Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
453/12.4TTVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RITA ROMEIRA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
HOMICÍDIO
HORÁRIO NORMAL DE TRABALHO
TEMPO E LOCAL DE TRABALHO
Nº do Documento: RP20180910453/12.4TTVFR.P1
Data do Acordão: 09/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO 1ª
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL) (LIVRO DE REGISTOS Nº 281, FLS 227-238)
Área Temática: .
Sumário: I - Terminando o horário normal de trabalho da empresa às 17h30, a hora, após as 18,10, não pode deixar de ser considerada, pelo menos para efeitos de reparação de acidentes de trabalho, o período normal de trabalho do administrador que, não obedecendo a um horário rígido, àquela hora se encontra no seu local de trabalho.
II - O acidente ocorrido no tempo e local de trabalho é um acidente de trabalho, seja qual for a causa, a não ser que se demonstre que a vítima, aquando do acidente, se encontrava subtraída à autoridade patronal.
III - Pois, a qualificação do acidente, como de trabalho, nos termos do art. 8º da NLAT, não exige que o acidente ocorra na execução do contrato de trabalho ou por causa dessa execução, bastando que ocorra por ocasião da mesma, encontrando-se pressuposto, nessas circunstâncias, que o trabalhador/sinistrado se encontra directa ou indirectamente sujeito ao controlo da empregadora.
IV - Assim, as consequências decorrentes do homicídio de um trabalhador no seu local e tempo de trabalho, cometido por outro trabalhador, só deixarão de ser da responsabilidade da empregadora se, esta, lograr demonstrar que aquele se encontrava subtraído da sua autoridade patronal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 453/12.4TTVFR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Penafiel - Juízo do Trabalho - Juiz 1
Recorrente: B..., SA
Recorrido: Fundo de Acidentes de Trabalho

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
O A., Fundo de Acidentes de Trabalho, intentou, acção com processo especial emergente de acidente de trabalho, contra a R., B..., S.A., onde pede que seja julgada procedente e provada e por via dela:
1 – Ser declarado o acidente sofrido por C... como de trabalho;
2 – Ser a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de 83 206,62€ (oitenta e três mil, duzentos e seis euros e sessenta e dois cêntimos).
Fundamenta o pedido alegando, em síntese, que C..., à data do acidente de que foi vítima, trabalhava para a R., auferindo mensalmente € 4774,32 x 14 + € 1981,11 x 14, não estando esta última tranche transferida para nenhuma Seguradora.
Alega que tendo o C... sido vítima de acidente de trabalho e falecido sem deixar familiares com direito a pensões por morte, reclama da R. o pagamento do triplo da retribuição anual auferida pelo malogrado sinistrado, na parte não transferida para a Seguradora, com fundamento no disposto no art. 63º da Lei nº 98/09 de 4 de Setembro.
Mais, alega que, na tentativa de conciliação realizada, a R. aceitou o salário auferido pelo sinistrado, contudo não aceitou conciliar-se por não aceitar o acidente como de trabalho ou a sua caracterização, nem aceitar o nexo de causalidade entre as lesões e a morte.
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Citada a Ré contestou, nos termos que constam a fls. 286 e ss., por excepção, invoca ter caducado o direito de o autor exercer o seu direito e por impugnação, alega não estarmos perante acidente de trabalho, mas sim de um acto individual/pessoal, doloso, voluntário, culposo, premeditado levado a cabo por um trabalhador da empresa B..., D..., assim a morte do sinistrado não pode consubstanciar um acidente de trabalho, tendo em conta os elementos necessários ao conceito de acidente de trabalho.
Conclui que deve ser julgada procedente a excepção da caducidade, com a consequente absolvição do pedido;
- caso assim não se entenda deve a presente acção ser julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
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O A., nos termos que constam a fls. 423 e ss., apresentou resposta à excepção deduzida, concluindo pela sua improcedência.
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Após, a junção aos autos de diversos documentos, foi proferido despacho a fls. 635, datado de 19/01/2017, a convidar o A., nos termos do disposto no Art. 590º, nº 2, al. b) e 4 do C.P.C., aplicável ex vi do art. 1º, nº 2 do C.P.T., a concretizar o por si alegado em 5º da petição inicial, no segmento onde refere que C... encontrava-se “ … e no tempo de trabalho…”, mormente esclarecendo e alegando qual o horário por si habitualmente praticado”, o que o A. cumpriu, nos termos que constam a fls. 637 e 638 e a Ré impugnou a fls. 639, concluindo que deve ser absolvida de qualquer responsabilidade.
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A fls. 644 e ss., foi fixado à acção o valor de € 83.206,62, proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi a arguida excepção de caducidade julgada improcedente, efectuada a selecção da matéria de facto assente e organizada a base instrutória que, não foi objecto de reclamação.
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Realizada a audiência de discussão e julgamento, nos termos documentados na acta de fls. 684, e dada resposta à matéria de facto, fundamentada e motivada, conforme consta a fls. 686 e 687, sem reclamação, foi de seguida, em 26.01.2018, proferida sentença que terminou com a seguinte decisão:
Pelo exposto, julgo a presente acção procedente, por provada e, em consequência, declarando que o acidente sofrido por C... foi um acidente de trabalho:
- Condeno a R. a pagar ao A. a quantia de € 83.206,62 (oitenta e três mil duzentos e seis euros e sessenta e dois cêntimos).
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Custas pela R. Empregadora.”.
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Inconformada, a R. interpôs recurso terminando as alegações, juntas a fls. 700 e ss., com as seguintes CONCLUSÕES:
1) O assassinato qualificado, doloso e premeditado, do Eng C... cometido pelo escriturário D... nenhuma relação teve com a prática de um ato profissional do homicida ou da vítima no desempenho e por causa do desempenho das suas respetivas funções profissionais na entidade patronal, a ora Recorrente;
2) O assassinato não resultou nem foi nenhum acidente de trabalho, sendo a Recorrente alheia e independente a qualquer nexo de causalidade entre a escolha do lugar e o acto de matar do assassino D... e a morte resultante do Eng C... proveniente da execução do ato intencional, premeditado e dolosamente pretendido pelo D... de assassinar o Eng C...;
3) O assassinato não ocorreu em nenhum momento do horário do trabalho nem do homicida nem da vítima, nem na execução, direta, indireta ou conexa de qualquer função profissional do autor do homicídio e da vítima;
4) O assassinato não ocorreu no horário de trabalho;
5) O assassinato não decorreu de qualquer ato profissional no exercício de qualquer função profissional decorrente do trabalho, quer do escriturário D... quer da vítima C...;
6) O assassinato do Eng C... nas instalações da Recorrente por parte do escriturário D... resultou tão somente, do assassino ter considerado que aquele era o melhor local onde mais facilmente o homicida se poderia aproximar do Eng C... sem despertar nenhuma suspeita e apanhar de surpresa o Eng C..., pelas suas costas, como fez, sem a vítima se poder aperceber das intenções reais do assassino;
7) A faca utilizada pelo escriturário assassino não integra nenhum instrumento de trabalho de escriturário do homicida e do trabalho de administrador da vítima e, tanto assim, que, para a utilizar, o homicida teve que comprar a faca 2 dias antes de assassinar o Eng C...;
8) O homicídio cometido pelo escriturário D... foi um ato preparado, friamente pensado, traiçoeiramente orquestrado e praticado pelo escriturário D..., com a antecedência mínima de 2 dias.
9) As instalações da Recorrente não serviram de local de trabalho para causar e dar azo ao crime, mas unicamente como local concebido mentalmente pelo homicida, como sendo o mais adequado para matar e não ser descoberto ou identificado como assassino;
10) O homicídio foi um ato pessoal do homicida visando a pessoa concreta do Eng C... como meio tortuoso e indigno do assassino esconder o crime de abuso de confiança continuado que estava, desde há mais de 2 anos, a praticar em relação à Recorrente, sua entidade patronal.
11) As marcas deixadas no pescoço do Eng.C... pelo golpe que aí sofreu e que o relatório de autópsia descreve inculcam a percepção que o assinalado golpe foi desferido de cima para baixo, o que é compatível com a ideia de um ataque-surpresa, por trás e estando a vítima sentada e o arguido em pé; isto porque, sabendo nós que o arguido terá, como reconheceu em audiência e o Colectivo pôde visualmente constatar, cerca de l,71m/l,72 m, e que a vítima tinha 1,72 m (cfr. fls. 574), o golpe de cima para baixo é de bem mais fácil configuração existindo na ocasião um desnível de alturas derivado de a vítima estar sentada;
12) O próprio Tribunal na fundamentação das respostas à base instrutória reconhece que não há nenhuma prova de ligação entre a presença do Eng C... nas instalações da Recorrente e o exercício por este de qualquer função ao serviço da Recorrente, no momento em que foi assassinado;
13) Um assassinato qualificado, premeditado em que o gabinete da vítima nas instalações da entidade patronal foi previamente escolhido pelo homicida como local onde ia ou podia mais facilmente executar o homicídio, não reúne os pressupostos de um acidente de trabalho
14) No caso concreto do assassinato do Eng. C... não se verifica o facto naturalístico do acidente, a sua ocorrência no tempo do trabalho, o nexo de causalidade entre o exercício da função de trabalho e o homicídio, e este não ocorreu de modo não intencional ou involuntário;
15) nem a compra da faca, 2 dias antes, pelo assassino, nem a premeditação do assassinato por parte do escriturário D..., nem o facto do Eng C... estar tranquilamente sentado numa cadeira, de costas para o assassino, nem o apunhalar com a faca pelo assassino, integram ou se podem conceber que integram actos decorrentes da prática de serviços profissionais a serem prestados quer pelo assassino quer pela vítima à Recorrente.
16) O apunhalamento pelas costas do Eng C... não tem qualquer relação com o trabalho da vítima e com o trabalho do escriturário assassino;
17) A morte do Eng C... não ocorreu por causa do trabalho, não foi uma consequência do trabalho que ele pudesse estar a executar e não estava.
18) O homicida D..., ao assassinar o Eng C..., por forma dolosa, premeditada, fria, calculista, cruel não actuou no exercício das funções que exercia na Recorrente nem a sua conduta dolosa foi em prol da atividade exercida pela Recorrente B...;
19) A Ré Recorrente não contribuiu para o facto produzido, nem nenhuma culpa se lhe poderá imputar a titulo do evento ocorrido, sendo alheia e estranha a este comportamento pessoal, doloso, grosseiro, cruel e premeditado, tido pelo escriturário D... quando, inclusive, tal atos é punido criminalmente, de forma severa, pelo nosso ordenamento jurídico;
20) A Senhora Doutora Juíza a quo, na decisão que proferiu, violou o disposto no Regime Jurídico dos acidentes de trabalho nos artigos 8º, 9º, 14º e 15º da lei n9. 98/2009 de 4 de setembro.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exªs sabiamente saberão suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente e ser revogada a decisão proferida em primeira instância, com as consequências legais. JUSTIÇA

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Nos termos que constam do despacho de fls. 716, a Mª Juíza “a quo” admitiu a apelação e ordenou a sua subida a esta Relação.
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O Ex.mo Procurador Geral Adjunto teve vista nos autos, nos termos do art. 87º nº3, do CPT e emitiu parecer no sentido de que deve ser julgado improcedente o recurso, por subscrever a decisão recorrida.
Notificadas as partes nada disseram.
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Cumprido o disposto no art. 657º, nº 2, do CPC, há que apreciar e decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, cfr. art.s 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.
Assim a questão a apreciar e decidir consiste em saber se, o acidente sofrido pelo sinistrado deve ser caracterizado como de trabalho como concluiu o Tribunal “a quo” ou se, como defende a recorrente, não se verificam os requisitos para o efeito.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
A 1ª instância, discutida a causa, deu como provados os seguintes factos:
“A) No dia 24-05-2012, C..., beneficiário da segurança social n.º ..........., trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização de B..., SA.
B) Desempenhava as funções inerentes à categoria profissional de administrador, auferindo uma remuneração mensal de 4.774,32€, acrescida de um complemento de vencimento no montante mensal de 1.981,11€, [o que perfaz a retribuição anual de 94.576,02€ (4.774,32,00€ x 14 meses + 1 981,11€ x 14 meses).
C) A responsabilidade infortunística laboral encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros E..., S.A. através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ../...... do ramo acidentes de trabalho.
D) A responsabilidade transferida era apenas parcial, porquanto a Ré apenas havia transferido para a Companhia de Seguros a responsabilidade em função da remuneração de 4.774,32€ x 14 meses.
E) No referido dia 24-05-2012, o trabalhador C... encontrava-se na sede da Ré quando foi atingido por uma facada, desferida por D... também funcionário da Ré, que lhe perfurou a traqueia, atingindo a veia jugular esquerda e artéria carótida esquerda.
F) A conduta de D... provocou ao sinistrado lesões que vieram a ser causa direta e necessária da sua morte ocorrida no próprio dia 24/05/2012, conforme relatório de autópsia junto aos autos a fls. 33 a 45.
G) O sinistrado faleceu no estado civil de solteiro e sem deixar beneficiários legais.
H) A Companhia de Seguros E..., SA já liquidou ao FAT a importância de 200 521,44€, conforme acordo obtido em sede de tentativa de conciliação de Fls. 208.
I) Na tentativa de conciliação realizada em 8 de Outubro de 2013, a Ré entidade patronal aceitou que o sinistrado, à data da morte, auferia o salário de 4 774,32€ x 14 meses + 1 981,11 € x 14 meses.
J) Não aceitou a Ré a conciliação por não aceitar o acidente como de trabalho ou a sua caracterização, nem aceitar o nexo de causalidade entre as lesões e a morte do sinistrado.
L) As conclusões da autópsia apontam o homicídio como a causa da morte.
M) D... foi condenado por Acórdão do STJ, já transitado em julgado, pelo homicídio qualificado de C... no processo do 1.º Juízo Criminal deste Tribunal sob o n.º 937/12.4JAPRT – cfr. certidão junta a Fls. 532 e ss dos autos.
N) No âmbito do referido processo, o trabalhador D..., foi condenado, em sede de 1ª instância, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado e de um crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos do artigo 131.º/1 e 132.º e 2 g) e j) do Código Penal, tendo sido condenado em cúmulo jurídico, a uma pena de prisão de 23 anos – cfr. documento junto aos autos a fls. 231 e ss.
O) Tal decisão, foi alvo de recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual manteve na íntegra a decisão proferida pelo Tribunal Colectivo, contudo foi a mesma alvo de recurso para o Supremo Tribunal de justiça – cfr. Fls. 292 e ss.
P) Por decisão do STJ, decisão essa já transitada em julgado, D..., foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado e de um crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos do artigo 131.º/1 e 132.º e 2 g) e j) do Código Penal, tendo sido condenado em cúmulo jurídico, a uma pena de prisão de 19 anos – cfr. documento junto aos autos a fls.532 e ss.
Q) D... em 24.05.2012 era funcionário da R. B... há cerca de 18 anos.
R) No acórdão do STJ foram dados como provados os seguintes factos, com interesse para a boa decisão desta causa:
“1) D..., arguido, trabalhava há cerca de 18 anos na empresa B..., sita na Rua ..., n° ..., em São João de Ver, área desta comarca.
2) No âmbito das funções que lhe estavam confiadas, o arguido era o responsável pela gestão administrativa, financeira, informática e pelo controlo de créditos da dita empresa, respondendo directamente perante C..., Administrador da B....
3) O arguido era, também, o responsável pelo controlo do caixa da empresa, assim como das contas bancárias da sociedade em causa.
4) D... era, de facto, a pessoa de confiança de C... na empresa.
5) Por seu turno, este último era o responsável máximo da B..., passando por si todas as decisões que afectassem o destino daquela.
6) A sociedade B... adoptava os seguintes procedimentos no que aos registos dos movimentos em numerário realizados concerne:
O seu Departamento Comercial preenchia diariamente um mapa designado por Registo de Movimentos de Caixa do Departamento Comercial onde fazia constar, entre outra, a seguinte informação: o saldo transitado do dia anterior, o valor global recebido relativo as vendas a dinheiro emitidas no dia, o valor do numerário entregue ao Departamento Administrativo e o saldo a transitar para o dia seguinte; eram também mencionadas as importâncias recebidas em numerário referentes a liquidações de valores que se encontravam lançados em conta corrente (ou seja, relativos a vendas a crédito, as quais também eram entregues ao Departamento Administrativo);
O seu Departamento Administrativo preenchia, numa base mensal, uma folha de caixa, onde registava diariamente os movimentos referentes às entradas (na coluna "crédito") e as saídas de dinheiro/numerário (na coluna "débito"); as entregas de dinheiro correspondem as entregas efectuadas pelo Departamento Comercial relativas a vendas a dinheiro e a crédito, as entregas efectuadas pelo Departamento Comercial da B... (em ...) e aos recebimentos referentes a liquidação por parte dos clientes de valores em conta corrente ou a troca de cheques pré-datados por numerário; as saídas de numerário correspondem a depósitos bancários e pagamentos de despesas.
7) Ou seja, a B... tinha um caixa único por onde passavam todos os pagamentos e recebimentos.
8) As entradas de valores entravam no caixa comercial (ou de balcão), sendo que todas as saídas deste caixa eram suportadas por documentos justificativos. Estes apuros eram registados directamente no programa de contabilidade da empresa.
9) Para o efeito, F... elaborava uma folha do caixa de balcão onde procedia ao registo de todas as vendas realizadas e de todos os valores recebidos e que entregava, já devidamente preenchida com os apuros realizados e juntamente com os valores recebidos, ao arguido.
10) D... procedia, então, à conferência dos valores e retirava do caixa de balcão as verbas destinadas a depósito no dia seguinte, ali deixando pequenas verbas que transitavam para o dia imediatamente posterior, a título de fundo de maneio. Este procedimento era acompanhado pelo responsável do caixa de balcão, F....
11) No dia seguinte de manhã o arguido, e com base na folha que lhe havia sido entregue por F..., elaborava um relatório financeiro relativo aos movimentos das contas de caixa e de bancos da empresa, onde fazia reflectir todos os movimentos financeiros verificados nestas contas, desde entradas de dinheiro, depósitos e pagamentos de despesas referentes ao dia anterior. Tal relat6rio destinava-se a ser entregue ao Administrador da empresa.
12) Na verdade, era através deste relatório de gestão que C... tinha conhecimento da situação financeira da empresa, sabendo qual o valor de caixa, das vendas, dos depósitos e saldos das diversas contas bancárias, assim como a evolução das contas correntes dos clientes para, com base nisso, tomar as decisões financeiras que tivesse por convenientes.
13) Acontece, porém que o arguido decidiu, em data não concretamente apurada mas, seguramente, a partir de 2 de Agosto de 2010, começar a fazer suas algumas das quantias que lhe eram entregues por F..., oriundas do caixa comercial.
14) Nessa sequência, começou a omitir parte do apuro diário no relatório de gestão que elaborava, locupletando-se com a diferença entre o valor real diário apurado no caixa e o valor diário que fazia constar do relatório de gestão elaborado diariamente.
15) Para o efeito, e para evitar ser descoberto, D... engendrou um esquema, nos seguintes moldes: por um lado, diminua os valores que transitavam do caixa comercial para o caixa da empresa, no relatório financeiro/de gestão que apresentava diariamente a C... (valores esses de que se apropriava); por outro, e no intuito de abater o saldo de caixa existente nas contas da empresa, para evitar ser descoberto, passou a entregar junto da contabilidade, para processamento, despesas fictícias, como por exemplo, refeições e combustível (e sem o conhecimento da administração).
16) Deste modo, fazia parecer que foram pagas pelo caixa determinadas verbas correspondentes a pagamentos que nunca existiram mas que, depois de registados, permitiam diminuir o saldo contabilístico do caixa.
17) Ou seja, o arguido apropriou-se, ao longo de pelo menos cerca de 2 anos, de dinheiro que lhe era entregue por F..., como sendo proveniente do apuro diário do caixa e, após, para evitar ser descoberto, não o reflectia no relatório de gestão que apresentava diariamente a C....
18) Por seu turno, e no intuito de fazer diminuir o saldo de caixa, apresentava talões de despesa junto da contabilidade que não correspondiam a reais despesas efectuadas por parte da empresa ou de algum dos seus funcionários administradores.
19) Assim, desde 2 de Agosto de 2010 e até 24 de Maio de 2012, D... apoderou-se de pelo menos € 81.029,46 (oitenta e um mil e vinte e nove euros e quarenta e seis cêntimos).
20) Para justificar parte de tal desvio, apresentou, ao longo do mencionado período, despesas no valor de € 28.208,68 (vinte e oito mil, duzentos e oito euros e sessenta e oito cêntimos) a contabilidade (correspondendo a despesas com combustíveis e refeições), despesas essas que, obviamente, não constavam dos relatórios financeiros/de gestão apresentados pelo arguido a C....
21) Na verdade, ao longo de pelo menos quase dois anos, D... elaborou os relatórios diários de gestão fazendo constar, como importâncias recebidas do caixa de Departamento Comercial, valores inferiores aqueles que efectivamente recebeu e que foram devidamente relevados em termos contabilísticos.
27) Ou seja, ao longo de quase dois anos, o arguido apresentou talões de despesas não correspondentes a despesas efectivas da B... ou de algum dos seus colaboradores, no montante global de € 28.208,68, dos quais:
- € 13.864,26, no ano de 2010 (de Agosto em diante); e
- € 14.344,42, no ano de 2011.
28) Ou seja, ao longo de pelo menos quase dois anos, o arguido apresentou talões de despesas não correspondentes a despesas efectivas da B... ou de algum dos seus colaboradores, no montante global de € 28.208,68 (vinte e oito mil, duzentos e oito euros e sessenta e oito).
36) Por outro lado, começou também a analisar os relatos contabilísticos da empresa.
37) O arguido D..., que sabia das dificuldades financeiras da B..., por um lado e, por outro, temendo que C... se deparasse com o esquema ardiloso por si montado ao longo dos anos, na sequência de um maior controlo, por parte daquele último, às contas da empresa, decidiu, em data não concretamente apurada, mas não posterior a 22 de Maio de 2012, matar o Administrador da B....
38) Deste modo, decidiu adquirir uma faca para levar a cabo os seus intentos – o que fez.
39) Na verdade, no dia 22 de Maio de 2012, pelas 18h55m, D... dirigiu-se ao estabelecimento G... e, uma vez ali, adquiriu uma faca de cozinha, com cabo preto e lâmina de 15 em cerâmica de cor branca.
40) Assim, no dia 24 de Maio de 2012, ao fim da tarde, D... esperou que todos os funcionários da empresa saíssem das instalações da B... resolveu levar a cabo os seus intentos.
41) Assim, a hora não exactamente apurada mas posterior ao fim de um telefonema que C... terminou pelas 18h10m, D... entrou no escritório daquele, empunhando a referida faca.
42) C..., que de nada desconfiava, até porque tinha total confiança em D..., manteve-se sentado.
43) Eis senão quando o arguido o surpreende, desferindo-lhe uma facada no pescoço, lado esquerdo.
44) A violência da referida facada foi tal que D... perfurou de imediato a traqueia de C..., atingindo a veia jugular esquerda e a artéria carótida esquerda deste.
45) Não satisfeito, e porque C... ainda tentou afastar o arguido de si, com o braço, D... desferiu-lhe outra facada, desta feita no antebraço direito, provocando-lhe, de modo directo e necessário, um ferimento com cerca de 7,5 cm de comprimento.
46) Com a conduta descrita, perpetrada pelo arguido, resultaram, directa e necessariamente, para o ofendido...
47) ... ao nível do pescoço, solução de continuidade com bordos lineares, com infiltração sanguínea dos bordos e em forma de "v" deitado, localizada na face postero-lateral do terço médio do pescoço, com as seguintes características: • Ramo obliquo: solução de continuidade localizada superiormente, obliqua, paralela de pavilhão auricular esquerda com bordos lineares com 5,5 cm de comprimento; • Ramo horizontal: solução de continuidade localizada inferiormente, horizontal, com bordos lineares, a juntar-se anteriormente ao ramo oblíquo, com 3 cm de comprimento; • Solução de continuidade superficial, linear, descontinua, na junção dos 2 ramos, com 1,5 cm de comprimento; • tais soluções de continuidade prolongaram-se até à face posterior do 113 da veia jugular e artéria carótida esquerdas, com infiltração sanguínea dos tecidos moles adjacentes; • Perfuração de todas as camadas da traqueia para o seu interior, com infiltração sanguínea dos tecidos moles adjacentes...
48) ... e ao nível do membro superior direito, solução de continuidade na face postero- medial do terço inferior do antebraço, de coloração avermelhada e com infiltração sanguínea dos tecidos adjacentes, profunda com bordos lineares com 7,5 cm de comprimento.
49) Quando D... desferia o segundo golpe no ofendido, a lâmina da faca que trazia consigo partiu, junto ao cabo.
50) Apercebendo-se que C... ainda estava vivo e a tentar reagir, o arguido colocou-se em fuga do local
51) Ainda tentou sair pela porta que dá acesso directo ao exterior; todavia, como estava fechada, fugiu pelo interior das instalações da empresa.
52) C... ainda foi no encalço daquele.
53) Acabou, todavia, por sucumbir junto à entrada da B..., fruto das lesões perpetradas pelo arguido.
54) Com efeito, em consequência directa e necessária das lesões provocadas pelo arguido no corpo de C..., mais concretamente na veia jugular e artéria carótida esquerdas, este veio a sofrer choque hipovolémico que lhe originou, necessariamente, a morte.
55) O arguido D... actuou com o propósito, conseguido, de atingir o ofendido numa parte vital do seu corpo e provocar-lhe, deste modo, lesões e ferimentos passiveis de causar a morte.
56) Na verdade, o arguido, pretendendo evitar que C... se apercebesse que aquele se havia apropriado ilegitimamente de dinheiro da empresa, decidiu tirar-lhe a vida para, deste modo, escapar incólume de tais factos.
57) E tomou tal decisão pelo menos dois dias antes de os levar a cabo, adquirindo a faca com que viria a perpetrá-los, planeando a sua actuação ao pormenor.
58) Demonstrou o arguido um total desrespeito pela vida de C..., que não se coibiu de atacar, apenas para evitar ser descoberto, planeando a sua actuação ao mínimo pormenor, durante, pelo menos, 2 dias.
59) Actuou de forma livre, deliberada e consciente, perfeitamente sabedor que a sua conduta era proibida e punida por lei.
60) D... de imediato se colocou em fuga do local, dirigindo-se para sua casa, sita na ..., por um caminho de terra batida.
61) Pelo caminho, aproveitou para se livrar do cabo da faca que trazia em seu poder, atirando-a para um silvado.
62) Uma vez em casa, de imediato tratou de lavar a roupa que trazia vestida e queimar as sapatilhas que calçava,
63) Recebeu, entretanto, uma chamada telefónica de H..., que lhe solicitou que se deslocasse a B..., pois havia acontecido algo a C....
64) No intuito de credibilizar o seu desconhecimento sobre o sucedido, dirigiu-se à empresa, tendo assistido as manobras de reanimação do falecido, mostrando sempre um ar chocado, mas calmo, perante o corpo do falecido.
65) Nem por um momento o arguido demonstrou a quem quer que seja que ali estivesse que tinha acabado de matar C..., pessoa que nele confiava inteiramente.
66) O Eng. C... nascera no dia 8 de Março de 1962, tendo pois 50 anos à data do óbito, era solteiro, não deixou testamento ou disposição de última vontade, não tinha filhos e era por sua vez filho dos Demandantes I... e J... ...;
67) ... quando agredido pelo arguido, não faleceu de imediato, tentou reagir e saiu do local da agressão... ;
68) ... com a dita agressão sentiu muitas e fortes dores e angustia com 0 medo de morrer ... ;
69) ... era uma pessoa saudável, de constituição física robusta, alegre, pleno de vitalidade e apego à vida ... ;
70) ... exercia as funções de administrador de empresas com uma dimensão alargada a toda a região norte do pais, gozando de uma imagem de credibilidade, competência e visão empresarial... ;
71) ... era ainda muito amigo dos seus pais e por estes muito querido, sendo urn filho dedicado e muito interessado em acompanhar, como acompanhava, a vida e o bem- estar dos seus pais ... ;
72) .. .ia todos os dias jantar e dormir a casa dos pais, falava com eles à noite e transmitia-lhes o andamento dos negócios das empresas familiares, de que o filho era o principal dinamizador ... ;
73)...com a sua morte, os Demandantes sofreram abalo e desgosto, de que ainda não recuperaram, vendo-se subitamente privados da companhia deste filho que os acompanhava no dia-a-dia...;
74) ... e com esta ausência provocada terão ainda no futuro desgosto, saudades e tristeza.
75) Os Demandantes I... e J... contavam com o apoio do filho C... para os ajudar a cuidar nas suas velhices, acreditando que ele nunca os abandonaria.
76) Com o funeral os Demandantes I... e J... despenderam a quantia de € 2.873,00.
77) No dia 25 de Maio de 2012 toda a actividade fabril e administrativa da Demandante B... esteve paralisada, por motivos ligados a operacionalidade policial e ao ambiente geral gerado pelo acontecimento brutal do dia anterior.
78) No mês de Maio de 2012 a Demandante B... teve vendas no exercício da sua actividade que totalizaram € 506.314,01 e prestou serviços no valor de € 6.255,00, perfazendo um valor global de € 512.569,01.
79) No mês de Maio de 2012 a Demandante B... suportou custos com o seu pessoal, no valor total de pelo menos € 119.441,58, relativos às seguintes parcelas: vencimentos - € 93.205,69; encargos da Segurança Social- € 26.235,89.”
S) No referido dia 24-05-2012, após as 18.10 h, C... encontrava-se no seu local de trabalho sito na sede da Ré
T) O óbito de C... verificou-se após as 18h10m.
U) O horário normal de trabalho da empresa R. terminou às 17.30 horas.”.
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B) O DIREITO
A recorrente vem insurgir-se contra a decisão recorrida, que a considerou responsável, pela parte não transferida da responsabilidade civil decorrente do acidente participado nos autos, dado ter-se concluído que, o sinistrado D..., foi vítima de acidente de trabalho, argumentando que, “o assassinato não ocorreu no horário de trabalho nem do homicida nem da vítima, nem na execução, directa, indirecta ou conexa de qualquer função profissional do autor do homicídio e da vítima”, por isso, defende não estarem reunidos os pressupostos de um acidente de trabalho.
No entanto, sempre com o devido respeito, podemos adiantar desde já, sem que lhe assista razão.
Nem quanto ao horário, nem quanto à, alegada, exigência de que o acidente tenha de ocorrer no desenvolvimento do trabalho normal do sinistrado, para que seja considerado de trabalho. Pois, subscrevemos inteiramente a fundamentação da sentença recorrida, quer no entendimento quanto ao que considera ser o período normal de laboração do sinistrado, atendendo à sua categoria de administrador, sendo normal que o mesmo não obedecesse a qualquer horário rígido, especificamente, o horário normal de trabalho da empresa que se apurou terminava às 17h30 (facto U), quer quando ali se refere que, para que seja considerado acidente de trabalho o direito aplicável não exige que o mesmo ocorra no desenvolvimento do trabalho normal.
*
Assim, para uma melhor compreensão da nossa decisão, analisemos o estabelecido no “Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais”, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, (também designada NLAT e a que pertencerão os artigos a seguir referidos sem outra indicação de origem) aplicável ao caso, atenta a data de 24.05.2012, em que ocorreu o sinistro em causa, no que respeita, não só, ao conceito de acidente de trabalho mas, também, a descaracterização e situações de exclusão e redução da responsabilidade decorrente do acidente.
Vejamos.
Quanto à definição normativa de acidente de trabalho dispõe, sob a epígrafe “Conceito” o art. 8°, n° 1, da NLAT que:
“1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.”.
No art. 9º enumeram-se diversas situações chamadas de “Extensão do conceito” definido no anterior artigo, ou seja:
“1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2. (…).”.
Por sua vez, o art. 10º, sob a epígrafe “Prova da origem da lesão”, dispõe:
“1 - A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho.
2 - Se a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.”.
Como vem sendo defendido, em regra, o acidente de trabalho será “um acontecimento não intencionalmente provocado (ao menos pela vítima), de carácter anormal e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma actividade profissional, ou por causa dela, de que é vítima um trabalhador”, (cfr. Carlos Alegre in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2ª Ed., 2001, pág. 35) ou, dito de outro modo, “o acidente de trabalho pressupõe que seja súbito (vejam-se Maria Adelaide Domingos, Viriato Reis e Diogo Ravara in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Introdução, Centro de Estudos Judiciários, Julho de 2013, pág. 27, os quais caracterizam este requisito como de “duração curta e limitada”, “repentino”, “instantâneo”, “imediato”, mas sem que tal tenha que ser entendido em termos absolutos.) o seu aparecimento, assenta numa ideia de imprevisibilidade quanto à sua verificação e deriva de factores exteriores”, distinguindo-se da doença profissional por esta ser, via de regra, “de produção lenta e progressiva surgindo de modo imperceptível”, (cfr. refere Pedro Romano Martinez in Direito do Trabalho, Almedina, 2015, pág.s 829/830).
A nível jurisprudencial, sobre a noção de acidente de trabalho, lê-se no (Ac. STJ de 13.01.2010, proferido no processo 1466/03.2 TTPRT.S1 disponível em www.dgsi.pt) que, (…) “reconduz-se a um acontecimento súbito, de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença”.
Conclui-se, assim, do exposto que, a caracterização de um acidente de trabalho está dependente da verificação cumulativa de três elementos: a) elemento espacial (local de trabalho); b) elemento temporal (tempo de trabalho); c) elemento causal (nexo de causalidade entre o evento e a lesão).
Ou seja, são várias as condições para que se verifique a obrigação de reparação dos danos resultantes de um acidente de trabalho: evento, local e tempo de trabalho, dano e nexo de imputação entre o facto e o dano.
E quando falamos do nexo de causalidade referimo-nos ao duplo nexo causal, cuja demonstração é exigida na reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho, “entre o acidente e o dano físico ou psíquico (a lesão, a perturbação funcional, a doença ou a morte) e entre este e o dano laboral (a redução ou a exclusão da capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador)” (cfr. Ac. STJ, de 16-09-2015, Proc. nº 112/09.5TBVP.L2.S1 in www.dgsi.pt).
No caso, tendo em atenção os dispositivos enunciados e a factualidade assente (que a recorrente não impugna), a Mª Juíza “a quo” considerou que, “resulta do manancial fáctico que a lesão (morte do A.) ocorreu no tempo e local de trabalho. Assim, presumem-se, de acordo com os preceitos sobremencionados, quer a verificação de um acidente de trabalho, quer o nexo de causalidade entre este e a lesão. Subsumindo a matéria de facto provada à lei supra citada, resulta incontornável que o sinistrado C..., em 24/5/2012, era trabalhador da Ré Entidade Empregadora, desempenhando as funções inerentes à categoria profissional de administrador estando, no momento em que foi atacado, no seu local de trabalho, nas instalações da R., no cumprimento dessa relação laboral quando sofreu o acidente descrito nos factos provados e no tempo de trabalho, podendo entender-se como acima mencionado, que o período normal de trabalho deve ser entendido este como o período normal de laboração para o trabalhador sinistrado, que pode ser diferente dos demais trabalhadores ou de apenas alguns deles, atendendo à circunstância de o sinistrado ter a categoria de administrador da R., não obedecendo a um horário rígido, como um qualquer outro trabalhador (por exemplo do sector da produção).
Dos autos resulta que o sinistrado trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da R. e que o acidente ocorreu em 24/05/2012, quando o sinistrado, exercendo as funções de administrador da R., por conta e sob a direcção da R., foi atacado com uma faca por um outro empregado da R. e que, como consequência daquele ataque o sinistrado sofreu morte imediata (Conforme resulta da enunciação do conceito de dano consultado nos mencionados cadernos do CEJ-Fls.34-: “Com efeito, o núcleo essencial do conceito de dano em que se focaliza a tutela legal em matéria de acidentes de trabalho não será tanto a lesão, perturbação ou doença e o sofrimento que estas implicam, mas antes a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho, resultantes daquela lesão, perturbação ou doença.”). Estão pois preenchidos os requisitos Espácio-temporal e causal para se concluir que o sinistrado foi vítima de Acidente de Trabalho.”, (sublinhados nossos).
Conclusão que subscrevemos, na íntegra, não procedendo de modo algum os argumentos, supra referidos, invocados pela recorrente, para defender que “o assassinato do Eng. C... cometido pelo escriturário D... …não resultou nem foi nenhum acidente de trabalho”.
Pois, como se pode constatar da análise dos autos, a factualidade apurada, (factos A), B), E), F) e L)), não permite formular decisão diferente da recorrida.
Não se suscitam dúvidas que, o sinistrado era trabalhador por conta de outrem (a recorrente), estava no seu local de trabalho e durante o seu período normal de trabalho, (pois, após as 18h10, não obstante se desconhecer o horário de trabalho da vítima certo é que o mesmo ainda se encontrava nas instalações da empresa após o fecho da mesma -17.30. Admitindo que ele praticava um horário de trabalho coincidente com a abertura das instalações e com o fecho da mesma, certo é que o evento ocorreu no tempo de trabalho por força do disposto no artigo 8º, nº2, al. b) da LAT. E não custa admitir, recorrendo às regras da experiência, que sendo ele administrador da empresa prolongasse o seu trabalho para além do termo do horário de trabalho dos demais trabalhadores), foi atingido por uma facada, desferida por um funcionário da empregadora, que lhe provocou lesões que foram causa directa e necessária da sua morte.
Razão porque, bem andou o Tribunal “a quo” ao não acatar, o entendimento da recorrente, de que “o assassinato não ocorreu no horário de trabalho”, já que o mesmo não se afigura correcto.
Não procede, assim, este argumento do recurso e não procede o argumento de que, “o assassinato não decorreu de qualquer acto profissional no exercício de qualquer função profissional decorrente do trabalho”, no sentido de que não existe qualquer relação de causalidade entre o trabalho e o acidente, pelo que não pode ser considerado como tal.
Pois, apesar de, como é sabido e já dissemos, o conceito básico de acidente de trabalho ser delimitado por três elementos cumulativos, um elemento espacial “local de trabalho”, um elemento temporal “tempo de trabalho” e um elemento causal, os mesmos verificam-se no caso.
Explicando.
Ao contrário, do que defende a recorrente, aquele elemento causal não se refere a um nexo de causalidade entre o trabalho e o acidente, mas sim a um nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão o que é, substancialmente, diferente, pois que aquela já resulta da enunciação legal dos elementos a que se referem os nº.s 1 e 2 do art. 8º.
A perspectiva da necessidade de existência de uma relação entre o acidente e o trabalho desempenhado pelo sinistrado, que veio a ser defendida por alguma jurisprudência e mesmo residualmente a doutrina, pese embora, antiga, em nosso entender, ignora, desde logo, o argumento histórico, já que, como é sabido, quando foi da elaboração da Lei 2127, de 3/8/65, a Câmara Corporativa emitiu parecer no sentido de que, tal como estava formulado o projecto, faltava um elemento essencial à definição de acidente de trabalho, o qual consistia exactamente na ausência de nexo de causalidade entre o trabalho e o acidente. E, se inicialmente o governo, na sua proposta final acabou por introduzir no conceito um elemento que fazia referência, embora pela negativa, a este nexo de causalidade (“todo o evento que se verifique no local e tempo de trabalho, salvo quando a este inteiramente estranho...”), certo é que esta última expressão acabou por ser eliminada no texto final aprovado, por se entender que noutros locais da lei se encontravam já plasmados todos os motivos descaracterizadores do acidente.
Assim, pese embora, ter sido muito discutida, “quer na Doutrina, quer na Jurisprudência, a necessidade da causa da lesão ser ou não um risco inerente ao trabalho, ou seja, da necessidade da existência de um nexo de causalidade entre o trabalho e o evento lesivo”, como bem diz (Carlos Alegre, in “Acidentes de Trabalho”, Almedina, 1995, pág. 33), a necessidade daquele nexo, apenas, “foi defendida com êxito enquanto se raciocinou em termos de teoria do risco profissional, em que se exigia um risco específico de natureza profissional, uma relação de causa e efeito entre o acidente (evento lesivo) e o trabalho em execução.”.
No entanto desde, o momento, em que o princípio norteador da disciplina da reparação dos acidentes de trabalho passou a ser a teoria do risco económico ou risco da autoridade, já não faz sentido a exigência daquele nexo causal, entre o evento lesivo e o trabalho, porque o risco assumido já não tem a natureza do risco específico, “mas a de um risco genérico, ligado ao conceito amplo de autoridade patronal.
Nascida sob o signo desta teoria, à luz do espirito que a enforma, qualquer interpretação que possa ser dada à Base V, da Lei 2127, (actual art. 8º da NLAT), tem que assentar em que a autoridade do empregador, sendo corolário da relação de subordinação (jurídica e/ou económica) do trabalhador, substitui a simples relação entre o trabalho e o acidente.”, conforme (Carlos Alegre, ob. citada, pág. 34).
Do exposto, resulta que o acidente ocorrido no tempo e local de trabalho é um acidente de trabalho, seja qual for a causa, a não ser que se demonstre que a vítima, aquando do acidente, se encontrava subtraída à autoridade patronal.
No nosso caso, tal não foi demonstrado e o que se apurou é que o sinistrado se encontrava no seu local de trabalho, sujeito à autoridade patronal, quando ocorreu o evento de que lhe resultaram as lesões que vieram a ser causa directa e necessária da sua morte.
Nestas circunstâncias, não nos parece lícita qualquer dúvida de que, o sinistro que ocorreu no local e tempo de trabalho, seja, por isso, um acidente nos termos do referido art. 8º, independentemente do sinistrado, estar a executar tarefas relacionadas com a sua actividade profissional, bastando, como era o caso, que o mesmo se encontrava na sede da Ré quando foi atingido por uma facada que lhe causou aquelas lesões.
Improcede, assim, sem dúvida, o referido argumento da recorrente de que “a morte do Eng C... não ocorreu por causa do trabalho, não foi uma consequência do trabalho…” e de que a ela, recorrente, “…nenhuma culpa se lhe poderá imputar a título do evento ocorrido,…” porque, tendo em conta a interpretação que deve ser feita do enunciado naquele art. 8º é, efectivamente, acidente de trabalho todo aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza o dano típico, isto é, a qualificação não exige que o acidente ocorra na execução do contrato de trabalho ou por causa dessa execução, bastando que ocorra por ocasião da mesma, estando pressuposto nessas circunstâncias que o trabalhador se encontra directa ou indirectamente sujeito ao controlo do empregador.
Não sendo deste modo, não tinham razão de ser os dispositivos seguintes, que enunciam todas as situações de exclusão ou redução da responsabilidade por acidente de trabalho, nomeadamente, os casos de descaracterização do acidente por imputabilidade do mesmo ao sinistrado, os de exclusão da reparação por ter o acidente resultado de motivo de força maior e os que conferem direito de acção do responsável contra o trabalhador ou terceiro que tenha dado causa ao sinistro.
Senão, vejamos.
Sob a epígrafe “Descaracterização do acidente”, o art. 14º dispõe:
“1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”.
No art. 15º, sob a epígrafe “Força maior”, prescreve-se que:
“1 - O empregador não tem de reparar o acidente que provier de motivo de força maior.
2 - Só se considera motivo de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pelo empregador em condições de perigo evidente.
Já, o art. 16º, dispõe sobre “Situações especiais”, que:
“1 - Não há igualmente obrigação de reparar o acidente ocorrido na prestação de serviços eventuais ou ocasionais, de curta duração, a pessoas singulares em actividades que não tenham por objecto exploração lucrativa.
2 - As exclusões previstas no número anterior não abrangem o acidente que resulte da utilização de máquinas e de outros equipamentos de especial perigosidade.
Por fim, no art. 17º, enuncia-se sobre “Acidente causado por outro trabalhador ou por terceiro”, que:
“1 - Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais.
2 - Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.
4 - O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.
5 - O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.”.
A este propósito, consta da decisão recorrida o seguinte: “Atentemos agora em apurar se existe descaracterização do acidente sofrido pelo sinistrado C... (nos termos dos art. 14º e 15º da NLAT).
(…).
Ora, a situação de homicídio ocorrida nos autos e da qual resultou a morte do sinistrado C..., não se enquadra em nenhuma das causa de exclusão ou descaracterização de acidentes de trabalho. O facto de o acidente sofrido pelo sinistrado ter sido originado por terceiro também não prejudica o direito à reparação do evento como acidente de trabalho (cfr. Art. 17º da NLAT). De acrescentar ainda que, no direito aplicável, não existe a exigência de que o acidente ocorra no desenvolvimento do trabalho normal, para que possa ser considerado Acidente de Trabalho, sendo desnecessário para este enquadramento que a situação ocorra por causa do risco normal do trabalho, sendo pois de todo indiferente qual a antecedência com que os factos perpetrados na pessoa do sinistrado foram preparados.
Estão, estamos perante um acidente de trabalho de que o trabalhador da R. (Eng. C...) foi vítima, tendo ocorrido o dano morte na pessoa do identificado sinistrado por causa das facadas que lhe foram inflingidas, ocorrido no local e momento do trabalho do sinistrado, enquanto trabalhava por conta e no interesse da R. entidade empregadora, que será responsabilizada pelos danos decorrentes do mesmo acidente, porquanto não transferiu na totalidade a responsabilidade civil resultante de acidentes para uma Seguradora, conforme imposição legal.
(…)”.
*
Cremos, assim, não ser defensável, o argumento da recorrente, de que, o evento dos autos não tem qualquer conexão com a relação laboral, apurada que está a conexão geográfica e temporal que, necessariamente, supõe um controlo directo ou indirecto por parte da empregadora tal como, a lei, o entende.
Tal, como decorre daqueles dispositivos, supra transcritos, art.s 14º, 15º, 16º e 17º, o dolo do sinistrado, de outro trabalhador ou de terceiro na produção do evento, ou um motivo de força maior, apesar de relevarem para efeitos de excluírem ou reduzirem a responsabilidade nos precisos termos neles enunciados, pressupõem que está em causa um acidente de trabalho tal como este é definido nos art.s 8º e 9º, embora essas situações escapem totalmente ao controlo da empregadora tal como, indevidamente, parece entender a recorrente.
Efectivamente, nas palavras de (Júlio Manuel Vieira Gomes in “O acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização”, Coimbra Editora, 2013, págs. 97/99) “parece-nos claro que o acidente de trabalho não se reduz, no nosso ordenamento, ao acidente ocorrido na execução do trabalho, nem havendo sequer que exigir uma relação causal entre o acidente e essa mesma execução do trabalho. Poderão ser acidentes de trabalho múltiplos acidentes em que o trabalhador não está, em rigor, a trabalhar, a executar a sua prestação, muito embora se encontre no local de trabalho e até no tempo de trabalho, pelo menos para este efeito da reparação dos acidentes de trabalho. (…) Sendo suficiente que o acidente ocorra, na terminologia italiana e anglo-saxónica, por ocasião do trabalho, o acidente de trabalho pode consistir em um acidente ocorrido quando se presta socorro a terceiros ou, inclusive, numa situação em que o trabalhador é agredido ou é vítima de uma “partida de mau gosto”, quer o autor desse facto ilícito seja um colega, quer se trate de um estranho à relação laboral.”
Face ao que se deixa exposto, só podemos concluir como bem decidiu o Tribunal “a quo” que a empregadora/recorrente é responsável pelas consequências do acidente sofrido pelo seu trabalhador/sinistrado, C..., já que nada se apurou que demonstre que o mesmo no momento em que foi apunhalado, no seu local de trabalho, não estivesse sob a autoridade daquela.
Assim, verificados que estão, sem margem para dúvidas, os pressupostos do art. 8º da NLAT, o assassinato daquele deve ser qualificado como acidente de trabalho e a recorrente responsabilizada pelas suas consequências, nos termos peticionados pelo A., independentemente da possibilidade de exercer o direito de acção, nos termos do art. 17º, supra referido, dada a (imputabilidade do acidente de trabalho a outro seu trabalhador, nos termos e com as consequências ali previstas), questão não colocada nos autos.
*
Improcedem, assim, todas ou são irrelevantes as conclusões da apelação.
*
III – DECISÃO
Atento o que fica exposto, acordam as Juízas desta secção em julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Porto, 10 de Setembro de 2018
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
Fernanda Soares