Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2235/20.0T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
IMÓVEL
SEDE SOCIAL
DIREITOS SOCIAIS
JUIZOS CIVEIS
Nº do Documento: RP202302272235/20.0T8GDM.P1
Data do Acordão: 02/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Tem competência em razão da matéria, o juízo local cível, para preparar e julgar uma ação de condenação em que se visa a tutela do direito de propriedade, instaurada por quem não é sócio contra os sócios e a sociedade, para obter a declaração que o imóvel não constitui a sede da sociedade e o ressarcimento dos danos sofridos, fora do concreto e limitado regime jurídico das sociedades comerciais, não se enquadrando tal ação na tipologia de ações destinadas ao exercício de “direitos sociais” (art. 128º/1/c) da Lei 62/2013 de 26 de agosto).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: CompMat-2235/20.0T8GDM.P1-I

SUMÁRIO[1] ( art. 663º/7 CPC ):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum em que figuram como:
- AUTORES: AA, contribuinte fiscal n.º ..., natural de ..., Penafiel, portador do Cartão do Cidadão n.º ..... válido até 21/04/2020, e mulher BB, contribuinte fiscal n.º ..., natural de ..., Gondomar, portadora do Cartão do Cidadão n.º ..... válido até 18/11/2020, residentes na rua ..., ..., ... ..., Gondomar; e
- RÉUS: 1) A..., S.A., sociedade comercial anónima com domicílio em parte incerta e única morada de correspondência conhecida na rua ..., ..., ... ..., Gondomar, NIPC. ... e matriculada na respetiva C.R.C. sob o mesmo número;
2) CC e mulher DD, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, residentes na rua ..., ..., ... ..., Gondomar, .... ... e .....;
3) EE, solteiro, maior, residente na Rua ..., ... ..., NIF. ...;
4) FF, divorciado, residente na Rua ..., ... ..., NIF. ...;
5) GG, divorciada, residente na Rua ..., ... ..., NIF. ...; e
6) HH, solteira, maior, residente na ..., ... ..., NIF. ...,
formulam os autores o pedido de condenação dos réus:
- a reconhecer que os Autores são os únicos donos e legítimos possuidores do prédio urbano, composto por casa de cave, rés-do-chão, andar e logradouro, denominado Lote ..., sito na rua ... e rua ..., ..., União das freguesias ... (...), ... e ..., concelho ..., descrito na C.R.P. de Gondomar sob o n.º ... da referida freguesia, estando aí registado a seu favor pela inscrição Ap. ... de 2018/02/07;
- os 2.ºs, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º Réus na qualidade de únicos sócios e o 2.º Réu marido também na qualidade de Administrador Único, a reconhecer que a sociedade 1.ª Ré, “A..., S.A.”, NIPC. ..., não tem a sua sede social na morada do imóvel dos autores sito à rua ..., ..., ... ..., Gondomar, pelo menos desde 07 de Outubro de 2017.
- os réus condenados a praticar todos os atos necessários e/ou adequados à alteração e/ou mudança da sede da 1.ª Ré, a sociedade “A..., S.A.”, NIPC. ..., bem como, à total e definitiva eliminação da menção e/ou publicidade à morada da “rua ..., ..., ... ..., Gondomar”, quer na matrícula da sociedade junto da respetiva Conservatória do Registo Comercial, quer do cadastro fiscal da sociedade junto da Autoridade Tributária e Aduaneira;
- no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, fixando-a no valor de €125,00 (cento e vinte e cinco euros) por cada dia de atraso no efetivo e integral cumprimento da prestação de facto peticionada na alínea anterior;
- no pagamento aos Autores da quantia de 2.500,00 Euros (dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais emergentes, bem como, de uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em montante a liquidar em sede de execução de sentença; todos os montantes acrescidos de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Alegaram para o efeito e em síntese, que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, composto por casa de cave, rés-do-chão, andar e logradouro, denominado Lote ..., sito na rua ... e rua ..., ..., União das freguesias ... (...), ... e ..., concelho ..., descrito na C.R.P. de Gondomar sob o n.º ... da referida freguesia, estando aí registado a seu favor pela inscrição Ap. ... de 2018/02/07.
Imóvel que adquiriram, totalmente livre de pessoas e bens, por compra a II e JJ, através de contrato celebrado em 07 de Fevereiro de 2018, pelo que desde essa data o imóvel identificado, a que corresponde a morada da rua ..., ..., ... ..., Gondomar, passou a habitação própria permanente do casal de Autores.
Os Autores haviam prometido comprar o referido imóvel através de contrato promessa de compra e venda celebrado em 07 de Outubro de 2017, tendo, durante as negociações (que acabaram por conduzir primeiro à promessa e depois à efetiva compra), visitado várias vezes o imóvel em causa, o qual, pelo menos à data 07 de Outubro de 2017, há vários anos se encontrava desabitado e totalmente livre e devoluto de quaisquer pessoas e bens.
A 1.ª ré é, por sua vez, uma sociedade anónima que se dedica a “Compra e venda de bens imobiliários. Compra e venda de imóveis para revenda”. A 1.ª Ré foi constituída em 21 de Novembro de 2012 como sociedade unipessoal por quotas sob a firma “A...- UNIPESSOAL LDA”, sendo certo que, à data da sua constituição, tinha como sócio único o 2.º Réu, CC, casado com DD sob o regime da comunhão de adquiridos. Entretanto, em 27 de Setembro de 2013, o 2.ª Réu deliberou e procedeu à inscrição no registo comercial de uma alteração ao pacto social da 1.ª Ré, alteração que consistiu na mudança da respetiva sede social para a rua ..., ..., ... ..., Gondomar, registada junto da Conservatória do Registo Comercial de Gondomar através da Insc.... UTC - MUDANÇA DA SEDE.
Em 20 de Fevereiro de 2014, os 2.ºs, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º Réus deliberaram e procederam ao aumento de capital e transformação da sociedade 1.ª Ré em sociedade anónima, tendo tal aumento de capital, no montante de 45.000,00 Euros, sido realizado em dinheiro, subscrito em partes iguais pela admissão de 4 novos sócios – os 3.º, 4.º, 5.º e 6.º Réus.
Procedendo à remodelação de todo o articulado do pacto social, mas mantendo, no entanto, inalterada a sede social da identificada sociedade na referida Rua ..., ... ..., Gondomar, mais deliberando e designando os referidos sócios como Administrador Único da 1.ª Ré o 2.º Réu marido, CC, o que se mostra registado junto da Conservatória do Registo Comercial de Gondomar sob a Insc.3 AP. ... - AUMENTO DO CAPITAL, TRANSFORMAÇÃO EM SOCIEDADE ANÓNIMA E DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ORGÃO(S).
Alegaram, ainda, que os 2.ºs, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º Réus são sócios da 1.ª Ré, titulares de participações representativas do capital social da “A..., S.A.”, sociedade anónima de que é Administrador Único o também sócio 2.º Réu marido.
Mais alegaram que no dia 04 de Outubro de 2018, pelas 09:00 horas, ocorreu na morada que, desde 07 de Fevereiro de 2018, corresponde à casa de morada de família dos Autores – na rua ..., ..., ... ..., Gondomar – uma diligência de penhora com arrombamento, penhora, que foi de bens móveis, realizada âmbito da Execução Sumária que sob o Proc. n.º 14696/18.3T8PRT correu termos pelo Juízo de Execução do Porto – Juiz 6 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em que era executada a 1.ª Ré, a sociedade “A..., S.A.”
Os autores apenas tomaram conhecimento da realização da diligência quando no final do dia regressaram à casa de habitação e se confrontaram com nota deixada pelo agente de execução, que contactaram para conseguir o acesso à casa de habitação e bens que dali foram retirados.
Alegaram que a partir desse momento fizeram diligências junto do agente de execução no sentido de reaver os bens que lhe pertenciam e ainda, junto do tribunal, tendo contratado um advogado para os representar.
Promoveram diligências junto da Conservatória Registo Comercial e Autoridade Tributária no sentido de ser suprimida a referência da sua morada como sede da sociedade, sem qualquer êxito. Comunicaram junto dos tribunais onde se encontravam pendentes ações contra a sociedade. Paralelamente, em 02 de Novembro de 2018, remeteram também à empresa B..., que constava como Fiscal Único do registo comercial da sociedade, uma missiva a dar formalmente conhecimento dos sobreditos factos, mais solicitando àquele órgão de fiscalização que, nessa qualidade, tomasse as medidas que considerasse necessárias e/ou adequadas à reposição da legalidade e da verdade material quanto à sede da referida sociedade, nomeadamente, com vista à eliminação da menção e publicidade à morada do imóvel dos Autores em todos os registos oficiais (na matrícula junto da respetiva Conservatória do Registo Comercial e do cadastro fiscal junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, entre outros).
Em resposta, remetida em 06 de Novembro de 2018, a referida empresa esclareceu que naquele momento não estava ao seu alcance qualquer atuação que pudesse tomar naquele momento sobre a dita sociedade ou o seu Administrador Único, pois, em 12 de Fevereiro de 2018, haviam renunciado ao cargo de Fiscal Único da sociedade, alegadamente, pelo facto de o seu Administrador Único “não se disponibilizar a comparecer anteriormente, através de solicitações diversas, para prestar esclarecimentos necessários e, em última não apresentar as contas que reportam ao ano de 2016”.
Tendo obtido a informação sobre a identidade do Técnico Oficial de Contas / Contabilista Certificado da 1.ª Ré, contactaram ainda os Autores o Exmo. Senhor Dr. Dr. KK, que informou que já não prestava qualquer serviço à sociedade.
Nestas circunstâncias, os Autores remeteram, em 06 de Novembro de 2018, uma exposição escrita ao Exmo. Senhor Director-Geral dos Registos e Notariado, solicitando que ordenasse a eliminação da menção e publicidade à morada do seu imóvel na
matrícula da sociedade 1.ª Ré, pedido que acabou por ser indeferido em 24 de Abril de 2019, por “não ser técnica e legalmente possível ao IRN, I.P. ordenar a eliminação de menções constantes do registo comercial, decorrentes da realização de registo regularmente efetuado e publicado”.
Desconhecendo, tal como, aparentemente, todas as supra identificadas pessoas que contactaram para o efeito, o paradeiro da 1.ª Ré e dos 2.ºs Réus, pretendem com a presente ação, não só obrigar todos os Réus a proceder à alteração da morada da sede social da 1.ª Ré, quer ao nível do registo comercial, quer ao nível do cadastro fiscal, como obter o devido ressarcimento de todos os avultados danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreram com esta situação.
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Citados, os réus contestaram os segundos, terceiro e quarto réu, por exceção e por impugnação, mas pugnando a final pela improcedência da ação.
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Os réus CC E DD impugnaram os factos alegados e referiram, ainda, que foram casados entre si e nessa medida eram acionistas da sociedade anónima, também R nos presentes autos A..., SA.
Esta empresa foi constituída inicialmente pelo R CC sob a forma de sociedade unipessoal por quotas. Ao tempo a sede da sociedade situava-se na Rua ... em ..., Gondomar.
Sucede que, atenta a atividade da 1.ª Ré que consistia essencialmente em investimentos e aconselhamento imobiliário, era dispensável a existência de uma sede física, de uma loja/escritório. Por tal motivo, que implicava necessariamente poupança de custos da sociedade, a 1.ª Ré e o Réu CC decidiram que a sede da sociedade passaria a ser na casa de morada de família do R CC e da sua mulher ao tempo, a Ré DD. Onde tinham de facto instalado o escritório de trabalho da sociedade A..., SA. e onde funcionou como tal até à mudança de residência do R CC e da Ré DD.
Admite que não foi promovida a mudança da sede, mas tal não se deveu nem a dolo nem a negligência, mas motivado por problemas pessoais e de saúde do réu.
Considera, por fim, que a indemnização peticionada a título de honorários que tiveram de suportar com o Ilustre Mandatário, não tem qualquer suporte legal, sendo que tal valor, na hipótese da ação proceder, terá que ser reclamado e atendido, nos termos legais, em sede de custas de parte.
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O réu FF veio contestar, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção, suscitou a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, por entender que compete aos juízos de comércio preparar e julgar a presente ação, com fundamento na alínea c) do art. 128LOSJ.
Os direitos sociais a que alude o referido comando legal (titulados pela sociedade e/ou pelos sócios, credores sociais e terceiros) são os direitos cuja matriz, direta e imediatamente, se funda na lei societária e/ou no contrato de sociedade.
Ao invocar o incumprimento da alteração da sede social da 1.ª R., e sendo a sede um elemento obrigatório do contrato de sociedade (art.º 9.º n.º 1 al.e) art.º 12.º 85.º do CSC), aquilo que os AA. alegam é o incumprimento da lei societária e do contrato de sociedade.
Por outro lado, dizendo o objeto da presente ação respeito à responsabilização dos administradores e acionistas da 1.º R. nos termos da lei societária (cf., v. g., os art.ºs 71.º ss do CSC) o tribunal materialmente competente para apreciar os pedidos formulados pelos AA. nas al. b) c) e d) são os Juízos de Comércio.
Mais suscitou a ilegalidade do pedido genérico.
Por impugnação, alega o desconhecimento dos factos. Nunca exerceu a administração de facto da 1.ª R.
O contrato de sociedade não lhe permite, nem o R. está ligado por si ou conjuntamente com outros sócios a acordos parassociais lhe confiram o direito de designar gerente sem que todos os sócios deliberem sobre essa designação.
O R. não dispõe de número de votos suficientes, nem está ligado a outros sócios por acordos parassociais, que lhe permitam fazer eleger gerente, administrador ou membro do órgão de fiscalização.
O contrato de sociedade não lhe permite, nem o R. está ligado por si ou conjuntamente com outros sócios a acordos parassociais, nem dispõem do número de votos suficientes que lhe confiram o direito de destituir ou fazer destituir gerente, administrador ou membro do órgão de fiscalização e que pelo uso da sua influência determine essa pessoa a praticar ou omitir um ato.
A matéria da responsabilidade civil pela constituição, administração e fiscalização das sociedades comerciais vem regulada nos arts. 71.º ss do CSC. 35.º. A responsabilidade civil solidária dos sócios, vem limitada às circunstâncias elencadas no art.º 78.º CSC, circunstâncias que não se verificam e nem sequer vêm alegadas pelos AA.
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O réu EE veio contestar, por impugnação.
Alegou, em síntese, que nos termos do disposto no art.º 12º do CSC, quando a sede apenas se tem que deslocar dentro do concelho, apenas é necessário averbamento à descrição e não se trata de alteração do contrato de sociedade.
Atendendo a que os Autores consideram que o local onde funciona normalmente a sociedade é na rua ..., ..., em ..., Gondomar, o centro da vida da sociedade não sairia do concelho de Gondomar e como tal a intervenção dos sócios não é necessária, porquanto o administrador único tem poderes para o ato.
Nas sociedades anónimas de capital social inferior a 200.000€, as funções de gestão que seriam acometidas ao Conselho de Administração são deferidas ao administrador único, nos termos do disposto no art.º 390º do CSC.
Sendo que nos termos do disposto no artigo 406º do CSC ex vi do artº 390º do CSC, dentro dos poderes diferidos ao administrador único encontra-se o poder de alterar a sede social.
O ora Demandado, não tem qualquer responsabilidade no facto do administrador único não ter cumprido com as suas funções e responsabilidades, modificando a sede social. Não lhe podem ser assacadas responsabilidades pessoais, quando tais competências estão deferidas a órgãos específicos. Inexiste ação individual do sócio relativamente ao administrador de forma direta.
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Proferiu-se despacho que convidou o autor a pronunciar-se sobre a alteração do valor da causa, ao qual respondeu declarando reduzir o pedido formulado, em relação à alínea a) e mantendo os demais pedidos e valor atribuído à ação.
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Proferiu-se novo despacho que convidou os Autores a pronunciarem-se sobre a matéria da exceção e no uso de tal faculdade vieram reafirmar a competência material do tribunal comum para conhecer do pedido, por se tratar de uma ação que visa obter a tutela do direito de propriedade dos autores, perante a inércia dos réus em atualizar o local da sede da primeira ré, não se discutindo direitos sociais.
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Proferiu-se a seguinte sentença (ref. Citius 434348446):
“Os AA nestes autos, entre outros pretendem que os RR alterem a sede da empresa 1º Ré, visto que ao que referem, recebem na sua residência, notificações judiciais e não judiciais relativas àquela Ré (factos alegados em 59º a 80º, da PI).
O 4º R invoca a exceção de incompetência em razão da matéria, para este tribunal decidir os presentes autos.
AA e demais RR para tanto notificados, não emitiram pronúncia relativamente a tal exceção.
Nos termos do disposto no artigo 128º, da Lei da organização do sistema judiciário, compete aos juízo de comércio preparar e julgar (…) “as ações relativas ao exercício dos direitos sociais” (…).
Deste modo, por se tratar de uma exceção dilatória que obsta a que o presente tribunal conheça do mérito da causa, determino a remessa do processo para o Tribunal de comércio de Vila Nova de Gaia, para tanto competente (576º a 578º, do CPC).
R e n.
Custas pelos AA, que se fixam em 1 UC”.
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Os Autores vieram requerer a nulidade e reforma da sentença, porque da mesma se fez constar que os autores não se pronunciaram sobre a exceção, quando o fizeram em articulado próprio, omitindo-se no despacho a apreciação dos argumentos dos autores ( art. 615º e 616º CPC).
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O Réu FF veio pronunciar-se sobre a nulidade, alegando, em síntese, que a mesma apenas pode ser apreciada em via de recurso e esgotado o prazo de 15 dias para a sua interposição, não pode a mesma ser objeto de alteração, a qual adquiriu força de caso julgado formal em relação ao A. conforme decorre do art.º 628.º do CPC, que se traduz na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu esgotando-se assim o seu poder jurisdicional sobre aquela concreta decisão.
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O réu FF e os autores AA e BB vieram interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou o réu apelante FF formulou as seguintes conclusões:
I. O ora apelante, na sua contestação invocou a exceção de incompetência em razão da matéria, para o tribunal a quo decidir a pretensão dos AA. formulada nos presentes autos.
II.O despacho com a ref.ª eletrónica : 434348446, de 14-3-2022, jugando verificada a referida exceção, determina a remessa do processo para o Tribunal de comércio de Vila Nova de Gaia, para tanto competente (576º a 578º, do CPC).
III. A incompetência absoluta do tribunal constitui no nosso ordenamento jurídico processual uma exceção dilatória. - Arts. 596.º n.º 1 al. a); 577.º n.º 1 al.a)CPC,
IV.E cuja verificação acarreta a absolvição do R. da instância. – Arts.º 99.º n.º 1 e 278.º n.º 1 al. a) do CPC.
V. A decisão recorrida violou aos comandos legais dos artsº 60.º n.º 2, 64.º, 94.º, 95.º, 99.º, n.º1, 278.º, 596.º n.1 al a), 577.º, n.º1, al. a) do CPC.
Termina por pedir o provimento do recurso, revogando-se a decisão recorrida, anulando-a e substituindo por outra que determine a absolvição do réu da instância.
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Nas alegações que apresentaram os apelantes autores AA e BB formularam as seguintes conclusões:
I – Fez-se constar na douta Sentença recorrida, a propósito da exceção de incompetência em razão da matéria invocada pelo 4.º Réu, que “AA e demais RR para tanto notificados, não emitiram pronúncia relativamente a tal exceção”.
II – Ora, tal não corresponde à verdade – visto que, expressamente notificados para o efeito, vieram os Autores apresentar requerimento contendo a resposta a tal exceção, através da peça processual de fls. com a Ref.ª Citius 31220120.
III – A desconsideração, ou falta de apreciação, pelo Tribunal a quo de tal resposta
configura uma nulidade, que expressamente se invoca – por se tratar de omissão de ato que a lei prescreve, que influi no exame da causa uma vez que o Tribunal não revela ter considerando os argumentos aduzidos pelos Autores em abono do seu entendimento sobre a razão da matéria e, com tal, causando-lhes prejuízos, como seja, a necessidade de interpor recurso da douta Sentença para ver confirmados ou afastados os fundamentos da defesa da posição processualmente assumida perante tal controvérsia.
IV - Encerrando em si uma violação do direito ao contraditório.
V – Ainda que assim se não entenda, certo é que, tal como foi proferida, a douta Sentença não se mostra devidamente fundamentada,
VI - Do ponto em que, perante a expressa oposição dos Autores quanto à procedência de tal exceção, não explicita acerca dos motivos pelos quais decidiu nesse sentido por forma a que estes possam entender as razões da decisão proferida e, caso assim o entendessem, sindicá-la e reagir contra a mesma.
VII – Mesmo que também assim se não entenda, sempre se deverá concluir que a douta Sentença incorreu, neste ponto, em erro de julgamento.
VIII – A douta Sentença, partindo de um dos pedidos formulados na ação – a condenação dos Réus a alterar a sede da sociedade 1.ª Ré – considerou que esta será, porventura, uma ação relativa ao exercício de um qualquer direito social.
IX – Mas os Autores não são, nem alguma vez foram, sócios da sociedade 1.ª Ré.
X – Os “direitos sociais” a que a alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ alude são os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes a esta qualidade e estatuto e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais.
XI – Mesmo que assim se não entendesse, parece-nos evidente que, atendendo aos
pedidos e à causa de pedir, a presente ação não é vocacionada para a realização de direitos que emergem especificamente do regime jurídico das sociedades comerciais.
XII – O que está substancialmente em causa nos presentes autos é o exercício de um direito de ação ao abrigo das regras gerais do direito civil.
XIII – É consabido que a todo o direito corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo – sendo que os pedidos formulados em b), c) e d) da petição inicial apenas visam o exercício do direito que os Autores indiscutivelmente têm de não ver o endereço da sua casa de morada de família associada à sede da 1.ª Ré.
XIV – Direito que é uma decorrência ou manifestação do direito de propriedade dos Autores, que lhes confere, em toda a sua amplitude legal, o domínio e a posse do imóvel em causa, e que existe independentemente do regime societário a que os Réus decidiram sujeitar-se através do contrato de sociedade entre eles celebrado.
XV – Dito de outro modo: os factos imputados aos Réus configuram uma violação
do direito de propriedade e, bem assim, da posse legítima do imóvel em causa.
XVI – Assim devem ser interpretados os pedidos formulados pelos Autores com vista: ao reconhecimento de que a sociedade 1.ª Ré, não tem a sua sede social na morada do imóvel dos Autores (b); à condenação dos Réus a praticar todos os atos necessários e/ou adequados à alteração e/ou mudança da sua sede, bem como, à total e definitiva eliminação da menção e/ou publicidade a tal morada, quer na matrícula da sociedade junto da respetiva Conservatória do Registo Comercial, quer do cadastro fiscal da sociedade junto da Autoridade Tributária e Aduaneira (c); ficando tal obrigação sujeita a sanção pecuniária compulsória (d); e à condenação dos demandados no pagamento de indeminização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos (e); tudo em consequência dos factos melhor descritos na petição inicial.
XVII – Tampouco tais pedidos poderão subsumir-se ao disposto nos artigos 71.º e ss. do Código das Sociedades Comerciais, uma vez que os factos alegados situam-se, insiste-se, fora do concreto e limitado regime societário.
XIX – Salvo melhor entendimento, ao direito de ação exercido pelos Autores aplicam-se as regras gerais do direito civil, e não as do direito societário.
XX – Acresce que, nem sequer estamos perante matérias de especial dificuldade e complexidade ao ponto de se exigir especial preparação técnica ou sensibilidade a justificar a atribuição da causa a um Tribunal de competência especializada.
XXI – Deveria, assim, o Juízo Local Cível de Gondomar ter sido declarado competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação.
XXII – A douta Sentença proferida aplicou, assim, de forma incorreta o Direito,
XXIII – Violando, entre outras, as disposições dos artigos 60.º n.º 2, 64.º, 65.º, 152.º n.º 1, 154.º n.ºs 1 e 2 e 195.º do Código de Processo Civil; artigos 79.º, 80.º n.ºs 1 e 2, 81.º n.ºs 1 e 2 e 128.º n.º 1 alínea c) da LOSJ; e, bem assim, do n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
XXIV – Por estes motivos, deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta Sentença ora impugnada e substituindo-se a mesma por outra que, declarando o Juízo Local Cível de Gondomar competente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação, ordene o prosseguimento dos autos.
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Não foram apresentadas resposta aos recursos.
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A ilustre advogada Dr.ª LL veio renunciar à procuração outorgada pelo réu CC.
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Notificado pessoalmente o réu, nada requereu.
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Os recursos foram admitidos como recurso de apelação, com os fundamentos que se transcrevem:
“Por legais, tempestivos (o dos AA. mediante pagamento da multa prevista no artigo 139.º, n.º 5, al. a) do CPC), devidamente instruídos com alegações e conclusões, interpostos por quem tem legitimidade e por estar liquidada a taxa de justiça devida, admite-se os recursos interpostos pelo R. FF e pelos AA. AA e mulher, os quais são de Apelação, com subida nos próprios autos (pese embora o último parágrafo do despacho antecedente, o efeito da incompetência absoluta é a absolvição do R. da instância, pelo que se trata de decisão que põe “termo ao processo” - artigo 99.º, n.º 1, do CPC), e efeito meramente devolutivo - arts. 629.º, n.º 2, al. a), 631.º, n.º 1, 637.º, n.º 1 e 2, 638º, n.º 1, 639.º, n.º 1 e 2, 644º, n.º 2, alínea b), 645, n.º 1, alínea a), 647.º, n.º 1 e n.º 4 a contrario, todos do CPC.
Notifique e após, subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação do Porto”.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º CPC.
As questões a decidir:
- tempestividade dos recursos;
- na apelação do réu FF, o efeito a atribuir à decisão que julga procedente a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria;
- na apelação dos autores AA e BB: violação do princípio do contraditório, nulidade da sentença por falta de fundamentação e, por fim, se o juízo local cível de Gondomar é competente em razão da matéria para apreciar e julgar a presente ação.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.
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3. O direito
- Tempestividade dos recursos -
A tempestividade do recurso não foi suscitada nas respetivas apelações.
Porém, o réu FF ao pronunciar-se sobre a reclamação deduzida pelos autores, veio suscitar a questão ao entender que as nulidades apenas pela via de recurso poderiam ser apreciadas e o prazo para a sua interposição estaria ultrapassado.
No despacho que admitiu o recurso, sem que se tenha apreciado a dita reclamação, considerou-se tempestivamente interposto o recurso dos autores, porque procederam ao pagamento da multa.
Cumpre pois apreciar da tempestividade dos recursos.
A questão não tem obtido na jurisprudência um tratamento uniforme, como disso dá nota o Ac. TRP de 30 de maio de 2018, Proc. 19903/16.4T8PRT-A.P1, com voto de vencido da presente Relatora.
Continuamos a entender que estando em causa uma decisão que julga procedente a exceção de competência material e põe termo ao processo e não se tratando de processo urgente, o prazo para interpor recurso é de 30 dias, nos termos das disposições conjugadas dos art. 638º/1 e art. 644º/1 a) CPC.
Entendemos que se deve fazer uma interpretação restritiva do art. 644º/2 b), conjugado com o art. 638º/1 CPC, devido à sua inserção sistemática e natureza da decisão, no sentido de apenas se aplicar às decisões interlocutórias que julgam improcedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal. Esta era já a interpretação desenvolvida à face da anterior redação do preceito e talvez por esse motivo o legislador não viu necessidade de corrigir[2].
A previsão do nº2 do art. 644º CPC reporta-se a decisões interlocutórias, excecionando o regime que resulta da aplicação do nº3 e nº4 do preceito, pois, em regra, das decisões interlocutórias apenas é admissível recurso a final.
Por outro lado, quando o legislador no art. 644º/2 b) CPC se reporta a “decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal” deve entender-se decisão que indefere a exceção de competência absoluta, pois só dessa forma se justifica que se crie um tratamento de exceção em relação às demais exceções processuais, devido às consequências que advêm do conhecimento apenas a final do recurso de tal decisão. Com efeito, se não existisse este regime de exceção, estando em causa a apreciação da exceção de competência absoluta, a ser a mesma julgada improcedente, isso significaria que o processo prosseguiria os seus termos no tribunal onde se encontrava, ainda que este não fosse competente, apesar de estar pendente um recurso que impugnava tal decisão e que só seria apreciado a final, como ocorre com o recurso de decisões que se pronunciam sobre outras exceções.
Esta foi a posição expressa no Ac. STJ 22 de novembro de 2016, Proc. 200/14.6 T8LRA-A.C1, S1, 1ª seção e no Ac. 21 de fevereiro de 2019, Proc. 27417/16.6T8LSB-A.L1.S2 (este último citado pela apelante), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Perante o exposto considera-se ser de 30 dias o prazo de interposição de recurso, por se aplicar o regime do art. 644º/1 a) CPC, conjugado com o art. 638º/1 CPC.
Contudo, no caso concreto, as duas apelações foram interpostas no prazo de 15 dias a contar da data da notificação da sentença.
A sentença foi proferida em 14 de março de 2022. A notificação às partes foi realizada em 17 de março de 2022. O réu interpôs o recurso em 05 de abril de 2002 ( último dia do prazo) e os autores em 06 de abril de 2022. Procederam os autores ao pagamento da multa prevista no art. 139º/5 a) CPC.
Conclui-se que os recursos foram tempestivamente interpostos, por respeitarem, além do mais, o prazo de 15 dias (art. 638º/1 CPC).
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- APELAÇÃO DOS AUTORES -
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- Da nulidade processual por omissão de pronúncia sobre a resposta à matéria da exceção -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos I a IV, insurgem-se os apelantes contra a decisão pelo facto de não ter apreciado a resposta à matéria da exceção apresentada pelos autores, considerando que a desconsideração de tal resposta representa uma nulidade, que interfere no exame e decisão da causa.
No que concerne às nulidades o Código de Processo Civil prevê duas realidades distintas.
Por um lado, as nulidades das decisões (em sentido lato abrangendo sentenças, acórdãos e despachos), que se encontram previstas, taxativamente, no art. 615º CPC.
A sua arguição é feita de harmonia com o nº2, 3, 4 do art. 615º, uma vez no próprio tribunal em que foi proferida a decisão, e outras vezes, em via de recurso, no tribunal ad quem.
Estas nulidades são vícios que afetam a validade formal da sentença em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada.
A par destas nulidades, a lei prevê as nulidades processuais que “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais“[3].
Atento o disposto nos art. 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como refere ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades“, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos[4].
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art. 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º CPC.
A omissão de apreciação da resposta à matéria da exceção, não consta como uma das nulidades previstas nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC.
Também não se pode considerar uma irregularidade, porque não se traduz na omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve. Os apelantes exerceram o contraditório em relação à matéria da exceção, mas o tribunal não atribuiu qualquer relevo na decisão, o que contende com o mérito da causa.
Não se pode pois considerar que estamos perante uma irregularidade processual que se enquadre na previsão do art. 195º CPC.
Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso sob os pontos I a IV.
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- Da nulidade da sentença, por falta de fundamentação -
Nas conclusões de recurso, sob as alíneas V a VI, consideram os apelantes que a sentença carece de fundamentação, porque na sentença não se tomou posição sobre a resposta apresentada pelos apelantes à matéria da exceção de incompetência material.
Com efeito, nos termos do art. 615º/1 b) CPC, a sentença é nula, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
A nulidade ocorre desde que se verifique a falta absoluta de fundamentação, que pode referir-se só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
A irregularidade está diretamente relacionada com o dever imposto ao juiz de motivar as suas decisões, conforme resulta do disposto no art. 607º/4/5 CPC[5].
No caso presente a sentença contém os fundamentos de direito, com os quais os apelantes não concordam, porque apenas se atende aos fundamentos da exceção tal como alegados pelo réu, omitindo e sem acolher os argumentos dos autores.
Tal circunstância não impediu os autores de reagirem contra a decisão, compreendendo pois o seu sentido e alcance.
A sentença não padece de nulidade porque não analisou um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.
Conclui-se que a decisão recorrida não padece do vício que lhe vem atribuído, julgando-se válida a sentença.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos V e VI.
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- Da competência em razão da matéria -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos VII a XXIV, insurge-se o apelante contra a decisão da exceção, que julgou procedente a exceção de incompetência em razão da matéria, por entender que o tribunal comum - jurisdição cível- onde foi proposta a ação é competente em razão da matéria, porque a pretensão dos autores visa a tutela do direito de propriedade, de natureza estritamente civil.
Em sede de saneador julgou-se incompetente o juízo local cível de Gondomar por se entender que se trata de ação relativa ao exercício de direitos sociais, sendo por isso, competente para a sua apreciação e julgamento as seções de comércio do Tribunal de Vila Nova de Gaia, nos termos do art. 128º/1 c) Lei 62/2013 de 26 de agosto.
A questão que se coloca consiste, assim, em apurar se a jurisdição cível, com competência residual, é competente em razão da matéria para preparar e julgar a presente ação ou se a mesma está afeta a jurisdição especializada.
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstrata de um tribunal designa a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal. A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada ação, significa que a ação cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstrata do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito[6].
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.
Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição[7], pelos factos reveladores da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor da ação na respetiva petição inicial.
A competência fixa-se no momento em que a ação é proposta, de modo a que as modificações do estado de facto ou do estado de direito posteriores são, em princípio, irrelevantes (artigo 38º, 1 e 2, LOFTJ – Lei 62/2013 de 26 de agosto).
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal[8] - art. 40º da LOFTJ – Lei 62/2013 de 26 de Agosto e art. 64º, 65º, 96º a), 99º CPC.
A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, como se prevê no art. 96º/a) CPC.
A incompetência absoluta do tribunal é uma exceção dilatória que determina a absolvição da instância ou, no caso de ter sido decretada depois de findos os articulados, a remessa dos autos ao Tribunal competente, desde que o autor tal requeira, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão e o réu não ofereça oposição justificada ( artºs 96º a), 97º, 99º/1/2, 576º/2 e 577ºa) todos do CPC).
Compete ao juízo local cível de Gondomar a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunais de competência territorial alargada, atento o disposto no art. 130º/1 da Lei 62/2013 de 26 de agosto.
Nos termos do art. 128º /1 c) da Lei 62/2013 de 26 de agosto compete aos Juízos de comércio preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais.
Com base neste dispositivo, na decisão recorrida julgou-se competente para preparar e julgar a ação o juízo de comércio e incompetente o juízo local cível.
A doutrina integra os “direitos sociais” em dois grupos distintos: o dos direitos patrimoniais e o dos direitos administrativos ou participativos[9].
Naquele primeiro grupo o bem jurídico tutelado são os valores patrimoniais.
Neste âmbito, para além do direito a quinhoar no lucro, integram-se as ações judiciais de sócio (v.g., direito de impugnação de deliberações anuláveis - art. 59º -, direito de requerer inquérito judicial por falta de apresentação das contas - art. 67º -, direito de propor ação social de responsabilidade contra membros da administração - art. 77º-, direito de preferência nos aumentos de capital por novas entradas em dinheiro (nas sociedades por quotas e anónimas - arts. 266º, 458º e ss.), direito de exoneração em certas circunstâncias (v.g. arts. 3º, 6º, 137º, 161º, n.º 5), direito à quota de liquidação (art. 156º).
No segundo grupo, direitos participativos, o bem jurídico tutelado são os valores que se prendem com o funcionamento da sociedade.
Como observa MENEZES CORDEIRO[10]“os direitos participativos têm a ver com a possibilidade, reconhecida aos sócios, de ingressar no modo coletivo de gestão dos interesses, inserindo-se na organização social e atuando nos esquemas de cooperação por ela previstos”.
MENEZES CORDEIRO[11] identifica, ainda, um terceiro grupo de direitos sociais onde o bem jurídico tutelado são valores pessoais do sócio e inclui nesta categoria os direitos parassociais, o direito à lealdade e o direito ao respeito do estado de sócio.
Acresce a este quadro geral o regime específico consagrado para cada tipo de sociedade e os direitos que decorrem do próprio contrato de sociedade.
Na jurisprudência tem-se entendido, no sentido de integrar o conceito de “direitos sociais” consagrado no art. 128º/1 c) Lei 62/2013 de 26 de agosto, que as ações relativas ao exercício de direitos sociais reportam-se a “ações em que está em causa o direito dos sócios perante a pessoa jurídica societária”[12] ou ainda, que “o Código das Sociedades Comerciais, por sua vez, “também estabelece uma série de direitos concedidos aos sócios”, ligando-se aqui a competência dos tribunais de comércio a “questões relacionadas com a vida e atividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, sendo este o princípio que deve presidir à fixação do sentido a atribuir à mencionada al. c)[art. 128]””[13], ou, que “direitos sociais”, “não são todos os que genericamente poderiam ser classificados como direitos exercidos pelos sócios, mas sim os correspondentes aos direitos que provêm da relação social ou seja da relação da sociedade com o sócio”[14].
Salienta-se, ainda, o critério interpretativo jurisprudencial que aponta “no sentido de não reatamento do modelo dos antigos tribunais de comércio” mas antes “de lhes atribuir competência em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade, designadamente as do contencioso das sociedades comerciais, da propriedade industrial, das ações e recursos previstos no Código de Registo Comercial, e os recursos das decisões em processos de contraordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência”, concluindo-se “no sentido de que a competência dos tribunais de comércio se prende com questões relacionadas com a atividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob a forma comercial, a qual deve orientar o intérprete na determinação do sentido e alcance do segmento normativo em análise”[15].
No caso presente, atendendo ao pedido e causa de pedir constata-se que os autores não pretendem exercer um direito social, mas tão só obter a tutela do direito de propriedade, porque consta como sede da sociedade ré, o prédio adquirido pelos autores e onde estabeleceram a sua habitação.
Apesar da cumulação de pedidos é ao pedido principal que cumpre atender para determinar a competência do tribunal, como se prevê no art. 82º/3 CPC.
Os autores não figuram como sócios da referida sociedade-ré, nem são credores sociais. Apenas visam obter a condenação dos réus a alterar a sede da sociedade, porque tal situação contende com o exercício pleno do direito de propriedade sobre o imóvel, que permanece no registo comercial como local da sede da sociedade-ré.
Acresce que a apreciação jurídica da questão não requer um conhecimento especial e especifico do direito societário, que justifique o julgamento por instância especializada.
De igual forma, não visam os autores exercer qualquer direito de natureza patrimonial contra a sociedade ou algum dos sócios, em prol do ente societário. Não está em causa a discussão de um direito do sócio perante a pessoa sociedade.
A pretensão indemnizatória não se funda nos art. 71 e segs. do Código das Sociedades Comerciais, que contém um conjunto de normas que regem e disciplinam a responsabilidade civil pela constituição, administração e fiscalização da sociedade. Em particular, está afastada a responsabilidade com fundamento no art. 79º do Código das Sociedades Comerciais, por não estar em causa apreciar da responsabilidade civil dos demandados réus, enquanto gerentes ou administradores da sociedade ré, pelos danos causados no exercício das suas funções, “isto é, durante e por causa da atividade de gestão e ou representação social”[16].
Com efeito, os factos que estão na origem do pedido de indemnização prendem-se com a lesão do direito de propriedade e privação do seu uso de forma livre com todas as potencialidades que a mesma permite e que decorre de uma conduta omissiva imputável aos réus, geradora de danos patrimoniais e morais para os autores ( art. 1305º e 483º CC).
A ação não visa o exercício de direitos sociais, sendo por isso competente em razão da matéria para a sua preparação e julgamento o juízo local cível de Gondomar-Juiz 2,, com competência residual, o que determina a revogação do despacho recorrido.
Procedem desta forma as conclusões de recurso.
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-APELAÇÃO DO RÉU -
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Nas conclusões de recurso o apelante FF insurge-se contra o efeito atribuído à decisão da exceção de incompetência material, por entender que a procedência da exceção tem como consequência a absolvição do réu da instância.
Na sentença considerando-se procedente a exceção, determinou-se apenas a remessa dos autos ao tribunal de comércio, sem se pronunciar sobre os efeitos da decisão sobre a instância.
No despacho de admissão do recurso detetou-se tal omissão e considerou-se que a absolvição da instância constitui o efeito da procedência da exceção, porque põe termo à ação.
A questão que se coloca prende-se com o efeito da decisão que julgou procedente a exceção de incompetência material na instância processual.
A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, como se prevê no art. 96º/a) CPC.
Contudo, no caso presente, atento o resultado da apreciação das questões suscitadas na apelação dos autores, que tem como efeito a revogação da decisão em recurso, fica prejudicada a apreciação da questão suscitada na apelação do réu, que por esse motivo impede o conhecimento do seu objeto (art. 608º/2 CPC).
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas:
- na 1ª instância, pelo réu FF; e
- na apelação dos autores, pelos autores e réu FF, na proporção do decaimento, que se fixa em ¼ e ¾, respetivamente;
- na apelação do réu, pela parte vencida a final.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente, procedente, a apelação dos autores e revogar a decisão e nessa conformidade, julgar o juízo local cível de Gondomar-Juiz 2 competente em razão da matéria para preparar e julgar a presente ação, prosseguindo os autos os ulteriores termos, ficando prejudicada a apreciação da apelação do réu.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas:
- na 1ª instância, pelo réu FF; e
- na apelação dos autores, pelos autores e réu FF, na proporção do decaimento, que se fixa em ¼ e ¾, respetivamente;
- na apelação do réu pela parte vencida a final.
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Porto, 27 de fevereiro de 2023
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Cfr. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil-Novo Regime, 2ª edição revista e atualizada, Almedina, Coimbra setembro de 2008, pag. 179 a 181 e nota 261).
[3] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 156
[4] ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pag. 357
[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS E A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO Código de Processo Civil – Anotado, vol II, 2ª edição, pag. 675 e ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pag. 141.
[6] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 195.
JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil , vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.
[7] Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 91.
Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço electrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.
[8] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.
[9] Cfr. JORGE M. COUTINHO DE ABREU (Coord.) CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS EM COMENTÁRIO, Vol. I, Reimpressão, Almedina, Coimbra, fevereiro de 2013, pag. 353 e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Direito das Sociedades- Parte Geral, 3ª edição, ampliada e atualizada, Almedina, Coimbra, 2016, pag 625
[10] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Direito das Sociedades- Parte Geral, ob. cit., pag. 626
[11] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Direito das Sociedades- Parte Geral, ob. cit., pag. 627
[12] Ac. Rel. Porto 29 de março de 2011, Proc. 5326/07.0TBVLG, www.dgsi.pt
[13] Ac. Rel. Porto 17 março de 2014, Proc. 2740/11.0TJPRT.P1, www.dgsi.pt
[14] Ac. Rel. Lisboa 17 de setembro de 2009, Proc. 23/08.1TYLSB.L1-6, www.dgsi.pt ; Ac. STJ 08 de maio de 2013, Proc. 5737/09.6TVLSB.L1-S1; Ac. STJ 15 de setembro de 2011, Proc. 5578/09.OTVLSB.L1.S1; Ac. STJ 07 de junho de 2011, Proc. 612/08.4 TVPRT.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt [15] Ac. Rel. Porto 18 abril de 2016, Proc. 84362/15.3YIPRT.P1, www.dgsi.pt
[16] JORGE M. COUTINHO DE ABREU ( Coord.) CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS EM COMENTÁRIO, ob. cit.,pag. 906.