelas partes e, por isso, têm de ser eliminados.
Com efeito, não pode o Tribunal substituir-se às partes na alegação dos factos essenciais da causa, por constitutivos do direito invocado, cuja falta conduz, nesta fase, já de recurso da sentença, necessariamente, à improcedência da ação.
E verificando-se falta da referida alegação fáctica, a densificar o direito de propriedade dos Autores, sendo de eliminar a matéria do ponto 1 dos factos assentes e de expurgar os factos provados da sentença da referência ao dele constante, nenhuma utilidade tem para a decisão da causa o conhecimento da, restante, impugnação da decisão da matéria de facto, sempre a ação tendo de improceder, como veremos.
Na verdade, e como se decidiu no Ac desta Relação em que a ora relatora foi adjunta “como vem sendo posição da jurisprudência e por nós tem sido perfilhado em outros arestos, não colhe sentido útil conhecer de matéria factual impugnada (da alteração propugnada) quando a mesma se mostra, de todo, irrelevante para a boa decisão da causa e à luz do quadro normativo aplicável.
Como se escreve, a este propósito, com plena aplicação à situação sub judicio, no AC RG de 9.04.2015 (relatora: Ana Cristina Duarte), in dgsi.pt, “se é certo que a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, a verdade é que este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante. Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for de todo irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente para, por si só, produzir o efeito pretendido”.
Como assim, não deverá haver lugar à reapreciação da matéria de facto quando os factos concretos objecto da impugnação não forem susceptíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, terem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual inconsequente e inútil, o que contraria os princípios da celeridade, da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis, princípios com expressa consagração nos arts. artigos 2.º, n.º 1, 6º, n.º 1 e 130º, todos do Código de Processo Civil[18].
Tem sido esse também o entendimento constante do STJ, como resulta, por exemplo, do ac. 23/01/2020 (Relator: Tomé Gomes), in dgsi.pt que concluiu que: “Quando a apreciação da impugnação deduzida contra a decisão de facto da 1.ª instância seja, de todo, irrelevante para a solução jurídica do pleito, ainda que a tal impugnação satisfaça os requisitos formais prescritos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC, não se justifica que a Relação tome conhecimento dela, à luz do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC” ”[19].
Assim, e em face da inutilidade da impugnação, no restante, não nos pronunciaremos sobre a mesma.
Neste conspecto, eliminando o constante do ponto 1 dos factos assentes e, consequentemente, as referências ao dele constante, são os seguintes os factos provados a considerar para a decisão:
1. O prédio rústico denominado Bouça ..., composto de pinhal e mato, com a área de 8.850 m2, sito no lugar e freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte e poente com FF, do sul com GG e do nascente com HH, encontra-se inscrito na matriz em nome do autor CC, casado com a autora DD, sob o artigo ...;
2. No dia 5 de Maio de 2018, deflagrou um incêndio num espaço florestal, sito na Rua ... e na Rua ..., ..., ...;
3. Os réus juntaram pequenos montes de sobrantes do mato cortado e queimaram-nos;
4. O incêndio deu origem ao processo crime nº 62/18.4GCAMT;
5. Os terrenos onde ocorreu o incêndio são pertença e utilização pelos réus AA e mulher BB e EE;
6. Na manhã do dia da ocorrência, os réus limparam o monte junto à área ardida, procedendo ao corte do mato;
7. Por volta das 12 horas os réus saíram do local para almoçar e regressaram às 13 horas;
8. Em consequência de estar um tempo seco, quente e vento, a queima dos sobrantes e o abandono das fogueiras pelos réus levou a que ardessem 1,2 hectares de mato;
9. Nestes 12 000 m2, estava incluída área do prédio referido no ponto 1 supra;
10. Na área ardida do prédio referido no ponto 1 supra, existiam pinheiros e eucaliptos com mais de 20 anos e, pinheiros e eucaliptos plantados ao longo dos anos pelos autores, com estrume e adubo;
11. As árvores ardidas tinham um valor não concretamente apurado;
12. A perda das árvores e o incêndio causou aos autores sobressalto, angústia, mal-estar, desespero, depressão e tristeza;
13. Os autores receberam, 2 meses antes do incêndio, uma proposta, por parte da empresa “J..., Lda.”, para compra dos pinheiros verdes e eucaliptos;
14. O mato rasteiro ardido, que daria para alimentar animais, tinha um valor de mercado não apurado;
15. A plantação de novas árvores acarreta uma despesa de €1.500 euros, correspondente ao trabalho de 2 pessoas, durante 15 dias à razão de €50 euros/dia;
16. E ainda um custo de €1.000 euros, correspondente a 2.000 árvores ao custo de €0,50/ árvore;
17. Os réus fizeram a queima do mato numa cova junto a um penedo;
18. Os réus procederam ao corte do mato à volta da cova;
19. Mal se aperceberam do incêndio os réus tentaram combatê-lo e impedir a sua propagação e, quando se aperceberam que não conseguiam extingui-lo, chamaram os bombeiros.
*
3º- Da não verificação dos pressupostos de responsabilidade civil extra contratual
Insurgem-se os apelantes contra a decisão que condenou, solidariamente, todos os Réus a efetuarem pagamentos aos autores pelos danos por eles sofridos, cuja responsabilidade os Autores lhes imputam e o Tribunal considerou verificada.
Refira-se que na responsabilidade civil cabe distinguir a:
1- Responsabilidade civil contratual, que é a que decorre da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos;
2 - Responsabilidade civil extracontratual que é a que advém da violação de direitos absolutos ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem, sendo categorias desta:
i) a emergente de atos ilícitos;
ii) a emergente de atos lícitos (ato consentido por lei mas que a mesma lei considera de justiça que o seu titular indemnize o terceiro pelos danos que lhe causar);
iii) a emergente do risco (alguém responde pelos prejuízos de outrem em atenção ao risco criado pelo primeiro).
O Código Civil ocupa-se da matéria da responsabilidade civil:
- no capítulo sobre fontes das obrigações, sob a epígrafe responsabilidade civil - artigos 483º a 510º;
- no capítulo sobre modalidades das obrigações, sob a epígrafe obrigação de indemnizar - artigos 5620 a 5720;
- e no capítulo sobre cumprimento e não cumprimento das obrigações, sob a epígrafe falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor - artigos 798° a 812°).
Alicerçam os Autores a sua pretensão em responsabilidade civil extracontratual.
Na verdade, a responsabilidade civil contratual distingue-se da extracontratual ou aquiliana pelo facto de naquela estar em causa a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários e esta emergir da violação de deveres de ordem geral e correlativamente de direitos absolutos do lesado.
Estas duas categorias de responsabilidade civil - porque diferentes - foram tratadas pelo Código Civil em secções distintas quanto à regulação da sua fonte (nos artigos 483.º ss para a responsabilidade civil extracontratual e nos artigos 798.º e ss para a responsabilidade contratual), ainda que seja hoje dominante uma corrente que considera não ser esta repartição estanque, existindo normas no sector reservado à responsabilidade delitual que se aplicam, manifestamente, à responsabilidade contratual, como é o caso das referentes à obrigação de indemnizar, que foi objeto de um tratamento unitário pelo legislador nos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.
Dispõe o artigo 483°, sob a epigrafe "princípio geral" que “1. aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.
São, pois, pressupostos da responsabilidade civil:
1- facto voluntário;
2 - ilicitude (que é a infração de um dever jurídico, por violação direta de um direito de outrem e violação da lei que protege interesses alheios ou violação de obrigação contratualmente assumida);
3 - nexo de imputação do facto ao agente (culpa - dolo ou mera culpa -, implicando uma ideia de censura ou reprovação da conduta do agente);
4 - dano (perda que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses materiais, espirituais ou morais, que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar);
5 - nexo de causalidade entre o facto e o dano (tendo o facto de constituir a causa do dano).
Ora, efetuado este breve enquadramento temos que, eliminada tendo sido a matéria de facto constante do ponto 1, dos factos provados, da sentença, assim como as referências, conclusivas, a que os autores são donos do imóvel e a que o mesmo é propriedade destes, temos que, na verdade, não resultando serem os Autores titulares do direito de propriedade do mesmo, nenhuma indemnização lhes pode ser atribuída por não ter sido alegado e demonstrado serem eles os lesados, isto é, terem-se os danos produzido na sua esfera jurídica, ter havido destruição de bens que integram o seu património.
Na verdade, fundam os Autores a sua pretensão em atuação dos réus, proprietários dos imóveis onde deflagrou o incêndio, que não cumpriram o dever de tomar as medidas e precauções necessárias a evitar o risco de incêndio no seu imóvel e no alastrar do mesmo ao prédio dos autores e nos danos que daí lhes advieram.
Fundam as suas pretensões no instituto da responsabilidade civil extra-contratual por facto ilícito.
Considerou o Tribunal a quo que se provou que o incêndio está ligado a omissão de vigilância dos réus, que foi o abandono do local com a fogueira mal extinta que provocou o incêndio.
Conclui pela responsabilidade civil dos Réus “pelos danos ocasionados no prédio dos autores” e “Delimitados os danos verificados na esfera patrimonial dos autores, não resta outra alternativa aos réus, senão proceder á sua reparação”.
Ora, na falta de alegação e de prova dos factos a densificar o direito de propriedade dos Autores por forma a se poder considerar que o dano se produziu na sua esfera jurídica, não podem, na subsequente fase da sentença, os factos, ainda que relevantes à decisão, ser recolhidos (por inexistentes nos autos).
E, apesar de o juiz poder considerar, na sentença, além dos factos articulados pelas partes, os instrumentais que resultem da instrução da causa e os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (cfr. artº 5º, nº2, a) e b), do CPC), certo é que os factos condensados no ponto 1, eliminado, sendo essenciais, não foram alegados e, por isso, não foram objeto de prova, não tendo resultado da instrução da causa, sequer sobre eles as partes se pronunciaram ou mesmo lhes foi conferida a possibilidade de o fazer, na consideração da relevância dos mesmos para a decisão da causa.
Sendo essenciais, os factos em causa não foram concreta e especificadamente alegados, como o próprio tribunal a quo reconhece - “remota ou difusamente concedemos, alegados” -, tendo-os o Tribunal a quo pensado e considerado tão só na sentença – “optámos por suprir essa deficiência pela nossa mão”, não tendo havido sequer possibilidade de pronúncia sobre eles.
Sendo que a consideração de factos complementares ou concretizadores em resultado da instrução tem agora natureza oficiosa, para que um facto possa (tendo, também, de ser considerado o princípio do dispositivo) ser atendido na sentença é necessário que, previamente, sobre o mesmo e sobre a sua atendibilidade tenha sido exercido o contraditório, atento o disposto nos arts. 3º, nº3 e 5º, nº2, al. b)[20].
E na falta dos factos em causa, ausentes dos autos, não tendo os Autores demonstrado ter sido violado direito seu, que os danos que decorreram do incêndio resultaram para si, não se encontram integralmente preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar os Autores.
Verifica-se, pois, falta de alegação e prova de que os Autores são os titulares da legitimidade substantiva, a conduzir à improcedência da ação.
Procedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, devendo, por isso, a decisão recorrida ser revogada.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida.
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Custas pelos apelados, pois que ficaram vencidos – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 21 de fevereiro de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Maria José Simões
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[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág 735
[2] Cfr. Ac. do STJ de 1/4/2014, Processo 360/09: Sumários, Abril /2014 e Ac. da RE de 3/11/2016, Processo 1070/13:dgsi.Net.
[3] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 735
[5] Ac. STJ de 5/4/2016, Proc. 128/13, Sumários Abril/2016, pág 8, Abílio Neto, in Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Março/2017; pág. 921
[6] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI.
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Idem, pág 737
[8] Cfr. Ac. do STJ de 24/6/2014, Processo 125/10: Sumários, Junho de 2014, pag 38, em que se decidiu Não há nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, se o tribunal se limitou a cumprir o preceituado no art. 608º, nº2, do NCPC (2013), considerando prejudicado apreciar o argumento do valor das indemnizações arbitradas por ter decidido não existir fundamento legal para responsabilizar as Rés…
[9] Ac. do STJ, de 30/9/2014, Processo 2868/03:Sumários, Setembro 2014,pag 39
[10] Ac. da Relação de Lisboa de 17/3/2016, Processo 218/10:dgsi.net
[11] Ac. do STJ, de 20/10/2015, Processo 372/10: Sumários, 2015, p.555
[12] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 712-713
[13] Ibidem, pág 714
[14] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 737
[15] Rita Lynce de Faria, Anotação ao artigo 342º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 812
[16] Ibidem, pág 812
[17] Ibidem, pág.813
[18] Vide, neste sentido, ainda, Ac. da RG de 11.09.2015, (relatora: Manuela Fialho), Ac. da RC de 24.04.2012 (relator António Beça Pereira) e AC RP de 7.05.2012 (relatora: Anabela Calafate), todos in dgsi.pt.
[19] Ac. da RP de 22/2/2021, proc. 818/13.4TBPFR-C.P1 (relator: Pedro Damião e Cunha) “Quando a apreciação da impugnação deduzida contra a decisão de facto da 1.ª instância seja, de todo, irrelevante para a solução jurídica do pleito, ainda que a tal impugnação satisfaça os requisitos formais prescritos no artigo 640º, nº 1, do CPC, não se justifica que a Relação tome conhecimento dela, à luz do disposto no artigo 608º, nº 2, do CPC”.
[20] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 31