Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2261/17.7T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
MEDIDA DA CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RP202009082261/17.7T8PNF.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Deve fixar-se em 25% a contribuição do peão e em 75% a contribuição do condutor do veículo que o atropelou provando-se que o atropelamento ocorreu na faixa de rodagem destinada à circulação do veículo quando o peão fazia o atravessamento da faixa de rodagem fora de passadeira para peões e sem ter aguardado a passagem do veículo e o condutor deste conduzia sem atenção, não tendo visto o peão e a sua movimentação e circulava a velocidade superior a 50 km/hora num local onde a velocidade máxima permitida era de 30 km/hora.
II - Ainda que a causa directa da morte tenha sido uma miocardiopatia isquémica, não é de excluir o nexo de causalidade entre as lesões sofridas no acidente e a morte do lesado quando este, em resultado dessas lesões, ficou tetraplégico e em estado estuporoso, tendo permanecido até à ocorrência do óbito hospitalizado com agravamento progressivo do seu estado de saúde.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 2261/17.7 T8PNF.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 1
Recorrentes e Recorridos – B…, C… e D…; E… – Companhia de Seguros, SA e F…
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Maria do Carmo Domingues

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – B…, C… e D…, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Central Cível de Penafiel a presente acção para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação contra a E… – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia total de €200.957,72, acrescida de juros de mora a contar da citação e até integral pagamento.
Para tanto alegaram, em síntese, que em virtude de acidente de viação – atropelamento - ocorrido no dia 17.10.2014, cerca das 19h35m, na Rua …, em … – Paredes, ocasionado por culpa única e exclusiva do condutor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-PB-.., G…, o seu pai, H…, sofreu graves lesões físicas que lhe vieram a determinar a morte ocorrida a 2.03.2015.
Mais alegaram que autor B… sofreu danos patrimoniais pelas despesas que suportou com o internamento e funeral do seu pai e que o falecido – H… - sofreu danos não patrimoniais antes da morte; sofreu danos pela perda do direito à vida e, que todos os autores sofreram danos não patrimoniais com a perda do seu pai.
Mais alegaram que a ré seguradora é responsável pelas consequências do acidente, por via do contrato de seguro, titulado pelo certificado provisório n.º …… pelo qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-PB-.., que no momento da colisão era conduzido pelo respectivo proprietário, G…, único causador do acidente.
Terminaram ainda pedindo que F… fosse notificada para intervir nos presentes autos como demandante, em virtude de a mesma ser também herdeira (filha) do falecido H…, isto, ao abrigo do disposto no artigo 33.º do C.P.Civil.
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Regularmente citada, a ré veio apresentar contestação, pedindo a improcedência da acção.
Para tanto, começou por excepcionar a ilegitimidade activa dos autores por ausência de uma das filhas do falecido, como demandante.
Depois excepcionou a caducidade do direito à acção por parte dos autores, pois que um dos autores foi assistente no processo-crime e aí não deduziu pedido de indemnização civil, logo defendeu que o direito dos autores se mostra caducado.
No mais, negou qualquer responsabilidade do condutor do veículo de matrícula ..-PB-.., seu segurado, na eclosão do acidente, sendo que, no seu entender, o acidente se ficou a dever exclusivamente à conduta do peão H…, ilícita e culposa, sem qualquer contribuição da conduta do condutor do PB ou dos riscos próprios do veículo.
Mais alegou que o peão H… sofreu determinadas lesões, esteve internado no Hospital … e que depois foi transferido para a I…, em Paços de Ferreira, onde passou a receber cuidados continuados e que veio a falecer em 02.03.2015. E atento o relatório da autópsia é evidente a causa da morte foi uma miocardiopatia isquémica, ou seja, a causa da morte foi natural e que não foram encontradas lesões traumáticas mortais, pelo que defendeu que a morte não se ficou a dever ao acidente dos autos.
Finalmente, defendeu que os valores peticionados a título de danos não patrimoniais dos herdeiros; de dano vida e de danos não patrimoniais pelo sofrimento da própria vítima são manifestamente excessivos, atentos os critérios da Portaria n.º 377/2008 e a mais recente jurisprudência.
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Depois de ouvida a ré, por despacho de 7.12.2017, foi admitida a intervenção principal provocada da restante herdeira do falecido – F… – por força do disposto nos art.ºs 33.º, n.º 1, 316.º do C.P.Civil.
Citada a mesma, veio esta apresentar articulado próprio, onde terminou pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €67.500,00 (estando a quantia de €27.500,00 incluída no pedido deduzido pelos autores), acrescido de juros de mora a contar da citação e até integral pagamento.
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Os autores juntaram articulado de resposta e, em suma, mantiveram os factos por si alegados na p. inicial.
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Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se julgou improcedente a excepção da caducidade do direito à acção por parte dos autores (e interveniente). Foi depois identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
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Por fim, foi proferida sentença, de onde consta: “Por tudo o exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência:
a) Condenar a ré, “E…, Companhia de Seguros, SA”, a pagar ao autor, B…, a quantia total de €957,72, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
b) Condenar a ré “E…, Companhia de Seguros, SA” a pagar aos autores, B…, C…, D… e interveniente, F…, a quantia total de €120.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal, contados da presente sentença até integral pagamento.
c) Absolver a ré “E…, SA” do restante pedido (…)”.
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Inconformados com tal decisão, dela vieram os autores recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que condene a recorrida a pagar, para além das quantias não impugnadas neste recurso, as seguintes quantias:
a) – €80.000,00, pela perda do direito à vida;
b) – €30.000,00, pelo dano não patrimonial próprio da vítima e
c) – €30.000,00, pelo dano não patrimonial próprio de cada um dos recorrentes (e da interveniente, sua irmã).
Os apelantes/autores juntaram aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
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Também a ré seguradora, inconformada com tal decisão dela, veio recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que a absolva dos pedidos formulados nos autos.
A apelante/ré juntou aos autos as suas conclusões que terminam com as seguintes e prolixas conclusões:
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A ré e os autores vieram, respectivamente, juntar aos autos as suas contra-alegações onde pugnam reciprocamente pela improcedência dos recursos da contra-parte.
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A interveniente F… veio aderir ao recurso interposto pelos autores, apresentar as suas contra-alegações ao recurso da ré e quanto a este, deduzir apresentar recurso subordinado.
A apelante/interveniente juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
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A ré juntou aos autos as suas contra-alegações relativamente ao recurso subordinado, pugnando pela sua improcedência.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1. No dia 17.10.2014, cerca das 19h35, o veículo ligeiro de passageiros ..-PB-.., conduzido pelo proprietário, G…, circulava na Rua …, em … – Paredes, no sentido … – ….
2. H… pretendia atravessar a Avenida … da esquerda para a direita, atento o sentido … – ….
3. Para esse efeito, iniciou a travessia daquela via, a 40 metros do local da passadeira destinada à travessia de peões, devidamente assinalada com sinalização vertical e horizontal.
4. E quando estava já a atravessar a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido … – …, foi colhido pela parte da frente do lado esquerdo do veículo ..-PB-.., junto ao farol esquerdo, tendo o peão embatido no pára-brisas do veículo do lado esquerdo, atingindo o espelho retrovisor desse lado.
5. Após o que foi projectado para a berma do lado esquerdo da Avenida …, atento o sentido do veículo “PB”, onde ficou prostrado no solo a 0,95 cms da referida berma, juntamente com o retrovisor esquerdo do veículo.
6. O condutor do veículo “PB” circulava a uma velocidade calculada de 53,25 Km por hora.
7. A velocidade naquele local está limitada por placas verticais de 30 Km por hora.
8. Quando ocorreu o embate era de noite, chovia e o piso estava escorregadio, pelo facto de ser em paralelepípedo. 9. O local do embate desenha-se em linha recta, em sentido descendente, atento o sentido do veículo ..-PB-.. e com mais de 50 metros de extensão,
10. O condutor do veículo ..-PB-.. acabou por imobilizar o veículo que conduzia a mais de 25 metros do local onde ocorreu o atropelamento.
11. O condutor do veículo “PB” circulava com as luzes médias do seu veículo ligadas.
12. A faixa de rodagem tem uma largura de 7,20m.
13. Em consequência do atropelamento, o pai dos autores, H…, sofreu:
- traumatismo crânio-encefálico com lesão axonal difusa, com múltiplos focos de hemorragia subaracnóideia;
- hemorragia intraventricular;
- traumatismo da face com fractura dos ossos próprios do nariz e da parede anterior do seio maxilar direito;
- traumatismo torácico com fractura dos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º arcos costais à esquerda e,
- pneumotórax bilateral.
14. Do local do acidente foi imediatamente transportado para o S.U. do Hospital …, no Porto, onde foi internado na U.C.I.P.
15. Foi, então, ali submetido a traqueostomia para suporte ventilatório, tendo-se mantido, durante o internamento nesta Unidade Hospitalar em estado estuporoso, com várias intercorrências respiratórias infecciosas, com agravamento progressivo.
16. Permaneceu ali internado, em estado vegetativo e tetraplégico, até ao dia 16.12.2014, altura em que foi transferido para a I…, em Paços de Ferreira, para lhe serem prestados cuidados continuados, nunca tendo registado qualquer melhoria no seu estado de saúde.
17. H… faleceu no dia 02.03.2015.
18. Procedeu-se a autópsia, cujo relatório apresentou nas conclusões como causa de morte, o seguinte: “A informação recolhida, os achados necrópsicos e o resultado dos exames complementares de diagnóstico, solicitados permitem afirmar que a morte de H… pode ter sido devida a miocardiopatia isquémica. Esta é causa de morte natural.”
19. Tendo o perito que efectuou o relatório de autópsia, em esclarecimentos prestados em julgamento, acrescentado; “Sendo muito provável que essa causa de morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima.”
20. O falecido, H…, tinha, à data do atropelamento, 83 anos de idade.
21. Era sociável, expansivo e alegre, gozando da estima de quem com ele convivia, respeitado e respeitador.
22. Era o sineiro e acólito na igreja paroquial e tinha um pequeno rebanho de ovelhas que apascentava e cuidava.
23. A vítima antes de falecer vivia com a sua filha F….
24. Após o acidente, os filhos de H… ficaram tristes, apreensivos, aflitos, visitando o pai diariamente quer no Porto, Penafiel e Paços de Ferreira.
25. Os filhos do falecido sentiram a morte trágica e prematura do seu pai.
26. O autor B… suportou as seguintes despesas:
- €522,34 com o funeral;
- €375,38 na I… em Paços de Ferreira;
- €60,00 com a compra de um colchão anti-escaras;
27. À data do embate o proprietário do veículo matrícula ..-PB-.. tinha a sua responsabilidade, relativa a danos causados a terceiros, transferida para a ré E…, Companhia de Seguros, SA, mediante a apólice n.º …………..

Não se julgaram provados os seguintes factos:
1. O falecido circulava pelo passeio esquerdo da via, atento sentido de marcha do veículo “PB” mas em sentido contrário ao do veículo, com um guarda-chuva aberto que lhe tapava a cabeça e a face e, sem que nada o fizesse prever, irrompeu em plena faixa de rodagem para efectuar a travessia da via para o passeio contrário, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do referido veículo, não tendo o condutor possibilidade de travar ou desviar-se do mesmo para evitar o atropelamento.
2. Para além do referido no ponto 3. que o falecido atravessou de forma perpendicular ao eixo da via.
3. H… atravessou depois de se ter certificado de que não circulava veículo, avistável, pela referida avenida em ambos os sentidos.
4. Atravessou o mais rápido que os seus 83 anos de idade lhe permitiam.
5. A fracção de segundos que antecedeu o acidente, durante ele e nos meses de internamento que se lhe seguiram, a vítima sentiu a iminência da morte, o que lhe causou, seguramente, a maior agonia, amargura e angústia.
6. A causa de morte foi uma pneumopatia.
7. A actividade a que se alude no ponto 22. rendia ao falecido uma quantia anual não inferior a €5.000,00.
8. O tratamento da aterosclerose é incompatível com o tratamento às lesões traumáticas sofridas por H….

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Ora, visto o teor das alegações dos apelantes são questões a apreciar nos presentes recursos:
1.ª – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
2.ª – Da responsabilidade na eclosão do acidente.
3.ª – Do nexo de causalidade entre o acidente e a morte.
4.ª – Dos danos.
5.ª - Do quantum indemnizatório.
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1.ªquestão – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
1.1. – Da alegada relevância da sentença penal na decisão da matéria de facto dos presentes autos (recurso subordinado).
Começa a interveniente/apelante por defender que deveria ter sido levado ao complexo fáctico provado nestes autos os factos provados a sentença penal condenatória, “tout court”, e a existência dela própria.
Mas não lhe assiste razão.
Na verdade, dispõe o art.º 623.º do C.P.Civil que “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção.”
Referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 691, que “A sentença proferida em processo penal constitui presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção.
O caso mais frequente é o da acção de indemnização: provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade…
(…)
A presunção é invocável perante terceiros relativamente ao processo penal (por exemplo, perante a seguradora da pessoa penalmente condenada por acidente de viação), que a poderão ilidir. Não se trata, directamente, da eficácia extra-processual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes.
A presunção estabelecida difere das presunções stricto sensu, na medida em que a ilação imposta ao juiz cível resulta do juízo de apuramento dos factos por um acto jurisdicional com trânsito em julgado.
Não está, porém, em causa a eficácia do caso julgado (ao contrário do que a defeituosa inserção dos artigos que regulam a matéria podia levar a supor), mas a eficácia probatória da sentença penal”.
Escreveu-se no Ac. do STJ de 9.04.2003, in www.dgsi.pt que “Os factos assentes na sentença penal não podem ser objecto de discussão em posterior acção cível por parte daqueles, como é forçosamente o caso do arguido, em relação a quem já funcionou o princípio do contraditório. O arguido, nunca tem, por isso, a possibilidade de ilidir a presunção estabelecida pelo art.º (…) do C.P.Civil”. Idêntica afirmação se faz no Ac. do STJ de 9.12.2004, também in www.dgsi.pt, ou seja, “A possibilidade de ilidir a presunção nunca é concedida ao arguido condenado, mas apenas, em homenagem ao princípio do contraditório, aos sujeitos processuais não intervenientes no processo penal. Ou seja, em relação àqueles face a quem já funcionou o princípio do contraditório, como é forçosamente o caso do arguido, os factos assentes na sentença penal, não podem ser objecto de discussão em posterior acção cível, onde terão de ser dados por assentes”.
Assim e, em suma, se no caso em apreço, perante o teor da sentença condenatória proferida em processo-crime relativamente ao mesmo evento que agora se aprecia na sua vertente de responsabilidade civil, os lesados (autores e interveniente) estão dispensados do ónus de prova (mas não de alegação) a existência do acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, continuam onerados com os ónus de alegação e de prova dos danos sofridos e do nexo de causalidade entre o ilícito e esses danos. Todavia, a ré/seguradora que não foi parte no supra referido processo-crime pode validamente ilidir - a existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal (crime) – ou seja, a ré/seguradora pode na presente acção apara efectivação de responsabilidade civil ilidir não só a própria existência do acto ilícito, como ainda a culpa de quem o praticou.
Dito isto, manifesto é de concluir que falece de razão a apelante F… quando acusa a sentença de 1.ª instância de violação de caso julgado. Por outro lado, vendo o teor da p. inicial dos autos e ainda o teor do requerimento interventivo da ora apelante, manifesto é de concluir que em nenhuma dessas peças processuais foi alegado em termos factuais (e não meramente em referência) a dita sentença-crime e/ou os factos concretos nela julgados provados, logo não tendo sido respeitado o ónus de alegação, “sibi imputet”.
Logo e sem necessidade de outros considerandos, improcedem as respectivas conclusões da interveniente/apelante.
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1.2 - Da alteração da decisão da matéria de facto no que concerne às circunstâncias de tempo e modo como ocorreu o acidente (recurso subordinado).
Também quanto a esta questão é manifesta a falta de razão da interveniente /apelante, e isto devido a clamorosa falha técnico-jurídica.
Senão vejamos.
A decisão de 1.ª instância julgou, como se viu parcialmente procedente quer o pedido dos autores quer da ora apelante, ou seja, julgou que o acidente em apreço nos autos foi causado por culpa única e exclusiva do condutor do veículo e segurado da ré, tendo ainda julgado que a morte do pai da ora apelante foi consequência directa e necessária das lesões sofridas aquando do atropelamento. Ou seja, quer autores, quer a ora apelante, interveniente, apenas viram os seus pedidos respeitantes ao montante indemnizatório serem apenas procedentes em parte. Logo, é quanto a esses montantes indemnizatórios que foram julgados improcedentes (e nada mais) que, tanto autores como a ora interveniente, se apresentam, por ora, como partes vencidas.
In casu” e porque ambas as partes (autores e interveniente e ré) se podem considerar vencidas, autores e ré interpuseram recursos da decisão de 1.ª instância e a ora apelante, interveniente, deduziu este seu recurso subordinado (ao recurso da parte contrária, ou seja, ao da ré). Todavia e como é evidente, a ora apelante apenas tem legitimidade para atacar a decisão recorrida na parte em que a mesma lhe foi desfavorável, cfr. art.º 633.º do C.P.Civil.
Posto isto, manifesto é de concluir que não assiste legitimidade à ora apelante para pretender, por via deste recurso, a alteração da decisão de facto julgada em 1.ª instância no que concerne às circunstâncias de tempo e modo em que ocorreu o acidente em apreço nos autos.
Logo e sem necessidade de outros considerandos, improcedem as respectivas conclusões da interveniente/apelante.
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1.3. – Da alegada errada apreciação da prova feita em 1.ª instância (recurso da ré/seguradora).
Defende a ré/apelante que a decisão proferida em 1ª instância enferma de erro manifesto e/ou notório na apreciação da prova (pessoal e documental) feita em 1.ª instância, daí que solicite a sua reapreciação concretizada e a sua alteração.
Em concreto defende a ré/apelante que os factos julgados provados em 1.ª instância e elencados sob os pontos 4, 6, 7 e 19, não o deveriam ter sido nos termos em que sucedeu, e que os factos constantes dos art.ºs 34.º, 39.º, 41.º e 45.º da contestação, deveriam ter sido julgados provados.
Para tanto, a apelante chama à colação o teor dos seguintes documentos juntos aos autos: - Auto de participação de acidente de viação; - Registos clínicos juntos aos autos, em especial a fls. 519 e 527 - Relatório de autópsia médico-legal - Esclarecimentos escritos do Dr. J… e ainda o teor dos depoimentos das seguintes testemunhas- - J…; K…; L…; M…; N…; G…; O…; P…; Q…; S… e T….
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Vejamos, então.
A 1.ª instância julgou provado, além do mais, que:
“4. - E quando estava já a atravessar a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido … – …, foi colhido pela parte da frente do lado esquerdo do veículo “..-PB-..”, junto ao farol esquerdo, tendo o peão embatido no pára-brisas do veículo do lado esquerdo, atingindo o espelho retrovisor desse lado.
6. - O condutor do veículo “PB” circulava a uma velocidade calculada de 53,25 Km por hora.
7. - A velocidade naquele local está limitada por placas verticais de 30 Km por hora.
19. - Tendo o perito que efectuou o relatório de autópsia, em esclarecimentos prestados em julgamento, acrescentado; “Sendo muito provável que essa causa de morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima.”
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E julgou não provado, além do mais, que:
- O falecido circulava pelo passeio esquerdo da via, atento sentido de marcha do veículo “PB”, mas em sentido contrário ao do veículo, com um guarda-chuva aberto que lhe tapava a cabeça e a face e, sem que nada o fizesse prever, irrompeu em plena faixa de rodagem para efectuar a travessia da via para o passeio contrário, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do referido veículo, não tendo o condutor possibilidade de travar ou desviar-se do mesmo para evitar o atropelamento.
- Para além do referido no ponto 3 que o falecido atravessou de forma perpendicular ao eixo da via. - cfr. art.ºs 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 39.º, 41.º da contestação.
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Em fundamentação do assim decidido, pode ler-se na decisão recorrida: “Na factualidade relativa ao circunstancialismo temporal, espacial e dinâmica do sinistro relevou-se as declarações de G…, condutor do veículo ligeiro de passageiros “..-PB-..”, que reconheceu que não viu o peão a atravessar a estrada, do lado esquerdo para o lado direito, atento o seu sentido de marcha (sentido … – …), não obstante circular com os médios ligados, à reduzida velocidade de 30 km/h (de acordo com a sua versão), a visibilidade ser “razoável” para não dizer “boa” (segundo as suas próprias declarações) e circular muito perto da berma direita, atento o seu sentido de marcha, não tendo travado ou encetado qualquer manobra de desvio ou de recurso, embatendo com o canto esquerdo do seu veículo no peão, quando este já estava a efectuar a travessia, na sua hemi-faixa de rodagem, e só após o embate é que percepcionou que poderia ter embatido numa pessoa.
Mais se relevou as declarações da testemunha L…, cabo da GNR, que elaborou a participação do acidente e respectivo croqui, junta a fls. 33 e ss., relativos ao circunstancialismo espacial e temporal do local da ocorrência do embate, posicionamento do veículo e da vítima após o embate e localização dos danos no veículo sinistrado.
Relativamente à velocidade de circulação do veículo antes do embate, relevou-se as declarações da testemunha M…, militar da GNR, que elaborou o relatório técnico de acidente de viação relativo à velocidade de circulação do veículo em questão. Mais se relevou a localização da vítima após o embate, os danos no próprio veículo acidentado e as graves lesões sofridas pela vítima, ficando tetraplégico e em estado vegetativo, destacando-se, desde logo, ser evidente que o local do embate não pode coincidir com o local assinalado no croqui (a 1,35 m da berma) de acordo com as declarações prestadas pelo condutor do referido veículo e uma testemunha que se encontrava no local (atentas as declarações do GNR que elaborou o croqui), já que, conforme o mesmo referiu, o embate ocorreu com a parte frontal esquerda do veículo, o que, a ser verdade tal medição, implicaria que o veículo estivesse a circular por cima do passeio.
Atenta a conjugação da prova supra elencada, o tribunal considerou provado que o condutor circulava à velocidade calculada no relatório técnico supra referido de 53,25 Km/h.
(…)
No que se reporta à causa da morte, relevou-se o relatório de autópsia, junto a fls. 36 a 39, elaborado pelo Dr. J… e esclarecimentos, juntos a fls. 432, 471 a 472 ou 478 a 479, que afastou a hipótese de pneumopatia como causa da morte e relatório de anatomia patológica forense, junto a fls. 39 v., que evidenciou a existência de lesões graves de aterosclerose, com extensa calcificação e obstrução até cerca de 70 a 80% das artérias.
Assim, relevou-se o relatório de autópsia que apresentou nas conclusões como causa de morte, o seguinte: “A informação recolhida, os achados necrópsicos e o resultado dos exames complementares de diagnóstico solicitados permitem afirmar que a morte de H… pode ter sido devida a miocardiopatia isquémica. Esta, é causa de morte natural.”
Tendo o referido perito que efectuou o relatório de autópsia, Dr. J…, em esclarecimentos prestados em julgamento, acrescentado à conclusão do relatório de autópsia, penitenciando-se por não o ter feito antes, que; “Sendo muito provável que essa causa de morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima.”. O referido perito alicerçou a sua conclusão na idade avançada da vítima (83 anos de idade), na extrema gravidade das lesões sofridas por esta após o acidente - tendo ficado em estado tetraplégico vegetativo durante quatro meses por traumatismo craniano extremamente grave - e foi neste estado que a vítima faleceu, sendo que todo este stress traumático associado a estas lesões gravíssimas, com muita probabilidade, agravou uma situação de patologia coronária prévia.
Não se ignorando que a vítima encontrava-se em estado estuporoso (cfr. fls. 170 a 387), o que, de acordo com a própria médica ortopedista, especialista em Medicina Legal, Dra. K…, significa que a mesma não comunica e reage a poucos estímulos, mas reage à dor, embora não se saiba se a vítima se encontra ou não em sofrimento, o que se diferencia do estado de coma em que a vítima não reage a nada.
De qualquer modo, o stress traumático a que o perito Dr. J… se reporta, não é um stress de cariz psicológico que implica qualquer tipo de consciência, de medo ou de interacção com o meio ambiente (conforme foi referido pelo Dr. N…, médico cirurgião cardio-toráxico) e também não é uma consequência dos tratamentos a que se submeteu (até porque a vítima continuou a fazer anti-coagulação do sangue uma vez que o cadáver apresentava marcas abdominais, conforme foi referido pela médica Dra. K… supra identificada) mas um stress traumático, isto é, as lesões sofridas são de tal forma graves que é muito provável que as mesmas potenciem a morte natural por doença coronária, doença que a vítima, necessariamente, sofria muitos anos antes do acidente e que lhe poderia ter vindo a causar a morte mesmo que o acidente não tivesse ocorrido, não se ignorando que a vítima já tinha tido internamentos anteriores ao acidente por insuficiência cardíaca.
Sendo, em nossa opinião, irrelevante que a morte da vítima tenha sido devido a miocardiopatia isquémica ou, conforme referiu o Dr. N…, a enfarte agudo do miocárdio (facilmente detectável em pessoa viva através de uma angiografia, sendo quase indetectável através de um exame macroscópico e histológico de anatomia patológica de cadáver), pois sempre vingará a conclusão do Dr. J… de que é “muito provável que essa causa de morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima”, sendo irrelevante que tal stress traumático não se encontre catalogado como factor de risco das doenças coronárias, como o colesterol, a idade, o sexo, a hipertensão, a diabetes, face à gravidade das lesões sofridas pela vítima com o acidente que a deixaram em estado tetraplégico vegetativo até à data da morte.
(…)
Os factos não provados ficaram a dever-se à ausência de prova credível”.
*
Ouvida, cuidadosamente, a gravação dos depoimentos prestados em audiência relativos ao modo como ocorreu o acidente em apreço, designadamente os chamados à colação pela apelante (J…; K…; L…; M…; N…; G…; O…; P…; Q…; S… e T…) e ainda o teor dos documentos também invocados pela mesma e, intuindo, além do mais, das suas respostas, dos silêncios, das frases incompletas, das imprecisões da exposição e mesmo dos diversos níveis das vozes, que resultam bem audíveis, não se encontram razões que permitam concluir que a decisão sobre a matéria de facto, supra mencionada relativa ao factos n.ºs 4, 6, 7 e aos factos julgados não provados, enferme de erro e, menos ainda, de erro manifesto ou grosseiro.
Mas vejamos.
No que respeita ao facto n.º4, que tem a ver directamente com o apuramento do local do embate, certo é que não foram ouvidas quaisquer testemunhas presenciais do dito embate, à excepção do condutor do veículo atropelante – G…, o qual confirmou o seu sentido de marcha e declarou peremptoriamente que à ocasião “…estava a chover e havia pouca luz, bati no homenzinho que estava na minha faixa de rodagem, não o vi antes do embate, não travei, o embate foi com o pára-choques da frente esquerdo, espelho retrovisor esquerdo. O peão vinha do lado esquerdo da via, da igreja (atento o seu sentido de marcha)”.
Analisando o teor do croquis constante da participação de acidente de viação elaborado pela testemunha L…, militar da GNR que para tanto se deslocou ao local do acidente, e que por ele foi explicitado em julgamento como o elaborou, e atento ainda o teor do depoimento da testemunha M…, também militar da GNR que, com base nos elementos factuais que lhe foram fornecidos – danos observáveis no veículo, características desse mesmo veículo, local de imobilização do sinistrado e características pessoais do mesmo, local de imobilização de partes do veículo projectadas do veículo, local do acidente e suas características de piso, configuração e outras, características atmosféricas à ocasião do sinistro e demais elementos constantes do supra referido croquis -, fez o cálculo da velocidade de circulação do veículo à ocasião do embate, determinou o local provável desse embate, etc., tendo bem explicitou como o fez e quais os factos que teve em consideração e os resultados obtidos, é nossa segura convicção de que o local de embate não pode ter ocorrido como é apontado no supra referido croquis, ou seja, a 1,35m da berma do lado direito da via, atento o sentido de marcha do veículo, o qual era um BMW …, conforme declarações da testemunha G…, pois que, ao que sabemos, trata-se de um veículo com uma largura frontal de cerca de 1,70m/1,80m, sem contar com a largura dos respectivos espelhos retrovisores, pelo que dúvidas não restam de que a parte do veículo que embateu no peão foi a sua parte frontal esquerda (farol esquerdo) e esquerda (espelho retrovisor esquerdo), logo para o ponto de embate ter sido o indicado no dito croquis, o veículo teria de seguramente circular sobre o passeio do lado direito da via, atento o seu sentido de marcha, o que não corresponde à realidade, logo há que interpretar devidamente outros elementos de prova para apurar qual o local provável do embate do veículo no peão, atenta a faixa de rodagem.
Do global depoimento das referidas testemunhas e do teor dos documentos juntos aos autos, depois de devidamente analisados e criticados, é nossa segura convicção de que o peão provinha do lado esquerdo da via, atento o sentido … – … que era o sentido de marcha do veículo atropelante, fazia a travessia da dita Av.ª, ou seja, à ocasião em que foi embatido pelo veículo, o peão encontrava-se a atravessar a dita via, e aí foi embatido pelas partes do veículo acima referidas, em local situado seguramente, e atentas ainda as regras de experiência de vida, em local situado entre o eixo da dita via e a metade direita da hemi-faixa de rodagem por onde também circulava o veículo e, dentro desta.
Logo, tendo a 1.ª instância julgado provado que “E quando estava já a atravessar a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido … – …, foi colhido pela parte da frente do lado esquerdo do veículo “..-PB-..”, junto ao farol esquerdo, tendo o peão embatido no pára-brisas do veículo do lado esquerdo, atingindo o espelho retrovisor desse lado”, julgamos que tal corresponde à realidade e ao que resulta da prova feita nos autos, pelo que se decide manter inalterada a redacção do dito facto.
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No que concerne ao facto n.º 6 que se reporta à velocidade a que circularia o veículo à ocasião do atropelamento, certo é que inexiste a prova directa da velocidade de circulação do dito veículo à ocasião do embate no peão, sendo que apenas o condutor do veículo declarou em Tribunal, mas sem o mínimo de convicção como se infere da audição das suas declarações, de que circulava a 30 Km/hora.
Ora a 1.ª instância fundamentou a sua decisão no teor do relatório técnico de acidente de viação relativo à velocidade de circulação do veículo em questão, elaborado com recurso a um software, denominado “U…”, pela testemunha M…, militar da GNR, incumbido especificamente para tal apuramento.
Do depoimento isento e convincente da referida testemunha, a velocidade de embate foi calculada por simulação informática, como já se referiu acima, com base na projecção do peão, características pessoais desse mesmo peão e projecção do mesmo até ao ponto da sua imobilização após o embate, tendo ainda em consideração os pontos de colisão do veículo com o peão, características do veículo, da via, do tempo atmosférico, etc, o qual declarou que, depois de assim ter encontrado o provável ponto de embate - também calculado pelo computador – que, como já referimos, não coincide com o que consta do croquis no que respeita à sua relação com a largura da faixa de rodagem – mas que se situaria ainda a cerca de 4m antes do local assinalado no mesmo croquis, atento o sentido de marcha do veículo, tendo-se assim apurado que o veículo PB circularia, à ocasião do embate no peão, a uma velocidade calculada de 53,25 Km por hora.
É certo que a prova de tal facto – velocidade do veículo à ocasião do embate – como acima se referiu não é possível ser inferida por prova directa – testemunhal ou documental – todavia não nos repugna o recurso ao supra referido programa informático, atentas as explicações dadas em julgamento pela testemunha M…, uma vez que o mesmo, atentos os dados fácticos, aceites nos autos, e inseridos no mesmo, fazem com que, com recurso às leis da física relativas ao movimento, inércia, energia cinética, aceleração e massa, estudadas e comprovadas desde Newton, se aceite como válido e cientificamente comprovado, atento o tudo que demais ficou acima consignado, que à ocasião do embate a velocidade calculada do veículo era de cerca de 53,25 Km/hora.
Logo, julgamos que nenhuma censura nos merece a decisão do facto n.º 6 feita em 1.ª instância, que assim se mantem inalterado.
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No que respeita ao facto n.º7, relativo à existência de sinalização obrigatória de velocidade máxima existente à data no local do embate.
A 1.ª instância julgou provado que no local do acidente a velocidade está limitada por placas verticais, a 30 Km por hora. Ora do teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente, participação do acidente de viação, nada consta quanto a esse facto. Por igual modo, a testemunha L…, militar da GNR que para tanto se deslocou ao local do acidente e elaborou esse documento, referiu em julgamento que desconhecia a existência ou inexistência de tal sinalização. Todavia, a testemunha G…, condutor do veículo atropelante, declarou espontaneamente em julgamento que “…conheço aquela estrada muito bem, passo ali muitas vezes…” e perguntado se sabia que naquele local a velocidade máxima era limitada a 30 Km/hora, respondeu “…sei sim …”, e quanto à colocação da placa de sinalização respectiva, declarou que “… existe e já existia à altura …” e, mais declarou que entre o entroncamento pelo qual acedeu à Av.ª onde ocorreu o acidente e o local do mesmo passou pela dita placa de sinalização de trânsito, que todavia reconheceu que apenas a terá observado pessoalmente depois do acidente.
Finalmente, a testemunha M…, militar da GNR, declarou em julgamento que a velocidade máxima de circulação de veículos no local do acidente estava limitada por sinalização vertical a 30Km/hora, tendo mais explicitado a distância a que essa sinalização estava do local do acidente, fundamentando essa sua afirmação no teor do relatório do NICAF, relatório técnico do acidente que lhe foi fornecido.
Por último dir-se-á ainda que é absolutamente espúria a defesa agora apresentada pela ré seguradora quanto à regularidade da colocação da sinalização de proibição/limitação de velocidade máxima existente no local, já que como é sabido toda a defesa deve ser formulado no articulado próprio, ou seja, na contestação, e já que os autores, na sua p. inicial, alegaram expressamente que no local a velocidade máxima de circulação estava limitada por placas verticais a 30 Km/hora. Ora, se em sede de contestação a ré, ora apelante, não aceitou tal facto, por o desconhecer, certo é que também nada mais alegou sobre a alegada existência da dita sinalização vertical e nomeadamente sobre a regularidade da sua colocação, designadamente quanto à existência ou não de entroncamentos de acesso à Av.ª onde ocorreu o acidente entre a colocação da provada sinalização vertical de limitação de velocidade e o local do acidente, atento o sentido de marcha do veículo, logo essa tentativa de defesa excepcional agora pretendida é extemporânea e sem possibilidade de qualquer relevância.
Perante a global prova supra referida é nossa segura convicção de que na realidade, à ocasião do acidente, a velocidade máxima permitida estava limitada por sinalização por placa vertical a 30 Km/hora, pelo que não merece qualquer censura o facto n.º 7 assim julgado provado em 1.ª instância, devendo manter-se inalterado.
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Finalmente e com que respeita ao facto n.º 19, respeitante à causa da morte do sinistrado, pois que, está assente no facto n.º18 julgados provado em 1.ª instância e aceite por todas as partes dos autos, que: “Procedeu-se a autópsia, cujo relatório apresentou nas conclusões como causa de morte, o seguinte: “A informação recolhida, os achados necrópsicos e o resultado dos exames complementares de diagnóstico solicitados permitem afirmar que a morte de H… pode ter sido devida a miocardiopatia isquémica. Esta é causa de morte natural.” Mas, mais se julgou provado, sob o facto 19, agora em apreço, que “o perito que efectuou o relatório de autópsia, em esclarecimentos prestados em julgamento, acrescentado; “Sendo muito provável que essa causa de morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima.”
Ora, visto o teor do relatório da autópsia, o processo clínico do falecido e demais prova documental quanto à situação clínica do mesmo antes do acidente e ouvidos os depoimentos das testemunhas K… - médica especialista em ortopedia e perita de medicina legal; J… – médico especialista em medicina do trabalho e que realizou a autópsia H… e respectivo relatório junto aos autos, e N… – médico-cirurgião cardiotorácico, que não obstante terem tidos diversas aproximações do ponto de vista médico à situação em apreço, bem explicitaram as suas declarações que assim foram por nós bem entendidas, todavia, dúvidas não temos de que o que consta do ponto 19 da matéria de facto julgada provada em 1.ª instância corresponde exactamente à realidade.
Na verdade, a testemunha J… bem esclareceu em sede de julgamento a gravidade das lesões causadas ao falecido em consequência directa e necessária do atropelamento, nomeadamente das lesões crâneo-encefálicas e as suas consequências para a vítima, mais relatou o que observou na vítima aquando da autópsia, da perícia de anatomia patológica, da perícia tanatológica e ainda o que fez constar dos esclarecimentos escritos e complementares por si prestados “in casu”. Mais esclareceu quais as hipóteses por si colocadas como causa de morte em face, por exemplo à idade da vítima, a situação de ter estado acamado desde o atropelamento e até à morte, ou seja, cerca de 4 meses.
Em concreto, afirmou a referida testemunha que a vítima foi submetida, após o acidente, dado o seu estado de saúde e durante o período de evolução das lesões, a um enorme stress traumático que sobrecarregou (não sobrecarga mecânica decorrente de esforço físico, mas uma sobrecarga por libertação de uma série de hormonas (catelcolaminas, etc.) que podem ter determinado arritmias, ou seja, alterações da condução eléctrica cardíaca) o coração já se si doente, levando a arritmias ou a um espasmo de uma artéria coronária, que pode ter tido influência e/ou ter sido determinante da sua morte por cardiopatia isquémica.
Destarte, dúvidas não temos de que, na realidade, o perito que efectuou o relatório de autópsia, em esclarecimentos prestados em julgamento, ou seja, o Dr. J…, declarou e explicitou a afirmação que era muito provável que a causa de morte natural apontada no relatório da autópsia - a miocardiopatia isquémica - tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima.
A afirmação e motivação da mesma assim feita pelo perito que realizou a autópsia médico-legal é todavia apenas mais um elemento probatório, cuja força será abaixo livremente apreciada pelo tribunal, mormente aquando da análise do nexo causal entre o atropelamento e a morte de H…, considerando toda a demais prova existente no processo.
Logo, nenhuma censura nos merece o que consta do facto n.º 19, assim julgado provado em 1.ª instância, devendo manter-se inalterado m apreço.
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Assim, pelo que se deixa consignado, considerando ainda o teor do despacho de fundamentação da decisão que recaiu sobre a matéria de facto, o teor dos documentos juntos aos autos e o teor dos depoimentos prestados em julgamento e acima referidos, não se vislumbra que a decisão proferida em 1.ª instância sobre os factos n.ºs 4.º, 6.º, 7.º e 19.º da fundamentação de facto da decisão recorrida e impugnada no presente recurso enferme de erro e, muito menos, erro grosseiro ou manifesto, pelo que tais factos se mantêm inalterados.
Improcedem as respectivas conclusões da ré/apelante.
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1.4. – Da ampliação da matéria de facto (recurso da ré).
Finalmente defende a ré/apelante que devem ser aditados ao complexo de factos provados nos autos, os factos que alegou sob os art.ºs 34.º, 39.º, 41.º e 45.º da sua contestação, pois que tal resultou do teor de depoimentos de testemunhas que para tanto chama à colação, ou seja, que:
- Quando iniciou a travessia da via, H… transportava um guarda-chuva, aberto, que lhe tapava a cabeça e a face.
-H… irrompeu pela via repentinamente, sem antes se se certificar se havia quaisquer veículos a circular na mesma, limitando-se a abandonar o passeio e introduzir-se na via, iniciando a travessia sem previamente atentar no trânsito.
- H… conhecia bem o local.
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Ora, quanto aos dois primeiros factos que a ré pretende que sejam aditados dir-se-á que não foi feita nos autos a mínima prova segura, isenta e cabal da sua realidade. Na verdade, não foram ouvidas quaisquer testemunhas presenciais do momento do atropelamento e dos momentos que o antecederam. Por outro lado, a testemunha G…, condutor do veículo atropelante declarou em julgamento que não viu a vítima antes do embate, logo não sabe nem pode saber como é que o peão iniciou a travessia da via, nem o que transportava consigo, nomeadamente se levava o não algum guarda-chuva aberto.
Finalmente é manifestamente irrelevante na economia do apuramento da verdade material das circunstâncias em que eclodiu o acidente em apreço o saber-se se o peão atropelado conhecia bem ou não o local do acidente.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, por irrelevância ou ausência de prova, julgamos não ser de aditar os factos apontados pela ré/apelante ao complexo fáctico provado nos autos, que assim se mantêm inalterado.
Improcedem as respectivas conclusões da ré/apelante.
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1.5. – Da alegada errada apreciação da prova feita em 1.ª instância (recurso subordinado).
Pretende a interveniente/apelante que que julgue provado e consequentemente que “seja aditado ao elenco dos factos provados um ponto intercalar entre o 20 e 21, com o número 20-A do seguinte teor: “20-A - Na fracção de segundos que antecedeu o acidente, durante ele e nos meses de internamento que se lhe seguiram, a vítima sentiu dores e a iminência da morte, o que lhe causou, seguramente, a maior agonia, amargura e angústia.”
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Vendo o teor da decisão recorrida e o alegado pela ora apelante é evidente que a mesma não atentou que a 1.ª instância julgou não provado, além do mais, que: - “A fracção de segundos que antecedeu o acidente, durante ele e nos meses de internamento que se lhe seguiram, a vítima sentiu a iminência da morte, o que lhe causou, seguramente, a maior agonia, amargura e angústia”.
Tendo fundamentado essa sua decisão, escrevendo, além do mais, que: “(…) Os factos não provados ficaram a dever-se à ausência de prova credível”.
E assim, temos de concluir que a apelante pretende é que ora se julgue provado o supra referido facto, julgado não provado em 1.ª instância.
A apelante para tanto, chama à colação o depoimento prestado pela testemunha
K… e o teor da História Clínica do falecido junta aos autos, defendendo ainda que se está perante uma “presunção hominis”.
Mas, vejamos.
Está assente nos auto que:
Em consequência do atropelamento, o pai dos autores, H…, sofreu:
- traumatismo crânio-encefálico com lesão axonal difusa, com múltiplos focos de hemorragia subaracnóideia;
- hemorragia intraventricular;
- traumatismo da face com fractura dos ossos próprios do nariz e da parede anterior do seio maxilar direito;
- traumatismo torácico com fractura dos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º arcos costais à esquerda e,
- pneumotórax bilateral.
Do local do acidente foi imediatamente transportado para o S.U. do Hospital …, no Porto, onde foi internado na U.C.I.P.
Foi, então, ali submetido a traqueostomia para suporte ventilatório, tendo-se mantido, durante o internamento nesta Unidade Hospitalar em estado estuporoso, com várias intercorrências respiratórias infecciosas, com agravamento progressivo.
Permaneceu ali internado, em estado vegetativo e tetraplégico, até ao dia 16.12.2014, altura em que foi transferido para a I…, em Paços de Ferreira, para lhe serem prestados cuidados continuados, nunca tendo registado qualquer melhoria no seu estado de saúde.
H… faleceu no dia 02.03.2015.
Estes factos decorrem do teor dos documentos clínicos juntos aos autos – Relatório de Urgência do Hospital …; Fichas Clínicas de Admissão e Alta; Avaliação Inicial na U.C.I.N.; respectivo Processo Clínico da U.C.I.N.; do Serviço de Neurocirurgia do Hospital …; Relatório da Alta do Hospital …; Relatório da Autópsia Médico – Legal e Relatórios de Exames complementares.
Em suma, do complexo fáctico assim provado nos autos resulta que o falecido H…, em consequência directa e necessária do embate do veículo conduzido pelo segurado da ré, sofreu várias e muito graves lesões, nomeadamente, lesões crâneo-encefálicas, o que implicou a imediata perda de consciência, porque o cérebro foi gravemente atingido, não a vindo a recuperar até à ocasião da sua morte.
Na verdade, dos registos clínicos juntos aos autos decorre que o lesado, em consequência das lesões sofridas aquando do embate do veículo ficou, até à sua morte, em estado estuporoso. Ora, como bem foi informado nos autos, atento os depoimentos dos diversos clínicos ouvidos, o estado estuporoso é, em suma, um estádio pré-comatoso, atento o grau da perda de consciência, é um estado em que há inconsciência parcial com suspensão da actividade física e psíquica e que é caracterizado por imobilidade do rosto, olhar sem vida e sem expressão, silêncio obstinado e recusa de alimentos. É uma situação intermédia entre a obnubilação e o coma.
É o estado de inconsciência imediatamente anterior ao coma, sendo que este último estado também apresenta vários níveis, contudo neste estado, inexiste qualquer resposta a estímulos exteriores
In casu” em conforme decorre dos depoimentos das testemunhas K… e J…, o lesado H… apenas reagia (o que totalmente diverso de “sentir dor”, já que o actual conhecimento médico não pode assegurar se tal reacção é consciente ou meramente física/reflexa) a estímulos dolorosos e vigorosos, todavia, não existe nos autos qualquer evidência mínima de que o lesado tinha a mínima consciência, ou ainda que subtil consciência, do seu ser, e consequentemente do seu estado de saúde e aproximação da morte.
Finalmente, sempre se dirá ainda que a interveniente/apelante chama à colação em defesa dos seus intentos o recurso “in casu” a presunção hominis.
Ora, como é sabido, as máximas ou regras da experiência da vida (Erfahrungssätze) são afirmações genéricas de facto - são juízos gerais (de facto) - situadas no domínio da questão de facto, que funcionam como premissas maiores das presunções simples, notórias ou não notórias - se forem notórias o juiz conhecê-las-á ou se socorrerá dos meios fáceis e acessíveis ao seu conhecimento, se o não forem serão obtidas por intermédio do processo, maxime, por intermédio dos peritos -, que procedem mediata ou imediatamente da experiência, cfr. Castro Mendes, in “Do conceito de prova em processo civil”, pág. 644.
Trata-se, assim, de juízos de carácter geral formados sobre a observação da vida de todos os dias, que permitem ao juiz apreender o significado, a atendibilidade e a eficácia de uma prova. São critérios generalizantes e tipificados de inferência factual.
Ora, “in casu” é óbvio de que inexiste qualquer regra ou experiência da vida que nos permita aceitar como verdadeiro que alguém que sofreu as graves lesões crâneo-encefálicas que o lesado em apreço sofreu, em consequência das quais perdeu a consciência e entrou em estado estuporoso que se manteve até à data da sua morte, teve a mínima consciência do acidente/atropelamento que o vitimou, tinha a mínima consciência de si como ser e ainda que sentiu a iminência da morte. Aliás nem a própria medicina pode assegurar se alguém em estado estuporoso, ou comatoso, ou seja, que apresenta grandes áreas nos dois lados do cérebro ou áreas específicas do cérebro, responsáveis pela manutenção da consciência, seriamente afectadas, mantém alguma ligação, ainda que subtil com a realidade que a rodeia.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos por falta de qualquer mínima evidência da realidade do facto julgado não provado em 1.ª instância, e ora em análise, mereça ser alterado para provado (ou aditado, no dizer da apelante), por manifesto erro na apreciação da prova, pelo que se mantém inalterada a decisão recorrida.
Improcedem as respectivas conclusões da interveniente/apelante.
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2.ª questão – Da responsabilidade na eclosão do acidente (recurso da ré seguradora).
A 1.ª instância decidiu, face à factologia apurada nos autos, que o condutor do veículo PB, segurado da ré, foi o único e exclusivo causador do acidente em apreço nos autos, recaindo sobre a ré seguradora a responsabilidade de indemnizar os autores e a interveniente pelos danos sofridos em consequência de tal sinistro.
Para tanto, considerou a 1.ª instância que: “(…) Importa, pois, averiguar se é possível imputar o facto ao agente, ou melhor, se o condutor do veículo “PB”, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o acidente ocorreu podia e devia ter agido de forma diferente, ou seja, se actuou com a diligência que um bom pai de família - o homem normal teria em face do condicionalismo do caso concreto - cfr. Ac. do S.T.J., de 15.06.88, B.M.J., n.º 378, pág. 677.
(…)
Prescreve o art.º 25.º que o condutor deve moderar especialmente a velocidade: (…) c) nas localidades ou vias marginadas por edificações, referindo o art.º 27.º que a velocidade máxima de circulação permitida para um veículo ligeiro de passageiros dentro das localidades é de 50 km/h.
Sendo ainda de realçar que no local em apreço a velocidade máxima de circulação era de 30 Km/h, atenta a sinalização vertical aí existente.
Ora, é manifesto que o condutor do veículo “PB” circulava a uma velocidade superior à legalmente permitida para o local, atenta a referida sinalização vertical e atentas as condições de luminosidade e atmosféricas que se faziam sentir, que lhe impunham especiais cuidados que aquele condutor não teve, não tendo avaliado o perigo, não tendo avistado o peão a atravessar a estrada, tendo todas as condições para o fazer, já que circulava numa recta, com os médios ligados.
Contudo, inexplicavelmente, não teve qualquer reacção ou manobra de recurso para se desviar do peão, só se tendo apercebido da sua presença após o embate.
O peão foi atropelado a mais de metade da via, sendo que a mesma tinha uma largura de 7,20 metros, sendo certo que a vítima já tinha 83 anos de idade.
Ora, era exigível ao condutor do veículo “PB” que circulasse com atenção aos demais utentes da via, nos quais se englobam os peões, que avistasse o peão que atravessava a estrada, encontrando-se a efectuar a sua travessia na hemi-faixa de rodagem por onde o condutor do “PB” circulava, o que não ocorreu, circulando desatendo e com velocidade excessiva.
Assim, o condutor do veículo “PB” agiu com negligência, inconsideração, falta de cuidado e atenção, desrespeitando as elementares regras de circulação, nomeadamente as previstas nos art.º 3.º, n.º 2, 24.º do Código da Estrada.
Ora, atendendo ao circunstancialismo em que se deu o acidente dado como provado, havermos de concluir de forma inequívoca que o condutor do veículo circulava em clara violação daquelas normas estradais, com evidente perigo (infelizmente, concretizado) para o peão que no momento atravessava a estrada, agindo, aquele condutor, em excesso de velocidade, desadequada para o local, com manifesta falta de atenção e de prudência.
No que se reporta à conduta da vítima, sempre se dirá que o modo como esta efectuou a travessia da estrada não contribuiu para o atropelamento da mesma, pois embora tivesse violado o art.º 101.º, n.º 3 do Código da Estrada, uma vez que existia uma passadeira destinada à travessia de peões a cerca de 40 metros do local do acidente, tal contra-ordenação não foi causa do atropelamento nem sequer contribuiu para a sua ocorrência.
Por outro lado, resulta da factualidade provada que a vítima H… já se encontrava a efectuar a travessia na hemi-faixa de rodagem do condutor do veículo “PB” quando este o atropela com o canto esquerdo do veículo, ou seja, quando a vítima está em plena travessia, tendo o mesmo 83 anos de idade, pelo que o ofendido não surgiu, conforme se refere na sentença proferida no respectivo processo-crime n.º 64/15.2GAPRD que correu termos pela Instância Local de Paredes - Secção Criminal – J2 da Comarca de Porto Este (cfr. fls. 16 v. e ss.), “no meio da faixa de rodagem de forma inusitada e imprevisível para o condutor que tinha acabado de passar por uma passadeira e apenas podia circular no local a não mais de 30 Km/h”, sendo irrelevante, face a tal factualidade, que não se tivesse apurado se H… atravessou depois de se ter certificado de que não circulava veículo, avistável, pela referida avenida em ambos os sentidos.
Afigura-se-nos que o acidente não ocorreu pela forma como a vítima atravessou a estrada ou pelo local em que efectuou a travessia, mas por causa da velocidade excessiva, desadequada e pela condução desatenta do condutor do referido veículo, pelo que não pode ser atribuída qualquer responsabilidade à vítima na ocorrência do acidente (…)”.
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Estamos no domínio da responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos ou aquiliana, cujas regras básicas, relevantes no caso, decorrem dos art.ºs 483º, 496.º, 562.º, 563.º e 566.º, do C.Civil, e que a nossa Doutrina e Jurisprudência costumam resumir nos inerentes pressupostos de facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade, integrando-os na causa de pedir.
Pois, como se sabe, a responsabilidade civil extracontratual está regulada nos art.ºs 483.º e segs. do C.Civil, e é pacificamente aceite que para haver responsabilidade por factos ilícitos, com a consequente obrigação de indemnizar, é necessário que se verifiquem os pressupostos seguintes: i) um facto voluntário (ou omissão) do agente; ii) ilicitude desse facto; iii) nexo de imputação do facto ao lesante, a título de dolo ou mera culpa; iv) a verificação de um dano; v) nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto voluntário do agente, em regra consiste em acção, mas pode consistir em omissão, cfr. art.º 486.º do C.Civil. A ilicitude do facto pressupõe uma acção ou omissão controlável pela vontade, violadora de direitos subjectivos relativos ou absolutos de outrem. Também como é sabido, culpa “lato sensu” exprime um juízo de reprovação pessoal da acção ou da omissão do agente que podia e devia ter agido de outro modo, e é susceptível de assumir as vertentes de dolo ou de negligência, enquanto a culpa “stricto sensu” ou mera negligência traduz-se, grosso modo, na omissão pelo agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, por seu turno, as vertentes de consciente ou inconsciente, ou seja, no primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação; no segundo, o agente, embora o pudesse e devesse prever, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.
Ou seja, aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente os direitos de outrem, constitui-se na obrigação de indemnizar o lesado, só existe obrigação de indemnizar quando haja culpa do agente, fora disso, tal obrigação só existe nos casos taxativos e estipulados no art.º 483.º n.ºs 1 e 2 do C.Civil.
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, cfr. art.º 487.º n.º 2 do C.Civil. O critério legal de apreciação da culpa é, pois, abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do evento em causa, por referência a um agente normal. Isto é, a culpa deve ser determinada e apreciada segundo a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias concretas de cada caso, (a diligência relevante para a determinação da culpa é a que um homem normal, “médio”, teria em face do condicionalismo próprio do caso concreto), salvo se existir um qualquer outro critério legal, nos termos do art.º 487.º n.º 2 do C.Civil.
Ao lesado incumbe provar a culpa do autor da lesão salvo, se a seu favor tiver alguma presunção legal.
Finalmente têm também obrigação de indemnizar aqueles que violarem qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. A violação dessas disposições determina a existência de culpa por parte do agente, salvo se ele provar que a não teve.
É isto que sucede com as regras de trânsito.
In casu” o acidente em apreço ocorreu a 17.10.2014, ou seja, no âmbito de vigência do C. Estrada aprovado pela Lei n.º 72/2013, de 3 de Setembro.
De harmonia com o disposto no art.º 3.º, n.º2 do C. Estrada, aplicável, além do mais, à condução automóvel, as pessoas deverem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis.
E segundo o art.º 13.º n.º 1 do C. Estrada, o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes.
De harmonia com o disposto no art.º 24.º do C. Estrada, “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
De harmonia com o disposto no art.º 25.º n.º1 als. c), d) e e) do C. Estrada, a velocidade deve ser especialmente moderada: nas localidades ou vias marginadas por edificações; nas zonas de coexistência; à aproximação de utilizadores vulneráveis.
Finalmente, segundo o disposto no art.º 27.º do C. Estrada os condutores de automóveis ligeiros de passageiros, sem prejuízo de limites inferiores que lhes sejam impostos, não podem exceder, dentro das localidades, como velocidade instantânea, 50 Km/hora.
Por seu turno, dispõe o art.º 99.º n.ºs 1 e 2 al. a) do C. Estrada que os peões que devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinadas, ou na sua falta pelas berma, podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: quando efectuem o seu atravessamento.
E segundo o disposto no art.º 101.º n.ºs 1, 2 e 3 do C. Estrada, os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente e, o atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível. Sendo ainda certo que os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.
Como é sabido culpa “lato sensu” exprime um juízo de reprovação pessoal da acção ou da omissão do agente que podia e devia ter agido de outro modo, e é susceptível de assumir as vertentes de dolo ou de negligência, enquanto a culpa “stricto sensu” ou mera negligência traduz-se, grosso modo, na omissão pelo agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, por seu turno, as vertentes de consciente ou inconsciente, ou seja, no primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação; no segundo, o agente, embora o pudesse e devesse prever, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.
Pelo que igualmente integra a existência de culpa a falta de destreza, a inconsideração ou a negligência. Sendo que há falta de destreza sempre que é praticado um acto que implica uma inabilidade material ou uma falta de cuidado na maneira de manejar os instrumentos de condução. Há inconsideração sempre que há falta de atenção, falta daquele cuidado ou daquelas precauções que o dever geral de previdência aconselham e, que o agente pode e deve ter. E há negligência sempre que há falta de cuidado em se prever o que se devia prever ou, tendo-se previsto, não se tomaram as precauções devidas a fim de ser evitado o resultado.
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No que concerne às circunstâncias em que ocorreu o acidente em apreço, está provado nos autos que:
No dia 17.10.2014, cerca das 19h35, o veículo ligeiro de passageiros ..-PB-.., conduzido pelo proprietário, G…, circulava na rua …, em … – Paredes, no sentido … –….
H… pretendia atravessar a Avenida … da esquerda para a direita, atento o sentido … – …, para esse efeito, iniciou a travessia daquela via, a 40 metros do local da passadeira destinada à travessia de peões, devidamente assinalada com sinalização vertical e horizontal, e quando estava já a atravessar a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido … – …, foi colhido pela parte da frente do lado esquerdo do veículo ..-PB-.., junto ao farol esquerdo, tendo o peão embatido no pára-brisas do veículo do lado esquerdo, atingindo o espelho retrovisor desse lado, após o que foi projectado para a berma do lado esquerdo da Avenida …, atento o sentido do veículo “PB”, onde ficou prostrado no solo a 0,95 cms da referida berma, juntamente com o retrovisor esquerdo do veículo.
A faixa de rodagem tem uma largura de 7,20m.
O condutor do veículo “PB” circulava a uma velocidade calculada de 53,25 Km por hora e circulava com as luzes médias do seu veículo ligadas.
A velocidade naquele local está limitada por placas verticais de 30 Km por hora.
O local do embate desenha-se em linha recta, em sentido descendente, atento o sentido do veículo “..-PB-..” e com mais de 50 metros de extensão.
Quando ocorreu o embate era de noite, chovia e o piso estava escorregadio, pelo facto de ser em paralelepípedo.
O condutor do veículo ..-PB-.. acabou por imobilizar o veículo que conduzia a mais de 25 metros do local onde ocorreu o atropelamento.
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Perante este complexo fáctico é nossa segura convicção de que o acidente de viação em apreço, tal como grande parte de sinistros idênticos reveste-se de manifesta complexidade, pois que na sua eclosão concorreram diversas circunstâncias pessoais, de tempo e lugar e, fundamentalmente leis da física, maxime, as leis do movimento, velocidade e inércia dos corpos. Pelo que tudo tem e deve ser ponderado, desde que conste dos factos provados e à luz das normas legais respectivas.
E assim, tendo em consideração todos esses factores e o complexo fáctico provado nos autos, julgamos que a apreciação feita em 1.ª instância de todas as circunstâncias factuais provadas nos autos e que originaram o acidente em apreço pecará por ser um pouco simplista e pouco criteriosa.
Senão vejamos, pois que como se escreveu no Ac. do STJ de 17.10.2019, in ww.dgsi.pt, “O acidente de viação não é uma estática mas uma dinâmica, daí que os factos adquiridos devam ser interpretados numa perspectiva critica para se apurar, seleccionar, surpreender aqueles que tiveram a virtualidade de, só por si, desencadearem todo o nexo causal e necessário ao evento”.
Perante os factos provados nos autos, dúvidas não restam de que o proprietário e condutor do veículo PB – ligeiro de passageiros – G… à ocasião do atropelamento seguia absolutamente distraído, sem o mínimo de atenção à via por onde circulava e aos demais utentes da mesma, razão pela qual não viu o peão que se apresentou à frente do seu veículo fazendo o atravessamento da via da sua esquerda para a direita.
O comportamento assim evidenciado pelo condutor do veículo automóvel é de grave inconsideração, e traduziu-se na falta de atenção, na falta daquele cuidado ou daquelas precauções que o dever geral de previdência aconselham e, que o mesmo podia e devia ter tido pois que manejava/conduzia um veículo automóvel por uma via pública, dentro de uma localidade, numa via que era marginada por diversas edificações, entre elas o …, era de noite, chovia e o piso estava escorregadio, logo era expectável a presença quer de outros veículos na via, quer de peões a atravessar a mesma e, consequentemente da eventual necessidade de manejar os instrumentos de condução de forma hábil e atempada a fim de evitar qualquer acidente. Todavia, e como o próprio admitiu em julgamento, não viu o peão antes do embate, sendo que o mesmo se apresentou à frente do seu veículo, a atravessar a via, da sua esquerda para a direita, numa zona da via, cuja faixa de rodagem tinha uma largura de 7,20m, que se desenvolvia em recta, em sentido descendente, atento o seu sentido de marcha, e com mais de 50 metros de extensão, considerando ainda que o veículo PB circulava à ocasião com as luzes médias ligadas, sendo ainda de admitir, apesar de não ter resultado provado, que a via no local estaria dotada de iluminação pública, atento a sua localização numa localidade.
Mas por outro lado, ainda resultou provado que à ocasião do acidente o condutor do veículo PB, G…, para além da manifesta desatenção/inconsideração com que conduzia o referido veículo pela via pública, fazia-o imprimindo ao mesmo uma velocidade de mais de 50Km/hora, em local onde a velocidade máxima permitida estava limitada, por sinalização vertical, a 30Km/hora.
Assim, tendo presente que segundo o preceituado no art.º 487.º n.º 2 do C.Civil, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, ou seja, o critério legal de apreciação da culpa é um critério abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal, pela análise dos factos provados, é para nós evidente que o condutor do veículo PB e segurado da ré, à ocasião do atropelamento, conduzia o seu veículo absolutamente desatento à via por onde circulava, ou seja, conduzia com manifesta inconsideração pelos demais utentes dessa via, o que, só por si integra a existência de culpa na eclosão do acidente em apreço e que foi determinante da eclosão do mesmo, pois que que lhe era exigível e possível ter visto o peão a atravessar a faixa de rodagem e, pelo menos travar e/ou imobilizar o veículo, diminuindo a força do impacto do veículo no peão se não lograsse imobilizar o veículo sem embater no peão, ou então realizar uma manobra de evasiva de recurso, a fim de tentar evitar ou evitar o embate. Mais se provou ainda que à ocasião do atropelamento o condutor do veículo PB circulava em violação das normas estradais contidas nos art.ºs 24,º, 25.º n.º1 als. c), d) e e) e 27.º do C. Estrada, circulando em manifesta situação objectiva de excesso de velocidade, sendo que, como é sabido, em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de viação deve atribuir-se culpa na sua produção, por presunção judicial, ao condutor que violou as regras de direito estradal, desde que ele não logre demonstrar a existência de quaisquer circunstâncias anormais que tivessem determinado tal facto.
Ora, tudo o que assim resulta provado quanto à conduta estradal do condutor do veículo PB, consiste num acto ilícito e deveras culposo, determinante da eclosão do acidente em apreço.
Todavia não podemos olvidar o que resultou provado quanto à conduta do próprio peão, que quanto a nós também revelou culposa, não só porque violadora de regras estradais, mas também por evidenciar negligência na sua actuação, considerando as concretas circunstâncias da dinâmica do atropelamento em causa, por referência a um peão normal, e é nossa segura convicção de que a conduta do lesado foi concorrente para a eclosão do acidente e respectivos danos.
Na verdade, também o peão, antes de iniciar a travessia da via como o estava fazendo à ocasião do atropelamento, podia e devia ter visto a aproximação do veículo automóvel PB, que manifestamente era para ele visível, atenta a configuração da via no local e o facto de circular com as luzes, nomeadamente as dianteiras, acesas na posição de médios. Por outro lado, era ainda exigível ao referido peão que ao ver/ou ter visto a aproximação do veículo automóvel se certificasse da velocidade a que o mesmo circulava para poder concluir se teria tempo de fazer a travessia da via, na dianteira do veículo, em plena segurança, nomeadamente para a sua vida e/ou integridade física. E finalmente, também se não pode olvidar que os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50m e, que no caso, resultou provado que o peão, dispondo a 40 metros do local onde realizou a travessia da via e, onde depois veio a ocorrer o seu atropelamento, de uma passadeira destinada à travessia de peões, devidamente assinalada com sinalização vertical e horizontal, voluntariamente decidiu não utilizar para realizar a travessia da via.
Pelo que resulta igualmente indubitável a conclusão de que o peão teve uma conduta igualmente causal do acidente, a título de culpa.
Pelo que como se deixou expresso no Ac. do STJ de 3.02.2011, in www.dgsi.ptse ambos os intervenientes num acidente de viação violaram regras de trânsito destinadas a proteger terceiros em circunstâncias em que era exigível que tivessem agido de outra forma, evitando o resultado danoso, há concorrência de culpas”.
Segundo o disposto no art.º 505.º C.Civil: “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º, só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
Por seu turno, preceitua o art.º 570.º do C.Civil: “1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar”.
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Não obstante se julgar que “in casu” se verifica concorrência de culpas entre o condutor do veículo PB e o peão atropelado na eclosão do acidente em apreço, certo é que manifestamente diverso, em grandeza, o grau de culpa resultante da provada conduta de cada um deles.
Assim há que operar, em face dos factos provados nos autos, a concreta repartição de culpas, pois que como decorre do n.º1 do art.º 483.º n.º1 do C.Civil, havendo culpa de ambos os intervenientes no acidente, cada um deles responderá pelos danos correspondentes ao facto que praticou. Ou seja, como refere Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pág. 695) porque “à culpa de cada um dos condutores (ou intervenientes) corresponde a culpa de cada um dos lesados, a respectiva indemnização terá de ser fixada nos termos do art.º 570.º do Código Civil”.
Ora, ponderando as circunstâncias do caso concreto, que resultam dos factos provados nos autos, relativas às circunstâncias e dinâmica do atropelamento. acima já descritas e analisadas criticamente pelo que nos dispensamos de aqui o voltar a fazer, dúvidas não nos restam de que ocorre um muito maior grau de culpa do condutor do veículo automóvel/segurado da ré na produção para a ocorrência do evento de colisão. Logo, atendendo ao disposto no art.º 570.º n.º1 do C. Civil e à gravidade da contribuição de cada um dos intervenientes no acidente para a produção do facto danoso e nas consequências que dele resultaram, mostra-se adequado fixar essa contribuição, em 25% para o peão, H… e em 75% para o condutor do veículo e segurado pela ré, G….
Pelo que, em conclusão, e divergindo da decisão alcançada em 1.ª instância, decide-se que a eclosão do acidente em apreço nos autos resultou da concorrência de culpas entre o condutor do veículo PB e o peão atropelado, cuja repartição se reputa como justa, proporcional e adequada, na medida de 25% para o peão, H… e de 75% para o condutor do veículo e segurado pela ré, G….
E assim, procedem parcialmente as respectivas conclusões da ré/apelante.
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3.ª questão – Do nexo de causalidade entre o acidente e a morte (recurso da ré).
Na decisão recorrida acabou por se julgar provado que a morte do peão H… resultou directa e necessáriamente das lesões que lhe foram causadas aquando do seu atropelamento.
Para tanto, escreveu-se na decisão recorrida que: “(…) No que se reporta à causa da morte, relevou-se o relatório de autópsia, junto a fls. 36 a 39, elaborado pelo Dr. J… e esclarecimentos, juntos a fls. 432, 471 a 472 ou 478 a 479, que afastou a hipótese de pneumopatia como causa da morte e relatório de anatomia patológica forense, junto a fls. 39v., que evidenciou a existência de lesões graves de aterosclerose, com extensa calcificação e obstrução até cerca de 70 a 80% das artérias.
Assim, relevou-se o relatório de autópsia que apresentou nas conclusões como causa de morte, o seguinte: “A informação recolhida, os achados necrópsicos e o resultado dos exames complementares de diagnóstico solicitados permitem afirmar que a morte de H… pode ter sido devida a miocardiopatia isquémica. Esta, é causa de morte natural.”
Tendo o referido perito que efectuou o relatório de autópsia, Dr. J…, em esclarecimentos prestados em julgamento, acrescentado à conclusão do relatório de autópsia, penitenciando-se por não o ter feito antes, que; “Sendo muito provável que essa causa de morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima.”. O referido perito alicerçou a sua conclusão na idade avançada da vítima (83 anos de idade), na extrema gravidade das lesões sofridas por esta após o acidente - tendo ficado em estado tetraplégico vegetativo durante quatro meses por traumatismo craniano extremamente grave - e foi neste estado que a vítima faleceu, sendo que todo este stress traumático associado a estas lesões gravíssimas, com muita probabilidade, agravou uma situação de patologia coronária prévia.
Não se ignorando que a vítima encontrava-se em estado estuporoso (cfr. fls. 170 a 387), o que, de acordo com a própria médica ortopedista, especialista em Medicina Legal, Dra. K…, significa que a mesma não comunica e reage a poucos estímulos, mas reage à dor, embora não se saiba se a vítima se encontra ou não em sofrimento, o que se diferencia do estado de coma em que a vítima não reage a nada.
De qualquer modo, o stress traumático a que o perito Dr. J… se reporta, não é um stress de cariz psicológico que implica qualquer tipo de consciência, de medo ou de interacção com o meio ambiente (conforme foi referido pelo Dr. N…, médico cirurgião cardio-toráxico) e também não é uma consequência dos tratamentos a que se submeteu (até porque a vítima continuou a fazer anti-coagulação do sangue uma vez que o cadáver apresentava marcas abdominais, conforme foi referido pela médica Dra. K… supra identificada) mas um stress traumático, isto é, as lesões sofridas são de tal forma graves que é muito provável que as mesmas potenciem a morte natural por doença coronária, doença que a vítima, necessariamente, sofria muitos anos antes do acidente e que lhe poderia ter vindo a causar a morte mesmo que o acidente não tivesse ocorrido, não se ignorando que a vítima já tinha tido internamentos anteriores ao acidente por insuficiência cardíaca.
Sendo, em nossa opinião, irrelevante que a morte da vítima tenha sido devido a miocardiopatia isquémica ou, conforme referiu o Dr. N…, a enfarte agudo do miocárdio (facilmente detectável em pessoa viva através de uma angiografia, sendo quase indetectável através de um exame macroscópico e histológico de anatomia patológica de cadáver), pois sempre vingará a conclusão do Dr. J… de que é “muito provável que essa causa de morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima”, sendo irrelevante que tal stress traumático não se encontre catalogado como factor de risco das doenças coronárias, como o colesterol, a idade, o sexo, a hipertensão, a diabetes, face à gravidade das lesões sofridas pela vítima com o acidente que a deixaram em estado tetraplégico vegetativo até à data da morte.
(…)
Cumpre, no entanto, apreciar, se as lesões causadas à vítima, por força da actuação negligente do segurado da ré, foram causais da morte de H…, pai dos autores e da interveniente, ou se esta ocorreu por morte natural.
Vejamos.
O perito concluiu no relatório de autópsia, como causa de morte, o seguinte: “A informação recolhida, os achados necrópsicos e o resultado dos exames complementares de diagnóstico solicitados permitem afirmar que a morte de H… pode ter sido devida a miocardiopatia isquémica. Esta é causa de morte natural.”
Tendo o perito que efectuou o relatório de autópsia, em esclarecimentos prestados em julgamento, acrescentado: “Sendo muito provável que essa causa de morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima.” (cfr. pontos 18 e 19 da factualidade provada).
Assim, embora a vítima tenha falecido por morte natural, sendo muito provável que tal morte natural tenha sido agravada pelo stress traumático sofrido pela vítima, entendemos que se pode estabelecer um nexo de causalidade entre a actuação negligente do segurado da ré, que provocou as graves lesões sofridas pela vítima que o deixaram em estado tetraplégico vegetativo até à data da sua morte e a morte natural propriamente dita (…)”.
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A ré seguradora/apelante defende que a morte de H… não foi consequência directa e necessária do acidente em apreço nos autos, uma vez que, conforme consta do relatório da autópsia, a morte do mesmo resultou apenas de causa natural, ou seja, de miocardiopatia isquémica.
Ou seja, no entender da ré/seguradora as muitas e graves lesões causadas a H…, em consequência directa e necessária do atropelamento em apreço - traumatismo crânio-encefálico com lesão axonal difusa, com múltiplos focos de hemorragia subaracnóideia; - hemorragia intraventricular; - traumatismo da face com fractura dos ossos próprios do nariz e da parede anterior do seio maxilar direito; - traumatismo torácico com fractura dos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º arcos costais à esquerda e - pneumotórax bilateral – que o deixaram tetraplégico e em estado estuporoso - e os necessários tratamentos e procedimentos clínicos/hospitalares que tais lesões demandaram para manter a vítima viva e minimamente estável, foram absolutamente inócuas na morte que lhe sobreveio cerca de quatro meses após o atropelamento, sem que entretanto tenha havia cura ou, pelo menos, uma qualquer melhoria no estado geral de saúde de H… !!!!?
Ora, é para nós evidente que assim não pode ter sido.
Mas vejamos.
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Como é sabido a indemnização reporta-se aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, mas aplicável em geral, a lei reconduz a causalidade à probabilidade, afastando a ideia de que qualquer condição é causa do dano, consagrando a concepção da causalidade adequada. Assim, decorre do preceituado no art.º 563º do C.Civil, não bastar que o evento tenha produzido certo efeito para que, de um ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele, antes sendo necessário que o primeiro seja uma causa provável ou adequada do segundo.
Mas como é também sabido, no processo causal conducente a uma situação de dano concorrem múltiplas circunstâncias, umas que se não tivessem ocorrido ela não teria eclodido, e outras que, mesmo não verificadas, não excluiriam a sua ocorrência. Pelo que não basta para que se verifique o aludido nexo de causalidade adequada que a acção ou omissão do agente tenha sido “conditio sine qua non” do dano, exigindo-se que ela seja, em abstracto, adequada a causá-lo, isto é, exige-se que a acção ou a omissão do agente seja uma das condições concretas do evento e que, em abstracto, seja adequada ou apropriada ao seu desencadeamento.
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In casu” vendo o teor de toda, e muita, documentação clínica e médico-legal relativa ao falecido H… e tendo presente tudo o que foi relatado e explicitado nos autos pelos clínicos ouvidos – K… - médica especialista em ortopedia e perita de medicina legal; J… – médico especialista em medicina do trabalho e que realizou a autópsia H… e elaborou o respectivo relatório junto aos autos, e N… – médico-cirurgião cardiotorácico – relativamente ao estado de saúde do falecido antes do atropelamento, às graves lesões por ele sofridas em consequência directa e necessária do sinistro e às vicissitudes da globalidade de toda essa situação e a sua relevância para a morte que veio a ocorrer cerca de 4 meses depois do atropelamento, somos de evidenciar, sem olvidar os seguinte factos resultantes da global prova produzida nos autos:
- H… anteriormente ao acidente em apreço era pessoa autónoma, apresentando no seu historial clínico hipertensão arterial, doença arterial periférica (estenose femoral 60-70% - causadas por lesões graves de aterosclerose, com extensa calcificação e obstrução até cerca de 70 a 80% da área da secção do lúmen do órgão cardíaco), tendo por tal razão sido observado para eventual cirurgia vascular. Já havia sido observado no Serviço de Urgência do Hospital V… em Abril de 2014 por insuficiência cardíaca congestiva. Fazia medicação habitual com AAS, Ramipril, Furosemida;
- H… foi vítima de atropelamento no dia 17.10.2014 com projecção de cerca de 6 metros, foi estabilizado no local pela VMER, avaliado em Glasgow 5 pelo que foi de imediato sedoanalgesiado e submetido a EOT, apresentava também a vítima bradicardia grava, sem resposta à atropina, pelo que lhe foi colocado um PM (pacemaker) externo;
- de seguida a vítima foi levada para o Hospital … onde deu entrada como doente politraumatizado, TCE com lesão axonal difusa, comprovada por RMN, com múltiplos focos de HSA + hemorragia intraventricular, traumatismo da face com fractura dos ossos próprios do nariz e da parede anterior do seio maxilar direito + traumatismo torácico com fractura das 4.ª, 5.ª, 6.ª e 7.ª costelas esquerdas, pneumotórax bilateral resolvido. Teve necessidade de realização de traqueostomia para suporte ventilatório;
- H… foi depois transferido para a UCI Neurocríticos onde se manteve até 5.11.2014, ocasião em que foi transferido para a UCNC Intermédios, mantendo-se em estado estuposo – (Glasgow 10 (abre os olhos espontaneamente, não verbaliza, localiza a dor, mas não cumpre ordens) - mas sem sedoanalagesia, e em 12.11.2014 foi transferido para a enfermaria de Neurocirgia;
- a vítima teve alta do Hospital … no dia 25.11.2014, do que durante o internamente manteve-se em estado estuporoso, tetraplégico, com traqueostomia para suporte ventilatório e teve várias intercorrências respiratórias infecciosas (bacterianas por Klebsiella Pneunomiae; Enterococcus Faecalis, etc), ocasião em que foi transferido para a I…, em Paços de Ferreira (Cuidados Continuados), onde deu entrada a 16.12.2014, não obstante ter havido evolução positiva das lesões traumáticas sofridas, nunca registou qualquer melhoria no seu estado de saúde geral, ou seja, com agravamento progressivo do seu estado de saúde que culminou como a morte, ocorrida no dia 2.03.2015;
- em sede de autópsia veio a verificar-se que a causa provável da morte, na ausência de evidências de enfarte do miocárdio, foi miocardiopatia isquémica, ou seja, o coração de H…, pura e simplesmente deixou de bater, deixou de ser naturalmente irrigado por sangue – por regra evidencia-se pelo facto do miocárdio se apresentar dilatado e mal contraído;
- ora, em termos básicos, a miocardiopatia isquémica é uma doença normalmente causada pela obstrução nas artérias coronárias (vasos que levam sangue para o coração) devido ao acumulação de placas de colesterol - ou seja, a aterosclerose que é um quadro clínico no qual depósitos irregulares de material gorduroso (ateromas ou placas ateroscleróticas) se desenvolvem nas paredes das artérias de médio e grande porte que irrigam, por exemplo o coração, originando um fluxo sanguíneo reduzido ou mesmo bloqueado - que pode levar ao enfarto do miocárdio ou até insuficiência cardíaca. Evidentemente, tal como as doenças cardiovasculares em geral, é uma causa de morte natural, desde logo e como é sabido, actualmente, representa a causa mais frequente de morte nos países desenvolvidos. Apesar da contribuição possível de muitos outros factores, tais como o esforço físico, o stress emocional, a taquicardia ou a hipertensão arterial associados à obstrução coronária, a doença aterosclerótica coronária é o factor mais importante e até comum na miocardiopatia isquémica;
- e assim a miocardiopatia isquémica pode considerar-se como uma causa secundária de morte, não obstante ser uma causa de morte natural – morte súbita - por oposição a morte esperada ou morte traumática;
- resta-nos assim apurar se a doença arterial periférica (estenose femoral 60-70% - causadas por lesões graves de aterosclerose) que o falecido apresentava previamente ao atropelamento foi o único factor que originou a sua morte por miocardiopatia isquémica ou se houve outros factores e intercorrências, co-causais dessa miocardiopatia. Considerando todas as circunstâncias apuradas nos autos, nomeadamente quanto às graves lesões traumáticas causadas ao falecido aquando do seu atropelamento, os procedimentos médico/hospitalares invasivos que foram necessários ser realizados para o estabilizar e manter vivo, todas as demais ocorrências hospitalares, nomeadamente os exames a que foi sujeito, as transferências de serviços e de entidade clínica, etc., global situação esta que, não obstante o falecido se encontrar tetraplégico e em estado estuporoso, quanto a nós evidentemente alterou e danificou o nível mais subtil da vida do paciente, causando-lhe um muito provavelmente/ou inegável stress traumático de cariz psicológico, causador, por si só, de alterações do ritmo cardíaco, por arritmias, até ao total paragem do fluxo sanguíneo. Logo, não podemos negar que a global situação de saúde do falecido provada nos autos, quer prévia ao sinistro, quer desde a ocorrência do mesmo e até à sua morte, devido às supra referidas vicissitudes, tem de ser considerada como co-causal dessa morte.
Ou seja, é muito provável que a doença arterial periférica (estenose femoral 60-70% - causadas por lesões graves de aterosclerose) que o falecido apresentava previamente ao atropelamento lhe viesse a desencadear a morte por miocardiopatia isquémica, contudo era também muito provável, de acordo com o conhecimento médico e respectivo tratamento médico-cirúrgico actual, que tal não sucedesse até à data em que efectivamente se veio a verificar a sua morte. Na verdade, é também muito provável que a morte ocorrida tenha sido antecipada pelo manifesto stress traumático originado/causado, ainda que subtilmente ao falecido, em consequência directa e necessária do seu atropelamento e das graves lesões traumáticas que sofreu.
E assim, por tudo isto, dentro de padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, pelos quais o julgador se deve sempre guiar e que nos conduz inexoravelmente à conclusão alcançada em 1.ª instância, concluímos que a morte de H… resultou, muito provavelmente, não só do seu estado de saúde prévia ao sinistro com o que concorreu, de forma determinante e essencial - co-causa essencial e determinante - o stress traumático de cariz psicológico a que foi sujeito desde a ocasião do sinistro e até à morte.
Pelo que quanto a esta questão, ou seja, verifica-se nexo de causalidade entre o sinistro, os danos por via dele causados ao falecido e a posterior morte deste, e por tudo isto, é devida indemnização aos autores e à interveniente pela morte H…, sem qualquer limitação sequer quanto à verificação do nexo de causalidade.
Improcedem as respectivas conclusões da ré/seguradora.
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4.ªquestão – Dos danos (recursos dos autores e subordinado).
A 1.ª instância veio a considerar, no que concerne aos danos decorrentes da conduta do segurado da ré que: (…) No âmbito dos danos não patrimoniais e, atento o disposto no art.º 496.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.C. são ressarcíveis os danos sofridos pela própria vítima, os danos sofridos pelos familiares referidos naquele art.º 496.º, n.º 2 e o dano resultante da perda do direito à vida.
Na verdade, a supressão do bem vida é um dano indemnizável por si mesmo e “não se confunde nem se dilui no dano próprio que os outros interessados sentiram e sofreram com a morte daquele lesado” (Ac. do S.T.J. de 23.03.95, C.J.S.T.J., ano III, Tomo 1, pág. 230).
Aliás, a prática jurisprudencial tem-se orientado pela autonomização dos danos não patrimoniais resultantes do desgosto e sofrimento das pessoas mais ligadas à vítima relativamente ao dano da morte, alicerçando-se no fundamento jurídico imanente à 2.ª parte, do n.º 3 e ao n.º 1, ambos do art.º 496.º, do Cód. Civil.
(…)
Ocorre então que a compensação do dano não patrimonial resultante da perda do direito à vida, sendo este o bem supremo e do qual derivam todos os outros bens da personalidade, deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico.
(…)
Quanto ao dano não patrimonial sofrido pela vítima antes de morrer importa dizer que o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização mos termos dos números anteriores.”. Surgindo, assim, face à lei, a equidade como guia do julgador, com indicação, porém, de critérios a que o mesmo se deve ater.
Prescrevendo este preceito legal, nos seus mencionados n.ºs 2 e 4, alem do mais, quanto ao dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima se manteve consciente ou inconsciente, se teve ou não dores, qual a intensidade das mesmas, a existirem, se teve consciência de que ia morrer.
Ora, no caso em apreço, não se provou que na fracção de segundos que antecedeu o acidente, durante ele e nos meses de internamento que se lhe seguiram, a vítima sentiu a iminência da morte, o que lhe causou, seguramente, a maior agonia, amargura e angústia, pelo que entendemos que tal indemnização deverá improceder.
Quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelos autores e Interveniente com a morte do seu pai, esse sofrimento, conforme resulta do cotejo da materialidade apurada (cfr. pontos 24 e 25), mas também das regras da experiência comum, foi necessariamente intenso, indelével e perdurará pela vida fora dos autores e interveniente, tanto mais que essa morte adveio em consequência de eclosão de um inesperado e brutal acidente de viação (…).
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4.1. – Do dano não patrimonial sofrido pela vítima.
Insurgem-se os autores e a interveniente/apelantes pelo facto de a 1.ª instância não ter atribuído qualquer indemnização pelo alegado dano não patrimonial sofrido pelo falecido H… entre a ocasião do acidente e a ocasião da sua morte, alegadamente consistente nas dores e na percepção da iminência dessa morte e da amargura e angústia que assim lhe foram causadas.
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Como se sabe, ao lado do dano morte e dele diferente, há o dano sofrido pela própria vítima no período que medeia entre o momento do acidente e a sua morte. Ou seja, pode acontecer que a vítima não tenha morte imediata e durante período de tempo que sobreviva ao acidente passe por um quadro deveras doloroso.
No dizer de Diogo Leite Campos, in “A Vida, a Morte e a sua Indemnização”, BMJ 365, págs. 5 e segs., o direito à vida é um direito “ao respeito” da vida perante as outras pessoas. É um direito “excludendi alios” e só nesta medida é um direito. É um direito a exigir um comportamento negativo dos outros. Atentar contra o direito ao respeito da vida produz um dano – a morte – superior a qualquer outro no plano dos interesses da ordem jurídica. O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros.
Como refere o mesmo autor in “A indemnização do dano da morte”, Separata do vol. L (1974) do BFDUC, pág. 41, a relevância da morte no campo da responsabilidade civil, opera de dois modos. É em si própria um dano indemnizável. Por outro lado, vem interromper o processo de verificação dos danos, de um modo que poderíamos descrever como o apagamento “ex nunc” dos outros danos. A morte, tudo apaga, com efeito. Mas só, desde o momento em que se verifica. A morte não destrói a existência dos sofrimentos físicos, das dores morais, do prejuízo estético, da amputação do membro. O que vem é a impedir o aparecimento de outros e a interromper, a apagar “ex nunc”, aqueles que se prolongariam no tempo.
Existe, assim, uma clara interdependência entre o dano da morte e os danos não patrimoniais que o antecedem, constituindo um importante factor para se aferir da gravidade destes últimos o lapso temporal que intercede entre a sua ocorrência e a morte: em princípio, quanto menor for o período referido, menores serão os danos a indemnizar, porque menor é o sofrimento da vítima. Mas estaremos sempre perante danos não patrimoniais autónomos, justificando-se, por isso – e porque são suficientemente graves para justificarem a tutela do direito – e uma indemnização autónoma.
Este dano vivido pela vítima antes da sua morte é passível de indemnização, estando englobado nos danos não patrimoniais sofridos pela vítima a que se refere o n.º 3 do art.º 496.º do C.Civil. Estes danos nascem ainda na titularidade da vítima, mas como expressivamente refere a lei, também o direito compensatório por estes danos cabe a certas pessoas ligadas por relações familiares ao falecido. Há aqui uma transmissão de direitos daquela personalidade falecida, mas não um chamamento à titularidade dos bens patrimoniais que lhe pertenciam, segundo as regras da sucessão.
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In casu” tendo em atenção que não lograram os autores e a interveniente fazer prova segura e cabal, como acima se deixou consignado, de que na fracção de segundos que antecedeu o acidente, durante ele e nos meses de internamento que se lhe seguiram, a vítima sentiu a iminência da morte, o que lhe causou, seguramente, a maior agonia, amargura e angústia, manifesto é de concluir que se não provou que o acidente em apreço nos autos causou à vítima um qualquer dano moral/não patrimonial no período que mediou entre o momento do acidente e a sua morte.
Improcedem assim as respectivas conclusões dos autores e interveniente/ /apelantes.
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5.ªquestão – Do quantum indemnizatório (recursos dos autores e subordinado).
Por via da presente acção, os autores e a interveniente peticionaram, a título de indemnização decorrente do atropelamento e morte do seu pai H…, o pagamento das seguintes quantias de:
- €30.000,00, a título dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes de falecer;
- €80.000,00, a título de indemnização pela perda do direito à vida do seu pai;
- €30.000,00, a título dos danos não patrimoniais, sofridos por cada autor, com a morte do seu pai;
- €40.000,00, a título dos danos não patrimoniais sofridos pela interveniente com a morte do seu pai.
- €522,34 + €375,38 + €60,00, a título de despesas que o autor B… suportou com o funeral do seu pai, com o internamento do mesmo na I…, em Paços de Ferreira e, num colchão anti-escaras.
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A 1.ª instância apenas decidiu atribuir aos autores e interveniente, a título de indemnização:
- ao autor B… a quantia de €957,72, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento;
- aos autores e à interveniente a quantia total de €120.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal, contados da presente sentença até integral pagamento.
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Para tanto, considerou-se na decisão recorrida, além do mais, que: “(…) Uma vez que o autor B… suportou as despesas de €522,34 com o funeral; €375,38 na I… em Paços de Ferreira; e €60,00 com a compra de um colchão anti-escaras; (ponto 26), estando estas relacionadas com as lesões sofridas pela vítima, a Ré deverá indemnizar aquele autor pela quantia total de €957,72, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
(…)
No âmbito dos danos não patrimoniais e atento o disposto no art.º 496.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.C. são ressarcíveis os danos sofridos pela própria vítima, os danos sofridos pelos familiares referidos naquele art.º 496.º, n.º 2 e o dano resultante da perda do direito à vida.
(…)
No caso, cotejada a matéria factual apurada, provou-se que a vítima H… tinha 83 anos de idade à data da sua morte.
Com relevância para se determinar o quantum compensatório pela perda do direito à vida da identificada vítima, provou-se que aquele, à data do embate era sociável, expansivo e alegre, gozando da estima de quem com ele convivia, respeitado e respeitador, sendo o sineiro e acólito na igreja paroquial e tinha um pequeno rebanho de ovelhas que apascentava e cuidava (cfr. pontos 21 e 22).
Estamos assim, perante uma pessoa idosa, que estimava e era estimado por familiares e amigos, com apego à vida, que esperava viver mais alguns anos e que de forma brutal viu ser-lhe ceifada a vida.
Considerando essa factualidade e, bem assim, todo o circunstancialismo em que eclodiu o acidente supra explanado, bem como os critérios jurisprudenciais seguidos nesta matéria, entendemos ser equitativo fixar em 60.000,00 Euros a compensação pela perda do direito à vida.
(…)
Ora, no caso em apreço, não se provou que na fracção de segundos que antecedeu o acidente, durante ele e nos meses de internamento que se lhe seguiram, a vítima sentiu a iminência da morte, o que lhe causou, seguramente, a maior agonia, amargura e angústia, pelo que entendemos que tal indemnização deverá improceder.
Quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelos autores e Interveniente com a morte do seu pai, esse sofrimento, conforme resulta do cotejo da materialidade apurada (cfr. pontos 24 e 25), mas também das regras da experiência comum, foi necessariamente intenso, indelével e perdurará pela vida fora dos autores e interveniente, tanto mais que essa morte adveio em consequência de eclosão de um inesperado e brutal acidente de viação.
Deste modo, a compensação a arbitrar aos autores e interveniente, atento o abalo moral que padeceram e que irão continuar a padecer até ao termo dos seus dias em consequência da morte brutal e inesperada do seu pai que o viram em estado tetraplégico e vegetativo durante quatro meses, as circunstâncias que envolveram essa morte e os critérios jurisprudenciais seguidos pelas instâncias superiores nesta sede, deverá ser fixada em €15.000,00 Euros para cada autor e €15.000,00 para a interveniente, no total de €60.000,00 (…).
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Os apelantes (autores e intervenientes) entendem que os montantes arbitrados em 1.ª instância pecam por escassos em face dos danos provados e consequentemente defendem que seja atribuída uma indemnização pela perda do direito à vida no montante de €80.000,00 e de €30.000,00 pelo dano não patrimonial próprio de cada um dos apelantes/autores e da interveniente, sua irmã. Mas, por seu turno, veio esta defender que na fixação do seu dano próprio deve ser valorado positivamente em relação aos demais irmãos, dizendo para tanto que “a vítima vivia com a sua filha F…. Este simples facto é um indiscutível e relevante factor de diferenciação. A interveniente é sempre a primeira no dever de assistência, que nem sempre carece da intervenção de todos. É também sempre a primeira a gozar das alegrias do pai e a primeira a com ele sentir as preocupações. Ora na douta sentença não se atendeu a esta diferenciação e a todos se tratou por igual, e logo na exiguidade de uma compensação de =15.000,00 €=”.
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Finalmente sempre se dirá que existindo, à data do acidente, seguro válido e eficaz, cabe à ré/seguradora satisfazer a respectiva indemnização, na exacta medida daquela proporcionalidade da culpa do condutor do veículo seguro, o que significa que a mesma seguradora ficará condenada a pagar aos autores e interveniente/apelantes as indemnizações que a seguir se fixarão.
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5.1. - O dano morte.
Como já acima se deixou consignado, sabe-se que a vida é o bem mais precioso da pessoa, que ele não tem preço, porque é a medida de todos os preços, e que a sua perda arrasta consigo a eliminação de todos os outros bens de personalidade. À míngua de outro critério legal, na determinação do concernente quantum compensatório importa ter em linha de conta, por um lado, a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais, e, por outro, conforme os casos, a vontade e a alegria de viver da vítima, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, designadamente a sua situação profissional e sócio-económica.
Está assente nos autos que H… tinha 83 anos de idade à data da sua morte, era sociável, expansivo e alegre, gozando da estima de quem com ele convivia, respeitado e respeitador. Era o sineiro e acólito na igreja paroquial e tinha um pequeno rebanho de ovelhas que apascentava e cuidava e vivia, antes do acidente, com a sua filha F…. Finalmente, considerando a pouca contribuição da vítima, (grau de culpabilidade concorrente do próprio lesado) como acima deixámos explicitado, para a eclosão do brutal acidente/atropelamento em apreço, depois de tudo considerado e usando de um juízo de equidade, julga-se, em abstracto, justa, adequada e proporcional a compensação de €75.000,00, para a indemnização do dano-morte.
Ora, atendendo a repartição da responsabilidade pela eclosão do acidente e assim fixada, há que por igual forma repartir a correspondente indemnização. E assim, a indemnização do dano-morte de H…, ora devida aos autores e interveniente é fixada na quantia de €56.250,00 (cinquenta e seis mil, duzentos e cinquenta euros) – 75% de €75.000,00.
Pelo que improcedem as respectivas conclusões dos autores e interveniente/apelantes.
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5.2. - Dano não patrimonial dos autores e interveniente – filhos da vítima.
Como se sabe os danos não patrimoniais dos autores e interveniente/apelantes, cfr. n.º1 do art.º 496.º do C.Civil, consistentes do desgosto e sofrimento moral e espiritual resultantes da perda do pai, são calculados por recurso à equidade.
O fim da indemnização é proporcionar ao lesado meios para se “distrair da sua dor ou para mitigar a sua dor”, devendo ser atendidas as circunstâncias referidas no art.º 494.º do C.Civil, cfr. n.º3 do art.º496.º do mesmo diploma.
Está provado nos autos que o falecido H… era uma pessoa sociável, expansivo e alegre, gozando da estima de quem com ele convivia, respeitado e respeitador querida dos seus amigos e familiares, sendo que antes do acidente residia com a sua filha F… (interveniente). Daí que os filhos do falecido, após o acidente, ficaram tristes, apreensivos, aflitos, visitando o pai diariamente quer no Porto, Penafiel e Paços de Ferreira e, posteriormente sentiram a morte trágica e prematura do seu pai.
Ora, ponderando todos esses factos, não se descortinando uma qualquer situação de maior sofrimento e/ou dor pela morte de H… por parte da filha F…, não obstante o falecido até à data do acidente ser convivente com a mesma, daí que fazendo apelo a um juízo de equidade, julgamos equilibrado, justo e adequado à compensação do sofrimento vivenciado por cada um dos autores e pela interveniente com a perda do seu pai, a fixação em abstracto de uma indemnização a esse título, para cada um deles, no montante de €20.000,00.
Mas, mais uma vez, atendendo a repartição da responsabilidade pela eclosão do acidente e acima fixada, há que por igual forma repartir a correspondente indemnização. E assim, a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos autores e pela interveniente/apelantes pela perda do seu pai é fixada na quantia de €15.000,00 (quinze mil euros) para cada um deles. – 75% de €20.000,00.
Procedem, parcialmente, as respectivas conclusões dos autores e interveniente/apelantes.
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Finalmente, sempre se dirá ainda que, por tudo o que acima ficou exposto e por ter sido julgado provado que o autor/apelante B… suportou, em consequência do atropelamento do seu pai e com a morte deste as seguintes despesas: - €522,34 com o funeral; - €375,38 na I… em Paços de Ferreira; e - €60,00 com a compra de um colchão anti-escaras – no valor global de €957,72, há que recompor o montante deste valor indemnizatório pelo correspondente dano patrimonial considerando a repartição da responsabilidade pela eclosão do acidente acima fixada. E assim, temos que a ré seguradora ainda deve indemnizar o autor/apelante B… pelas despesas que suportou com o lesado, no montante de €718,29 (setecentos e dezoito euros e vinte e nove cêntimos) – 75% de €957,72.

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a apelação da ré seguradora parcialmente procedente e as apelações dos autores e o recurso subordinado improcedentes, alterando-se consequentemente a decisão recorrida, por forma a que, julgando-se parcialmente procedente a acção, condena-se a ré E…, Companhia de Seguros, SA:
a) - a pagar ao autor, B…, a quantia total de €718,29 (setecentos e dezoito euros e vinte e nove cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
b) - a pagar aos autores, B…, C…, D… e à interveniente, F…, a quantia global de €116.250,00 (cento e dezasseis mil, duzentos e cinquenta euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal, contados da presente sentença até integral pagamento.
No mais, mantem-se a absolvição da ré E…, Companhia de Seguros, SA quanto ao demais peticionado.
Custas pelos apelantes, na proporção do respectivo decaimento.

Porto, 2020.09.08
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues