Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14691/17.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
VIOLAÇÃO DAS LEGIS ARTIS
TRATAMENTO MÉDICO
CONDUTAS DO PACIENTE
CONTRIBUIÇÃO PARA OS DANOS
Nº do Documento: RP2022061514691/17.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de prestação de serviços médicos é um contrato bilateral, sem regulamentação legal típica, que se inclui na categoria genérica dos contratos de prestação de serviços, subordinado às regras supletivas do contrato de mandato e enquadrado pelo que consta dos regulamentos deontológicos próprios.
II - Existe uma violação das leges artis quando há uma desconformidade objectiva entre os actos realizados e os que seriam devidos de acordo com os conhecimentos técnicos da ciência médica à data.
III - O ponto de partida para qualquer acção de responsabilidade médica é o da desconformidade entre a concreta actuação do agente, no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e informado, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes, na mesma data.
IV. Os processos de tratamento médico (como ocorre de forma paradigmática com os odontológicos), são processos partilhados com o paciente, correspondendo a este um determinado tipo de condutas (umas prescritas pelo médico – cumprir o tratamento sem interrupções injustificadas; outras de bom senso), as quais, se não ocorrerem, terão de ser consideradas no âmbito do juízo de valoração da sua contribuição para os danos sofridos e cujo ressarcimento reclame.
V. Não se provando que a actividade desenvolvida no tratamento da A. ocorreu em desconformidade com as leges artis, não resultando concretamente demonstrado que fosse desnecessária ou inútil, ou que sendo adequada ou necessária haja sido praticada de forma deficiente ou defeituosa, ou que hajam sido omitidos actos necessários ou adequados à situação clínica da A., não demonstrou a A. o primeiro dos pressupostos da responsabilidade civil.”
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2020:14691/17.0T8PRT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Avenida ...., .., ..., Paços de Ferreira, instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, com domicílio profissional na Rua ..., ..., no Porto onde concluiu pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe quantia não inferior a €40.000,00 por danos não patrimoniais; a quantia de €20.000,00, a título de danos patrimoniais respeitante a tratamentos de implantes dentários que a autora terá de realizar; a quantia de €15.000,00 já paga pela autora ao réu e referente ao tratamento de reabilitação dentária; a quantia de €40,00 por mês, a título de despesas médicas mensais desde o mês de Maio de 2012 até final da vida da autora, bem como uma quantia referente aos danos futuros previsíveis, designadamente, referentes a tratamentos, deslocações, estadias e dores a liquidar posteriormente, acrescidas de juros de mora, contados à taxa legal desde a data da citação até efectivo pagamento.
Foi, ainda, requerida e admitida a intervenção principal provocada de X... Portugal - Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua ..., no Porto, como associada do réu.
Alegou, para tanto, ter celebrado com o réu um acordo, nos termos do qual este se comprometeu a proceder à reabilitação e colocação de implantes dentários.
Acrescentou, ainda, que não foi advertida pelo réu que poderia ter problemas permanentes com a realização do referido procedimento médico e que corria riscos daquele resultado não ser obtido.
Mais alegou, que a autora anuiu na realização do tratamento por lhe ter sido garantido o resultado pelo réu e que em consequência da intervenção a que foi sujeita em 2012 e realizada pelo réu, resultaram complicações no seu estado de saúde que descreve e que lhe causaram os danos patrimoniais e não patrimoniais.
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Citado, o réu contestou, impugnando, de forma motivada e parcial, os factos invocados pela autora.
Defendeu, ainda, que no caso vertente não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, alegando que não foi o único responsável pelo tratamento a que a autora se sujeitou e que o tratamento realizado pelo réu e por outros dois médicos dentistas era adequado à sua situação e foi efectuado de acordo com a legis artis, tendo sido alcançado o objectivo visado, o qual não se manteve porque a autora não seguiu as instruções que lhe foram dadas a respeito da higiene oral e dos hábitos tabágicos.
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A seguradora interveniente veio igualmente contestar, impugnando a generalidade da factualidade invocada pela autora.
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Findos os articulados, foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador e fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
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Realizada a prova pericial, procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais.
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Por sentença proferida a 05.10.2021 o Tribunal a quo julgou a acção improcedente, absolvendo o Réu e a interveniente do pedido formulado.
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Não se conformando com a sentença proferida, a recorrente AA veio interpor recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I. A factualidade, salvo o devido respeito, provada, e articulada, não permite a absolvição do Réu, antes pelo contrário, levam à inelutável procedência da acção;

II. Os factos articulados pela autora, que constituem a descrição dos danos, a causa de pedir, foram erradamente dados como não provados (Nomeadamente os factos b., e., g. e h„ dos factos considerados não provados);

III. Não foi levado em linha de conta, na sentença recorrida, importante material probatório (junto aos autos na audiência de discussão e Julgamento), nomeadamente o CD onde, entre outras coisas se constata a manifesta falta de contacto ósseo, falta de osteointegração dos implantes, patologia quística no periápice dos implantes, processos inflamatórios;

IV. Quando os implantes não estão 100% osteointegrados a prótese/reabilitação está comprometida.

V. Ora, tendo a autora provado, como provou realmente, os factos que supra se mencionaram, e aceitando a sentença recorrida que “nos casos de intervenções para colocação de implantes podemos considerar a obrigação como de resultado....”; então, tratando-se de obrigação de resultado por se tratar de médico especialista (implantologia) sobre o qual recai um especifico dever do emprego de técnica adequada, torna-se compreensível a inversão do ónus da prova, devendo o mesmo ser civilmente responsabilizado pela simples constatação de que a finalidade proposta não foi alcançada (prova do incumprimento), o que tem por base uma presunção da censurabilidade ético-jurídica da sua conduta - Ac. do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.de Outubro de 2010, Relator Juiz Conselheiro Ferreira de Almeida.

VI. Segundo a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, consagrada no artigo 563.º do CC, o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar (de todo) indiferente para a verificação desse dano.

VII. A inobservância de quaisquer deveres objectivos de cuidado torna a conduta (do médico) culposa, sendo que a culpa se traduz na inobservância de um dever geral de diligência que o agente conhecia ou podia conhecer aquando da respectiva actuação e que comporta dois elementos: um de natureza objectiva - o dever concretamente violado - e outro de cariz subjectivo traduzido na imputabilidade do agente.

VIII. A utilização da técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais traduz a chamada imperícia do médico, pelo que se o médico se equivoca na eleição da melhor técnica a ser aplicada no paciente, age com culpa e consequentemente, torna-se responsável pelas lesões causadas no doente.

IX. Destarte, o médico poderá ser civil (e diretamente) responsável se com a sua acção ou omissão, houver ofendido os direitos do paciente, em relação aos quais exerce as funções próprias da sua profissão, ou haja ofendido qualquer dos seus interesses digno de protecção legal (v.g. os seus direitos de personalidade), causando-lhe danos, desde que o seu comportamento (ilícito) lhe possa ser censurado a título de dolo ou mera negligência (art.º 483.º do CC).

X. A tutela contratual é contudo a que, em regra, mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória como acima se alegou, face às regras legais em matéria do ónus da prova da culpa (art.ºs 799.º, n.º 1 e 487.º, n.º 1, ambos do CC). E a que, sem dúvida, melhor protege o lesado contra eventuais “conspirações do silêncio” em sede probatória, muito comuns neste tipo de situações e abundante nesta situação concreta!...

XI. Conforme dispõe o artigo 798.º do CC, «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obi igação torna-se responsável pelo pi ejuízo que cause ao credor». Recairá, pois, em princípio, sobre o Recorrido, a obrigação de indemnizar os prejuízos causados à Recorrente (art.º 566.º e ss. do CC).

XII. A sentença recorrida viola o estatuído no artigo 607.º n.º 4 e n.º 5 do CPC;

XIII. A sentença recorrida viola ainda o artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa;

XIV. Verificam-se a coexistência dos requisitos da responsabilidade civil contratual, e nesse corolário, o correspondente dever de indemnizar, por parte do R.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
- Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:
- Da impugnação da matéria de facto;
- Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil geradora da invocada obrigação de indemnizar.
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3. Factos
3.1 Factos Provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. O réu exerce a actividade profissional de médico dentista.
2. A autora era seguida, na especialidade de medicina dentária, pelo Dr. CC.
3. Em 2007, em face do estado de conservação geral dos dentes existentes e à presença de várias zonas edentulas (sem dentes), a autora foi aconselhada pelo dito médico dentista que a seguia a realizar um tratamento de reabilitação e implantes dentários.
4. Na sequência, o réu e o Dr. DD foram abordados pelo Dr. CC no sentido de, em conjunto, realizarem à autora o referido tratamento de reabilitação com colocação de implantes dentários.
5. Depois de consultas e estudos prévios, em 20.10.2007, o réu, auxiliado pelos referidos Dr. DD e Dr. CC realizaram, na clínica do réu, uma intervenção cirúrgica à autora que consistiu na extracção dos dentes 11, 12, 13, 21, 22, 25, 26, 31, 32, 33, 41, 42, 43 e 45 e colocação de 6 implantes na maxila superior e 5 implantes na maxila inferior.
6. Pela realização da aludida intervenção, a autora procedeu ao pagamento da quantia de €15.000,00.
7. Valor este que veio a ser partilhado em partes iguais entre o réu e os referidos Dr. DD e Dr. CC.
8. Previamente, a autora foi informada de todos os riscos inerentes à intervenção que iria ser realizada bem como de todos os cuidados que deveria ter posteriormente, designadamente com a higiene oral e o abandono dos hábitos tabágicos.
9. O que a autora bem compreendeu e aceitou.
10. Foi garantido à autora que iriam ser realizados os procedimentos adequados e recomendados para a obtenção do resultado pretendido pela autora.
11. Após a realização da intervenção cirúrgica mencionada em 5. e subsequente colocação da prótese dentária, a autora passou a ser seguida pelo Dr. CC, no consultório que este tem em Paços de Ferreira.
12. Local onde se deslocou em 21.08.2008 e a seguir apenas em 19.07.2010.
13. Apesar das advertências que lhe foram sendo feitas pelo Dr. CC, a autora, para além de não ter abandonado os seus hábitos tabágicos, não observou os necessários cuidados de higiene oral.
14. A falta continuada desses cuidados de higiene oral por parte da autora determinou o surgimento de diversos problemas que lhe provocavam desconforto e dor: acumulação de placa bacteriana principalmente em redor dos implantes e nos dentes da prótese fixa; acumulação de tártaro na região lingual da prótese fixa; pigmentação severa na região à volta dos implantes e ao longo de toda a prótese fixa; gengivite generalizada no maxilar superior e inferior; sangramento espontâneo aquando da higiene oral e perda óssea.
15. Verificada a perda óssea que a autora apresentava, o réu, o Dr. CC e o Dr. DD, resolveram realizar novas cirurgias à autora sem lhe cobrar qualquer verba.
16. Assim, em 29.10.2011, o réu, o Dr. DD e o Dr. CC realizaram na clínica deste último a remoção dos implantes onde existia alguma perda óssea e descontaminação com regeneração óssea (colocação de osso e membrana) nessas zonas.
17. E em 4.05.2012, o réu, Dr. DD e o Dr. CC realizaram na clínica deste último a (re)colocação de implantes no maxilar inferior.
18. Depois da recolocação dos implantes no maxiliar inferior, a autora continuou a ser seguida pelo Dr. CC, continuando a fumar e a não observar os cuidados de higiene oral adequados, o que lhe determinou novamente acumulação de placa bacteriana principalmente em redor dos implantes e nos dentes da prótese fixa; acumulação de tártaro na região lingual da prótese fixa; pigmentação severa na região à volta dos implantes e ao longo de toda a prótese fixa e gengivite no maxilar inferior.
19. Em 2014, a autora comunicou ao Dr. CC que pretendia refazer as próteses dentárias, tendo sido desaconselhada a fazê-lo por este.
20. Em 2016, a autora passou a ser seguida pelo Dr. EE, o qual, após efectuar uma ortopantomografia e TAC, verificou que a mandíbula daquela apresentava sinais de perda óssea, com sinais de gengivite e periimplantite.
21. Tendo proposto à autora como plano de tratamento a reabilitação total bimaxilar, mantendo os implantes superiores, fazendo uma nova prótese e na mandibula uma nova prótese fixa implanto-suportada, explantando os implantes presentes à data dos exames clínicos, colocando novos implantes no osso são remanescente e regeneração das locas cirúrgicas com xenoenxerto.
22. O qual ascende a um custo não concretamente apurado.
23. Em data não concretamente determinada, mas anterior a 17.01.2017, a autora submeteu-se a novo acto cirúrgico para colocação de implantes intraósseos e explantação dos já existentes na mandíbula.
24. Encontra-se transferida para a X... Portugal - Companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro, titulado pela apólice nº ..., a responsabilidade civil do réu, por actos praticados no exercício da sua actividade de dentista.
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3.2 Factos Não Provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
a. que o tratamento realizado pela autora teve fins predominantemente estéticos;
b. que o único responsável pelo tratamento foi o réu;
c. que em momento algum a autora foi advertida pelo réu que poderia ter problemas permanentes com aquele procedimento médico e que corria riscos do resultado pretendido não ser obtido;
d. que o(s) tratamento(s) realizado(s) pelo réu tocou no canal mandibular;
e. que a partir de 2012, a autora passou a sentir dores muito fortes, dificuldade em mastigar e em falar e problemas gástricos e digestivos;
f. que a primeira reacção da autora foi dirigir-se ao réu de forma a solicitar esclarecimentos, tendo este afirmado que era uma situação normal e passageira;
g. que a perda óssea verificada em 2016 se deveu à forma como foram realizados os tratamentos levados a cabo pelo réu;
h. que a perda óssea verificada em 2016 inviabilizava a recuperação dos critérios clínicos de sucesso dos implantes presentes àquela data;
i. que o tratamento dentário aludido em 19. envolve um custo médio de €20.000,00;
j. que após o tratamento médico realizado pelo réu, a autora sofre de perda de sensibilidade na parte inferior bucal;
k. que a autora tem dores muito fortes provocada por esse procedimento;
l. que a autora tem vergonha de sair de casa;
m. que, fruto do mau estar, a autora fica impossibilitada de prosseguir com a sua actividade profissional;
n. que a autora se tornou numa pessoa sem vida social;
o. que a situação tornou a sua vida familiar num inferno;
p. que a levou a ter ataques de nervosismo e depressões, bem como crises de choro;
q. que a autora sofre agora de hipersensibilidade aos factores climatéricos e dores crónicas constantes;
r. que a autora necessita de tomar medicação para o resto da sua vida.
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4. Conhecendo do mérito do recurso:
4.1. Da impugnação da Matéria de facto
A apelante, em sede recursiva, manifesta-se discordante da decisão que apreciou a matéria de facto, defendendo que os pontos b., e., g. e h. dados como não provados, devem ser considerados provados.
Consta, ainda, do corpo das alegações que a apelante defende, igualmente, que os pontos 7, 8 e 9 dados como provados devem ser dados como não provados.
Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pela recorrente e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Tendo presentes os elementos probatórios e demais motivação, ouvida que foi a gravação dos depoimentos prestados em audiência, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela apelante.
Adiantamos, desde já, que, no caso vertente, a Senhora Juiz a quo fundamentou a sua decisão de forma rigorosa, bem sistematizada, não contornando as questões que se colocavam, invocando sempre com ponderação as regras da experiência comum e o juízo lógico-dedutivo.
Após audição da prova, afigura-se-nos que a apreciação da Senhora Juiz a quo, efectivada no contexto da imediação da prova, surge-nos como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando, por isso, a respectiva alteração.
Com efeito, a convicção expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas e os demais elementos dos autos lhe revela.
Isto porque salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A livre apreciação da prova, não se confunde, contudo, de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve, portanto, colocar o julgador ao apreciar livremente a prova.
Importa, isso sim, aquilatar se as conclusões que foram retiradas a partir da prova que foi produzida e credibilizada pelo tribunal, não contende com as regras da experiência comum e da lógica, sendo, ainda, certo que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
Como é sabido, a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessáriamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
Deve ter-se em conta que o acto de julgar parte de uma operação lógico-dedutiva, a partir de dados objectivos (a experiência pessoal, as regras da experiência da vida) e dados intuitivos (a forma como o depoente expõe, as reacções públicas e emocionais, a racionalidade e razoabilidade das respostas).
Destarte, a prova testemunhal não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode ser objecto de formulação de deduções e induções, os quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras da experiência.
E sempre se deve ter presente a globalidade dos depoimentos e não apenas as partes que alegadamente conviria à apelante.
Conforme já referimos, a Recorrente impugna a decisão da matéria de facto quanto aos pontos b., e., g. e h. dados como não provados.
Os pontos de facto em apreço têm a seguinte redacção:
“b. que o único responsável pelo tratamento foi o réu;
e. que a partir de 2012, a autora passou a sentir dores muito fortes, dificuldade em mastigar e em falar e problemas gástricos e digestivos;
g. que a perda óssea verificada em 2016 se deveu à forma como foram realizados os tratamentos levados a cabo pelo réu;
h. que a perda óssea verificada em 2016 inviabilizava a recuperação dos critérios clínicos de sucesso dos implantes presentes àquela data.”.
Para sustentar a sua tese, a Apelante limita-se a transcrever um breve trecho do depoimento da testemunha Dr. EE, dentista a cujos serviços recorreu em 2016.
Ora, antes de mais, convém mencionar que foram dados, ainda, como provados os factos a seguir enunciados que não foram impugnados pela Recorrente:
“11. Após a realização da intervenção cirúrgica mencionada em 5. e subsequente colocação da prótese dentária, a autora passou a ser seguida pelo Dr. CC, no consultório que este tem em Paços de Ferreira.
12. Local onde se deslocou em 21.08.2008 e a seguir apenas em 19.07.2010.
13. Apesar das advertências que lhe foram sendo feitas pelo Dr. CC, a autora, para além de não ter abandonado os seus hábitos tabágicos, não observou os necessários cuidados de higiene oral.
14. A falta continuada desses cuidados de higiene oral por parte da autora determinou o surgimento de diversos problemas que lhe provocavam desconforto e dor: acumulação de placa bacteriana principalmente em redor dos implantes e nos dentes da prótese fixa; acumulação de tártaro na região lingual da prótese fixa; pigmentação severa na região à volta dos implantes e ao longo de toda a prótese fixa; gengivite generalizada no maxilar superior e inferior; sangramento espontâneo aquando da higiene oral e perda óssea.
15. Verificada a perda óssea que a autora apresentava, o réu, o Dr. CC e o Dr. DD, resolveram realizar novas cirurgias à autora sem lhe cobrar qualquer verba.
16. Assim, em 29.10.2011, o réu, o Dr. DD e o Dr. CC realizaram na clínica deste último a remoção dos implantes onde existia alguma perda óssea e descontaminação com regeneração óssea (colocação de osso e membrana) nessas zonas.
17. E em 4.05.2012, o réu, Dr. DD e o Dr. CC realizaram na clínica deste último a (re)colocação de implantes no maxilar inferior.
18. Depois da recolocação dos implantes no maxiliar inferior, a autora continuou a ser seguida pelo Dr. CC, continuando a fumar e a não observar os cuidados de higiene oral adequados, o que lhe determinou novamente acumulação de placa bacteriana principalmente em redor dos implantes e nos dentes da prótese fixa; acumulação de tártaro na região lingual da prótese fixa; pigmentação severa na região à volta dos implantes e ao longo de toda a prótese fixa e gengivite no maxilar inferior.
19. Em 2014, a autora comunicou ao Dr. CC que pretendia refazer as próteses dentárias, tendo sido desaconselhada a fazê-lo por este.
20. Em 2016, a autora passou a ser seguida pelo Dr. EE, o qual, após efectuar uma ortopantomografia e TAC, verificou que a mandíbula daquela apresentava sinais de perda óssea, com sinais de gengivite e periimplantite.”.
Ou seja, foi dado como provado que os problemas que a Apelante teve, designadamente as dores e a perda óssea aqui em causa, se ficaram a dever a si própria e não à forma como os tratamentos foram realizados pelo Apelado.
De resto, isso mesmo é referido de forma elucidativa na fundamentação da decisão da matéria de facto, onde se pode ler:
“Relativamente à matéria de facto inserta nos pontos 11. e 12. do elenco dos factos provados foram mais uma vez determinantes as declarações de parte prestadas pela autora, a qual ao contrário da testemunha FF, referiu que durante anos não foi ao consultório do réu, tendo sido acompanhada apenas pelo Dr. CC. Mostrou-se ainda particularmente relevante o depoimento desta testemunha devidamente concatenado com o documento subscrito pelo mesmo e junto aos presentes autos a fls. 17 a 19. Não será despiciendo fazer notar que, a autora, confrontada com o teor deste documento disse apenas que se deslocou ao consultório deste médico dentista mais algumas vezes para além das ali registadas, tendo, por vezes, ido lá sem proceder a marcação prévia.
No que respeita à factualidade aludida nos pontos 13. e 14., do elenco dos factos provados teve o tribunal mais uma vez em consideração o teor da certidão narrativa da ficha clínica da autora elaborada pela testemunha CC, cujo teor foi devidamente escrutinado no depoimento desta testemunha, bem como os registos fotográficos constantes de fls. 20 e as imagens referentes aos exames que a demandante foi realizando durante o acompanhamento que lhe foi prestado pelo dito médico dentista.
Aliás, importa desde já dizer que esta testemunha CC prestou no seu conjunto um depoimento sereno, mas assertivo e consistente, pleno na riqueza de pormenores, com pequenas falhas plenamente justificadas pelo tempo decorrido, pelo que em nada foi abalado, na convicção do tribunal, pela restante prova produzida, designadamente, pela prova testemunhal oferecida pela autora ou documental junta aos autos, merecendo-nos credibilidade.
De facto, o referido depoimento e os documentos acima assinalados em nada foram contrariados pelas declarações prestadas pela autora, em sede de audiência final, bem como o relato que a mesma veio a fazer junto da Sra. Perita Médica e que consta da parte inicial do relatório pericial (história do evento). Veja-se que nesse relato, e quanto à primeira intervenção, a autora refere apenas ter sentido um desconforto após a colocação das próteses definitivas e que substituídas estas continuou a não gostar do resultado estético e ainda que só 2/3 anos mais tarde sentiu uma dor violenta, o que a levou a recorrer ao Dr. CC que lhe diagnosticou uma infecção.
Por outro lado, a autora, no âmbito das suas declarações não deixou de admitir que continua a fumar, tendo, contudo, referido que sempre teve muito cuidado com a higiene oral. Tal cuidado não se nos afigura, porém e desde logo, compatível com o teor dos documentos juntos com a contestação, não tendo a demandante logrado apresentar qualquer razão plausível nomeadamente para o estado das próteses evidenciada nos registos fotográficos constante de fls. 20 dos presentes autos.
Acresce que os estudos voltados aos tratamentos odontológicos mostram que o tabagismo tem sido relacionado a eventos negativos diversos, incluindo factor de risco para cancro bucal, maior severidade e incidência de doença periodontal, menor ganho de inserção após terapia periodontal, dificuldades na reparação de enxertos ósseos, inadequado preenchimento sanguíneo dos alvéolos dentários pós-extracção, menor taxa de sucesso de implantes de titânio e maior perda óssea ao redor de implantes osseointegrados (disponíveis para consulta no site https.repositorio.cespu.pt).
É de fazer notar ainda que aquando da realização do exame médico no âmbito da perícia ordenada nos autos, a autora não fez qualquer alusão ao episódio em que a cimentação da prótese fixa superior colapsou, situação esta que apenas em sede de audiência final foi relatada e tentada colocar em evidência pela demandante e pelo seu companheiro.
De todo o modo e não obstante a ocorrência de tal episódio ter sido confirmada pelo Dr. CC, este explicou que tal ocorrência pode ter várias explicações, mas que com a intervenção dele a situação ficou definitivamente sanada, tanto mais que no dizer da própria autora, a mesma ainda mantém hoje em dia a mesma prótese.
A este propósito também não fomos indiferentes à versão dos factos alegada pela própria autora no articulado inicial. Com efeito, na petição, a autora veio alegar que só após o procedimento realizado em 4.05.2012, se começou a deparar “com sintomas anómalos na parte inferior bucal” (cfr. artigos 12º e 13º, do dito articulado). Ou seja, foi a própria autora a afirmar - aquando da propositura da acção -, que só teve problemas com os implantes e/ou próteses após 4.05.2012 e apenas no maxilar inferior.
Deste modo, tivemos por suficientemente demonstrada tal factualidade, a qual reitera-se foi apenas carreada para os autos na contestação.
No que concerne à factualidade dos pontos 15. a 17. do elenco dos factos provados, a mesma foi, desde logo, confirmada pela própria autora, sendo que do respectivo depoimento ressaltou que antes da (re)colocação de novos implantes em 2012, foram retirados os implantes anteriormente colocados no maxilar em 2011, sendo que foi logo após esta intervenção (e não após a realizada em 2012, como é afirmado na petição inicial) que lhe veio a ser diagnosticada uma infecção na gengiva, como a testemunha CC explicou e resulta da certidão narrativa de fls. 17 a 19v dos autos.
Na verdade, tal documento contém não só a descrição do agravamento do estado clínico da autora, desde a data de 23.03.2011, e o que o motivou (sendo enfatizada a contínua falta de cuidados de higiene oral e a manutenção dos hábitos tabágicos, ao contrário do aconselhado), bem como a descrição dos procedimentos realizados até à realização de nova cirurgia em 29.10.2011 (de retirada dos implantes inferiores), sendo também aí relatada a infecção que a autora sofreu na consequência da retirada dos implantes e que foi debelada antes da recolocação.
Ora, quanto ao que resultou da observação directa daquele clínico, não se vislumbra que a demais prova produzida (v.g. os elementos clínicos juntos aos autos pela autora e os remetidos pela Dra. GG para efeitos de exame pericial, bem como as declarações prestadas pela autora) tenha contrariado de forma minimamente consistente as afirmações constantes daquele documento.
De facto, toda a demais prova produzida aponta para a circunstância da autora ter padecido de uma inflamação da gengiva após a retirada dos implantes e antes da (re)colocação dos implantes e não já após este último procedimento e que tal inflamação foi debelada e tratada muito antes da intervenção ocorrida em Maio de 2012, sendo que, como enfaticamente os mesmos relataram, nem o réu, nem a testemunha DD tiveram notícia de qualquer intercorrência ou problema até ao momento em que a autora lhes veio a exigir a devolução do valor que lhes havia sido pago em 2007, em virtude de estar a refazer o tratamento com outro médico dentista.
Assim e no que concerne à factualidade inserta no ponto 18. do elenco dos factos provados, bem como a factualidade considerada como não provada e descrita nas als. d) a f), teve o tribunal necessariamente em consideração o teor da aludida prova documental, e sobremaneira depoimentos do réu e das testemunhas médicos dentistas que intervieram nos procedimentos.
Também no relatório pericial de fls. 137 a 144 (e respectivos esclarecimentos escritos constantes de fls. 173 e 173v), se concluiu não existirem quaisquer evidências de que o tratamento tenha sido mal efectuado. E não se diga que a perícia não teve em consideração toda a informação carreada para os autos, visto que o tribunal assegurou – conforme decorre das diligências ordenadas a fls. 158 e seguintes – que a perita pudesse analisar todos os registos clínicos disponíveis e indispensáveis para a emissão do juízo técnico-científico que lhe foi solicitado.
E no que concerne à perda de suporte ósseo do implante colocado em 12 verificado pela Sra. Perita, a verdade é que também não podemos daí minimamente retirar – como a autora veio pretender fazer crer - que o procedimento efectuado pelo réu não foi bem realizado e que o implante não mantém a sua viabilidade como afirmado pela Sra. Perita, desde logo porquanto, no relatório médico que a própria autora juntou com a petição inicial, elaborado pela testemunha EE (cfr. fls. 7) apenas é recomendada a substituição dos implantes implantados no maxiliar inferior, não havendo qualquer recomendação para a substituição dos superiores. Ou seja, se de facto se verificasse a falta de viabilidade do dito implante, afigura-se-nos que o mesmo não teria deixado de recomendar também a sua substituição.
Acresce que, muito embora conste do relatório médico subscrito pelo aludido médico dentista que passou a seguir a autora que havia necessidade de substituir os implantes inferiores, a verdade é que o mesmo foi elaborado cerca de quatro anos após a (re)colocação dos implantes no maxilar inferior e nem sequer consta do mesmo qual a causa da gengivite e peri-implantite aí mencionada. Aliás, o subscritor do referido relatório médico, ouvido em sede de audiência final, demonstrou desconhecimento total das circunstâncias em que foram realizados os procedimentos anteriores, tendo mesmo afirmado desconhecer há quanto tempo os mesmos tinham sido realizados.
E, assim sendo, e como se nos afigura manifesto, não se pode afirmar que a gengivite e peri-implantite diagnosticada em 2016 tivesse como causa directa o procedimento efectuado pelo réu em 2012, apresentando-se como mais plausível e consistente a versão dos factos carreada para os autos pelo réu.
Deste modo, nem aquele documento, nem qualquer outra prova produzida pela demandante logrou contrariar de forma séria e cabal o teor das conclusões do relatório pericial.
Quanto à factualidade inserta no ponto 19. do elenco dos factos provados, a convicção do tribunal resultou desde logo das próprias declarações de parte da autora e do depoimento do seu companheiro. Veja-se que, não obstante na petição inicial, autora não tenha feito qualquer reparo ao resultado estético do tratamento, no decurso do respectivo depoimento, tal temática foi por diversas vezes aflorada, inculcando a ideia que a alteração do resultado estético foi o que de facto motivou a demandante à propositura da presente acção.”
Acresce que, o depoimento prestado pela testemunha Dr. EE não pode ser considerado isento e desinteressado na medida em que foi ele quem referiu à Recorrente que o trabalho realizado pelo Recorrido estava mal feito e, na sequência disso, lhe prestou serviços, que no dizer da própria ascenderam a milhares de euros, sendo que, de acordo com a peritagem realizada, “não existe qualquer evidência que o tratamento realizado pelo Dr. EE tenha tido indicação terapêutica (ie, tivesse necessariamente de ser realizado)” – cf. relatório pericial de 26.1.2020.
Ademais, como concluiu a peritagem realizada, “não existe qualquer evidência que o tratamento realizado pela equipa da qual o Dr. BB fez parte tenha sido mal realizado” sendo de notar que, como se diz no mesmo relatório, “quanto aos problemas relatados pela examinada alguns anos depois do evento (primeiro 2/3 anos depois, e depois 4 anos mais tarde), é natural que estes ocorram, sem que seja, novamente, sinónimo de tratamento mal executado, sendo mais provável que tal resulte de falta de manutenção dos trabalhos, deficiências a nível das técnicas de higiene oral, hábitos parafuncionais e hábitos tabágicos, e o próprio decorrer do tempo e a duração dos tratamentos”.
Como é sabido a finalidade da perícia é a percepção de factos ou a sua valoração de modo a constituir prova atendível. O perito é um auxiliar do juíz, chamado a dilucidar uma determinada questão com base na sua especial aptidão técnica e científica para essa apreciação. O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador; o julgador está amarrado ao juízo pericial, sendo que sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação - a este propósito, cf. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 08.03.2018, proferido no processo 468/15.0T8PDL, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, no caso vertente, o relatório pericial encontra-se devidamente fundamentado, com base nos conhecimentos técnicos e científicos idóneos.
Por outro lado, apesar de nada dizer nas conclusões de recurso a este respeito, a Recorrente sustenta, ainda, no corpo das suas alegações que também os pontos 7, 8 e 9 dados como provados deveriam ter sido dados como não provados.
Os pontos em apreço têm a seguinte redacção:
“7. Valor este que veio a ser partilhado em partes iguais entre o réu e os referidos Dr. DD e Dr. CC.
8. Previamente, a autora foi informada de todos os riscos inerentes à intervenção que iria ser realizada bem como de todos os cuidados que deveria ter posteriormente, designadamente com a higiene oral e o abandono dos hábitos tabágicos.
9. O que a autora bem compreendeu e aceitou”.”.
Ora, quanto ao ponto 7, na sentença recorrida, a propósito da fundamentação da matéria de facto, diz-se, com total acerto, que:
“quer a autora, quer o seu companheiro FF confirmaram que os aludidos DD e CC, ambos médicos dentistas, estiveram presentes nas várias intervenções cirúrgicas a que a mesma foi sujeita, sem conseguir, contudo, esclarecer a intervenção exacta de cada um deles naqueles actos médicos. Por outro lado, os aludidos médicos dentistas, para além de asseverarem, ainda que de forma algo difusa a sua intervenção, atestaram que o réu repartiu com eles, em partes iguais, o valor recebido da autora por conta de tal tratamento, não tendo deixado porém de frisar que a colocação dos implantes propriamente dita foi realizada pelo réu.
Deste modo, e muito embora tenhamos por seguro que o réu não foi o único clínico responsável pelo tratamento - pois, de outra forma não se percebe qual a razão para a repartição dos honorários -, também não podemos deixar de ter por certo que a colocação dos implantes propriamente dita foi executada pelo mesmo (conforme o próprio acabou por aquiescer), tendo os outros ficado responsáveis por outras tarefas no decurso das intervenções que foram levadas a cabo entre 2007 e 2012.
Do que deixamos dito redundou na resposta negativa à factualidade da al. b) dos factos não provados.”
Ademais, quanto aos pontos 8. e 9., na sentença recorrida, diz-se, a propósito dos mesmos, que:
“Quanto à matéria de facto incluída nos pontos 8. a 10. do elenco dos factos provados tivemos igualmente em consideração o acordo das partes (veja-se que é a própria autora quem afirma que o réu lhe deu indicações antes e depois dos procedimentos médicos – artigo 10º, da petição inicial), bem como todos os depoimentos já acima referenciados, à luz da normalidade do acontecer. Com efeito, e sem prejuízo de ser normal ter sido assegurada à autora a colocação dos implantes e das próteses conforme por ela solicitado, não podemos deixar de considerar que a mesma foi advertida que para o sucesso de tal tratamento a mesma teria de observar os cuidados de higiene oral e abandonar ou reduzir os hábitos tabágicos, o que aliás é do senso comum.”
De resto, a Apelante não indica um único concreto meio de prova no qual se possa ancorar qualquer alteração da decisão da matéria de facto a este respeito, limitando-se a tecer considerações de carácter geral a este respeito.
Parece-nos, por isso, à luz da prova testemunhal, documental e pericial não existirem motivos que justifiquem a alteração, devendo manter-se as respostas dadas aos referidos pontos da matéria de facto provada.
Em face do que vem de ser exposto, improcede o recurso sobre a decisão da matéria de facto.
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A matéria de facto que fica em definitivo julgada provada é assim fixada em 1ª instância.
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4.2. Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil geradora da invocada obrigação de indemnizar.
Como resulta dos autos, a apelante formula a sua pretensão indemnizatória com fundamento em responsabilidade médica.
Estando assente a natureza jus-privatística da relação jurídica em que se inscrevem os actos médicos em causa nos presentes autos, importa começar por proceder à sua caracterização em termos de determinar quais os institutos de responsabilidade civil aplicáveis.
Convém reter que a prestação de serviços de saúde, no sector privado, se pode reconduzir a uma diversificada tipologia de fontes jurídicas, consoante o perfil de cada caso concreto.
Assim, há casos em que as prestações dos cuidados de saúde são realizadas sem a prévia ou concomitante negociação entre o prestador do serviço e o paciente, não se gerando, por isso, qualquer vínculo negocial. Daí que a ocorrência de lesão do paciente, no quadro da realização dessa prestação, deva ser equacionada em sede de responsabilidade civil extracontratual ou delitual, nos termos dos artigos 483º e seguintes do Código Civil.
Já quando a prestação do serviço de saúde tiver sido objecto, de algum modo, de negociação entre o prestador de serviço (médico ou instituição prestadora de cuidados de saúde) e o paciente, impõe-se reconduzir o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação assumida pelo prestador ao instituto da responsabilidade contratual, nos termos dos artigos 798º e seguintes do Código Civil, sem prejuízo de eventual concurso deste título de responsabilidade com a responsabilidade delitual.
Qualquer que seja o ponto vista sobre o qual se encare, para um/a Autor/a ser ressarcido/a, sempre terão de se mostrar reunidos os pressupostos - genericamente enunciados pelo artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil - da responsabilidade civil, consistindo esta "na obrigação de reparar os danos sofridos por alguém. Trata-se de indemnizar os prejuízos de que esse alguém foi vítima" - cf. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição, Coimbra Editora, 1989, página 194.
Adoptando-se a clássica sistematização avançada por Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, I, 8ª edição, Almedina, 1994, página 532, diga-se que, para existir a responsabilidade civil, necessária se torna a presença de um facto, da ilicitude, da imputação do facto ao lesante, a existência de danos e de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Assim, a responsabilidade civil da qual emerge a referida obrigação de indemnização, tanto pode ser contratual (por resultar de uma relação jurídica de natureza creditícia, sendo a obrigação de indemnização decorrente da violação de deveres originados nesse vínculo obrigacional originário), como extra-contratual (por resultar da violação de direitos absolutos ou da prática de actos lícitos ou ilícitos) que provoquem danos a outrem – cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Tópicos sobre a distinção entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, in Estudos em comemoração dos vinte anos da Escola de Direito da Universidade do Minho, Coimbra Editora, 2014, páginas 513-526; e de Filipe Albuquerque Matos, Traços distintivos e sinais e contacto entre os regimes da responsabilidade civil contratual e extracontratual. O caso particular da responsabilidade civil médica, in Lex Medicinae, Revista portuguesa de direito da saúde, ano 12.º, 2015, páginas 25-54.
Os seus pressupostos são muito semelhantes, nada obstando à cumulação dos seus regimes, nos concretos casos que se apreciem.
Ora, a relação jurídica de matriz convencional entre o médico e o paciente tem vindo a ser configurada, à luz do nosso ordenamento legal, como um contrato social e nominalmente típico, de natureza civil, consensual, subsumível ao tipo de contrato de prestação de serviço previsto no artigo 1154º do Código Civil, em regra oneroso, podendo ainda ser perspectivado como contrato de consumo - cf. António Henriques Gaspar, A responsabilidade civil do médico, CJ Ano III (1979), Tomo 1, pág. 543; Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica …, Scientia Iurida, XXXIII, Janeiro-Abril 1984, pág. 107; Carlos Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in Direito de Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, pág. 88 e, André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, págs. 670 a 673.
No caso vertente, da análise do acervo factual, resulta manifesto que no referente ao réu, aqui apelado, a situação atrás desenhada configura-se como susceptível da sua responsabilização civil suportada na relação contratual directamente ajustada com a autora, aqui apelante.
Assim, para o que concerne aos presentes autos partimos do regime da responsabilidade contratual (artigos 798.º e seguintes do Código Civil).
Ou seja, a regra base é a de que «o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causar ao credor» (artigo 798.º do Código Civil), pelo que importa verificar a que é que corresponde o não cumprimento de uma obrigação assumida.
Para a definição do conteúdo da prestação a cargo do médico, na responsabilidade civil contratual decorrente do incumprimento de um contrato de prestação de serviços médicos (sem regulamentação legal típica, incluído na categoria genérica dos contratos de prestação de serviços - artigo 1154.º do Código Civil - e subordinado às regras supletivas do contrato de mandato, com as devidas adaptações – artigo 1156.º do Código Civil), para além do que conste de concretas cláusulas contratuais acordadas, há que recorrer ao que consta dos regulamentos deontológicos próprios, a começar pelo Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos (Diário da República, 2.ª série, n.º 139, de 21/07/2016).
O artigo 5.º deste Regulamento assinala, assim, que “o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano”.
Por outro lado, tem ainda de ser considerado o Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas (Diário da República, 2.ª série, n.º 143, de 22/06/1999, alterado pelo Regulamento Interno n.º 4/2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 103, de 29/05/2006, cujo artigo 8.º (sob a epígrafe “Dever Fundamental”) dispõe:
“1. Todo o médico dentista tem o dever de assegurar ao seu paciente a prestação dos melhores cuidados de saúde oral ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza.
2. O médico dentista poderá ser responsabilizado pela prestação de actos médico-dentários manifestamente desadequados, bem como pela prestação manifestamente desadequada de actos médico-dentários, quando, dadas as circunstâncias concretas do caso, lhe era objectivamente exigível a actuação de forma distinta”.
O “médico moderno tem de lidar quase sempre com uma dinâmica da doença que quase nunca é puramente biológica, por um lado, ou puramente sociológica, por outra, nem sequer apenas a «biodinâmica» (…), porém, quase sempre, uma dinâmica mista, biossocial, impondo-se assim, na consideração de tal dinâmica, uma perspectiva complexamente biossocial, e o mais possível, unificada”. E esta dinâmica mista cria, para o médico, problemas “impossíveis de serem resolvidos, através de uma medicina para o qual o doente exista apenas ou simplesmente como indivíduo biológico; e a doença, invariavelmente, como distúrbio apenas ou simplesmente orgânico, físico ou físico-químico ou bio-químico ou hereditário. E se tal reorientação se impõe no caso da terapêutica, ainda mais se impõe no caso da medicina que se especialize em proteger preventiva e profilaticamente a saúde pública, ampliar a acção protectora da higiene, concorrer para o chamado bem-estar social” - cf. Gilberto Freyre, Sociologia da Medicina, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1967, página 92.
Nesta base, a obrigação médica envolve em primeira linha o dever de prestar os melhores cuidados no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde ao/à paciente, suavizar-lhe o sofrimento e prolongar-lhe a vida.
Tradicionalmente qualifica-se esta obrigação como uma obrigação de meios no sentido de que o médico estará obrigado a desenvolver a sua actividade, prudentemente e com diligência, visando um determinado objectivo, mas sem que lhe seja exigível a obtenção de um concreto resultado.
Giramos assim à volta do conceito de “diligência exigível”, o qual, segundo Manuel A. Carneiro da Frada, constitui “pedra de toque da responsabilidade por acto médico, que é, essencialmente uma responsabilidade subjectiva, pela violação de deveres de meios. (…) A negligência resulta de uma ofensa ao padrão de conduta profissional de um médico satisfatoriamente competente, prudente, e informado. As rotinas médicas e as leges artis auxiliam à concretização. O juízo correspondente deve ser temporalmente referido: além de não ser uma ciência exacta, a medicina está sujeita a um processo de evolução e aperfeiçoamento permanentes” - cf. Direito Civil-Responsabilidade Civil, O Método do Caso, Almedina, 2010, páginas 115 e 116.
Esta questão de estarmos diante de uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultados é também um dos pontos clássicos de abordagem desta matéria e pode ajudar no seu enquadramento (embora se possa concluir que a distinção acaba por não ter grande utilidade prática).
Com efeito, a contraposição entre prestações de conduta e de resultado acaba, assim, por ser linguística: tudo está em saber qual foi a fórmula usada na fonte (normalmente, no contrato) de onde promane a obrigação em jogo e quais as consequências porventura daí resultantes, a nível de regime - cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo I, 2009, Almedina, página 446.
Será, todavia, uma forma de facilitar a abordagem da matéria, na consciência de que já Manuel Gomes da Silva, assinalava que a distinção entre obrigações de resultado e obrigações de meios era um “fracasso”, uma vez que mesmo nas obrigações de meios existia uma vinculação a um fim (o interesse do credor), e que, se este se não atinge, se presume a culpa do devedor (cf. O dever de prestar e o dever de indemnizar, Volume I, Lisboa, 1944, páginas 206 e 238 e seguintes).
Ou seja, e seguindo agora Luís Meneses Leitão, “em ambos os casos aquilo a que o devedor se obriga é sempre a uma conduta (a prestação), e o credor visa sempre um resultado, que corresponde ao seu interesse (art. 498.º, n.º 2). Por outro lado, ao devedor cabe sempre o ónus da prova de que realizou a prestação (art. 342.º, n.º 2) ou de que a falta de cumprimento não procede de culpa sua (art. 799.º), sem o que será sujeito a responsabilidade. Não parece haver assim base no nosso direito para distinguir entre obrigações de meios e obrigações de resultado” - cf. Direito das Obrigações, Volume I, Almedina, 2000, páginas 124 e 125.
Com a assertividade que o caracterizava, Carlos Ferreira de Almeida, escreveu mesmo que a “distinção acaba pois por ser fonte das confusões ou imprecisões que pretenderia evitar, pelo que é preferível renunciar a ela e estabelecer o elenco adequado dos deveres, principais e acessórios, que incidem sobre o médico ou a unidade privada de saúde. O conceito de ‘obrigação de meios’ poderá gerar afinal uma ideia injustificada de responsabilidade diminuída. Colocada no âmbito adequado, como consequência da violação da obrigação de tratar, a responsabilidade contratual do médico não deve ser colocada em plano de exigência menor do que o correspondente a qualquer outra obrigação” – cf. Os contratos civis de prestação de serviços médicos, in Direito da Saúde e Bioética, AAFDL, 1996, páginas 75 a 120 (11-112); a questão foi assinalada num acórdão de referência do STJ - o de 17/01/2013, relatado por Ana Paula Boularot, disponível em www.dgsi,pt - sobre a problemática da indemnização nos chamados casos de vida indevida ou «wrongful life» .
Assim, e concordando com Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Evitando-se, como estamos convencidos de que deverá evitar-se, a contraposição entre as obrigações de meios e de resultado, há-de distinguir-se dois tipos de prestações.
Em primeiro lugar, há prestações de conteúdo definido ou determinado, em que o devedor está adstrito à realização de factos que estão “especificadamente indicados no contrato ou na lei”, e, em segundo lugar, há prestações de conteúdo indefinido ou indeterminado, em que o devedor se encontra adstrito à prestação de factos que não estão especificadamente indicados. Estando em causa prestações de conteúdo indeterminado, o contrato e/ou a lei determinam o fim da prestação e o devedor há-de determinar os meios adequados para o realizar, ou seja: determinar o conteúdo da prestação. O caso da obrigação do médico é o caso paradigmático, e porventura o caso paradigmático, de uma prestação de conteúdo indefinido. Ora o conteúdo das obrigações de conteúdo indefinido ou indeterminado determina-se por remissão para o conceito de cuidado ou de diligência - em obrigações de conteúdo indefinido, o devedor está, sempre e só, adstrito à mais elevada medida de cuidado exterior” - cf. Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica, Materiais para o Direito da Saúde, n.º 1, 2019, páginas 100-101.
A ilicitude necessária para considerar preenchido esse requisito/pressuposto da responsabilidade civil do médico, passa por considerar estarmos diante de uma acção ou uma omissão de um médico, que viole os seus deveres.
De outro modo dito, considerando estarmos diante de uma violação das leges artis, entendidas como uma desconformidade objectiva entre os actos realizados e os que seriam devidos de acordo com os conhecimentos técnicos da ciência médica à data, poderá dar-se como presente a ilicitude.
Assim, o profissional terá de ter cometido um erro médico, entendido como uma “conduta profissional inadequada resultante da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorrectas que se revelam lesivas para a saúde ou vida do doente” – cf. Germano de Sousa, Negligência e erro médico, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 6/99, Nov./Dez. 99, página 13 e Acórdão do STJ de 15/12/2020, Ricardo Costa, disponível em www.dgsi.pt.
E poderá tê-lo cometido por imperícia, imprudência, desatenção, negligência ou inobservância dos regulamentos, ou, muitas vezes, com estes factores misturados, sendo as duas primeiras as mais comuns.
A imperícia traduzida na falta dos conhecimentos técnicos adequados ou derivada uma inadequada preparação, consistindo em fazer mal o que deveria - de acordo com as legis artis - ser bem feito, sendo que não deve nunca o médico ultrapassar os limites das suas qualificações e competências (artigo 11.º, n.º 1, do Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos, e os artigos 8.º, 9.º e 15.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas vigente à data dos factos).
A imprudência, por seu turno traduzida no fazer o que não deveria ser feito (artigos 10.º, n.º 1, 8.º, n.º 1, 7.º, n.º 2 e 5.º, do Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos; e artigos 8.º, 9.º, 15.º, 16.º, 18.º e 19.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas vigente à data dos factos).
A questão que se coloca pertinentemente será sempre a da definição do já aqui referido “padrão de diligência” exigível ao médico, ou do seu profissionalismo.
E a exigibilidade está intrinsecamente ligada à culpa, a qual consiste num nexo de imputação do acto ilícito ao agente, em que não há previsão ou aceitação do resultado antijurídico.
O acto ilícito será imputável ao agente porque ele deveria ter actuado por molde a evitá-lo, usando da diligência adequada.
Culposa não será a omissão de qualquer precaução, mas a omissão daquelas precauções que evitariam o dano cuja produção era provável.
Da conjugação dos artigos 799.º, n.º 2 e 487.º, n.º 2, do Código Civil, resulta que a bitola veiculada pela lei é do bom pai de família (bonus pater familias) - que aqui utilizaremos não na sua expressão facial/linguística, mas no seu conteúdo jurídico -, isto é, a diligência que uma pessoa comum - médico/a - (prudente, razoável, atenta e preocupada) teria em face do condicionalismo próprio do caso concreto (“em face das circunstâncias do caso concreto” como diz na parte final do n.º 2 do referido artigo 487.º): se só uma pessoa particularmente displicente teria tal conduta, estaremos perante a categoria da culpa grave ou negligência grosseira - non intelligere quod omens intelligunt).
Como é evidente, quanto maior for o valor do bem que a conduta debitória visa produzir ou salvaguardar, mais forte será o imperativo de cautela que recai sobre o devedor.
Na área do exercício da medicina, o médico deve actuar de acordo com o cuidado, a perícia e os conhecimentos compatíveis com os padrões por que se regem os médicos sensatos, razoáveis e competentes do seu tempo, o que pressupõe que o médico se mantenha – como é seu dever estatutário – razoavelmente actualizado sobre a evolução dos conhecimentos médicos, especialmente na sua área de actuação.
Ou seja, exige-se ao médico que actue com aquele grau de cuidado e competência que é razoável esperar de um profissional da mesma especialidade, agindo em circunstâncias semelhantes - cf. Manuel Carneiro da Frada, Uma «terceira via» no Direito da Responsabilidade Civil, Almedina, 1997, página 15.
Desta forma e no âmbito da responsabilidade profissional, o critério do “bom pai de família” deve considerar-se substituído pelo padrão de conduta do bom profissional da categoria e especialidade do devedor (competente, prudente, razoável e informado), perante as mesmas circunstâncias factuais e no mesmo tempo histórico.
Em termos de negligência, portanto, como bem se assinala no Acórdão do STJ de 26/04/2014 (relatado por Silva Salazar), a responsabilidade do médico pressupõe a negligência, a “violação das leges artis”, e só “tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir” (disponível em www.dgsi.pt).
Há ainda dois planos que importa ter presentes, que reflectem a violação das referidas leges artis (quaisquer que elas sejam): o da falta de prudência, de diligência ou de conhecimento no apuramento do diagnóstico ou no tratamento proposto, por um lado, e o erro de apreciação ou julgamento, por outro.
Sabido que um diagnóstico se estabelece de forma progressiva e sujeito a constantes e sucessivas correcções sucessivas, mais do que o resultado que o médico obteve com o doente, ou do que o médico retira dos dados a ele respeitantes por si de certo modo observados, o padrão atrás definido impõe que se atente nos meios que um médico da mesma categoria, prudente e avisado, utilizaria para obter um diagnóstico exacto e correcto e se eles foram ou não utilizados.
Esta distinção radica, no fundo, na álea inerente ao exercício da medicina e na subsequente ilação de que os mais reputados mestres cometem, diariamente, erros de diagnóstico.
O que se impõe evitar - em qualquer caso - são os diagnósticos apressados e falta de exames ou controlo apropriado, sendo defensável afirmar que o erro de apreciação ou julgamento só será relevante se tiver sido provocado por manifesta negligência (“que o médico não tenha examinado o seu doente convenientemente, que não tenha utilizado as regras e técnicas actuais recomendáveis e disponíveis, que não tenha levado em conta os resultados dos exames complementares de diagnóstico, valendo apenas do chamado “olho clínico”, ou que tenha optado “por uma hipótese diagnóstica remota ou absurda ou que tenha ainda adoptado uma terapêutica errada ou desajustada”) – cf. Germano de Sousa, Negligência e erro médico, in Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 6/99, Nov./Dez. 99, páginas 13-14; Maria Paula Ribeiro de Faria, O Erro Em Medicina e o Direito Penal, in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 7, n.º 14, 2010.
João Lobo Antunes chama a atenção ainda para a distinção conceptual entre acontecimento adverso e erro, sendo o primeiro “algo que sucede na sequência de uma intervenção médica e que causa dano temporário ou permanente, ou prolonga o internamento hospitalar” e o segundo “o acontecimento adverso prevenível, que ocorre por falta de planeamento ou execução” e que “é considerado negligente quando preenche os critérios legais da negligência e se afasta portanto de padrões de prática aceitáveis” – cf. A Nova Medicina, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012, página 39; também, O Erro em Medicina, Acta Médica Portuguesa, 1993-6, páginas 43-46 (página 44, em especial).
A tudo isto acresce que os processos de tratamento médico são, muitas vezes (e o caso dos odontológicos é paradigmático), processos partilhados com o paciente (repare-se que o contrato de prestação de cuidados médicos é um contrato bilateral), ficando a cargo deste um determinado tipo de condutas (indicadas umas pelo médico, outras de bom senso).
Assim, não cumprir o tratamento sem interrupções e/ou não o fazer exactamente da forma como o/a médico/a estipulou, caso o(s) acto(s) médico(s) não atinjam o resultado pretendido em consequência disso, excluirá a responsabilidade do prestador do serviço médico – cf. Vera Lúcia Raposo, Do ato médico ao problema jurídico: breves notas sobre o acolhimento da responsabilidade médica civil e criminal na jurisprudência nacional, Almedina, 2013, página 40. - cf. acórdão da Relação de Lisboa de 28.09.2021, proferido no processo 612/17.3T8MTA.L2.7, publicado na base de dados www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto
Com este enquadramento, há que passar à apreciação do concreto objecto do presente recurso.
No caso vertente, a Apelante quer responsabilizar o Apelado porque o tratamento não correu bem, sofreu dores e prejuízos e as suas expectativas não se cumpriram.
Como é sabido, o campo da odontologia é fértil em situações duvidosas, desde logo proporcionadas pela já abordada vexata quaestio das obrigações de meios e de resultados.
Sendo embora necessário “fazer uma distinção entre a actividade de elaboração da prótese e dos implantes e a actividade de aplicação da mesma no organismo da paciente”, no “que concerne à primeira, o médico compromete-se a elaborar um dispositivo que se adeque à anatomia do concreto doente, de acordo com regras técnicas precisas, assumindo uma obrigação de resultado. No que respeita à segunda, na medida em que a aceitação ou rejeição de um corpo estranho pelo organismo depende de um conjunto de factores que o profissional não consegue controlar, a obrigação assumida deverá qualificar-se como uma obrigação de meios” – cf. Rute Teixeira Pedro, A Responsabilidade Civil do Médico-Reflexões sobre a noção de perda de chance e a tutela do doente lesado, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Centro de Direito Biomédico, Coimbra Editora, 2008, página 100.
No caso vertente, não há dúvidas de que estava em causa não a mera aplicação de implantes e próteses, mas uma complexa e integrada operação dentária, que envolveu toda a boca da Autora, aqui Apelante (maxilar inferior e superior) e, como tal, todo o seu organismo.
Com efeito, da matéria de facto apurada retiramos que foi proposto à autora a colocação de implantes e de próteses no maxilar inferior e no maxilar superior, bem como, posteriormente, a retirada e recolocação de novos impantes no maxilar inferior, o que a autora, aqui apelante, aceitou, vindo a realizar este último tratamento - em duas fases.
A actividade de um odontólogo pode assumir uma qualidade vária, dependendo não só da tarefa que se vincula a realizar, mas também de outros factores alguns dos quais se relacionam com o próprio doente: e eis o ponto em que entra não apenas o referido organismo da Autora, aqui Apelante, mas o próprio comportamento desta.
Os seja, não bastava o primeiro Réu, aqui Apelado, ter seguido toda a praxis exigível a um profissional da área, diante de um circunstancialismo adverso, como a Autora, aqui Apelante, deu um contributo negativo para esse mesmo circunstancialismo.
Sucede que, como se provou, para a manutenção de tal resultado e da sua saúde oral, a Recorrente foi advertida de que devia manter os cuidados de higiene oral e abandonar os hábitos tabágicos, o que a mesma não observou.
Mais ficou demonstrado que tal falta de higienização protética e os hábitos tabágicos da autora, aqui apelante, é que implicaram o surgimento de problemas, geradores de desconforto e dor para a mesma.
Assim, face aos factos que mencionámos, também se nos afigura ser de entender, em sintonia com o Tribunal a quo, que não resultou demonstrado que a colocação dos implantes e da prótese executada pelo réu, aqui Apelado, na pessoa da Apelante foi realizada de forma deficiente ou defeituosa.
Na verdade, e relativamente à primeira intervenção (a de 2007), constata-se que a mesma foi realizada e completada sem percalços, não tendo ficado demonstrado (ou sequer alegado) que o réu, aqui apelado, tenha cometido na prática do acto médico qualquer erro devido a descuido, inadvertência, desatenção, ignorância culposa ou mau uso das regras técnicas observáveis.
Por outro lado, não ficou minimamente demonstrado que os problemas que a autora, aqui apelante, apresentou em 2011, foram causadas por qualquer acto negligente do réu, aqui apelado, ou por qualquer erro por ele praticado no decurso da colocação dos implantes e da prótese dentária ou posteriormente.
Tais problemas deveram-se antes à inobservância dos cuidados de higiene oral por parte da autora, bem como à manutenção dos seus hábitos tabágicos. Dir-se-á que a Apelante estava no seu “direito” de fazer estas opções, mas são opções com consequências.
Acresce que, dos factos apurados, conforme bem refere o Tribunal a quo, resultou evidenciado que a retirada dos implantes no maxilar inferior e a colocação de novos implantes realizadas em consequência do aparecimento dos ditos problemas, constituiu o procedimento mais adequado àquelas circunstâncias e não foi causa de quaisquer outros problemas.
Por fim, não ficou demonstrado que este tratamento tenha sido mal executado ou sequer que tenha sido atingido o canal mandibular.
De todo o exposto, podemos concluir que os procedimentos levados a cabo pelo apelado na pessoa da apelante foram efectuadas de acordo com as boas práticas.
E, por outro lado, da factualidade apurada resulta ainda que a autora, aqui apelante, deu o seu consentimento informado às intervenções em causa e foi expressamente advertida dos cuidados a observar após os procedimentos em discussão.
Assim sendo, considera-se ser manifesto que, no caso, não se mostram preenchidos os pressupostos necessários para constituir o apelado na obrigação de indemnizar.
Ficando afastada a responsabilidade subjectiva daquele réu, resulta também afastada qualquer responsabilidade da interveniente Companhia de Seguros, a qual estaria sempre dependente da verificação daquela.
Concomitantemente, e na falência dos pressupostos da responsabilidade, é manifesto que a presente acção tem de improceder.
Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação.
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Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo da apelante.
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Notifique.

Porto, 15 de Junho de 2022
Paulo Dias da Silva
Isabel Silva
João Venade
(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)