Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
58/14.5IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP2022042758/14.5IDPRT.P1
Data do Acordão: 04/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A dúvida do julgador – que fundamenta a aplicação do in dubio pro reo, considerando não provados os factos “duvidosos” - assenta numa análise concreta e casuística da prova produzida que conduz a uma neutralização razoável dos fundamentos da acusação (Cfr. JOSÉ PENIM PINHEIRO Princípio in dubio pro reo – considerações gerais). Não equivale, portanto, à certeza absoluta de que o facto (em causa) não existiu; equivale sim a que, em termos de razoabilidade e de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, tal facto pode não ter ocorrido. Sempre que o Tribunal não ultrapasse este estado e, portanto, chegue razoavelmente a um non liquet, o recorrente deve demonstrar a falta de razoabilidade da dúvida. Quer isto dizer que quando o recorrente se insurja contra um non liquet (na base do qual ocorreu a absolvição do arguido) deve demonstrar que a prova produzida impunha, sem qualquer dúvida razoável, a prova dos factos dados como não provados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 58/14.5IDPRT.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
1.1. O Ministério Público acusou em processo comum, e perante Tribunal singular, os arguidos “S... Lda.” e AA, devidamente identificados nos autos acima referenciados, imputando-lhes, pelos factos descritos na acusação de fls. 603 e ss, a prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal, previsto e punível pelo artigo 103º, n.º 1, alínea a) do Regime Geral das Infracções Tributárias, extensivo à sociedade arguida por força do disposto no artigo 7º, também do Regime Geral das Infracções Tributárias.
1.2. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo a final sido proferida sentença com a seguinte decisão:
Pelo exposto, atendendo ao raciocínio expendido e normas legais citadas decide-se:
- Absolver o arguido AA, pela prática, de um crime de fraude fiscal, previsto e punível pelo artigo 103.º, n.º 1, alínea a) do Regime Geral das Infracções Tributárias;
- Condenar a arguida “S..., Lda.”, pela prática de um crime de fraude fiscal, previsto e punível pelo artigo 103.º, n.º 1, alíneas a) do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa à taxa diária de 6,00€, no valor global de 3.000,00€ (três mil euros);
- Condenar a sociedade arguida no pagamento das custas criminais, que se fixa em 2,50Ucs.
- Indeferir o pedido de perda de vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público.
Deposite (artigo 372º, nº 5, do C.P.P.).
Notifique e comunique a presente decisão à Administração Tributária (artigo 50º, nº 2 do RGIT).
Após trânsito, remeta boletim (sociedade arguida).
1.3. Inconformado com a absolvição do arguido AA, o MP recorreu para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:
1. Através da douta sentença recorrida, a sociedade “S...” foi condenada pela prática de um crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo art.º 103º/1, al. a), do RGIT.
2. Apesar disso, o arguido AA foi absolvido do mesmo crime, em função de não se ter provado que fosse ele o gerente de facto da sociedade (factos não provados A e B), mas antes o seu pai, BB (factos provados 3, 4 e 12).
3. Tendo em conta o raciocínio expendido na sentença recorrida, as decisões de facto subjacentes aos referidos factos assentaram em 4 pressupostos:
i. na circunstância do pai do arguido constar como gerente da sociedade arguida na altura dos factos (2010 a 2012);
ii. na insusceptibilidade dos documentos das entidades financeiras, conexos com os negócios realizados pela sociedade arguida, provarem essa gestão de facto, apesar de estarem dirigidos “À atenção de AA”;
iii. nas assinaturas apostas nos cheques juntos aos autos, da autoria do pai do arguido;
iv. e no depoimento que a testemunha CC prestou em julgamento, no sentido de que a gestão de facto pertencia ao pai do arguido, sendo certo que não existiu contradição com aquilo que a testemunha disse em sede de inquérito.
4. Quanto ao pressuposto iv, em sede de inquérito (fls. 337 e 338), a testemunha CC fez uma clara destrinça entre a gestão de facto e a gestão de direito da sociedade arguida, atribuindo a primeira ao arguido e a última ao pai do arguido. Pois:
- quem tratava “de tudo o que se relaciona com o negócio propriamente dito, é o Sr. AA” (arguido),
- mas “quem emite os cheques e quem tem assinatura nos bancos respondeu que é o Sr. BB” (pai do arguido).
5. Estas declarações foram legitimamente lidas em sede de audiência de discussão e julgamento, pelo que podiam ser livremente valoráveis em sede da sentença recorrida (cfr. acta da sessão de 28/04/2021 e art.º 356.º/2, al. b) e /5 do Código de Processo Penal).
6. O Tribunal a quo concluiu pela inexistência de contradição com aquilo que a testemunha disse em julgamento, por ter concluído que as declarações do inquérito se reportavam à altura em que a testemunha prestou o depoimento (25/11/2014), quando o arguido já era gerente de direito (assumiu formalmente em 19/02/2014 – fls. 9 e 10), e não à altura dos factos (2010 a 2012).
7. Não faz qualquer sentido que, em sede de inquérito, o investigador e a testemunha estivessem a falar de fases temporais absolutamente irrelevantes para o objecto do processo.
8. De resto, a única razão que pode justificar a necessidade do pai do arguido assinar cheques e documentos bancários é constar como gerente da sociedade. Logo, quando a testemunha referiu tal necessidade, necessariamente que não se estava a reportar à altura do depoimento, mas ao passado, à situação verificada até 19/02/2014 (fls. 9 e 10), data em que o arguido passou a figurar formalmente como gerente da sociedade arguida.
9. Assim, o uso do presente no auto de inquirição deve ser interpretado como constituindo o uso do chamado presente histórico, pois só assim é que o depoimento ganha sentido – art.º 236.º/1 do Código Civil, ex vis art.º 295.º do mesmo Código.
10. Nesta perspectiva, deve-se concluir que, em inquérito, a testemunha CC se estava a reportar à data dos factos em causa nos autos, ocasião em que imputou a gestão de facto da sociedade arguida ao arguido AA.
11. A imputada gestão de facto é apoiada por regras da normalidade, por outros factos instrumentais, e até por aquilo que a testemunha CC também acabou por declarar em sede de julgamento:
a. Como a testemunha CC também referiu em sede de inquérito, “O Sr. BB encontra-se doente com Parkinson desde há uns anos pelo que está sempre acompanhado de algum funcionário da empresa.”. Com tais fragilidades, só seria razoável (art.º 127º do Código de Processo Penal) que o filho, o arguido AA, assumisse um papel de maior destaque na gestão da sociedade arguida.
b. O arguido AA assumiu a gestão formal da sociedade apenas 5 dias depois da inspecção tributária também começar (comparar fls. 9 e 10 com ponto II.1.1 de fls. 40). Esta coincidência só se compreende pela preocupação em evitar problemas com a inspecção, fazendo coincidir a realidade formal com a realidade efectiva que sociedade arguida já tinha anteriormente.
c. Em sede de julgamento, apesar da testemunha CC ter defendido várias vezes que o gerente de facto da sociedade era o pai do arguido, acabou por relatar factos que só são compatíveis com um papel de efectivo gerente, por parte do arguido:
- quando referiu que o arguido autorizava as suas faltas (cfr. segunda faixa do primeiro ficheiro com o nome da testemunha CC, disponível no Citius, por referência à sessão de 28/04/2021, circa 04:30 da gravação);
- quando referiu que pai e filho podiam discutir o valor de um carro, mas que depois chegavam a um consenso (circa 09:00 da mesma gravação),
- e quando referiu, relativamente aos preços falsos dos negócios de venda de automóveis aludidos nos factos provados 5 a 7: “Essas questões das vendas, esses valores já me chegavam à mão, eu não questionava. Era tudo entre a parte da gerência, o Sr. AA e o Sr. BB, e os vendedores que lá teríamos.” (cfr. segunda faixa do primeiro ficheiro com o nome da testemunha CC, disponível no Citius, por referência à sessão de 28/04/2021, circa 10:45 a 11:30 da gravação).
12. A gestão de facto também é evidenciada pela prova documental junta aos autos, ao contrário do pressuposto ii da convicção do Tribunal a quo.
13. Entre fls. 55 a 303, encontram-se os documentos relacionados com os financiamentos bancários das 102 vendas de automóveis, cujos preços foram falseados pela sociedade arguida (cfr. factos provados 5, 6 e 7).
14. Dentro desses documentos, existem 78 comunicações de aprovação de mútuos bancários ou de transferência das quantias mutuadas e que especificam, dentro da sociedade arguida, a pessoa individual à qual se destinam.
15. Todos esses documentos estão dirigidos especificamente à atenção do arguido AA.
16. Era o arguido, portanto, quem representava a sociedade arguida perante terceiros tão essenciais para a sobrevivência da sociedade arguida como as entidades financeiras indispensáveis à realização dos negócios de compra e venda de automóveis, os quais constituíam o objecto social da sociedade arguida (1º dos factos provados).
17. Quanto aos pressupostos i e iii, a relevância probatória do registo comercial e da assinatura aposta nos cheques, é extremamente reduzida, porquanto aquele só faz presumir a gestão de direito e a mera aposição de assinatura pelo gerente de direito é típica dos casos em que a gestão de facto pertence a terceiros.
18. Por todo o exposto, a convicção plasmada na sentença recorrida assenta:
- na sobrevalorização de características (registo e assinaturas) que só eram idóneas a atestar a gestão de direito (pressupostos i e iii);
- na interpretação errónea do que a testemunha CC referiu em sede de inquérito (pressuposto iv);
- na desconsideração do valor indiciário inerente ao endereçamento da documentação financeira à atenção do arguido (pressuposto ii);
- e na desconsideração de parte do que a mesma testemunha CC acabou por admitir em sede de julgamento e nas regras da normalidade associadas ao problema de saúde sofrido pelo gerente de direito e à coincidência temporal entre a alteração da gestão formal e a inspecção tributária.
19. Por conseguinte, as decisões de facto subjacente aos factos da matéria provada que indicam que a gestão de facto pertencia ao pai do arguido e não ao próprio arguido encontram-se inquinadas pelos erros de apreciação acabados de enunciar.
20. O suprimento destes erros implica que os factos atribuídos a “BB” (pai do arguido) passem a ser imputados ao arguido, de tal forma que:
- o facto 3 deve passar a ter a seguinte redacção: “O arguido era o responsável pela gestão e administração da mesma, competindo-lhe, para além do mais, decidir a faturação dos serviços prestados, dos lançamentos contabilísticos, bem como cobrar e arrecadar os montantes faturados, proceder ao pagamento dos impostos e praticar as respetivas obrigações fiscais”;
- o facto 4 deve passar a ter a seguinte redacção: “No exercício da sua atividade na referida sociedade, o arguido, enquanto gerente de facto e em representação da sociedade arguida, decidiu ocultar à Autoridade Tributária valores que deveriam ter sido incluídos nas declarações de IRC no ano de 2011 e 2012.”;
- o facto 12 deve passar a ter a seguinte redacção: “O arguido, em representação da sociedade na execução de um plano previamente traçado por si, de forma livre, deliberada e consciente, no interesse da mesma, com o intuito de ocultar à administração tributária parte dos rendimentos da sociedade arguida e, desta forma, obstar à sua liquidação e fiscalização por parte da administração tributária, locupletando-se e lesando o erário público no correspondente valor.”
- o facto não provado B deverá passar para o rol da matéria de facto provada;
- e deverá ser eliminado o facto não provado A.
1.4. O arguido não respondeu ao recurso.
1.5. Nesta Relação, a Exª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1.6. Deu-se cumprimento ao disposto no art. 417º,2 do CPP
1.7. Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto:
Factos Provados
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos, incluindo os resultantes da alteração não substancial dos factos:
1. A arguida “S... Lda.” é uma sociedade por quotas com sede no Porto, que se encontra coletada para o exercício da atividade de “Comércio de veículos automóveis ligeiros”, CAE 45110, sendo sujeito passivo de I.R.C. enquadrado no regime geral com contabilidade organizada e para efeitos de IVA no regime normal com periodicidade mensal.
2. Assim, a arguida “S... Lda.” está obrigada à apresentação anual das declarações modelo 22 de IRC.
3. BB era o gerente da sociedade arguida, sendo o responsável pela gestão e administração da mesma, competindo-lhe, para além do mais, decidir a faturação dos serviços prestados, dos lançamentos contabilísticos, bem como cobrar e arrecadar os montantes faturados, proceder ao pagamento dos impostos e praticar as respetivas obrigações fiscais.
4. No exercício da sua atividade na referida sociedade, o seu gerente, BB, no âmbito das suas responsabilidades enquanto gerente e em representação da mesma, decidiu ocultar à Autoridade Tributária valores que deveriam ter sido incluídos nas declarações de IRC no ano de 2011 e 2012.
Concretizando:
5. No Exercício de 2010, o "S..." realizou vinte e cinco negócios nos quais o preço obtido pela venda de cada uma das viaturas foi superior ao preço inscrito na respetiva fatura, omitindo, assim, €36.883,79 euros a matéria coletável e falta de liquidação de IVA no montante de € 7.639,35, conforme quadro discriminativo constante de fls. 41 v, 42, 42 v e 43, cujo teor se dá qui por integralmente reproduzido por economia processual.
6. No exercício de 2011, foram realizados cinquenta e um negócios nos quais o preço obtido pela venda de cada uma das viaturas foi superior ao preço inscrito na respetiva fatura omitindo assim, €133.051,73 à matéria coletável e falta de liquidação de IVA no montante de € 30.601,90, conforme quadro discriminativo constante de fls. 43 v, 44, 44 v, 45, 45 v e 46, cujo teor se dá qui por integralmente reproduzido por economia processual.
“6º - A” - Ainda no exercício de 2011, o S...” duplicou a relevância fiscal de custos, contabilizando duas vezes com a compra de dois automóveis e a existência de dois automóveis em “stock”, fazendo assim diminuir a matéria coletável em 8.945,46 €, conforme quadro discriminativo constante de fls. 41.
7. No exercício de 2012, foram realizados vinte e seis negócios nos quais o preço obtido pela venda de cada uma das viaturas foi superior ao preço inscrito na respetiva fatura omitindo, assim, € 48.973,07 na matéria coletável e falta de liquidação de IVA no valor de 8.909,50 euros, conforme quadro discriminativo constante de fls. 46 v e 47, cujo teor se dá qui por integralmente reproduzido por economia processual.
8. Ainda no exercício de 2012 foram celebrados vinte e dois negócios nos quais não foi liquidado IVA, nem reconhecido o respetivo rendimento, nas despesas de legalização faturadas a clientes, que originou uma omissão de matéria coletável no montante de € 10.236,11 e a falta de liquidação de IVA no valor de € 1.938,34.
“8º - A” - Finalmente, ainda no exercício de 2012, o “S...” contabilizou a existência de 8 automóveis em “stock” (ou seja, considerou-os como não vendidos), apesar de já terem sido vendidos em anos anteriores, fazendo assim aumentar os custos e diminuir a matéria coletável em 74.334,28 €, conforme quadro discriminativo constante de fls. 41 verso”.
9. Do resultado do exposto supra e do confronto com as declarações de IRC de 2010, 2011 e 2012, resultou um aumento do lucro tributável de € 65.204,25, € 141.997,19 e € 136.517,74, respetivamente.
10.Relativamente ao IRC do no de 2010, o montante de € 65,204,25 foi absorvido pelos prejuízos dos exercícios anteriores.
11.A conduta do "S...", ao ocultar à administração fiscal valores que deveriam ter sido incluídos nas declarações de IRC no ano de 2011 e 2012, não pagou de IRC os montantes que a seguir se descrevem: valor de IRC em falta, relativamente a 2011, de €24.618,27 e relativamente a IRC em falta de 2012, o valor de €20.224,67 - conforme quadro discriminativo constante de fls. 48 v, cujo teor se dá qui por integralmente reproduzido por economia processual.
12.BB, gerente, em representação da sociedade na execução de um plano previamente traçado por si, de forma livre, deliberada e consciente, no interesse da mesma, com o intuito de ocultar à administração tributária parte dos rendimentos da sociedade arguida e, desta forma, obstar à sua liquidação e fiscalização por parte da administração tributária, locupletando-se e lesando o erário público no correspondente valor.
13.Encontra-se inscrita na certidão matricial da sociedade arguida – Ap. ... a designação de gerência a cargo de AA.
14.Até à data da inscrição referida em 13) a forma de obrigar a sociedade cabia à gerência de BB.
15.AA é filho de BB e de DD.
16.O arguido foi condenado à ordem dos autos nº 857/09.0GAMAI pela prática em 01.06.2009 de um crime de coação agravada, um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de injuria, na pena de 150 dias de multa e um ano e seis meses de prisão suspensa por igual período, por decisão de 06.06.2012, transitada em 11.07.2012; no P. nº 2975/18.4T9GMR pela prática em Janeiro de 2018 de um crime de desobediência qualificada, na pena de 120 dias de multa, por decisão de 03.10.2019, transitada em julgado em 02.12.2019 e no P. nº 5614/17.7T9PRT por factos praticados em outubro de 2015, por um crime de falsificação ou contrafação de documento, na pena de 280 dias de multa, por decisão de 10.01.2020, transitada em 09.03.2020.
17.O arguido concluiu o ensino secundário aos 17 anos de idade e iniciou atividade laboral na empresa do pai “S... Lda.”.
18.O arguido encontra-se integrado no agregado de origem – mantendo o enquadramento sócio – habitacional, pese embora o falecimento dos ascendentes.
19.O arguido encontra-se desempregado e apresenta como proventos a renda de dois imóveis no valor liquido mensal de €600,00, acrescido de valores variáveis decorrentes de trabalhos ocasionais na intermediação de venda de automóveis.
20.À sociedade arguida de momento não é conhecida atividade comercial.
Factos Não Provados
Não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contradição com os que foram dados por assentes, nomeadamente, que:
A) O arguido AA era gerente de facto da sociedade arguida, tendo praticado os factos descritos em 4 a 13 supra.
B) O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Motivação
A prova em processo penal é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artigo 127º Código de Processo Penal).
Contudo, livre apreciação da prova não significa uma apreciação arbitrária porquanto tem como pressupostos valorativos, o respeito pelos critérios da experiência comum e da lógica do homem médio.
Assim, os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida em audiência de julgamento, tendo em conta os parâmetros supra referidos e em função das seguintes considerações, destacando-se o seguinte.
O arguido AA prestou declarações e começou por explicar que sempre trabalhou com o pai, BB, na sociedade arguida. Aí exercia as funções de compra e venda de veículos automóveis e avaliação dos mesmos. Era comercial. Apesar de filho do dono, não passava de um mero funcionário, e tratava de tudo que se relacionava com a venda e compra de veículos, avaliação dos mesmos, mediação com as financeiras para créditos na aquisição dos veículos. Mais explicou que, quem sempre geriu a empresa, dando ordens, tomando decisões, fazendo as demais opções administrativas e fiscais e quanto à política, modo de funcionamento e destino da sociedade era o seu pai, BB, a quem obedecia por lhe reconhecer a qualidade de “patrão”, pese embora fosse o seu pai. Fazia os negócios inerentes à venda dos veículos como o pai determinava. Mais adiantou que, dado ser filho, se desse a sua opinião, não era a que valia – o que prevalecia era a vontade do pai. O pai estava todos os dias no S.... Fazia sempre os negócios como o pai determinava.
Referiu que, nesse contexto, a parte da contabilidade estava exclusivamente reservada ao seu pai e que atuava sempre sob a direção e ordens do seu pai, não tendo ele próprio qualquer autonomia de decisão, não dando ordens, não decidindo o que quer que fosse e limitando-se a cumprir o por aquele determinado.
Mais acrescentou que tudo isso e forma como procediam às vendas (solicitando créditos por valor superior à venda dos veículos – ficando a diferença para os clientes – na versão apresentada) era determinado pelo seu pai e foi dado a conhecer ao Senhor Inspetor Tributário, bem como a identificação de alguns clientes que o confirmaram.
Explicou também que, em dada altura o seu pai começa a ficar doente, que ainda doente ia para a empresa, mas em 2014 (fevereiro de 2014) passou a ser o arguido o gerente da sociedade arguida, dado o seu estado de saúde e daí ter sido o mesmo constituído arguido. Dessa data em diante todo o procedimento da venda de veículos passou a ser diferente.
É de salientar que as declarações do arguido encontram reflexo quer na prova documental existente nos autos, quer na testemunhal produzida.
Vejamos:
Até 19.02.2014 figura, na respectiva conservatória do registo comercial, como gerente da sociedade arguida, BB. A partir desta data figura como gerente o ora arguido, AA.
Deste documento podemos extrair/presumir que até 19.02.2014 exerceu funções de facto e de direito em representação da sociedade arguida, o seu legal representante, ou seja, BB. Será assim até prova em contrário – (o mesmo valerá a partir de 2014 com relação a AA).
Então perguntamos: foi efetuada prova em contrário??
Parece-nos que não. Ou não sendo assim, existe duvida séria.
Em 14.10.2014, cfr. fls. 324, a autoridade tributária lavra Cota a dar conta de que não é constituído arguido BB, na qualidade de gerente da sociedade arguida, dado o seu débil estado de saúde. Como estava presente o seu filho, AA, gerente, é o mesmo constituído arguido.
O que podemos extrair? – que em outubro de 2014 AA é gerente da sociedade arguida.
Tal facto é referenciado no Parecer emitido pela Autoridade Tributária – cfr. fls. 364 e ss, concretamente fls. 370.
E o que resulta dos demais documentos juntos aos autos??
Destes documentos podemos destacar uma série de documentos atinentes a instituições financeiras/de crédito, como a Banco 1... – documentos esses intitulados “...”, com a data p. ex. 07.06.2010, e com a seguinte inscrição: “À atenção de: Sr. AA” – Cfr. fls. 70 – e muitas outras como fls. 72, 86, 88 verso, 90, 91, 94, 95, 97, 111, 113, 114, 116 , entre outras - daqui podemos extrair que a gerência de facto cabia ao ora arguido, com a segurança devida??
Resposta: não podemos extrair tal conclusão, desde logo porquanto o arguido exercia as funções de angariação de clientes para compra e venda e tratava do crédito e demais necessário à venda da viatura.
Por outro lado, conjugando com os demais documentos existentes nos autos, como as fotocópias de cheques, temos que, em nenhum deles se encontra o nome do arguido AA – mas já encontramos, em boa parte desses documentos, a assinatura do seu pai, BB, cfr. fls. 93, 108, 250, 252, 268, 293 e 303.
Chegados aqui, impõe-se perguntar: e da prova testemunhal??
Da prova testemunhal, a este propósito, impõe-se destacar a testemunha CC, que trabalhou para a sociedade arguida 21 anos, nas funções de escriturária.
A mesma prestou declarações na administração tributária em 25.11.2014 e cujas declarações foram lidas em sede de audiência de julgamento, não havendo oposição de qualquer dos intervenientes, pela mesma foi dito, em resumo que, o Senhor BB encontra-se diariamente no S... mas que dado se encontrar doente com Parkinson, desde há uns anos, estava sempre acompanhado por um funcionário da empresa e que quem exerce as funções de gerente na sociedade é o Senhor AA. Quem faz as propostas de venda, contacta com os clientes, e tudo que se relaciona com os negócios é o Senhor AA. Quem paga os salários é o Senhor AA. Sobre que tem a assinatura dos cheques no banco e emite é o Sr. BB.
Em sede de julgamento afirmou a mesma testemunha que quem decidia à data dos factos e tinha a ultima palavra era o Senhor BB. Era tudo tratado com este ultimo, nomeadamente, os assuntos de contabilidade eram tratados só por ele; reuniões com contabilistas e assinatura de contratos era tudo com o Sr. BB.
Foi questionada em sede de audiência eventual contradição. Existirá contradição?
Não podemos olvidar que em sede de julgamento a testemunhada foi questionada sobre a gerência à data dos factos, ou seja, de 2010 a 2012.
Quando prestou depoimento em sede de inquérito, questionada “(…) sobre quem exerce as funções de gerente de facto da sociedade disse que é o Sr. AA.”
Efetivamente, quando prestou declarações em sede de inquérito, em 25.11.2014 – era o ora arguido gerente de facto e de direito da sociedade arguida há uns nove meses, ou seja, desde fevereiro de 2014.
Assim, parece não ocorrer contradição – mas a duvida persiste ou pode persistir.
Já a testemunha EE, Inspector Tributário, quanto a esta matéria nada esclareceu.
Contudo, prestou um depoimento bastante hesitante na primeira sessão – colmatado posteriormente, quanto aos demais factos, - conseguindo elucidar o tribunal sobre a sua atuação e forma como chegou aos resultados constantes da matéria dada como provada e documentada nos autos (o próprio referiu ter chegado às conclusões dadas pelos próprios elementos contabilísticos da empresa) – que nesta parte foi atendida pelo tribunal, pelo que mereceu credibilidade, em confronto com a demais prova documental existente nos autos, como auto de noticia, declarações de rendimentos, Parecer das finanças, e cópias de cheques e já aludidos créditos para aquisição de viaturas automóveis – Foi assim considerada a convicção positiva da prova elencada.
Em face do supra exposto e, tendo em conta o conjunto da totalidade da prova produzida em sede de audiência de julgamento e analisada criteriosamente, somos a concluir que, todas estas questões, em torno da gerência de facto/gerência de direito, ainda mais numa relação de trabalho entre pai e filho, criaram uma dúvida insanável (duvida sobre quem tinha, à data dos factos, entre 2010 e 2012, o domínio e a capacidade efetiva de administração da sociedade arguida – pois só pode ser responsabilizado criminalmente quem, à data, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária) - no julgador quanto à positividade da prova em torno da gerência de facto - pelo que, como já adiantamos, o Tribunal teve, assim, em atenção o princípio do in dubio pro reo - perante o qual um non liquet na questão da prova deve sempre favorecer o arguido.
Tendo em atenção o disposto no artigo 169º do Código de Processo Penal, valorou-se o teor do CRC junto aos autos (quanto aos antecedentes criminais do arguido), certidões do registo comercial (quanto gerência da sociedade ora arguida).
Para prova da filiação atendeu o tribunal ao Print junto aos autos da Conservatória do Registo Civil e declarações prestadas pelo arguido, aquando da sua identificação.
Para comprovação das condições socio-económicas do arguido o Tribunal atendeu ao teor do Relatório Social junto aos autos.
Quanto aos factos não provados os mesmos resultaram da ausência de mobilização probatória susceptível de convencer o Tribunal da sua efectiva verificação, considerando o que foi referido pelo arguido, pelas testemunhas e teor dos documentos juntos, nos moldes já supra descritos.
2.2. Matéria de direito
O MP recorre da sentença que, além do mais, absolveu o arguido AA da prática de um crime de fraude fiscal, previsto e punível pelo artigo 103º, n.º 1, alínea a) do Regime Geral das Infracções Tributárias. De acordo com a motivação do seu recurso, a questão a decidir é a de saber se, relativamente ao período em causa nestes autos, o arguido exercia ou não as funções de gerente de facto da sociedade coarguida “S... Lda.”
Com efeito, a sentença recorrida absolveu o arguido AA da prática do crime de fraude fiscal, por ter concluído não ser possível ultrapassar a dúvida insanável quanto ao exercício de facto das funções de gerente, nos seguintes termos:
“(…)
da totalidade da prova produzida em sede de audiência de julgamento e analisada criteriosamente, somos a concluir que, todas estas questões, em torno da gerência de facto/gerência de direito, ainda mais numa relação de trabalho entre pai e filho, criaram uma dúvida insanável (dúvida sobre quem tinha, à data dos factos, entre 2010 e 2012, o domínio e a capacidade efetiva de administração da sociedade arguida – pois só pode ser responsabilizado criminalmente quem, à data, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária) - no julgador quanto à positividade da prova em torno da gerência de facto - pelo que, como já adiantamos, o Tribunal teve, assim, em atenção o princípio do in dubio pro reo - perante o qual um non liquet na questão da prova deve sempre favorecer o arguido.
(…)”.
No recurso para este Tribunal da Relação o MP defende que, da prova produzida, resulta que o arguido exercia as funções de gerente de facto no período compreendido entre 2010 e 2012, ou seja, entende que, no caso, não havia razões para que o Tribunal não tivesse afastado a dúvida insanável.
Antes de uma abordagem específica dos índices invocados pelo Tribunal para justificar a “dúvida insanável” (e a sua refutação pelo MP), importa sublinhar dois aspectos (i) sobre a natureza da dúvida relevante para a aplicação do princípio in dubio pro reo e (ii) sobre os ónus impostos ao recorrente quando pretenda pôr em causa a convicção do Tribunal.
De acordo com a doutrina e a jurisprudência, só quando o julgador chega a uma situação em que não é possível superar o estado de dúvida razoável, ou de incerteza (non liquet), através da “livre convicção”, é que o mesmo, apelando ao princípio in dubio pro reo, deve considerar não provada a matéria de facto “duvidosa”. Daí que a presunção de inocência seja identificada com o princípio in dubio pro reo, “no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido” – GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, pág. 83.
Como refere FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pág. 205, a convicção do juiz “(…) há-de ser, é certo, uma convicção pessoal (…) mas, em todo o caso uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos este um critério prático adequado, de que se tem servido com êxito a jurisprudência anglo-americana – o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.” Concluindo o mesmo autor (ob. cit. pag. 213) que efectivamente todos os factos relevantes que, apesar de toda a prova produzida “não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal também não possam considerar-se provados.”
Também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-09-2015, Proc. Nº 2/13.7GCETR.P1, referiu que “quando se afirma a necessidade da “prova, para além de qualquer dúvida razoável”, não se pretende excluir qualquer “sombra de dúvida” (“…”) que corresponderia ao grau máximo de convicção, praticamente, uma certeza absoluta”.
Quer isto dizer que a dúvida do julgador – que fundamenta a aplicação do in dubio pro reo, considerando não provados os factos “duvidosos” - assenta numa análise concreta e casuística da prova produzida que conduz a uma neutralização razoável dos fundamentos da acusação (Cfr. JOSÉ PENIM PINHEIRO Princípio in dubio pro reo – considerações gerais). Não equivale, portanto, à certeza absoluta de que o facto (em causa) não existiu; equivale sim a que, em termos de razoabilidade e de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, tal facto pode não ter ocorrido. Sempre que o Tribunal não ultrapasse este estado e, portanto, chegue razoavelmente a um non liquet, o recorrente deve demonstrar a falta de razoabilidade da dúvida. Quer isto dizer que quando o recorrente se insurja contra um non liquet (na base do qual ocorreu a absolvição do arguido) deve demonstrar que a prova produzida impunha, sem qualquer dúvida razoável, a prova dos factos dados como não provados.
Assim, pretendendo impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, o artigo 412º, 3 do CPP impõe ao recorrente (além de outros) o ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa de recorrida, ou seja, impõe-lhe a demonstração da impossibilidade ou da manifesta falta de plausibilidade da convicção do Tribunal.
Ora, estando em causa a convicção do julgador relativamente à credibilidade dos depoimentos, essa convicção é válida desde que possível e plausível, de acordo com a prova produzida e as regras da experiência comum. Com efeito, o artigo 127º do CPP estabelece, como regra geral, o princípio da livre apreciação da prova. Assim, fora dos casos de prova vinculada ou de prova proibida (que aqui não está em causa), “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” e, nessa medida (repete-se), a convicção do julgador é válida desde que formada livremente, de acordo com as regras da experiência comum. Daí que, como esta Relação tem continuamente afirmado, não seja suficiente contrapor à plausível convicção do julgador, uma outra convicção. É necessário demonstrar que essa convicção é impossível ou, como diz a lei, as provas produzidas “impõem” decisão diversa da recorrida (cfr. art. 412º, 3 b) do CPP). Sempre que a convicção seja possível e plausível, face às regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque, para além de imparcial, o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.
Neste sentido, a Jurisprudência dos Tribunais superiores tem constantemente sublinhado que “ (…) o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso [Acórdão do STJ de 2005/Jun./16 (Recurso n.º 1577/05), 2006/Jun./22 (Recurso n.º 1426/06)]. (…)” – Acórdão da Relação do Porto de 23-11-2011, proferido no recurso 179/09.6GNPRT.P1.
Tendo em atenção o referido enquadramento dogmático, vejamos as questões colocadas pelo MP/recorrente, procurando saber se as provas concretamente indicadas no recurso permitem afastar, para além de toda a dúvida razoável, o non liquet a que chegou o tribunal “a quo”, ou seja, saber se a convicção formada pelo julgador, sobre o non liquet, é impossível ou manifestamente implausível.
Vejamos então.
A sentença recorrida analisou criticamente os meios de prova produzidos, tendo concluído que, da análise dos mesmos, não se provou que o arguido AA exercesse de facto funções de gerente no período em causa, isto é, entre 2010 e 2012. Na respectiva motivação, explicitou claramente os motivos por que deu como provados e não provados os factos reportados nos autos e por que não ultrapassou a “dúvida Insanável” relativamente à gerência de facto do arguido AA
Em termos mais concretos, ponderou designadamente o seguinte:
- (i) as declarações do arguido, cujo teor encontra reflexo quer na prova documental existente nos autos, quer na prova testemunhal produzida;
- (ii) o facto de, até 19.02.2014, figurar na respectiva conservatória do registo comercial, como gerente da sociedade arguida, BB (pai do arguido) e só a partir dessa data ter passado a figurar o ora arguido AA, como gerente de direito;
- (iii) não ter sido feita prova em contrário do que resulta do registo comercial; para tanto, invocou o facto de, em 14-10-2014, a Autoridade Tributária ter lavrado cota dando conta de que não constituía arguido BB, na qualidade de gerente da sociedade, dado o seu estado débil de saúde e, como estava presente o seu filho, foi este constituído arguido;
- (iv) os documentos juntos, “atinentes a instituições financeiras/de crédito, como a Banco 1..., documentos esses intitulados “...”, com a data, p. ex., de 07.06.2010 e com a seguinte inscrição: “À atenção de: Sr. AA” – Cfr. fls. 70 e muitas outras, como fls. 72, 86, 88 verso, 90, 91, 94, 95, 97, 111, 113, 114, 116. Desses documentos (concluiu) não resulta a gerência de facto do arguido AA, “desde logo porquanto o arguido exercia as funções de angariação de clientes para compra e venda e tratava do crédito e demais necessário à venda da viatura”. Por outro lado, diz a sentença que, conjugando com os demais documentos existentes nos autos, como as fotocópias de cheques, temos que, em nenhum deles se encontra o nome do arguido AA – mas já encontramos, em boa parte desses documentos, a assinatura do seu pai, BB, cfr. fls. 93, 108, 250, 252, 268, 293 e 303”;
-(v) a prova testemunhal, reportando-se (a sentença) às declarações de CC, trabalhadora da sociedade arguida durante 21 anos, com as funções de escriturária, a qual afirmou, “em sede de julgamento, que quem decidia à data dos factos e tinha a ultima palavra era o Senhor BB. Era tudo tratado com este último, nomeadamente, os assuntos de contabilidade eram tratados só por ele; reuniões com contabilistas e assinatura de contratos, era tudo com o Sr. BB”;
- (vi) a aparente contradição do depoimento desta testemunha, entre o que disse em julgamento e em fase de inquérito (onde referira que quem “exerce as funções de gerente de facto é o Sr. AA”), explicitando que o depoimento prestado em fase de inquérito se reportava à data em que foi inquirida - 25-11-2014 -, data em que já era o arguido AA gerente de facto.
A nosso ver, a dúvida a que chegou o Tribunal a quo, sobre o exercício da gerência de facto por parte do arguido AA, no período em causa, mostra-se objectivamente demostrada. Na verdade, apesar de o arguido AA trabalhar na empresa do pai (BB) e de aí exercer tarefas de maior ou menor responsabilidade, tal não significa, para além de toda a dúvida razoável, que exercia de facto a gerência. É perfeitamente possível e plausível que houvesse confiança entre pai e filho, mas que o pai reservasse para si a direcção da empresa.
Por outro lado, a argumentação do MP não é de tal modo concludente que imponha decisão diversa da recorrida. Ainda que seja possível argumentar no sentido de que outra convicção era (também) possível, tal não afasta a validade da convicção do Tribunal que, como vimos, foi formada no âmbito da sua livre apreciação da prova.
Daí que a matéria de facto assente tenha resultado da expressão dessa convicção, sendo certo que, relativamente à gerência de facto por parte do arguido AA, o tribunal não tenha conseguido ultrapassar a dúvida razoável. Como explicitou, “(…) tendo em conta o conjunto da totalidade da prova produzida em sede de audiência de julgamento e analisada criteriosamente, somos a concluir que, todas estas questões, em torno da gerência de facto/gerência de direito, ainda mais numa relação de trabalho entre pai e filho, criaram uma dúvida insanável (duvida sobre quem tinha, à data dos factos, entre 2010 e 2012, o domínio e a capacidade efetiva de administração da sociedade arguida – pois só pode ser responsabilizado criminalmente quem, à data, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária) - no julgador quanto à positividade da prova em torno da gerência de facto - pelo que, como já adiantamos, o Tribunal teve, assim, em atenção o princípio do in dubio pro reo - perante o qual um non liquet na questão da prova deve sempre favorecer o arguido.
Para afastar uma tal decisão, a lei exigia que o recorrente demonstrasse que os meios de prova por si concretamente indicados impunham decisão diversa, o que não aconteceu.
Veja-se, por exemplo, o teor da conclusão 4, onde refere que a testemunha CC declarou, em sede de inquérito (fls. 337/8) que quem trata “de tudo o que se relaciona com o negócio propriamente dito, é o Sr. AA” (arguido), mas “quem emite os cheques e quem tem assinatura nos bancos (…) é o Sr. BB” (pai do arguido).
Sendo o arguido AA filho de BB, é perfeitamente possível e plausível que o seu pai nele confiasse para tratar de questões do negócio, mas reservasse para si a direcção da sociedade, traduzida, designadamente, na emissão e assinatura cheques.
Também a crítica que o MP faz à decisão recorrida - no segmento em que “concluiu pela inexistência de contradição com aquilo que a testemunha disse em julgamento, por ter concluído que as declarações do inquérito se reportavam à altura em que a testemunha prestou o depoimento (25/11/2014), quando o arguido já era gerente de direito (assumiu formalmente em 19/02/2014 – fls. 9 e 10), e não à altura dos factos (2010 a 2012)” – não impõe decisão diversa da recorrida, sobre as funções concretamente exercidas pelo Arguido AA entre 2010 e 2012.
Com efeito, mesmo relativamente a esse período, era o pai do arguido (BB) quem emitia e assinava os cheques e quem figurava como único gerente da sociedade, ou seja, só ele, verdadeiramente, podia obrigar a sociedade; mesmo que o seu filho contribuísse para a actividade da sociedade, o pai reservava para si as fases decisivas (emissão e assinatura de cheques/pagamento a fornecedores).
Do mesmo modo, o argumento do MP baseado no depoimento da referida testemunha (CC) - de que o Sr. BB (pai) se encontrava doente, sendo razoável que o arguido assumisse um papel na gestão da empresa - não impõe decisão diversa da recorrida. É uma mera conjectura do MP inferir que, face à doença do pai, o filho assumisse funções de gestão. Na verdade, ainda que doente, o pai podia muito bem reservar para si as funções de gestão, sem prejuízo da ajuda do filho e de outros empregados, em todas as questões técnicas e operativas.
Relativamente ao argumento do MP, traduzido no facto de o arguido AA ter assumido a gestão formal da sociedade 5 dias depois da inspecção da autoridade tributaria, o mesmo nada permite inferir sobre a gestão efectiva ocorrida anos antes (como é óbvio). O mesmo acontece com o argumento do MP, pretendendo que do depoimento da testemunha CC resultam factos apenas compatíveis com a gerência de facto. Na verdade, a afirmação de que era o arguido quem autorizava as faltas pode ser explicável pelo facto de ser filho do “dono/gerente” da sociedade e ser a ele quem este confiava tal tarefa; o mesmo se diga da discussão sobre o valor dos veículos que a empresa vendia, também explicável pela relação de confiança entre pai e filho, a bem do negócio.
Finalmente, a existência de documentos relativos à aprovação de mútuos, dirigidos especificamente à atenção do arguido AA, também é compatível com o exercício de funções dependentes da vontade do pai do arguido, sendo a sua maior ou menor amplitude dependente da confiança neste depositada, dada a (muito próxima) relação familiar.
Em suma, face à análise da prova especificada pelo MP em recurso e respectiva argumentação, não resulta de modo inequívoco que o Tribunal a quo não devia ter tido dúvidas - não tinha motivos para a dúvida razoável - quanto ao exercício da gerência de facto por parte do arguido AA, no período em causa nos autos. Muito pelo contrário, julgamos que o MP pretende, através da sua análise crítica da prova, fazer valer a sua própria convicção, sem conseguir demonstrar, todavia, que a prova produzida impunha, sem qualquer dúvida razoável, a prova dos factos dados como não provados.
Nestes termos, impõe-se julgar o recurso improcedente.
3. Decisão
Face ao exposto, os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Sem custas, por isenção do recorrente/MP.

Porto, 27.04.2022
Élia São Pedro
Donas Botto
Francisco Marcolino