Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
302768/11.0YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
CONTRATO DE CONSUMO
FORNECIMENTO DE ÁGUA
Nº do Documento: RP20150504302768/11.0YIPRT.P1
Data do Acordão: 05/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O conceito de “relação jurídica administrativa” a que se referem o n.º 3 do artigo 212.º da CRP e o artigo 1.º do ETAF, não se basta com o facto de a Administração ser um dos sujeitos, sendo necessário que o litígio em causa seja regulado por normas de direito administrativo.
II - O contrato (de consumo) através do qual uma entidade (pública ou privada) se obriga perante um utente na prestação do serviço (público) de fornecimento de água, não integra o conceito de “relação jurídica administrativa”, regendo-se por normas substantivas de direito privado.
III - Os tribunais judiciais são materialmente competentes para tramitar e julgar a acção na qual o prestador do serviço de fornecimento de água reclama do utente o pagamento da quantia relativa ao custo do que por este foi consumido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 302768/11.0YPRT.P1

Sumário do acórdão:
I. O conceito de “relação jurídica administrativa” a que se referem o n.º 3 do artigo 212.º da CRP e o artigo 1.º do ETAF, não se basta com o facto de a Administração ser um dos sujeitos, sendo necessário que o litígio em causa seja regulado por normas de direito administrativo.
II. O contrato (de consumo) através do qual uma entidade (pública ou privada) se obriga perante um utente na prestação do serviço (público) de fornecimento de água, não integra o conceito de “relação jurídica administrativa”, regendo-se por normas substantivas de direito privado.
III. Os tribunais judiciais são materialmente competentes para tramitar e julgar a acção na qual o prestador do serviço de fornecimento de água reclama do utente o pagamento da quantia relativa ao custo do que por este foi consumido.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B…, SA, sociedade fornecedora de serviços públicos essenciais de água e saneamento aos utilizadores finais, apresentou junto do Balcão Nacional de Injunções, em 19.11.2012, requerimento de injunção contra C…, Lda., com vista à cobrança da quantia de € 283,66, referentes a fornecimentos de água.
Tendo-se revelado inviável a notificação do requerido, em 17.02.2012 foi a requerente notificada do envio do procedimento de injunção para a Secretaria dos Juízos de Estarreja – Comarca do Baixo Vouga -, para distribuição.
Distribuídos os autos no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Estarreja, revelaram-se sucessivamente infrutíferas todas as tentativas de citação pessoal da requerida, tendo a requerente solicitado em 4.03.2014 a citação edital do legal representante da requerida.
Em 6.03.2014 foi proferido o seguinte despacho:
«Melhor analisados os autos e tendo em conta que está a ser reclamada a cobrança de “tarifas” pela prestação de serviços públicos essenciais de águas e saneamento a utilizadores finais, titulada por facturas, e considerando, ainda, que, recentemente, este Tribunal, em casos semelhantes ao que aqui está em apreciação, se julgou incompetente para apreciar as causas em razão da matéria, antes de mais, notifique a Autora para, ao abrigo do disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, em 10 dias, querendo, se pronunciar quanto à verificação de uma eventual excepção dilatória de incompetência material deste Tribunal para julgar a presente acção.».
Em 21.03.2014, a requerente pronunciou-se, alegando em síntese: é uma sociedade comercial anónima de direito privado, que tem por objecto social exclusivo a exploração e a gestão dos serviços de águas relativos ao Sistema de Águas da Região de Aveiro; por Contrato de Parceria Pública celebrado em 29.07.2009, o Estado Português e conjunto dos Municípios de Águeda, Albergaria-a-Velha, Aveiro, Estarreja, Ílhavo, Murtosa, Oliveira do Bairro, Sever do Vouga, Vagos e, por Adenda ao referido Contrato, datada de 30.06.2010, também Ovar, os Municípios decidiram agregar os respectivos sistemas municipais de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas, num sistema territorialmente integrado denominado D…; para tanto, os Municípios, nos termos e para os efeitos do previsto no art. 2.º do DL n.º 90/2009, de 09.04, acordaram delegar no Estado, para exercício no quadro da Parceria, as respectivas competências municipais relativas à gestão e exploração dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de águas residuais urbanas aos utilizadores finais; pelo Contrato de Gestão celebrado em 23.09.2009, as referidas partes e a B…, S.A., doravante B…, atribuíram à E…, isto é, à B…, em regime de exclusivo, a exploração e gestão dos serviços públicos de abastecimento de água para consumo público e saneamento de águas residuais urbanas, relativos ao Sistema; para efeitos da Parceria, os Municípios afectaram ao Contrato de Gestão as infra-estruturas, os equipamentos e os contratos indispensáveis à gestão do Sistema, operando a transmissão, a favor da B…, da sua posição, em todos os instrumentos contratuais outorgados indispensáveis a esta gestão e exploração do Sistema; a ré celebrou em 18.08.1995, com o Município de Estarreja, à data entidade gestora dos serviços de abastecimento de água para consumo público e recolha de águas residuais urbanas, o contrato de fornecimento; o art.º 64.º do Cód. de Processo Civil atribui competência aos tribunais judiciais para decidir as causas que não sejam atribuídas a outras ordens jurisdicionais. A competência da ordem jurisdicional comum é, assim, residual; há que averiguar se existe alguma disposição normativa que atribua competência à jurisdição administrativa para questões como a da presente acção; concretizando a norma constitucional do art.º 212.º, n.º 3, da Lei Fundamental, segundo a qual “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, estipula-se na lei ordinária, no art.º 1.º, n.º 1, do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), aprovado pela Lei 13/2002, de 19/02: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, sendo esta a regra básica sobre a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais; por seu turno o art.º 4.º, n.º 1, do ETAF estabelece as situações de competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal; para a definição da competência em razão da matéria há que considerar, portanto, qual a causa de pedir e o pedido apresentados pelo autor; o contrato “sub judice” não é um contrato de direito público e não está submetido a normas de direito público; a autora é uma sociedade comercial anónima de direito privado, não actua munida de poder soberano na sua relação com o consumidor, apresenta-se despida de qualquer jus imperii, numa posição de “igualdade de armas” para com a ré.
Em 27.03.2014 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julga-se procedente a excepção dilatória da incompetência material destes Juízos de Média e Pequena Instância Cível de Estarreja, da Comarca do Baixo Vouga e, em consequência, absolve-se a Ré C…, Lda. da instância.
Custas a cargo da Autora (artigo 527.º n.º 1 do Código de Processo Civil).».
Não se conformou a autora e interpôs o presente recurso de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões:
1. Conforme resulta do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), o âmbito da jurisdição administrativa em matéria contratual não depende do carácter jurídico-administrativo do contrato;
2. Não se aplica o artigo 4.º, n.º 1, alínea d) do ETAF, dado não estarmos perante a fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
3. A alínea f), do n.º 1 do artigo 4.º, apenas atribui competência à jurisdição administrativa para apreciar litígios sobre a interpretação, validade e execução de (i) contratos de objeto passível de ato administrativo, (ii) de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou (iii) de contratos em que pelo menos uma das parte seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão, e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
4. Ora, a relação material em litígio é de natureza manifestamente privada, pois é pedido a condenação do cliente/consumidor final, aqui Recorrida, no pagamento de determinado montante referente aos serviços de fornecimento de água e saneamento, sendo a causa de pedir a violação da relação sinalagmática pelo não pagamento do preço acordado, ou seja, não é do foro administrativo e não se alicerça no disposto no art.º 4, n.º 1 alínea f) da ETAF, estando excluída a sua aplicação;
5. O contrato dos autos (contrato de fornecimento de água), para efeitos de critério de justiciabilidade administrativa, é um contrato de consumo, regulado no âmbito do direito privado, de uma relação de consumo, que não se celebra em substituição de qualquer ato administrativo;
6. Apesar de ser objeto de uma regulação específica, está longe de se poder considerar uma regulação baseada em normas de direito público, antes tal regulação é, pelo menos nos anos mais recentes, claramente, a proteção do consumidor no contexto de uma relação de consumo de um serviço público essencial;
7. O contrato dos autos não foi expressamente submetido pelas partes a um regime substantivo de direito público;
8. A competência dos tribunais administrativos em matéria de contratos da Administração latu sensu não depende (apenas) da administratividade, mas antes de outros critérios que inspiram as quatro alíneas do artigo 4.º do ETAF, sobre o âmbito da jurisdição administrativa relativa a contratos;
9. Os contratos de fornecimento de água por empresas como a da Recorrente não entram em nenhum dos preceitos constantes do ETAF, antes ordenam-se no âmbito do direito privado: são contratos de direito privado;
10. Da interpretação do ETAF resulta que, só a ordenação dos mesmos como contratos administrativos seria suscetível de os reconduzir à jurisdição dos tribunais administrativos;
11. Os contratos de fornecimento de água não são administrativos pela simples razão de que não são objeto de uma regulação baseada em normas de direito administrativo; tratam-se de contratos de consumo, em parte regulados por normas que protegem precisamente os direitos dos consumidores/utentes - Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais;
12. Estamos perante uma simples cobrança de dívida civil, por uma empresa privada, regulada pelas regras do direito privado;
13. A Recorrente é uma empresa privada, que não atua munida de poder soberano na sua relação com o consumidor, antes atua, perante este, em situação de paridade;
14. Não está aqui em discussão nem consubstancia o pedido ou a causa de pedir, tal qual foi apresentada pela ora recorrente, a relação entre a Recorrente e os entes públicos indicados no Contrato de Parceria;
15. Muito menos a correta ou incorreta determinação do preço devido pela prestação dos serviços;
16. Ou sequer a validade das cláusulas contratuais subjacentes à prestação do serviço não pago;
17. Estamos perante uma ação que tem por objeto o pagamento de valores constantes de faturas, mais juros, nos termos da fruição do uso do contador e da água consumida, pela qual foram emitidas faturas que não se mostram pagas;
18. Uma ação que tem por base uma relação jurídica de direito privado, e consubstancia uma situação de incumprimento das obrigações contratualmente assumidas pela Recorrida;
19. Obrigações que tendo natureza civil, regem-se, pelas normas dos contratos civis, estando em causa a apreciação de pressupostos da responsabilidade e do incumprimento e mora contratuais nos termos da lei civil – arts. 762 e segs, 792 e segs, art 806, todos do CC;
20. A sujeição à jurisdição civil em face do incumprimento contratual é similar à que resulta da falta de pagamento de uma fatura de eletricidade ou de uma fatura emitida por operadora de telemóveis ou de comunicações eletrónicas - Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, Lei dos Serviços Públicos Essenciais;
21. Aqui o interesse que se satisfaz, com o fornecimento do serviço é o interesse particular do consumidor, ainda que no âmbito da prestação de serviços públicos essenciais;
22. Não se confunda, na apreciação dos presentes autos de recurso, a questão da determinação da qualificação da relação jurídica, ou seja, da criação a B… (que até é uma sociedade anónima constituída nos termos da lei comercial), com a prestação de serviços essenciais através de contratos subordinados ao regime do direito privado, celebrados com os particulares, tal como acontece com os serviços de fornecimento de água, eletricidade e comunicações telefónicas, entre outros;
23. Assim, determinada e qualificada a relação jurídica entre a B… e o cliente, isto é, entre a Recorrente e a Recorrida, tal qual foi configurada pelo Autor no processo;
24. Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram pelo que só será competente o tribunal judicial (comum) se a causa não estiver inserida por lei na competência dos tribunais administrativos;
25. Assim, é perante os termos em que é estruturada a petição inicial que se afere se, atentos os contornos objetivos (pedido e seus fundamentos) e subjetivos (identidade das partes) da ação, a sua apreciação se enquadra na competência dos Tribunais Administrativos ou na competência dos tribunais judiciais comuns;
26. Os atos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados por órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares, são atos em que o Estado ou pessoa coletiva pública intervém como um simples particular, despido do seu poder de soberania ou do seu jus imperii.
27. O presente diferendo insere-se estritamente nas relações entre a ora Recorrente e os consumidores/utilizadores, aqui Recorrida, pedindo-se o pagamento das quantias devidas pelo fornecimento de água a que a Recorrida estava obrigada por força do contrato de fornecimento, centrando-se o diferendo no volume e pagamento do preço da água;
28. Baseando-se num contrato que se ordena no âmbito do direito privado.
Pelo que deve ser dirimido nos Tribunais Judiciais, tendo o Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Estarreja competência material para decidir a presente ação.
Foram violados os artigos 64º e 65.º, 96º, 97º n.º 2, 99º n.º 1, 278º n.º 1 al. a), 576º n.º 2 1.º parte, 577º 1, al. a), todos do Código de Processo Civil, bem como o artigo 1.º, n.º 1 do ETAF, e ainda, os artigos 211.º 1 e 212, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Não deveria ter tido aplicação o disposto no artigo 4.º do ETAF.
Assim, revogando V.ªs Ex.ªs a decisão recorrida, julgando materialmente competente o Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Estarreja, estarão a pugnar pela acostumada e merecida JUSTIÇA.
A Digna Magistrada do MP respondeu às alegações de recurso, concluindo:
1. O despacho recorrido aborda exaustivamente a problemática em discussão, com o qual concordamos totalmente, pelo que o mesmo não me merece qualquer censura, devendo manter-se o aí doutamente decidido.
Sem prescindir:
2. Como é sabido, na vigência do anterior Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Decreto-Lei nº 128/84, de 27 de Abril), o critério diferenciador da competência entre a jurisdição administrativa e a jurisdição cível assentava no conceito de actos de gestão pública e no de actos de gestão privada.
3. A distinção entre tais conceitos sempre foi objecto de larga elaboração jurisprudencial e doutrinária, podendo dar-se como assente que como actos de gestão privada são “os que se compreendem numa actividade em que a pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão a normas de direito privado”, ao passo que os actos de gestão pública são “os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda das regras, técnicas ou de outra natureza, que, na prática dos actos, devam ser observadas” [cfr. os Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 20.10.83 (proc. nº 153) e de 12.05.99 (proc. nº 338)].
4. No entanto, e com a entrada em vigor do novo ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), operou-se uma profunda alteração da competência material dos Tribunais Administrativos.
5. Nos termos do art. 4.º, n.º 1, f), do ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
6. Dentro deste contexto, verifica-se que, no caso dos autos, a causa de pedir e o pedido se estribam relativamente a serviços contratados de abastecimentos de água e saneamento prestados pela requerente à requerida.
7. É sabido que as autarquias dispõem de atribuições no âmbito do ambiente e saneamento básico e que é da sua competência o planeamento, a gestão de equipamentos e a realização de investimentos nos seguintes domínios: Sistemas municipais de abastecimento de água; Sistemas municipais de drenagem e tratamentos de águas residuais urbanas; Sistemas municipais de limpeza pública e de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.
8. No entanto, por contrato de concessão podem os órgãos municipais lançar mão de empresas privadas.
9. Porém, o concedente mantém a titularidade dos direitos e poderes relativos à organização e gestão do serviço público concedido, como o poder de regulamentar e fiscalizar a gestão do concessionário, aplicando-se aqui, no essencial, os princípios da tutela administrativa. O serviço público concedido nunca deixa, pois, de ser uma atribuição e um instrumento da entidade concedente, que continua dona do serviço, sendo o concessionário a entidade que recebe o encargo de geri-lo, por sua conta e risco (cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, p. 1081 e ss.).
10. Deste modo, a autora ao fixar liquidar e cobrar tarifas ou taxas aos particulares no quadro da sua actividade de concessionária está a agir no exercício de poderes administrativos.
11. Assim, o caso em apreço subsume-se ao disposto no art. 4.º, n.º 1, f), do ETAF (neste sentido, e por último, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 142872/12.9YIPRT.G1, de 04-04-2013: Cabe à jurisdição administrativa e não aos tribunais judiciais a competência para apreciar uma acção em que a autora, concessionária da gestão e exploração de serviço público municipal de fornecimento de água, pretende obter a condenação do réu no pagamento de determinada quantia relativa ao fornecimento de água e acréscimos incluídos na fatura.
12. A jurisdição administrativa é a competente para o julgamento da presente questão.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, deverá negar-se provimento ao recurso e confirmar-se inteiramente o despacho recorrido. V. Exªs, porém, encontrarão a decisão que for Justa!
Em 25.11.2014 a requerente reiterou o pedido de citação edital da requerida, tendo sido proferido despacho em 27.11.2014 a determinar a citação edital do legal representante da requerida.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se o tribunal recorrido tem competência material para a tramitação da acção e para a apreciação do mérito da pretensão que nela se encontra formulada.

2. Fundamentos de facto
A factualidade provada relevante é a que se encontra descrita no relatório que antecede.

3. Fundamentos de direito
3.1. O critério definidor
Vejamos quais as normas legais que concorrem para a definição dos critérios normativos com base nos quais se estabelece a competência material na situação sub judice.
Preceitua o n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa: «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.».
O n.º 1 do artigo 26.º da Lei n.º 52/2008, de 28.08 (Nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), em vigor à data da entrada da acção, estabelecia a competência residual dos tribunais judiciais nestes termos: «Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.»[1].
O artigo 66.º do Código de Processo Civil, na versão do Decreto-Lei nº 303/2007, de 23 de Agosto (em vigor à data da entrada da acção) consagrava o mesmo critério residual: «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional»[2].
Finalmente, fazendo eco do preceito constitucional citado, prescreve o artigo 1.º da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Do elenco normativo que se citou resulta como critério normativo essencial à definição da competência, o conceito de «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (sublinhado na transcrição do n.º 3 do artigo 212.º da CRP, e do art. 1.º do ETAF).
O passo seguinte consistirá na concretização ou densificação do conceito de “relação jurídica administrativa”.
Vejamos alguns contributos doutrinários e jurisprudenciais.
O Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão n.º 07/12 (Tribunal de Conflitos), de 20.09.2012[3], propõe a seguinte classificação: «V - À míngua de definição legislativa do conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica regulada pelo direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração. VI - Uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada.».
No mesmo sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 8.05.2007[4]: «A relação jurídico-administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração, estando em causa um litígio regulado por normas de direito administrativo.».
Amplamente citado na jurisprudência, José Carlos Vieira de Andrade[5] refere que “só interessa à justiça administrativa as relações jurídicas administrativas públicas, ou seja, aquelas que são reguladas por normas de direito administrativo (…) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Também Sérvulo Correia[6] define “relação jurídica administrativa” como «um sistema complexo de situações jurídicas activas e passivas interligadas, regidas pelo Direito Administrativo e tituladas por entidades incumbidas do exercício de uma actividade específica da função administrativa e por particulares ou apenas por diversos pólos finais de imputação pertencentes à própria Administração.».
Em síntese, como refere Vieira de Andrade (obra citada, pág. 79), «[a] determinação do domínio material da justiça administrativa continua a passar (…) pela distinção material entre o direito público e o direito privado…».
Para o autor citado o conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” deverá ser entendido no sentido tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, excluindo do seu âmbito as relações de direito privado em que intervém a Administração.
Em suma, para que possamos qualificar a relação jurídica como “relação jurídica administrativa” não basta que nela intervenha uma entidade pública. É necessário que a relação/litígio seja regulada por normas de direito administrativo.
Encontrado o critério definidor da competência administrativa, cumpre aplicá-lo à situação concreta que nos ocupa.
3.2. O regime jurídico substantivo essencial do contrato em causa nos autos
Refere-se no acórdão desta relação, de 10.07.2013[7] subscrito pelo ora relator na qualidade de 1.º adjunto:
«O caso da hipótese convoca a situação da alínea f). E, de acordo com essa, cabe à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios cujo objecto seja:
“Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
[…] a competência material dos tribunais administrativos será atribuída se, no litígio configurado pelo autor na petição, se detectar contrato especificamente a respeito do qual existam normas de direito público reguladoras de aspectos específicos do respectivo regime substantivo. […]
O estado de facto consistente no consenso bilateral firmado entre a entidade (pública ou privada) concessionária do serviço público de abastecimento de água e o respectivo utente, pelo qual a 1.ª se obriga a fornecer ao 2.º tal bem e este se obriga a suportar, e a pagar à 1.ª, o respectivo custo, não é sob o ponto de vista do carisma de contrato em causa imediatamente assertivo e inequívoco.
E as dúvidas, segundo pensamos, assentam na circunstância de estar em causa uma concessão pública, justificada pela prestação de um serviço essencial; tendo aquela uma indissociável natureza administrativa. Quer dizer; não há como discutir o publicismo de um contrato de concessão de serviço público, que bem pode ser o da distribuição de água em certo espaço territorial, com o exercício de todas as tarefas que lhe sejam anexas.
Quando o utente, que contratou com o concessionário, deixe de pagar o serviço (o fornecimento de água) que aquele lhe prestou, e o litígio atinge dimensão judiciária, suscita-se a questão de conhecer a categoria de tribunais que têm de ser convocadas para dirimir o problema (de direito material).
Acontecendo, no bom rigor, que o contrato de concessão não assimila com o contrato de fornecimento; àquele se adequando as normas públicas, mas a este parecendo melhor se adequar uma dimensão normativa de direito privado.
Vejamos então.
A controvérsia não é inédita e tem sido, de forma dissonante, resolvida pela jurisprudência; podendo consultar-se decisões que convocam a jurisdição administrativa para resolver o assunto da falta do pagamento do preço pelo utente;[16] como outras que, para o mesmo assunto, convocam a jurisdição comum.
Na nossa óptica, e de harmonia com o que precede, se o contrato em litígio (descrito na petição do autor) convocar normas de direito público, reguladoras de aspectos específicos do seu regime substantivo, estará a razão do lado daqueles que atribuem à ordem administrativa competência (em razão da matéria) para conhecer do litígio que o atravessa (artigo 4º, nº 1, alínea f), do ETAF); mas se assim não for, se o direito público não estiver implicado nesse contrato, é aos tribunais comuns que a vocação há-de caber (artigos 18º, nº 1, da lei de organização dos tribunais judiciais, e 66º do código de processo civil).
Não é inaudita na doutrina a qualificação dos contratos pelos quais uma certa entidade (pública ou privada) ajusta, contra o pagamento de um preço, a prestar ao utente certo tipo de serviços públicos e essenciais.
Reportando-se, em particular, ao contrato do fornecimento de energia eléctrica, escreve ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO que “os contratos de fornecimento celebrados com os consumidores finais são considerados contra-tos privados, de compra e venda”.
Semelhantemente, na análise “da natureza jurídica das relações constituídas entre o concessionário e os utentes do serviço público” opina PEDRO GONÇALVES que, a menos que outra coisa resulte da lei, “se trata de relações de direito privado (baseadas num contrato de direito privado)”; explicando depois que “o instrumento que dá vida à relação é um contrato de direito privado, pelo que, em si mesma, a relação de prestação que se estabelece entre o concessionário e os utentes é uma relação contratual de direito privado”.
Por fim, e bem mais impressivamente, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA que, depois de sublinhar a natureza contratual da relação entre utentes e prestadores de serviços público essenciais, lhe rejeita expressamente a natureza pública, a classifica como uma relação de consumo, e termina a concluir que “os actos geradores das obrigações de prestação de serviço e de pagamento pelo utente são portanto contratos de direito privado, que, no essencial, se regem pelo direito privado”.
O que isto significa é que, para cada um de tais autores, o regime substantivo do contrato em causa, embora reportado à prestação de serviços públicos, o que convoca são principalmente normas de direito privado; sendo essas que lhe traçam o perfil e retratam a essencialidade das vantagens e dos vínculos. Ou, dito de outro modo, que a configuração dos efeitos jurídicos emergentes escapa a regras de direito público; situando-os em panorama privatístico. […]».
Consta do sumário do acórdão em apreço:
«[…] III – Ao contrato pelo qual uma entidade (pública ou privada) acerta com um utente em lhe prestar o serviço (público) de fornecimento de água, não assenta essa matriz publicista; constituindo, esse, um contrato de consumo, primordialmente regido por regras substantivas de direito privado (artigos 1º, nº 1, nº 2, alínea a), e nº 4, e 10º, nº 4, da Lei nº 23/96, de 26 de Julho, 2º, nº 2, e 9º, nº 3, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, e 3º, alínea c), do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro);
IV – Em vista dessa natureza privatística da relação estabelecida, à acção pela qual o prestador do serviço (público) de fornecimento de água reclame do utente o pagamento da quantia relativa ao custo do que, por este, foi consumido, corresponde a competência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais (artigos 18º, nº 1, da Lei de Organização Judiciária, e 66º, do Código de Processo Civil) …».
O mesmo entendimento prevaleceu no acórdão desta Relação, de 6.02.2014[8], cuja fundamentação se transcreve parcialmente:
«[…] No nosso caso, a causa de pedir é o contrato de fornecimento de água e saneamento e o pedido é constituído pelo pagamento da contrapartida da prestação desse serviço, sendo que na contestação, como referido, não foi suscitada nenhuma questão sobre a forma de composição dessa contrapartida ou a sua legalidade, pelo que de forma alguma irá estar em causa na acção qualquer fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados pela gestora e exploradora daquele serviço público. Aliás, não só não vem aventada, designadamente na contestação do Ministério Público ou na decisão recorrida, como não pressentimos a possibilidade de nos autos se conhecer oficiosamente de qualquer questão a esse respeito.
Desse modo, julgamos que no caso o que se pode equacionar é apenas a aplicação do disposto na alínea f) do artigo 4.º do ETAF, que constitui, aliás, o fundamento de todas as decisões conhecidas que atribuem competência aos tribunais administrativos em situações similares.
Este preceito a atribui a competência aos tribunais administrativos para julgar as acções que tenham por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos, em três situações distintas: i) tratar-se de contratos de objecto passível de acto administrativo; ii) de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo; iii) de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público (alínea f).
É fora de qualquer dúvida de que no caso não está em discussão qualquer aspecto relativo ao contrato de parceria pública e/ou do contrato de gestão através dos quais o Estado e os Municípios se associaram para gerir e explorar conjuntamente, em regime de parceria pública, o serviço de águas e depois confiaram essa gestão à empresa criada pela parceria para o efeito. Está somente em discussão o contrato de fornecimento de água e saneamento ao utilizador, o qual foi celebrado entre a entidade prestadora desse serviço e um particular que é o consumidor desse serviço. Na celebração deste contrato não intervieram quaisquer normas de direito administrativo, ou seja, normas que regulem a relação entre a administração e um cidadão ou os direitos deste perante o exercício de poder da administração, o que não significa, contudo, que o fornecimento do serviço contratado esteja desregulado ou seja deixado totalmente à discricionariedade negocial das partes envolvidas. São efectivamente coisas distintas existir regulamentação legal de uma determinada actividade ou um regime legal de determinada relação jurídica ou ainda disposições imperativas que em determinados actos jurídicos as partes não podem afastar, e poder afirmar-se que essa regulação é constituída por normas de direito administrativo. […]»[9].
Perante o critério definidor da “relação jurídica administrativa”, enunciado supra, segundo o qual não basta que nela intervenha uma entidade pública, sendo necessário que a relação/litígio seja regulada por normas de direito administrativo, a decisão da questão recursória traduz-se na resposta à seguinte questão: o contrato de fornecimento de água, celebrado entre a recorrente e a recorrida, rege-se por normas de direito administrativo, ou antes se situa no domínio das relações jurídico-privadas?
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que a relação jurídica em causa não se integra no conceito de “relação jurídica administrativa”, tal como a jurisprudência e a doutrina o recortam, antes se situando no âmbito das relações jurídicas de direito privado, pelo que a cobrança da prestação em falta deverá efectivar-se no tribunal comum.
Face ao exposto, revela-se procedente o recurso, devendo reconhecendo-se ao tribunal recorrido a competência para julgar a acção.

4. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o recurso e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, reconhecendo a competência material do tribunal recorrido para o julgamento da acção, determinando em consequência o prosseguimento dos autos, com vista ao julgamento.
Custas do recurso pela parte vencida afinal.
*
O presente acórdão compõe-se de dezoito páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.

Porto, 4 de Maio de 2015
Carlos Querido
Soares de Oliveira
Alberto Ruço
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[1] O mesmo critério, ipsis verbis, se prevê actualmente no n.º 1 do artigo 40.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
[2] Tal como o faz actualmente o artigo 64.º do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
[3] Acessível no site da DGSI.
[4] Proferido no Processo n.º 07A1004, Acessível no site da DGSI.
[5] A Justiça Administrativa (Lições), 3.ª edição, Almedina, 2000, págs. 75 e seguintes.
[6] As relações jurídicas administrativas de prestação de cuidados de saúde – trabalho disponível no site http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/616-923.pdf.
[7] Proferido no Processo n.º 99770/12.3YIPRT.P1, acessível no site da DGSI.
[8] Proferido no Processo n.º 65542/12.0YIPRT.P1, acessível no site da DGSI.
[9] Ainda no mesmo sentido, veja-se o acórdão desta Relação, de 29.05.2014, Processo n.º 167178/12.0YIPRT-A.P1, também acessível no site da DGSI.