Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0815636
Nº Convencional: JTRP00041962
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
Nº do Documento: RP200812170815636
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 561 - FLS 95.
Área Temática: .
Sumário: A condenação em pena de prisão cuja execução foi suspensa, pela prática de um crime de coacção e resistência sobre funcionário p. e p. pelo art. 347º do Código Penal, não revela, só por si, falta de idoneidade para os fins previstos nos arts. 14º a 17º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 5636/08
1ª secção
Proc. nº ./02.7PAVLG-A

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
Em incidente que foi autuado por apenso ao Proc. Comum Singular nº ./02.7PAVLG que correu termos no .º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo, veio o arguido B………. requerer que lhe seja reconhecida idoneidade nos termos do artº 14º nº 3 da Lei nº 5/2006 de 23.02, a fim de solicitar a renovação da licença de uso e porte de arma de que era titular, relativamente a uma espingarda de caça, e cujo termo de validade ocorreu no dia 29.08.07.
A Digna Magistrada do Mº Pº, após audição do requerente, emitiu douto parecer concluindo que não lhe deve ser reconhecida idoneidade para o uso e porte de arma, mais promovendo que, em caso de homologação judicial de tal parecer, seja dado cumprimento ao disposto no artº 29º nº 2 da Lei nº 5/2006 de 23.02.
A fls. 22 e ss. veio a ser proferida decisão judicial devidamente fundamentada que decidiu, a final, homologar o parecer do Mº Público e, em consequência, não reconhecer a idoneidade do requerente para o uso e porte de armas, assim indeferindo o requerido.
Inconformado com a aludida decisão, dela veio o requerente interpor o presente recurso, terminando as respectivas motivações com as seguintes conclusões:
1. Os crimes pelos quais o recorrente foi condenado foram praticados em 3 de Janeiro de 2002, há mais de 6 anos, portanto;
2. De acordo com os factos provados na sentença proferida nos autos principais, o crime em que o arguido empregou violência visou, apenas, impedir a sua detenção (embora legítima);
3. A pena de prisão que lhe foi aplicada foi suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, que já decorreram;
4. Durante o período de suspensão da pena o arguido não praticou qualquer acto que pudesse conduzir à sua revogação;
5. A pena que lhe foi aplicada já se encontra extinta;
6. Militam a favor do recorrente os seguintes factos:
- ter 53 anos de idade;
- ser proprietário de uma espingarda desde, pelo menos, 1996;
- já ter obtido uma licença de uso e porte de arma;
- não constarem do seu CRC outras condenações;
- a condenação acima referida não está relacionada com o uso e porte de qualquer arma;
- a idoneidade cujo reconhecimento pretende destina-se apenas ao uso de armas da classe C e D, com vista à concessão de licença tipo “C” ou “D”, exclusivamente para a prática de actos venatórios;
7. Entende, assim, que reúne condições de idoneidade para que lhe seja concedida licença para detenção, uso e porte de arma de caça, pelo que a decisão recorrida violou o disposto nos artºs. 14º nº 1 al. c), 2 e 3 e 15º da Lei nº 5/2006 de 23.2 e 57º do Cód. Penal.
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O Mº Público no tribunal recorrido respondeu ao recurso, alegando em síntese que o requisito da idoneidade do requerente para efeitos de renovação da licença de uso e porte de arma não existia na Lei anterior (Lei nº 22/97 de 27.6). Contudo, estabelecia-se no artº 1º nº 2 al. c) a condição de que o interessado não tivesse sido alvo de medida de segurança ou condenado por qualquer um dos crimes previstos no nº 3, nem tivesse sido condenado por quaisquer infracções relacionadas com estupefacientes ou por condução sob o efeito do álcool.
Actualmente, não há uma estrita vinculação a um elenco determinado de crimes, devendo antes ponderar-se a condenação judicial pela prática de todo e qualquer tipo de crime e sendo a apreciação muito mais casuística.
O facto de uma pessoa já ter sofrido condenações penais não é suficiente, por si só, para que se entenda que a pessoa não é idónea para obter/renovar a licença de uso e porte de arma. No caso em apreço, considerando os crimes pelos quais o arguido foi condenado, a renovação da sua licença de uso e porte de arma pode constituir um factor de potenciação da prática de ulteriores factos ilícitos típicos, justificativos para que não lhe seja reconhecida a idoneidade para o uso e porte de arma.
Alega ainda que o recorrente não justificou nem demonstrou necessitar da licença de uso e porte de arma, sendo certo que referiu não ter carta de caçador, pelo que não está preenchida a condição prevista no artº 15º al. b) da Lei nº 5/2006.
Conclui assim que o recurso não merece provimento, devendo manter-se integralmente a decisão recorrida.
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Neste Tribunal da Relação, o Sr. Procurador da República emitiu douto parecer, subscrevendo integralmente a argumentação do Mº Pº na 1ª instância, acrescentando que o actual regime consagrado na Lei nº 5/2006, nomeadamente no que respeita à decisão sobre a (in)idoneidade para a obtenção de licença de uso e porte de armas, não pode dissociar-se de todo o contexto contemporâneo das exigências acrescidas em termos de prevenção da criminalidade violenta, em sentido amplo, e do controlo de armamento.
Conclui pela improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A decisão recorrida é do seguinte teor: (transcrição)
I. B………. veio requerer (cfr. fls. 18) que lhe seja emitida Certidão de Idoneidade, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Foi extraída e remetida certidão da sentença proferida nos autos principais, bem como do requerimento de fls. 18, a fim do M.P. proceder à emissão do Parecer a que alude o citado artigo 14.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
A fls. 1 e ss. destes autos, foi junto Parecer emitido pelo M.P., ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, no sentido de que não deve ser reconhecida a idoneidade do requerente para o uso e porte de armas.
II. Há que ponderar, como relevante para apreciação da idoneidade do requerente, e que resulta destes autos e do processo principal, que:
i) no âmbito dos autos principais, foi B………. condenado, por sentença proferida em 18-06-2004 (cfr. fls. 429 e ss., cujo teor se dá aqui por reproduzido), transitada em julgado no dia 05-07-2004, pela prática, em 03-01-2002, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º do C.P. e um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365.º, n.º 1 do C.P., na pena única de um ano de prisão e 150 dias de multa à taxa diária de € 4,00, suspensa na sua execução pelo período de três anos;
ii) não constam do C.R.C. do requerente quaisquer outras condenações (cfr. fls. 14 e ss.);
iii) o requerente nasceu em 23-03-1955 (cfr. fls. 245 dos autos principais);
iv) o requerente é proprietário de uma espingarda de caça, a que corresponde o Livrete n.º ……, emitido em 16-07-1996 (cfr. fls. 10);
v) foi emitida pela P.S.P. Porto uma Licença Trienal para uso e porte de arma de caça, n.º …./04, válida até 29 de Agosto de 2007, em nome do requerente, relativamente à arma com o Livrete n.º ….. (cfr. fls. 11 e 12);
vi) o requerente trabalha na casa mortuária no Hospital de ………. (cfr. fls. 4 e 7);
vii) o requerente reside com a esposa, aposentada, e um filho, de 21 anos, actualmente desempregado (cfr. fls. 4 e 7);
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A Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, estabelece o Regime Jurídico das Armas e Munições.
No seu Capitulo II, Secção I, vêm previstos os tipos de Licença de uso e porte de arma ou detenção, bem como os requisitos para a sua atribuição.
Ora, o artigo 14.º, n.º 1 da citada Lei[1] estipula quais os requisitos necessários para concessão da Licença B1 (artigo 12.º, al. b)); o artigo 15.º, n.º 1 refere-se aos requisitos para concessão da Licença C e D (artigo 12.º, al. c) e d)); o artigo 16.º, n.º 1 reporta-se aos requisitos para concessão da Licença E (artigo 12.º, al. e)); o artigo 17.º, n.º 1 estabelece os requisitos necessários à concessão da Licença F (artigo 12.º, al. f)) e, por seu turno, o artigo 18.º refere-se aos requisitos para concessão da Licença de detenção de arma no domicílio.
Entre os requisitos mencionados, encontra-se o da idoneidade do requerente (cfr. n.º 1, al. c) de cada um dos supra citados normativos).
A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto no n.º 2 e 3 do artigo 14.º, para o qual remetem os artigos 15.º, n.º 2, 16.º, n.º 2, 17.º, n.º 2 e 18.º, n.º 6.
Dispõe o artigo 14.º que:
“(…) 2- Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeitos da apreciação do requisito constante na alínea c) do número anterior, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão da licença o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime.
3 – No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode ser-lhe reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação, mediante parecer fundamentado homologado pelo juiz, elaborado pelo magistrado do Ministério Público que para o efeito procede à audição do requerente, e determina, se necessário, a recolha de outros elementos tidos por pertinentes para a sua formulação”.
A Lei não define o que se deve entender por idoneidade, sendo que, no entanto, estipula que é susceptível de indiciar a falta de idoneidade o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime.
Idoneidade implica aferir da aptidão de alguém para o uso e porte ou detenção de arma, de acordo com a normatividade.
O Tribunal, para emitir a declaração de idoneidade, deve, pois, alicerçar a convicção num juízo de prognose no sentido de que o requerente, presumivelmente, irá fazer um uso relativamente à arma, apenas e tão só, de acordo com a Lei.
Além da idoneidade, são indicados como requisitos para a concessão da Licença, os seguintes:
- o requerente se encontre em pleno uso de todos os direitos civis;
- seja portador de certificado médico;
- seja portador de certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo;
- demonstre carecer da licença, por motivos que variam em função do tipo de Licença requerida.
De referir, ainda, que a concessão de Licenças compete ao Director Nacional da PSP, a quem incumbe aferir da verificação dos seus pressupostos – artigo 12.º, n.º 1.
Assim, a apreciação de idoneidade para o uso e porte de arma não deve ser efectuada levando em consideração os aspectos supra referenciados, sob pena de se estar a efectuar uma apreciação dúplice e esvaziar o conteúdo das normas em causa.
Como consequência do atrás exposto, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o facto do arguido já ter requerido ou não uma licença ou a correspondente renovação não releva para o juízo de idoneidade a formular nem, consequentemente, para a economia da presente decisão, (cfr. Parecer do M.P., no qual se invoca tal fundamento para sustentar a oposição ao peticionado).
A condenação referida em i), indicia a falta de idoneidade do requerente para o uso e porte de arma.
A Lei 22/97, de 27 de Junho (alterada pela Lei 93-A/97, de 22-08, nos seus artigos 1.º, n.º 2, al. c), n.º 3 e n.º 4 e artigo 2.º, n.º 1 e 4, estabelecia como condição para a concessão e renovação de Licença referente às armas indicadas no n.º 1, al. a) e b), e no artigo 2.º, n.º 1, que o requerente não tivesse sido alvo de medidas de segurança ou condenado judicialmente por qualquer dos crimes previstos no n.º 3, nem condenado por quaisquer infracções relacionadas com estupefacientes ou por condução sob o efeito do álcool.
O referido diploma foi revogado pela Lei n.º 5/2006, sendo que, se por um lado a condenação pela prática de crime passa a funcionar sempre como indício de inidoneidade – alargou-se, portanto, o leque de crimes atendíveis, que não apenas os referidos no artigo 2.º, n.º 3 da Lei anterior - por outro lado deixou de haver automaticidade, como na legislação anterior.
Assim, a intenção do Legislador parece ser a de fazer passar pelo crivo judicial a apreciação da idoneidade ou não do condenado pela prática de um crime, para o uso e porte de arma, a apreciar casuisticamente.
Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 243/07, de 30 de Março[2], citado no Parecer emitido pelo Sr. Procurador da República F.VALÉRIO PINTO[3], «“(…) não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, mesmo de defesa, independentemente dos condicionalismos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a Lei qualifica como censuráveis.”. Acrescentando-se que, “(…) a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades de precauções, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso de armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis”. E que, “(…) nesses casos, é legítimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um acto que é genericamente proibido (…)”. Nada havendo, portanto, conclui-se “(…) de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionalismos diversos à posse de armas por particulares”.».
Face ao exposto, há que referir que militam a favor do Requerente o facto do mesmo ter 53 anos, ser proprietário de uma espingarda, pelo menos, desde 1996, tendo já obtido uma Licença de uso e porte de arma e de, até hoje, não constarem do seu C.R.C. outras condenações além da referida em i), que não está relacionada, de nenhum modo, com o uso e porte de qualquer arma.
Não obstante, não pode deixar de se frisar toda a argumentação supra exposta, no sentido de que o uso e porte de armas, pela perigosidade que encerra, se encontra condicionado a um licenciamento, cujos requisitos são, por inerência, estreitos.
Também há que reter que a condenação referida em i) deveu-se à prática, além de um crime de denúncia caluniosa, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º do C.P., pelo qual foi aplicada ao requerente uma pena de um ano de prisão – sendo certo que tal crime é punido com pena de prisão de um mês até cinco anos (artigos 41.º, n.º 1 e 347.º do C.P).
Ora, o artigo 347.º do C.P. prevê a punição de quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções mas contrário aos seus deveres, tratando-se de um crime grave, conforme se retira da própria moldura penal.
De acordo com os factos provados na sentença proferida nos autos principais, o arguido empregou violência contra um agente da GNR, actuando com dolo directo, e visando impedir que o mesmo procedesse à sua detenção, no exercício das suas funções.
A condenação pela prática de um crime no qual foi empregue violência, considerando que, no caso em apreço, a violência foi exercida contra um agente da GNR, o que implica que o mesmo tenha que ter vencido as contra-motivações éticas atinentes à normatividade, encerra, por si só, um sinal claro da existência de uma perigosidade acrescida atinente ao uso e porte de armas, que a Lei visa afastar.
De facto, o exposto faz afastar um juízo de probabilidade de que o requerente, se eventualmente colocado em situação de conflito – como ocorreu na situação apreciada na sentença proferida nos autos principais -, não irá utilizar a arma para fins que não os permitidos por Lei.
Se, em situação de conflito, o requerente já praticou um crime, com recurso à violência, quando a ordem jurídica lhe exigia que se abstivesse de o praticar, fica arredada a consideração de que o requerente é pessoa idónea para o uso, porte e detenção de uma arma.
Resulta do que se acaba de referir que se entende não ser possível formular um juízo positivo no sentido da idoneidade do arguido para detenção, uso ou porte de arma.
Assim, ponderando todos os factores atrás referidos, concordo com o douto Parecer do M.P. que antecede, no sentido de não ser reconhecida a idoneidade do requerente para o uso e porte ou detenção de armas.
III. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido homologar o Parecer do Ministério Público de fls. 1 e ss. e, consequentemente, não reconheço a idoneidade de B………. para o uso e porte de armas, pelo que indefiro o requerido a fls. 18.
Sem custas.
Notifique.
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III – O DIREITO
Como resulta da decisão recorrida, não foi reconhecida ao recorrente a necessária idoneidade para uso e porte de arma de caça, em virtude de ter sofrido condenação pela prática de ilícitos criminais, sendo um deles o crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. no artº 347º do Cód. Penal, pelo qual foi condenado na pena de um ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de três anos.
Sustenta-se na decisão recorrida que “se, em situação de conflito, o requerente já praticou um crime, com recurso à violência contra um agente da GNR, quando a ordem jurídica lhe exigia que se abstivesse de o praticar, fica arredada a consideração de que o requerente é pessoa idónea para o uso, porte e detenção de uma arma”.
Entendemos, porém, que a questão não pode ser apreciada tomando apenas como referência a condenação pela prática de um crime, não obstante se atente também à natureza dos elementos objectivos do tipo de ilícito em causa.
Se assim fosse, a falta de idoneidade para uso e porte de arma constituiria uma decorrência automática da condenação criminal, o que seria manifestamente inconstitucional.
O que está em causa nestes autos é saber se o recorrente é pessoa idónea para ter e utilizar uma arma de caça.
Vejamos:
O novo regime das armas e suas munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, estabelece no seu artº 14º nº 1 que a licença B1 [que habilita o seu portador ao uso e porte das armas da classe B1 e E, e que são, no primeiro caso: a) as pistolas semiautomáticas com os calibres denominados 6,35 mm Browing (.25 ACP ou .25 Auto); b) Os revólveres com calibre denominado .32 S & W Long - artºs 6º, e no caso das armas de classe E: a) Os aerossóis de defesa com gás cujo princípio seja a capsaina ou oleoresina de capisicum; b) as armas eléctricas até 200 000 v, com mecanismo de segurança; e, c) as armas de fogo e suas munições, de produção industrial, unicamente aptas a disparar balas não metálicas, concebidas de origem para eliminar qualquer possibilidade de agressão letal e que tenham merecido homologação por parte da Direcção Nacional da PSP - artºs 12º, alínea b), e 3º, nºs 4, alíneas a) e b), e 7, alíneas a), b) e c), todos da mesma Lei], estabelece - dizíamos - que a licença B1 só pode ser concedida a quem seja maior de 18 anos e preencha ainda, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Se encontre em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstre carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Seja idóneo;
d) Seja portador de certificado médico;
e) Seja portador de certificado de aprovação para uso e porte de armas de fogo.
2. Para efeitos de apreciação do requisito idoneidade estabelecido naquela alínea c), refere o artº 14º, nº 2 da mesma Lei que, "(...) é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime";
3. Apreciação que é efectuada, refere-se o mesmo normativo em questão “Sem prejuízo do disposto no artº 30º da Constituição da República Portuguesa e do número seguinte ...";
4. Este regime agora analisado para os requerentes de Licença B1 é correspondentemente aplicável aos requerentes das Licenças C e D [artº 15º, nº 1, alínea c), e 2], E [artº 16º, nº 1, alínea c), e 2] e F [artº 17º, nº 1, alínea c), e 2];
5. E aquela remissão para o artº 30º da CRP está relacionada com os «chamados efeitos da condenação», enquanto efeitos legalmente determinados derivados de uma condenação[4], e que se traduz na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial, apenas por força da lei, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos (artº 30º nº 4 da CRP).
A referida proibição decorre do princípio jurídico-constitucional subjacente à ideia político-criminal de retirar às penas qualquer efeito infamante ou estigmatizante, e do dever do Estado de favorecer a socialização do condenado.
Contudo, como se decidiu no Ac. Trib. Constitucional nº 243/2007[5], “estamos em presença de uma actividade cujo exercício está genericamente dependente de licença, o que significa (…) que não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, incluindo as de defesa, independentemente dos condicionamentos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis.
Com efeito, a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades de precauções, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso de armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis. Nesses casos, é legítimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um acto que é genericamente proibido.
Na verdade, a necessidade do licenciamento pressupõe mesmo uma proibição geral do exercício destas actividades, como é indiscutivelmente o caso do uso e porte de armas. Nada há, portanto, de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos diversos à posse de armas por particulares”.
Do confronto entre as disposições da Lei nº 5/2006 e da anterior lei das armas aprovada pela Lei nº 22/97 de 27 de Junho, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 93-A/97 de 22 de Agosto, conclui-se que, se por um lado se alargou o âmbito da não concessão de licença de uso e porte de arma às situações em que o requerente foi condenado judicialmente pela prática de crime (e não apenas pelos crimes elencados no artº 1º, nºs 2, alínea c) e 3, da anterior Lei das Armas), por outro lado, a condenação pela prática de crime, actualmente, apenas é susceptível de indiciar falta de idoneidade, pelo que a sua aplicação não é assim automática[6].
A susceptibilidade de se mostrar indiciada a falta de idoneidade pela condenação do requerente pela prática de um crime terá, assim, de ser apreciada casuisticamente.
Antes de mais importa referir que a expressão “idoneidade” significa aptidão, capacidade, competência; qualidade de quem é idóneo, que significa ser conveniente, adequado, próprio para alguma coisa; que tem condições para desempenhar certos cargos, certas funções ou realizar certas obras; que tem qualidades para desempenhar determinada actividade … ou de quem se pode supor honestidade[7].
Assim, na situação que ora nos ocupa, a “idoneidade” a que aludem os artºs. 14º a 17º da Lei nº 5/2006, traduzirá a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.
Há assim que apurar se a mera condenação judicial do recorrente pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário p. e p. no artº 347º do Cód. Penal, é susceptível de revelar falta de idoneidade para os fins pretendidos, ou seja, se, como se conclui na decisão recorrida, “a condenação pela prática de um crime no qual foi empregue violência, … contra um agente da GNR … encerra, por si só, um sinal claro da existência de uma perigosidade acrescida atinente ao uso e porte de armas, que a Lei visa afastar”.
Em primeiro lugar, refira-se que mal se compreende a ligação que se estabelece na decisão recorrida entre a violência empregue contra um agente da GNR, por um lado, e a perigosidade acrescida atinente ao uso e porte de armas por parte do recorrente.
Com efeito, como resulta da decisão condenatória proferida nos autos principais, nem a violência empregue pelo arguido assumiu especial relevo, nem se verificou o uso de qualquer tipo de arma na prática dos factos, que permitam afirmar que “existe um sinal claro de perigosidade acrescida quanto ao uso e porte de armas”.
Em segundo lugar, a pena aplicada ao arguido (ora recorrente) por sentença proferida em 18.06.2004 respeita a factos ocorridos em 03.01.2002 e, já então, o arguido era detentor de uma arma de caça (cfr. doc. de fls. 10, emitido em 16.07.96), sendo certo que inexiste entre ambos qualquer ligação.
Finalmente, não se pode esquecer que a pena de um ano de prisão imposta ao arguido pela prática do referido crime foi suspensa na sua execução pelo período de três anos, por se ter entendido que, face à ausência de antecedentes criminais, a ameaça de cumprimento da pena aliada à censura pública dos factos efectuada em audiência, se mostravam suficientes para convencer o arguido a não voltar a delinquir.
Mostrando-se já decorrido o período de suspensão de execução da pena, do teor do CRC junto a fls. 24 e 25, não resulta que o arguido tenha, entretanto, cometido qualquer outro ilícito criminal.
Ora, é sabido que o artº 50º do Cód. Penal atribui ao tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos (não superior a 3 anos de prisão, à data da decisão condenatória) sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido[8].
Como se salientou no Ac. do STJ de 08.05.97 (Proc. nº 1293/96) “factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”.
Se, aquando da decisão condenatória proferida no processo apenso, se entendeu ser possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido e que a ameaça da pena seria suficiente para o auto-responsabilizar, fazendo-o vencer a vontade de delinquir, entendemos que, tendo decorrido o período de suspensão fixado na condenação sem que haja notícia da prática de novos crimes, não existem elementos que permitam concluir que aquele juízo de prognose favorável se alterou e que o recorrente não reúne actualmente condições de idoneidade para que lhe possa ser concedida a pretendida licença de uso e porte de arma de caça.
Aliás, a razão de a reabilitação judicial a que alude o artº 14º nº 3 da Lei nº 5/2006 dever ser apreciada pelo tribunal da última condenação, prende-se, em nossa opinião, precisamente com o facto de este tribunal estar mais habilitado para averiguar da reinserção social do ex-condenado.
Com efeito, como refere Figueiredo Dias[9] a distinção, consagrada na nossa ordem jurídica, entre reabilitação legal ou de direito - que tem lugar, automaticamente, e de forma irrevogável, decorrido determinado lapso de tempo, sem que, entretanto, tenha ocorrido nova condenação por crime (cfr. artº 15º, nº 1, da Lei 15/98, de 18 de Agosto) - e a reabilitação judicial - em que a averiguação da reintegração social do ex-condenado faz-se de um modo individualizado, correndo no âmbito de um processo específico e autónomo, em regra, perante o Tribunal de Execução de Penas - decorre unicamente do critério adoptado para verificar a efectiva ressocialização do indivíduo, reconduzindo-se a disciplina de um e outro a um princípio básico de prevenção especial.
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Na resposta ao recurso alega a Srª Procuradora Adjunta que “o arguido não demonstrou carecer da referida licença de uso e porte de arma de caça e que não está habilitado com a carta de caçador, razão pela qual também não reúne os requisitos exigíveis para o reconhecimento da idoneidade, nos termos do artº 15º nº 1 al. b) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro”.
Entendemos, porém, que não lhe assiste razão.
Com efeito, da simples leitura do preceito legal em apreço resulta que a concessão de licenças do tipo C e D depende da verificação cumulativa de determinadas condições. Entre tais condições, figuram as seguintes: al. b) demonstre carecer de licença para a prática de actos venatórios de caça maior ou menor, para as licenças C ou D, respectivamente, e se encontre habilitado com carta de caçador com arma de fogo; al. c) seja idóneo.
Conclui-se assim que se trata de requisitos autónomos exigidos pela lei para a concessão de licença de uso e porte de arma. Aliás, a atribuição da licença é feita através de um processo selectivo que inclui, para além dos requisitos atrás referidos, a aptidão física e psíquica do requerente, atestada por um médico; a frequência, com aproveitamento, de um curso de formação ministrado pela PSP; um exame final da responsabilidade de um júri nomeado pela PSP. Por outro lado, a renovação da licença atribuída nos termos da Lei nº 5/2006 depende da frequência regular de uma carreira de tiro onde o requerente tem de efectuar, no mínimo, cem disparos por ano, e da frequência de um curso de actualização de cinco em cinco anos.
Por outro lado, a idoneidade (enquanto qualidade pessoal) em nada se confunde com a necessidade de uma licença ou com a titularidade de carta de caçador.
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Nestes termos e pelas razões expostas, entende-se que inexiste fundamento para se recusar ao recorrente a reabilitação judicial para os fins pretendidos.
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IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, reconhecendo-se ao recorrente condições de idoneidade para os efeitos previstos no artº 15º da Lei nº 5/2006 de 23.2.
Sem tributação.
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Porto, 17 de Setembro de 2008
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
José Ferreira Correia de Paiva

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[1] As referências a artigos sem indicação do diploma legal do qual fazem parte, são feitas por reporte à Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
[2] Cfr. em www.tribunalconstitucional.pt
[3] Cfr. em www.trp.pt/mp-pareceres/reabilitacaojudicial-armas-municoes-html , com o título “Reabilitação Judicial. Novo Regime de armas e munições.”, datado de 26-06-2007.
[4] V. Jorge Miranda, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, pág. 337.
[5] Publicado no DR., 2ª Série, nº 98 de 22.05.2007
[6] Como referiu o DNPSP no XV Encontro Nacional de Caçadores organizado pela FENCAÇA, no dia 6 de Maio de 2007, em Santarém, a propósito do reconhecimento de idoneidade para a concessão de licenças a pessoas que abusem do consumo de álcool: “O que se pretende saber é se a pessoa teve um episódio esporádico ou se estamos perante alguém que abuse do álcool. Estas informações são apenas indícios. Se houver por exemplo prova testemunhal que o requerente é alcoólico mas não estiver condenado por nada, não será certamente pessoa idónea para ter e utilizar uma arma de caça. De igual forma se tiver cometido um crime poderá ser pessoa idónea”.
[7] Cfr. “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
[8] Cfr. Figueiredo Dias “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, RLJ, Ano 124º, pág. 68 e “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, § 518, págs. 342/343.
[9] In "Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime", § 1048.