Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6356/12.5TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: SOARES DE OLIVEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO COM ÁLCOOL
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RP201509286356/12.6TBVNG.P1
Data do Acordão: 09/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Em contrato de seguro automóvel (acidentes de viação), a cláusula de exclusão da responsabilidade pela indemnização de danos próprios no caso de condução com taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida tem de ser interpretada no sentido de não ser aplicável aos casos em que o acidente não é, por qualquer título, imputável ao condutor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc 6356/12.5TBVNG.P1
Apelação 666/15
TRP – 5ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I RELATÓRIO
1 -
B… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., intentou a presente ação contra
C…, pedindo
A condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 10.652,74 e juros vincendos, para o que alegou:
no exercício da atividade seguradora a que se dedica, assumiu na sua esfera jurídica a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação relativamente ao veículo automóvel de matrícula ..-..-UN, na modalidade de danos próprios;
por referência a acidente rodoviário ocorrido em 24/8/2011, na autoestrada A1, ao quilómetro 299,5, no sentido Porto->Lisboa., que implicou a perda total do UN e em cumprimento desse contrato, indemnizou o seu segurado, ora Réu, no valor de € 24.000,00;
averiguou o sucedido, vindo posteriormente a descobrir que o R. realizou teste de álcool após o acidente, acusando presença de álcool no sangue, contrariamente ao que havia declarado na participação de sinistro;
uma vez que a cláusula de “danos próprios” não opera em casos de condução sob influência do álcool, pretende a condenação do Réu no pagamento de € 10.652,74 (valor pago a título de perda total, descontado do produto da venda dos salvados e do valor recebido da seguradora do outro veículo interveniente), quantia a que não tinha direito não fora a falsa declaração na participação do sinistro.
2 –
O R. contestou, alegando que:
tendo efetuado o teste de deteção de álcool no sangue no próprio dia do acidente, o seu resultado só lhe foi comunicado cerca de mês e meio depois, quando já tinha apresentado a participação do sinistro;
não houve qualquer enriquecimento da sua parte, porquanto o valor recebido corresponde ao dano por ele sofrido com a perda da viatura segurada.
3 –
Teve lugar a Audiência Final e foi proferida a Sentença, fazendo parte desta a Decisão de Facto.
4 –
Da parte dispositiva da Sentença consta:
Tudo visto e ponderado, julgo a presente ação totalmente procedente e, em consequência, condeno o Réu C… a pagar à Autora B… – Companhia de Seguros, S.A. a quantia de € 10.652,74 (dez mil, seiscentos e cinquenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, contados à taxa de 4%, desde citação (21/11/2013) e até efetivo e integral pagamento.
5 –
O R. apelou, tendo formulado as CONCLUSÕES que se transcrevem:
1. Ocorreu incorrecto julgamento do ponto 20. dos factos provados.
2. Permitiu formar a convicção do Tribunal o doc. 6 junto com a petição inicial o qual foi idóneo para o julgamento da referida matéria de facto inexistindo razões para não resultarem provados outros factos que resultam do referido documento e que são “complemento ou concretização” do que foi alegado pela Autora, impondo-se assim completar a resposta à matéria de facto do referido ponto 20. pelo que, salvo melhor opinião deve, assim, a propósito, considerar-se provado que:
“20. Tendo recebido a quantia de € 7.242,26 (sete mil, duzentos e quarenta e dois euros e vinte e seis cêntimos) da congénere e em consequência do recebimento da importância do recibo emitido, declarou que, tanto o pagador referido, como os solidariamente responsáveis pelo sinistro acima identificado, ficam livres de toda obrigação relativa aos prejuízos consequentes do acidente, passando-se o referido recibo definitivo e sem reserva, por renunciar expressamente a quantos direito da acção judicial e indemnizações possam corresponder à Autora em virtude do dito acidente e de harmonia com as disposições legais”.
Acresce que,
3. Independentemente do referido, a matéria de facto provada na douta sentença recorrida é insuficiente para procedência da presente acção.
4. Com efeito, invocou a autora o regime do enriquecimento sem causa, a propósito do qual o Réu teria recebido quantia de forma injustificada no âmbito do contrato de seguro celebrado com aquela, na medida de que injustamente se teria locupletado.
5. Para tanto, a Autora alegou que celebrou contrato de seguro facultativo com o Réu para choque, colisão ou capotamento, o que motivou após participação e constatação do sinistro o pagamento de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros) de indemnização a este.
6. Mais alegou, sem que o tivesse provado, que nos termos do contrato celebrado estaria excluído a responsabilidade da Autora no caso do condutor do veículo seguro acusar teor de álcool no sangue superior ao legal.
7. Impunha-se face a tal alegação, a prova do referido facto, o que manifestamente não aconteceu nos presentes autos.
8. Assim, era imprescindível, para a procedência da presente acção que se considerasse provado a existência de cláusula de exclusão da responsabilidade da Autora o que permitia concluir e fundamentar o enriquecimento “sem causa justificativa”, com que injustamente se teria locupletado o Réu.
9. Na douta sentença recorrida constata-se inexistir qualquer facto que permita concluir que o recebimento pelo Réu da quantia indemnizada era indevido, nomeadamente que tivesse sido acordado com o Réu cláusula de exclusão conforme a Autora havia alegado na petição inicial.
10. Impõem-se assim concluir que existe deficiente matéria de facto considerada provada para basear e fundamentar a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa e permitir a condenação do Réu no pedido, pelo que deve ser o Réu absolvido do pedido.
Sem prescindir e por dever de patrocínio,
11. Resultou para além do mais provado que:
“10. (…) o UN circulava na A1 na faixa central no sentido norte->sul, sendo que o veículo de matrícula ..-LR-.. – que circulava no mesmo sentido de marcha – o ultrapassava pela esquerda, ocupando a fila situada mais à esquerda.
11. Atrás do LR circulava o ..-IC-.. também em ultrapassagem.
12. O IC embateu na traseira do LR, o qual por sua vez foi embater na lateral esquerda traseira do UN, 13. tendo provocado o seu despiste e subsequente embate no separador central de faixas, onde se imobilizou.
17. O capital seguro referente ao UN era de € 24.000 (vinte e quatro mil euros) e a Autora indemnizou o Réu por esse mesmo valor.
18. Após o que a Autora procedeu à venda do salvado, tendo recebido a quantia de € 6.105 (seis mil, cento e cinco euros), da sociedade D….
19. A Autora procedeu igualmente à reclamação à sua congénere Companhia de Seguros E…, S.A., seguradora do veículo de matrícula ..-IC-.., responsável pelo sinistro, da respetiva indemnização.
20. Tendo recebido a quantia de € 7.242,26 (sete mil, duzentos e quarenta e dois euros e vinte e seis cêntimos) da congénere.”
12. Resulta dos referidos factos que o condutor do ..-IC-.. foi o único e exclusivo culpado pela produção do acidente, não restando qualquer dúvida que o Réu tinha direito a receber indemnização para ressarcir o seu dano, do responsável pelo acidente, tendo todavia reclamado o pagamento da indemnização a que tinha direito da Autora no âmbito do contrato de seguro facultativo que com esta celebrara.
13. No entanto, o Réu recebeu a indemnização a que tinha direito directamente da Autora ficando esta sub-rogada no direito do Réu de reclamar os danos sofridos no acidente da referida Companhia de Seguros E…, S.A., para quem tinha sido transferida a responsabilidade pela circulação do automóvel com a matrícula ..-IC-...
14. Por tal facto o Réu com o recebimento da indemnização ficou, assim, impedido de reclamar da referida responsável pelo acidente os danos que sofreu.
15. Acresce que a própria Autora diligenciou por receber da Companhia de Seguros E…, S.A., responsável pelo acidente a quantia que bem entendeu receber e que com esta negociou, sem que o Réu interviesse fosse em que medida fosse.
16. Assim, por um lado o Réu recebeu a quantia a que tinha indiscutivelmente direito inexistindo assim causa injustificada e locupletamento injustificado deste e,
17. por outro lado, ficou o Réu impedido de exercer os seus direitos contra o responsável pelo acidente, tendo a própria Autora apenas recebido a quantia que bem entendeu, quando poderia e se lhe exigia o recebimento integral do montante indemnizado ao Réu.
18. Ora, se a Autora só recebeu aquela quantia da Companhia de Seguros E…, S.A. foi porque assim entendeu e não por qualquer acto imputável ou voluntário do Réu ou devido a qualquer actuação sua.
19. Acresce que, a atitude da Autora é gritantemente censurável quando ao receber a quantia que bem entendeu da Companhia de Seguros E…, S.A., presta quitação do direito que lhe foi sub-rogado pelo Réu, conforme resulta inequívoco do documento junto sob doc. 6.
20. Por tudo quanto fica dito impõe-se concluir que inexistiu enriquecimento do Réu à custa da Autora sem causa justificativa.
21. Resulta ainda igualmente da actuação da Autora um verdadeiro abuso de direito por impedir o Réu de reclamar da responsável pelo pagamento dos danos advenientes do acidente o valor destes.
AINDA SEM PRESCINDIR e por dever de patrocínio,
22. A Autora renunciou ao direito de propor a presente acção, conforme resulta claramente do documento 6 junto com a petição inicial.
23. Tal documento não foi previamente elaborado por qualquer outra entidade, antes e apenas pela própria Autora que ali fez declarar o que intencionalmente ali declarou.
POR ÚLTIMO e SEM PRESCINDIR e por dever de patrocínio,
24. A actuação da Autora consubstancia um verdadeiro abuso de direito a que se lhe aplica o regime previsto no artigo 334º do Código Civil, considerando ainda a supra referida alteração da matéria de facto pugnada pela recorrente.
25. Quando a Autora prestou quitação do valor recebido e que vem plasmado no documento n.º 6, já tinha ocorrido o aditamento ao auto de participação de acidente de viação.
26. Mas mesmo que assim não fosse, ao prestar quitação e ao renunciar ao direito de acção judicial e indemnização impede por acto voluntário e próprio e sem a conivência, cumplicidade ou intervenção do Réu, de este poder reclamar o seu direito perante o responsável pelo acidente.
27. Tal actuação da Autora excede “manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, isto é, de vir a reclamar do Réu o reembolso do que lhe pagou.
28. Mais impõem-se concluir, que a existir fundamento, o que não se subscreve, para o direito reclamado pela Autora, o mesmo, atenta a renuncia à reclamação do pagamento do responsável do acidente, colide e verifica-se ilegítimo por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, bons costumes e o fim económico-social do instituto do enriquecimento sem causa, o que consubstancia abuso de direito.
6 –
A A., ora Apelada, pronunciou-se pela confirmação da Sentença.
II FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO
A – Da Sentença consta a seguinte Decisão de Facto:
… - FACTUALIDADE PROVADA
Resultaram provados os seguintes factos:
1. A Companhia de Seguros B1…, S.A. é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objeto a atividade seguradora, tendo sido alvo de alteração de designação social, passando a designar-se B… – Companhia de Seguros, S.A..
2. No âmbito desta sua atividade, a Autora celebrou com o Réu um contrato de seguro do ramo automóvel, o qual foi titulado pela apólice nº ……… referente ao veículo de matrícula ..-..-UN, com cobertura de danos próprios.
3. O Réu participou à Autora, ao abrigo da cláusula de danos próprios, a ocorrência de um acidente de viação verificado com o veículo seguro em 24/8/2011, pelas 1h30, que ocorreu na autoestrada “A1” ao km 299,5.
4. Que se deu quando o UN circulava na A1, no sentido Porto->Lisboa.
5. O local do acidente apresenta uma ligeira curva à esquerda, em relação àquele sentido de marcha.
6. A via no local possui três (3) filas de trânsito naquele mesmo sentido, delimitadas por linhas longitudinais descontínuas apostas no pavimento.
7. Do lado direito, a via possui uma berma e do lado esquerdo apresenta um separador central de faixas em betão.
8. O local apresenta iluminação pública, sendo o piso em asfalto e em bom estado de conservação.
9. A velocidade máxima permitida no local é de 90 km/h e encontra-se sinalização vertical nesse mesmo sentido.
10. Nestas circunstâncias, o UN circulava na A1 na faixa central no sentido norte->sul, sendo que o veículo de matrícula ..-LR-.. – que circulava no mesmo sentido de marcha – o ultrapassava pela esquerda, ocupando a fila situada mais à esquerda.
11. Atrás do LR circulava o ..-IC-.. também em ultrapassagem.
12. O IC embateu na traseira do LR, o qual por sua vez foi embater na lateral esquerda traseira do UN,
13. tendo provocado o seu despiste e subsequente embate no separador central de faixas, onde se imobilizou.
14. Logo após a verificação do acidente, o Réu apresentou a participação da ocorrência, datada de 25/8/2011, à Autora, ao abrigo de danos próprios, referindo que havia efetuado teste de deteção de álcool no sangue e que o respetivo resultado havia sido negativo.
15. Após a participação de sinistro apresentada, a Autora procedeu à aferição dos danos sofridos pelo UN, os quais foram considerados, pela sua dimensão, como “perda total”, uma vez que a sua reparação era economicamente inviável.
16. A Autora procedeu à indemnização do Réu da perda total do veículo seguro.
17. O capital seguro referente ao UN era de € 24.000 (vinte e quatro mil euros) e a Autora indemnizou o Réu por esse mesmo valor.
18. Após o que a Autora procedeu à venda do salvado, tendo recebido a quantia de € 6.105 (seis mil, cento e cinco euros), da sociedade D….
19. A Autora procedeu igualmente à reclamação à sua congénere Companhia de Seguros E…, S.A., seguradora do veículo de matrícula ..-IC-.., responsável pelo sinistro, da respetiva indemnização.
20. Tendo recebido a quantia de € 7.242,26 (sete mil, duzentos e quarenta e dois euros e vinte e seis cêntimos) da congénere.
21. Nesse entretanto, a Autora efetuou, como é normal, uma averiguação do sucedido.
22. No decurso da averiguação tomou a Autora conhecimento que o teste de álcool no sangue que o Réu havia efetuado após o acidente acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,18 g/l.
Não há factos não provados.
Esta factualidade provada teve por referência os temas de prova definidos em sede de audiência prévia, sendo ainda considerados para o efeito os articulados das partes.
A demais matéria não elencada foi considerada como não provada, conclusiva e/ou de direito.
… FUNDAMENTAÇÃO DA PROVA
A convicção do tribunal resultou da análise crítica e conjugada dos depoimentos das testemunhas prestados em sede de audiência de julgamento, analisada conjuntamente com a prova documental que consta dos autos, ponderadas ainda as regras da experiência comum e da “normalidade do acontecer” – cfr. arts. 396º do Código Civil e 607º, nº 5 do Código de Processo Civil.
A primeira testemunha, G…, é profissional de seguros.
Desempenha a sua atividade na Autora e demonstrou saber o que se passou entre a sua entidade empregadora e o Réu, por referência, como é óbvio, ao contrato de seguro celebrado e ao acidente que originou a participação amigável que o mesmo enviou a esse propósito.
O seu relato foi sempre muito pormenorizado e rigoroso, tendo confirmado, desde logo, a receção da participação amigável relativa ao acidente em causa nos autos, o seu teor, em especial o facto de o ora Réu ter indicado que o teste de álcool no sangue tinha resultado negativo e sabe que foi efetuado o pagamento ao Réu da quantia de € 24.000, correspondente ao capital seguro.
Abordou de seguida a averiguação levada a cabo pela Autora, averiguação das circunstâncias em que o sinistro se deu, no decurso da qual se apurou um dado essencial, qual seja o facto de o segurado, ora Réu, ter acusado a presença de álcool no sangue no dia do sinistro.
Informação essencial porque a condução com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida exclui, nos termos do contrato de seguro celebrado, a responsabilidade da seguradora, ora Autora.
Precisou de imediato que caso essa informação fosse participada à Autora, esse pagamento não teria sido feito e explicou que só depois do pagamento ao sinistrado é que a seguradora recebeu o resultado do exame.
Foi analisado o contrato de seguro junto aos autos e toda a documentação pertinente, o que corrobora o depoimento desta testemunha, porquanto a folhas 30 vº encontramos prevista, na cláusula 5ª, relativa a exclusões, na sua alínea d) a circunstância verificada no dia 24/8/2011, ou seja, condução do veículo seguro com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.
Cabe aqui notar que o Réu não questionou a validade do contrato de seguro à data do acidente nem o seu âmbito nem o seu clausulado.
A participação amigável de acidente de viação encontra-se a folhas 100 e a participação do sinistro na folha seguinte
Por sua vez o relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal, onde consta a taxa de álcool no sangue colhida às 5 horas da manhã do dia 24/8/2011 a C…, ora Réu, consta de folhas 94.
Não se mostrou muito relevante o depoimento da testemunha H…, elemento da Guarda Nacional Republicana e que se deslocou ao local do acidente: confirmou apenas o teor da participação que elaborou na altura, junta a folhas 15 a 22 dos autos, bem como o respetivo aditamento, a folhas 23.
A testemunha I… interveio no acidente de viação em causa e, no que por ora releva, confirmou que necessitou de tratamento hospitalar na sequência do acidente, tendo sido de imediato transportada em ambulância na companhia do Réu, que reconheceu em audiência de julgamento.
De recordar ainda que a matéria constante nos pontos 1 a 13 foi admitida por acordo das partes. Idem quanto aos pontos 15 a 21. Em todo o caso a testemunha G… acabou por confirmar essa factualidade.
O depoimento dessa testemunha, em conjugação com o teor da participação enviada à seguradora, nos termos que acima referimos, serviu também de prova ao ponto 14. De igual modo o seu depoimento e o documento de folhas 93/94, proveniente do Instituto Nacional de Medicina Legal e onde consta a taxa de álcool no sangue colhida às 5 horas da manhã do dia 24/8/2011 a C…, ora Réu, serviram de prova ao ponto 22, sendo certo que não questionado nem contrariado o resultado desse teste.
Uma última nota: todos os depoimentos foram acolhidos e compulsados na medida em que emergentes do conhecimento pessoal e direto da realidade dos factos que indiciaram. A par-e-passo o convencimento incutido teve em linha de conta a pormenorização da narração, a convicção mostrada, a certeza e não hesitação e, de um modo geral, a coerência dos raciocínios.
Seja como for, teve-se em conta que a prova nunca é certeza lógica, mas tão-só o (alto) grau de probabilidade, tido por suficiente para as necessidades práticas da vida.
Enfim, todos os “meios de prova” foram, a par-e-passo, entrecruzados e confrontados entre si, fazendo-se sobrelevar os seus pontos de coerência e, da sua ponderação global, se retirando – sempre que adequado – as inerentes ilações e pertinentes presunções judiciais.
Ora, assim, não poderia ser outra a resposta do Tribunal.
B – O Recurso e os Factos
O Apelante pretende que a Decisão de Facto, no seu ponto 20, que tem a seguinte redação -
20. Tendo recebido a quantia de € 7.242,26 (sete mil, duzentos e quarenta e dois euros e vinte e seis cêntimos) da congénere, devia ter:
20. Tendo recebido a quantia de € 7.242,26 (sete mil, duzentos e quarenta e dois euros e vinte e seis cêntimos) da congénere e em consequência do recebimento da importância do recibo emitido, declarou que, tanto o pagador referido, como os solidariamente responsáveis pelo sinistro acima identificado, ficam livres de toda obrigação relativa aos prejuízos consequentes do acidente, passando-se o referido recibo definitivo e sem reserva, por renunciar expressamente a quantos direito da acção judicial e indemnizações possam corresponder à Autora em virtude do dito acidente e de harmonia com as disposições legais”.
Ora, lê-se no artigo 460º do NCPC está determinado que depois do interrogatório preliminar destinado a identificar o depoente, o juiz interroga-o sobre cada um dos factos que devem ser objeto do depoimento.
Também a factos se refere o artigo 463º, 1, do NCPC.
Finalmente, verificamos que no artigo 607º do NCPC, que se refere à elaboração da sentença, está previsto: 3 – Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados … Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados …
Deve-se dizer que em relação à terminologia “factos” em nada inovou o NCPC. E os meios de prova destinam-se a demonstrar que factos terão efetivamente acontecido e aos quais vai ser aplicado o direito.
Porém, o artigo 410º do NCPC dispõe que a instrução tem por objeto os temas de prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova.
Mas, as partes continuam a ter o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, sem prejuízo de virem a ser considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, além dos factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções - artigo 5º, 1 e 2, do NCPC.
É um sistema em que passou a vigorar o princípio dispositivo exclusivamente para os factos essenciais, isto é um princípio dispositivo mitigado.
E o pretendido aditamento não integra o conceito de factos essenciais, está documentalmente provado (doc. 6 da P.I., a fls. 14) e foi junto pela própria A., que teve, pois, a oportunidade de se pronunciar e pode ser relevante para a decisão jurídica da causa, pelo que alteramos a Decisão de Facto no sentido pretendido pelo Apelante, mas com esclarecimentos sobre quem prestou a declaração e a quem, pelo que o ponto 20. Passará a ter a seguinte redação:
20. A B1…, em papel timbrado seu, em que é identificada a Companhia de Seguros E… como pagador, com data de 5-12-2011, escreveu o seguinte: Em consequência do recebimento da importância deste recibo (€ 7.242,26 - sete mil, duzentos e quarenta e dois euros e vinte e seis cêntimos) declaramos que, tanto o pagador referido, com os solidariamente responsáveis pelo sinistro acima identificado, pelo sinistro acima identificado, ficam livres de toda obrigação relativa aos prejuízos consequentes do acidente, passando-se o referido recibo definitivo e sem reserva, por renunciarmos expressamente a quantos direitos de acção judicial e indemnizações nos possam corresponder em virtude do dito acidente e de harmonia com as disposições legais.
A A. alegou em 29º da P.I. alegou que a cláusula de danos próprios não opera perante situações do condutor do veículo seguro se encontrar, no momento do acidente, com taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida, cfr. documento n.º 8 que adiante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
A A. juntou com a P.I. as Condições Gerais e Especiais da Apólice, que não forma impugnadas e das quais consta a fls. 30vº e 31 a seguinte cl. 5ª, 1, d) - Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª das Condições Gerais do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel e das exclusões específicas de cada uma das coberturas facultativas contratuais ficam ainda excluídos do âmbito do Seguro Facultativo: danos causados ao veículo seguro quando o condutor conduza com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida …
Assim, este facto deve constar dos Factos provados, pois que o está documentalmente (não foi impugnado o alegado, nem o documento).
Atento o disposto no artigo 692º, 1, do NCPC, que corresponde ao artigo 712º, 1, a), do CPC, passando a alteração a obrigatória quando este último previa como “pode”, aditamos, também, esse facto aos adquiridos para estes autos, acrescentando-o nos seguintes termos:
23. Das Condições Gerais da Apólice consta a seguinte cláusula 5ª, 1, d) – “Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª das Condições Gerais do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel e das exclusões específicas de cada uma das coberturas facultativas contratuais ficam ainda excluídos do âmbito do Seguro Facultativo: danos causados ao veículo seguro quando o condutor conduza com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.”

DE DIREITO
Dispõe o artigo 473º do CC.: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
São requisitos desta obrigação de restituir: 1) que haja um enriquecimento de alguém; 2) que o enriquecimento careça de causa justificativa; 3) que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição[1].
Para que se verifique um enriquecimento sem causa, como fonte autónoma de obrigação, é necessário que se cumulem os seguintes requisitos: a) enriquecimento de um património e correlativo empobrecimento de outro, decorrentes do mesmo facto; b) ausência de causa para a deslocação patrimonial que aqueles enriquecimento e empobrecimento envolvem, deslocação patrimonial que, no entanto, é legal. É este segundo requisito que dá ao enriquecimento a nota de injustificado ou injusto [2].
A falta de causa tanto abrange as hipóteses de ausência inicial como de supressão posterior[3].
O enriquecimento, numa conceção real, corresponde ao valor objetivo da vantagem real adquirida; numa conceção patrimonial, ao saldo ou diferença para mais no património do enriquecido, que resulte da comparação entre a situação em que ele presentemente se encontra e aquela em que se encontraria se não se tivesse verificado a deslocação patrimonial que funda a obrigação de restituir[4].
O enriquecimento traduz-se em valorização ou vantagem de carácter patrimonial, que pode ser obtida por diversos meios, como aumento do ativo, diminuição do passivo, poupança de despesas e outros[5].
No caso dos autos a hipótese a considerar será a de conditio indebiti, situação de alguém, que realiza uma prestação na intenção de extinguir uma obrigação, mas em que se verifica a inexistência da dívida que o prestante visava solver, o que permite ao solvens exigir a sua restituição[6].
Por outro lado, incide sobre o pretenso empobrecido o ónus de alegação e prova da falta de causa justificativa do enriquecimento[7]. Na verdade, invocando o direito à restituição com base neste instituto, incumbe-lhe, por força do disposto no artigo 342º, 1, do CC, provar os factos integrativos dos pressupostos do nascimento da obrigação de restituir por ocorrer enriquecimento à sua custa sem que haja justa causa. No caso dos autos a A. pagou ao R. a quantia de € 24.000,00, tendo recebido da seguradora do outro veículo a quantia de € 7.242,26 e da venda dos salvados o montante de € 6.105,00. Ou seja, ocorre um diferencial de € 10.652,74.
Face ao facto de o R., quando teve o acidente, conduzir com uma taxa de alcoolemia no sangue de 1,18 g/l, não se pode concluir, sem mais, que não nasceu para a A. a obrigação contratual de indemnizar o ora R.
Isto pela simples razão de que o acidente e os danos consequentes (risco contratualmente assumido pela Apelada) não ocorreu por atuação imputável ao Apelante, isto é, não lhe é imputável o acidente a título de culpa ou pelo risco. Não é o Apelante responsável pelos danos resultantes do acidente, que é integralmente imputável aos condutores das outras viaturas, que, tocando uma na outra, causaram a colisão com o veículo conduzido pelo ora Apelante. Nem da sua condução pela faixa central, sem qualquer outro elemento, é possível imputar-lhe, ao menos parcialmente, culpa na génese do acidente.
Daqui temos de concluir que a condução do R. sob o efeito do álcool foi irrelevante para a ocorrência do sinistro. O risco assumido pela A. não foi afetado, no caso concreto, pela mencionada atuação do R. Não há qualquer situação de causalidade entre um e outro.
E a mencionada cláusula de exclusão, assim como o direito de regresso por indemnização paga só têm razão de ser quando resulte que o estado de embriaguez tenha, concretamente, aumentado o risco da seguradora ou do obrigado ao pagamento da indemnização, por ter facilitado, contribuído para a ocorrência do sinistro.
Tendo em atenção a analogia das duas situações, deverá ser o mesmo regime jurídico o aplicável, isto é, o previsto no artigo 27º, 1, c), do DL 291/2007, de 21-8.
Aliás, esta é a interpretação que um declaratário normal, colocado na posição do Apelante, daria a tal cláusula.
Imaginemos, até, a situação de um condutor ter acabado de estacionar numa área de serviço da autoestrada e nele vir embater, por distração, um outro veículo. O facto de o condutor daquele estar com uma TAS de 1,18g/l seria um absurdo afastar (excluir) em tal caso a seguradora que tivesse celebrado um contrato idêntico ao dos autos. Em que foi afetada a posição ou situação jurídica da seguradora?
A situação tem de ser objetivamente apreciada e não a conjetura de que essa condução era suscetível de causar um acidente. Seria suscetível, mas não causou. Este teve uma etiologia a que aquela situação é inteiramente alheia.
Desta forma somos levados a concluir que não há falta de causa para o pagamento que a A. fez ao R., pois que a causa é a sua responsabilidade contratualmente assumida e que nasceu com o sinistro.
Ficam, portanto, prejudicadas as demais questões, nomeadamente o alegado abuso de direito.
III DECISÃO

Por tudo o que exposto fica, julgando procedente a Apelação e revogando a Sentença proferida nestes autos, absolvemos o Apelante do pedido formulado nesta ação.
Custas, nesta e na 1ª Instância, a cargo da A.

Porto, 2015-09-28
Soares de Oliveira
Alberto Ruço
Correia Pinto
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[1] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pp. 480-481.
[2] PESSOA JORGE, Direito das Obrigações, AFDLl. I, pp. 250-251. Os ACS. DO S. T. J., de 12-1-93, 18-1-94 e 18-1-96, CJSTJ, I, I, 25, II, I, 44, e IV, I, 55, respetivamente, consideram como requisitos: o enriquecimento, o empobrecimento, o nexo causal entre um e outro e a falta de causas justificativas da deslocação patrimonial verificada. E o AC. DO S.T.J., de 8-7-97, CJSTJ, V, II, 145, diz que “Do disposto no artigo 473º n.º 1 do citado C. Civil facilmente se infere que este instituto exige e pressupõe, como requisito fundamental, a existência de um enriquecimento injustificado, resultante de um ato jurídico não negociável de outrem, como pode ser o pagamento.”
Por sua vez, no AC. DO S. T. J., de 14-5-96, CJSTJ, IV, II, 72, lemos: “Para que possa existir a obrigação de restituir com fundamento no enriquecimento sem causa (também chamado locupletamento à custa alheia) exige-se a verificação simultânea dos seguintes requisitos: a) Existência de um enriquecimento; b) Falta de causa que o justifique (porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido); c) Que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem pretenda a restituição; d) Que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição – que não haja de permeio, entre o ato gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, outro ato jurídico”.
[3] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II Direito das Obrigações, T. III, Almedina, Coimbra, 2010, p. 238.
[4] FRANCISCO MANUEL PEREIRA COELHO, O Enriquecimento e o Dano, Almedina, Coimbra, 1970, p. 29.
[5] Citado AC. DO S.T.J., de 18-1-94. LUÍS DE MENEZES LEITÃO, O Enriquecimento Sem Causa No Código Civil de 1966, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, III, Coimbra Editora, 2007, pp. 17-37, apreciando a configuração dogmática deste instituto, depois de referir a teoria unitária da deslocação patrimonial, a teoria da ilicitude e a doutrina da divisão do instituto, conclui dever distinguir-se no âmbito deste instituto as situações de enriquecimento por prestação, por intervenção, por despesas relacionadas em benefício doutrem e por desconsideração de um património intermédio. A crítica a esta posição encontra-se, por exemplo, em ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ob. e t. cits., p. 223.
[6] LUÍS DE MENEZES LEITÃO, ob. cit., p. 28.
[7] AC. DO S. T. J., de 14-5-96, já citado, e ANTUNES VARELA, ob. e I vol. cits., p. 488.