Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3482/22.6T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA NATÉRCIA ROCHA
Descritores: PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CONTRA-ORDENACIONAL
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
PRINCÍPIO DA LEALDADE
PRINCÍPIO DA NÃO RETROATIVIDADE DA LEI PENAL
Nº do Documento: RP202303083482/22.6T9AVR.P1
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Independentemente da posição que se tome, diferente desta causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal estabelecida nas Leis n.º 1-A/2020 e n.º 4-B/2021, a verdade é que outra causa suspensiva se verifica, relacionada com a paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, no domínio criminal e contraordenacional, primeiramente, por força dos nºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, e por força do artigo 6º-B, nº1, e artigo 6º-C, nº1, al. b), da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, entre 22 de janeiro e 6 de abril de 2021.
II - Durante estes dois períodos o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, ante a paralisação imposta por lei para os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos tribunais.
III - O prazo de prescrição suspendeu-se durante o período em que não foi autorizado legalmente o andamento do processo, ou seja, levantado legalmente o obstáculo legal da suspensão dos atos e prazos no procedimento contraordenacional.
IV - A razão de ser desta suspensão baseia-se, como foi o caso, na existência de um obstáculo previsto na lei, de carácter geral, ao início ou continuação do procedimento contraordenacional, “o qual suspende o respetivo prazo de prescrição do procedimento mal o obstáculo legal produza os seus efeitos”.
V - Ora, aplicando ao caso o regime da suspensão previsto no art.º 27.º-A, al. a) do Regime Geral das Contra-Ordenações, correspondente ao art.º 120.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, já que os procedimentos criminal e contraordenacional não podiam legalmente continuar por falta de autorização legal, essa suspensão limitou-se ao período de 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e de 22 de janeiro até 6 de abril de 2021, sendo aquela uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos e, por isso, a coberto do princípio da legalidade e não retroatividade da lei penal e contraordenacional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3482/22.6T9AVR.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Aveiro – J3 – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

I. Relatório:
No âmbito do Processo de Contraordenação n.º ..., a “Câmara Municipal ...”, por decisão proferida a 10.02.202, expedida por carta registada com aviso de receção a 15.02.2022, e posteriormente notificada, por carta simples, expedida a 16.03.2022 decidiu (transcrição):
“Face aos elementos existentes no processo, consideram-se provados os factos constantes no auto de contraordenação. Com a conduta descrita, a arguida atuou com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento da prática da infração se lhe impunham, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta descrita nos autos é proibida e sancionada por lei. Assim sendo, os factos descritos e provados levam a concluir que a infração foi praticada a título de negligência, nos termos do art.º 133.º, do Código da Estrada, porquanto a arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada. (…)”.

Notificada da decisão administrativa, a arguida apresentou, o que foi recebido a 14.04.2022, impugnação judicial, ao abrigo do disposto nos art.ºs. 59.º e seguintes do DL 433/82, de 27.10, pugnando:
- pela nulidade da decisão administrativa condenatória, por não terem sido asseguradas as diligências probatórias necessárias à descoberta da verdade material, nomeadamente á audição da testemunha arrolada, nos termos dos artigos 50.º, do RGCO, 32.º, n.º 10 da CRP, 120.º, n.º 2, al. d), do CPP (aplicável ex vi do artigo 132.º, do CE e 41.º, n.º 1, do RGCO;
Sem conceder e subsidiariamente,
- pela nulidade da decisão administrativa condenatória e do auto de notícia por omissão da descrição de circunstâncias relevantes para o exercício efetivo do direito fundamental do direito de defesa da arguida;
Sem conceder e subsidiariamente,
- pela nulidade da decisão administrativa condenatória e do auto de notícia e, consequentemente, ser a a arguida absolvida da prática da contraordenação de que vem acusada, em virtude daquela ser absolutamente omissa quanto a factos que permitam imputar à arguida uma conduta a título de negligência ou dolo, com fundamento na violação adjetiva do disposto nos art.ºs 181.º, n.º 1, al. b) do CE e 283.º, n.º 3,al. b), do CPP (aplicável ex vi dos artigos 132.º do CE e 41.º, n.º 1, do RGCO) e na violação substantiva do disposto nos artigos 6.º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 32.º, n.º 10, da CRP e 58.º, n.º 1, als. b) do RGCO;
Sem conceder e subsidiariamente,
- seja aplicada à arguida uma coima que deverá ser fixada no montante mínimo de € 30,00, nos termos do disposto no art.º 18.º, n.º 1, do RGCO, aplicável ex vi do artigo 132.º, n.º 5, do CE.
O Ministério Público, a 14.09.2022, apresentou o recurso de impugnação da decisão final proferida pela Câmara Municipal ..., em sede de recurso contraordenacional, fazendo valer tal apresentação como acusação.

Em 16.09.2022, foi proferido despacho judicial, terminado nos seguintes termos:
“(…). A prescrição do procedimento contraordenacional consubstancia exceção perentória (pressuposto processual negativo) de conhecimento oficioso em qualquer altura do processo, até à decisão final; sendo que em matéria contraordenacional a apresentação do recurso de contraordenação ao juiz vale como acusação. Em face do exposto e considerando ainda o disposto nos artigos 65.º-A do RGCO e 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, antes de mais, vão os autos ao Ministério Público para que se pronuncie quanto à prescrição …”.

A 10.10.2022, o Ministério Público pronunciou-se nos termos do convite que lhe foi dirigido pelo Tribunal, terminando nos seguintes termos:
“Face ao exposto, entendemos que não se encontra prescrita a contraordenação aplicável ao arguido, devendo ser julgada improcedente por não provada a exceção perentória da prescrição”.

Foi proferida sentença, datada de 10.04.2022, tendo aí sido decidido (transcrição):
A arguida AA foi condenada por decisão da Câmara Municipal ... pela prática, a 4 de junho de 2019, de contraordenação prevista e punida pelo disposto no artigo 71.º, n.º 1, al. d) do Código da Estrada (CE).
Não se conformando com a aludida condenação, a arguida interpôs recurso de impugnação judicial, desde logo propugnando pela prescrição do procedimento contraordenacional.
Remetidos os autos ao Juízo Local Criminal de Aveiro, o Ministério Público apresentou o recurso de impugnação; após e pronunciando-se quanto à invocada prescrição sustentando que esta não se verificou, uma vez que entende que as causas de suspensão da contagem dos prazos de prescrição criadas pelas medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19 são aplicáveis e vigoraram desde 9 de Março de 2020 até 3 de Junho de 2020 e de 22 de Janeiro e 6 de Abril de 2021 (cf. artigos 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05.04 - tudo no total de 160 dias, ou seja, 5 meses e 10 dias).
Mais sustenta o Ministério Público que se verificou ainda uma outra causa de suspensão da prescrição com a entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, constituindo uma causa de suspensão da prescrição por falta de autorização legal nos termos do disposto no artigo 27.º-A, n.º 1, al. a) do DL n.º 433/82, de 27.10, primeiramente, por força dos n.ºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (entre 09.03.2020 e 03.06.2020), seguidamente, por força do artigo 6º-B, n.º 1, e artigo 6º-C, n.º 1, al. b), da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, em que ocorreu nova suspensão no período temporal compreendido entre 22.01.2021 a 05.04.2021; pelo que mesmo que se entenda que não é uma causa de suspensão per se, sempre se terá que considerar aquele período como período de suspensão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 27.º-A, n.º 1, al. a), do DL n.º 433/82, de 27.10, um vez que, durante esses dois períodos temporais o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, atendendo à paralisação imposta por lei para todos os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos Tribunais.
Uma vez que a prescrição do procedimento contraordenacional consubstancia exceção perentória (pressuposto processual negativo) de conhecimento oficioso em qualquer altura do processo, até à decisão final, tal cumpre apreciar e decidir.
Vejamos.
Do disposto no artigo 188.º do CE resulta que o procedimento por contraordenação rodoviária se extingue por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos, sendo que sem prejuízo da aplicação do regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, a prescrição do procedimento por contraordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória.
Mais resulta do disposto no artigo 28.º, n.º 3 do RGCO que a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
Assim, no caso em apreço, salvo em se verificando causas de suspensão da contagem do prazo de prescrição, verificando-se causas de interrupção, este completava-se quando se mostrassem decorridos 3 anos desde a prática do facto e, portanto, no caso em apreço, a prescrição ocorreria a 4 de junho de 2022.
Não se verificando causas de interrupção/suspensão, o prazo de prescrição completava-se a 4 de junho de 2021.
Dispõe o artigo 27.º-A do RGCO que:
«1 - A prescrição do procedimento por contraordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º;
c)Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.
2 - Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.».
No que concerne à interrupção da prescrição rege o artigo 28.º do RGCO, aí se prevendo que esta se interrompe:
«a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
2 - Nos casos de concurso de infrações, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contraordenação.
3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.».
A primeira causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição nos termos previstos no citado artigo 27.º-A do RGCO só se verificou com a notificação do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima.
Acresce que as causas de suspensão da contagem dos prazos de prescrição criadas com as medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19, não se aplicam a factos ocorridos antes da vigência das normas que criaram tais novas causas de suspensão (neste sentido vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de janeiro de 2021 e Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Abril de 2021 e de 9 de março de 2022, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt, considerando a unidade do sistema jurídico, atento o disposto no n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal.
Conforme impressivamente se sintetiza no recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de março de 2022 (disponível para consulta em www.dgsi.pt):
«I- As normas de prescrição reportam-se ao regime substantivo do facto criminoso ou contraordenacional, não podendo, por força do princípio da legalidade, ser aplicadas de forma retroativa aos crimes julgados, salvo se tal regime se mostrar concretamente mais favorável ao arguido.
II - Os novos prazos de prescrição e causas de interrupção e suspensão da prescrição do procedimento criminal e das penas e medidas de segurança, bem assim do procedimento contraordenacional e das coimas, sendo prejudiciais ao arguido por alargamento dos prazos de prescrição, apenas poderão ser aplicados aos factos praticados na sua vigência, sob pena de se lhe conferir um efeito retroativo proibido, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º 4, da CRP.
III - O artigo 19.º, nº 6, da CRP, expressamente estabelece que «[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar […] a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos […]», tendo o mesmo ficado consagrado no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 44/86.
IV - Daqui resulta que o estado de emergência não pode ser usado para afastar a proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional, através do alargamento de prazos de prescrição quanto a factos praticados antes do estado de emergência.
V - A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais aos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um daqueles diplomas.
VI - A aplicação da causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição por força da situação de emergência sanitária a processos em curso colide com o princípio da legalidade criminal - na vertente da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido, princípio consagrado do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição -, não se vendo razão para o afastar no domínio contraordenacional.».
Importa ainda notar que, no nosso entendimento –e aí divergimos do defendido no Acórdão supra citado e também aqui do propugnado pelo Ministério Público –não há qualquer outra causa suspensiva da prescrição, decorrente da suspensão dos atos e prazos nos processos criminais e contraordenacionais, imposta pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (e posteriormente, pela Lei nº 4-B/2021) enquadrável nos artigos 27º-A, al. a), do RGCO e no artigo 120.º, n.º1, al. a) do Código Penal e que se possa reconduzir a falta de autorização legal para o processo continuar, enquanto causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição que já existisse antes da publicação dos aludidos diplomas.
Com efeito, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Março de 2022 defende-se que constitui autónoma causa suspensiva, relacionada com a paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, no domínio criminal e contraordenacional, o que resulta dos nºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março (entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho de 2020) e o que resulta dos artigos 6º-B, nº1 e artigo 6º-C, nº1, al.b), da Lei nº 4-B/2021, de 01 de Fevereiro (entre 22 de Janeiro de 2021 e 5 de Abril de 2021), sendo que pela nossa parte entendemos que, a causa de suspensão prevista nos artigos 27º-A, al. a), do RGCO e no artigo 120.º, n.º1, al. a) do Código Penal sempre carece, para sua completa conformação, da conjugação com outros diplomas legais, designadamente, os que previrem as autorizações legais a que ali se alude e, portanto, nessa medida, a existir uma norma que prevê que o procedimento não pode legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal, essa norma sempre terá que ser, ela própria, anterior aos factos em apreço, já que é ela que densifica o previsto nos artigos nos artigos 27º-A, al. a), do RGCO e no artigo 120.º, n.º1, al. a) do Código Penal e o momento determinante da lei aplicável é o tempus delicti (cfr. artigo 2.º, n.º1 do Código Penal), sem prejuízo do previsto n.º4 do artigo 2.º do Código Penal quanto à aplicação do regime concretamente mais favorável, estando em causa normas que, por contenderem com o regime da prescrição, não podem deixar de considerar-se como de natureza substantiva.
Assim, fazer apelo ao disposto nos nºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março e aos artigos 6º-B, nº1 e artigo 6º-C, nº1, al. b), da Lei nº 4-B/2021, de 01 de Fevereiro para considerar verificada uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal ou contraordenacional, aplicando-a aos prazos que, à data de entrada em vigor de tais normais, já estavam em curso, por respeitarem a factos ocorridos antes da sua vigência, implicaria uma aplicação retroativa da lei, em sentido mais gravoso para o agente e, portanto, em violação do disposto no artigo 29.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa, sendo pois nosso entendimento que o regime da prescrição (incluindo as causas de suspensão e interrupção) aplicável será o que vigorar na data da prática da infração, salvo se a lei posterior for mais favorável ao agente. De referir ainda que, conforme se salienta no citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Abril de 2021, tal entendimento – não aplicando o regime da prescrição/caducidade decorrente dos diplomas adotados no quadro da resposta à crise pandémica a factos ocorridos antes da entrada em vigor de tais diplomas, não se esvaziam tais normas de sentido, uma vez que o regime que delas resulta continuará a ser aplicável nos casos de prescrição e caducidade não abrangidos pelo artigo 29.º da Constituição, designadamente, em matéria de direito privado e nas situações penais e contraordenacionais ocorridas durante a vigência dessas normas.
Em face do exposto, tendo-se iniciado a contagem do prazo de prescrição a 4 de junho de 2019 e não se verificando qualquer causa de suspensão até 4 de junho de 2022 – só tendo os autos sido remetidos para distribuição ao Juízo Local Criminal a 15 de setembro de 2022 - então completou-se o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, o que se declara, com consequente arquivamento dos autos.
Sem custas (cf. artigo 8.º, n.ºs 9 e 10 e Tabela III Anexa ao RCP e artigos 93º, n.ºs 3 e 4 e 94.º n.º 3, ambos do RGCO). (…)”.

Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 45/51 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1) Por douta sentença transitada em julgado o Tribunal a quo declarou extinto, por verificação da prescrição, o procedimento contraordenacional.
2) Nessa decisão o Tribunal a quo sufragou o entendimento que a suspensão da contagem dos prazos de prescrição criados pelas medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença COVID-19, não se aplicavam a factos ocorridos antes da entrada em vigência das normas que criaram tal causa de suspensão da prescrição.
3) Na douta decisão ora recorrida foi considerado que o procedimento contraordenacional teria prescrito a 4 de junho de 2022, tendo entendido que as Leis n.º 1-A/2020, de 19 de Março e 4-B/2021, de 1 de fevereiro, não seriam de aplicar ao caso, à luz do princípio da não retroatividade da lei penal.
4) Segundo o Tribunal a quo, a prescrição do procedimento, efetivamente, teria ocorrido em 4 de junho de 2022, de acordo com as disposições conjugadas pelos artigos 188.º, n.º 1, do Código da Estrada e do artigo 28.º, n.º 3 do DL n.º 433/82, de 27 de outubro.
5) Salvo o devido respeito por melhor entendimento, o tribunal a quo deveria ter tido em conta a suspensão do curso dos prazos de prescrição em matéria contraordenacional imposta pela resposta normativa nacional à crise sanitária SARSCovid
6) Tal entendimento resulta do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, de onde se extraí a interpretação que, face à situação sanitária de extrema excecionalidade que se viveu, justificou-se que a suspensão dos prazos de prescrição fosse aplicada a todos os processos, mesmo aos já pendentes à data do início do confinamento e relativos a factos anteriores.
7) Nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 500/2021, de 09.07.2021, 660/2021, de 29.07.2021 e 798/21, de 21.10.2021, foi expressamente declarada conforme a Constituição a suspensão da prescrição do procedimento contraordenacional prevista na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, a correr termos por factos cometidos antes do início da vigência daquele diploma.
8) Sem prescindir,
A suspensão dos prazos nos processos criminais e contraordenacionais imposta pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, configura uma causa suspensiva da prescrição por falta de autorização legal para o processo continuar, nos termos do disposto no artigo 27.º-A, al. a), do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, uma vez que, durante esse período temporal o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, atendendo à paralisação imposta por Lei para todos os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos Tribunais.
9) Face ao exposto, considerando a data da prática dos factos e atendendo às causas de interrupção e suspensão verificadas, a prescrição do procedimento criminal apenas ocorrerá em 14 de novembro de 2022.
10) Assim sendo e ressalvando o devido respeito por melhor opinião, somos do entendimento que a decisão recorrida deverá ser revogada, substituindo-se por outra que considere a exceção da prescrição não verificada e determine o prosseguimento dos autos.
Termina pedindo seja decisão recorrida revogada e substituída por outra que considere como não verificada a exceção da prescrição e determine o prosseguimento dos autos.

Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a fls. 59/69 dos autos, pugna pela procedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II- Fundamentação:
II.2.1. Com interesse para a decisão da questão suscitada, consideram-se provados os seguintes factos:
1) No âmbito do Processo de Contraordenação n.º ..., a “Câmara Municipal ...”, por decisão proferida a 10.02.202, expedida por carta registada com aviso de receção a 15.02.2022, e posteriormente notificada, por carta simples, expedida a 16.03.2022 decidiu: “Face aos elementos existentes no processo, consideram-se provados os factos constantes no auto de contraordenação. Com a conduta descrita, a arguida atuou com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento da prática da infração se lhe impunham, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta descrita nos autos é proibida e sancionada por lei. Assim sendo, os factos descritos e provados levam a concluir que a infração foi praticada a título de negligência, nos termos do art.º 133.º, do Código da Estrada, porquanto a arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada. (…)”.
2) Notificada da decisão administrativa, a arguida apresentou, o que foi recebido a 14.04.2022, impugnação judicial, ao abrigo do disposto nos art.ºs. 59.º e seguintes do DL 433/82, de 27.10.
4) No auto de contraordenação consta como data da infração o dia 04.06.2019, conforme consta a fls. 6 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
5) O Ministério Público, a 14.09.2022, apresentou o recurso de impugnação da decisão final proferida pela Câmara Municipal ..., em sede de recurso contraordenacional, fazendo valer tal apresentação como acusação.
6) Em 16.09.2022, foi proferido despacho judicial, terminado nos seguintes termos: “(…). A prescrição do procedimento contraordenacional consubstancia exceção perentória (pressuposto processual negativo) de conhecimento oficioso em qualquer altura do processo, até à decisão final; sendo que em matéria contraordenacional a apresentação do recurso de contraordenação ao juiz vale como acusação. Em face do exposto e considerando ainda o disposto nos artigos 65.º-A do RGCO e 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, antes de mais, vão os autos ao Ministério Público para que se pronuncie quanto à prescrição …”.
7) A 10.10.2022, o Ministério Público pronunciou-se nos termos do convite que lhe foi dirigido pelo Tribunal, terminando nos seguintes termos: “Face ao exposto, entendemos que não se encontra prescrita a contraordenação aplicável ao arguido, devendo ser julgada improcedente por não provada a exceção perentória da prescrição”.
8) Foi proferida sentença, datada de 10.04.2022, tendo aí sido decidido nos termos já acima integralmente expostos, terminando: “(…). Em face do exposto, tendo-se iniciado a contagem do prazo de prescrição a 4 de junho de 2019 e não se verificando qualquer causa de suspensão até 4 de junho de 2022 – só tendo os autos sido remetidos para distribuição ao Juízo Local Criminal a 15 de setembro de 2022 - então completou-se o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, o que se declara, com consequente arquivamento dos autos. (…)”.
9) Por despacho datado de 03.12.2022, proferido a fls. 55/56 dos autos, o recurso interposto foi admitido nos seguintes termos: “(…). Em face do exposto e com os fundamentos supra, consideramos que o recurso interposto e mostra manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, sendo, pois, o recurso legalmente admissível. Assim, por ser legal e tempestivo, tendo sido interposto por quem para tal tinha legitimidade, admite-se o recurso da decisão final interposto pelo Ministério Público, o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cf. artigos 73.º, 74.º e 75.º do RGCO e artigos 406.º, n.º 1; 407.º, n.º 2, al. a) e 408.º, n.º1, al. a), todos do Código de Processo Penal). (…)”.

Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5.ª Secção).

Questão que cumpre apreciar:
- se operou a prescrição do procedimento contraordenacional, nomeadamente se a suspensão da contagem dos prazos de prescrição criados pelas medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV2 e pela doença COVID-19, se aplicam, ou não, a factos ocorridos antes da entrada em vigência das normas que criaram tal causa de suspensão da prescrição.

Vejamos.
A decisão recorrida sufragou o entendimento que a suspensão da contagem dos prazos de prescrição criados pelas medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença COVID-19, não se aplicavam a factos ocorridos antes da entrada em vigência das normas que criaram tal causa de suspensão da prescrição, à luz do princípio da não retroatividade da lei penal, e, por essa razão, considerou que o procedimento contraordenacional teria prescrito a 4 de junho de 2022.
O recorrente, pelo contrário, defende que o Tribunal a quo deveria ter tido em conta a suspensão do curso dos prazos de prescrição em matéria contraordenacional imposta pela resposta normativa nacional à crise sanitária SARSCovid, por força do disposto no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, de onde se extraí a interpretação que, face à situação sanitária de extrema excecionalidade que se viveu, justificou-se que a suspensão dos prazos de prescrição fosse aplicada a todos os processos, mesmo aos já pendentes à data do início do confinamento e relativos a factos anteriores. Assim, atendendo ao caso dos autos e considerando o prazo máximo de prescrição, previsto no artigo 28.º, n.º 3 do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, o mesmo ocorreria em 4 de junho de 2022, devendo, contudo, aplicar-se como ressalva o período de suspensão da contagem dos prazos - desde 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e de 22 de janeiro e 6 de abril de 2021 (cf. artigos 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril), tudo no total de 160 dias, ou seja, 5 meses e 10 dias – pelo que, o prazo prorrogou-se até ao dia 14 de novembro de 2022.
Em causa nos autos estão factos alegadamente praticados a 04 de junho de 2019, tendo a arguida sido condenada pela prática de contraordenação prevista e punida pelo disposto no art.º 71.º, n.º 1, al. d), do Código da Estrada.
Do disposto no art.º 188.º, do Código da Estrada resulta que o procedimento por contraordenação rodoviária se extingue por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorridos dois anos, sendo que sem prejuízo da aplicação do regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, a prescrição do procedimento por contraordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória.
Mais resulta do disposto no art.º 28.º, n.º 2, do RGCO, que a prescrição do procedimento contraordenacional tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
Assim, no caso em apreço, salvo se verifiquem causas de suspensão da contagem do prazo de prescrição, ainda que se verificando causas de interrupção, o prazo de prescrição completa-se quando se mostrem decorridos 3 anos desde a prática do facto, o que, no presente caso, ocorreria a 04 de junho de 2022.
Tal como acima já deixámos exposto, a questão que importa, agora, analisar é a de saber se as normas que estabeleceram as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal introduzidas pelo artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020 – que vigorou sem alterações desde o dia 9 de março de 2020 (artigo 5.º da Lei n.º 4-A/2020) até ao dia 3 de junho de 2020 (artigos 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020), bem como as introduzidas pelo artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que vigorou sem alterações desde o dia 22 de janeiro de 2021 (artigo 4.º, da Lei n.º 4-B/2021) até ao dia 6 de abril de 2021 (artigo 7.º da Lei n.º 13-B/2021) – podem aplicar-se aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.
A questão tem sido colocada nos nossos Tribunais, não havendo, porém, entendimento unânime, na doutrina e jurisprudência.
A posição que defende que quer o artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, quer o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021, são aplicáveis aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, fundamenta-se, resumidamente, no facto de a suspensão em causa constituir uma medida legislativa excecional e aprovada num quadro de elevada excecionalidade. Com efeito, por força da referida pandemia, como é facto público e notório, o país e o mundo quase pararam, facto esse que, aqui, levou à implementação das medidas excecionais fixadas pela Lei n.º 1-A/2020, com reflexos, também, nos procedimentos processuais de natureza penal, pelo que, a suspensão dos prazos, em todos prazos e procedimentos, é justificada, desde logo, pelo facto de as diligências processuais, terem deixado de poder ser exercidas com a eficácia e prontidão previstas e exigíveis em circunstâncias normais. Os defensores desta posição argumentam que entendimento diverso, seria conceder-se um injustificável benefício ao arguido, colhendo este, proveitos de uma interpretação da Lei n.º 1-A/2020 e da Lei 4-B/2021 que atentaria não só contra a sua letra, como, também, contra o seu espírito. Com efeito, o prazo de prescrição do procedimento criminal não se suspenderia e o arguido, também tinha a certeza, por outro lado, de que, por força da mesma lei, diligências processuais não poderiam, entretanto, ser desencadeadas. Acresce que a finalidade do instituto da prescrição reside “também [na] responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional 500/2021, de 9 de junho de 2021 (disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210500.html). Ora, relativamente ao regime imposto, a não realização de atos ou diligências processuais, não se ficou a dever, contudo, a uma inércia ou incapacidade do Estado em as desencadear, mas antes, a uma situação absolutamente excecional que levou a que o Estado, a bem da preservação da saúde pública dos cidadãos, se abstivesse de praticar atos e diligências processuais que pudessem colocar em causa, os esforços no controlo da pandemia. No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais. Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser.
Foi, pois, neste contexto especial e excecional, que se fixou um regime transitório e temporário de suspensão dos prazos de prescrição, designadamente, do procedimento criminal, o qual cessou assim que deixaram de subsistir as circunstâncias que o determinaram, pelo que, “(…) não se está, aqui, perante uma sucessão de leis penais, mas, antes, perante um ‘regime temporário de exceção’ (…)”, conforme referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Lisboa de 11-02-2021 (Proc. 89/10.4PTAMD-A.L1-9, in www.dgsi.pt).
Por sua vez, a posição contrária defende que a causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal estabelecida nas Leis n.º 1-A/2020 e n.º 4-B/2021 apenas se aplica aos factos praticados durante a sua vigência, porquanto, ainda que estabeleçam medidas excecionais na situação de estado de emergência, não podem forçar a suspensão dos prazos prescricionais aos processos que têm por objeto factos praticados em momento anterior a cada um daqueles diplomas, pois no domínio da sucessão de leis penais no tempo, quer a lei nova se trate de lei temporária ou não, a sua aplicação não pode afastar-se do princípio da não retroatividade da lei penal, corolário do princípio da legalidade, nem se sobrepor à aplicação do regime penal mais favorável ao arguido. Para a defesa da sua posição, argumentam que são, no essencial, razões de natureza substancial que justificam a ocorrência da prescrição do procedimento criminal, particularmente as que se relacionam com os fins das penas. Não sendo, a partir de determinada altura, o direito penal (ultima ratio de intervenção estadual) capaz de cumprir qualquer das suas funções, apagando o decurso do tempo a utilidade preventiva geral e preventiva especial das penas, limitando o Estado, através do instituto da prescrição, o seu poder punitivo, contribuindo o respetivo regime para a definição da responsabilidade criminal do arguido, impõe-se concluir estarmos perante normas de natureza substancial/material ou, pelo menos, de natureza mista (substantiva e processual), o que conduz, perante uma sucessão de normas, à aplicação daquela – melhor dizendo do “regime” - mais favorável ao agente. Assentando, assim, na natureza material das normas que enformam o instituto da prescrição, a sua aplicação retroativa só poderá acontecer se mais favorável ao arguido. A determinação do regime mais favorável demanda um procedimento metodológico mais ou menos complexo, levando à consideração de uma panóplia de elementos, como sejam o tempo da prescrição, mas também os resultantes da conjugação deste com os atos processuais relevantes e de cujos efeitos depende a sua contagem. Com efeito, repercutindo-se as causas de interrupção e/ou de suspensão na contagem do tempo da prescrição do procedimento criminal, a consideração da lei mais favorável, ou da não aplicação retroativa da lei que expanda o poder punitivo do Estado, não pode dispensar a ponderação das mesmas. Conclui, por isso, esta posição da Doutrina e da Jurisprudência que não se poderá deixar de encarar as normas contidas nos artigos 7.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 1-A/2020 e 6.º-B, n.º 3 da Lei n.º 4-B/2021 como verdadeiras causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal, logo de natureza substantiva, repercutindo-se as mesmas no termo do respetivo prazo, dilatando-o, conduzindo a sua aplicação ao afastamento da prescrição e, assim, a um agravamento da responsabilidade penal dos arguidos, razão pela qual a sua consideração quanto a factos anteriores ao respetivo período de vigência consubstanciará violação ao artigo 2.º do Código Penal (emanação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 4 da CRP), enquanto, salvaguardando, tão só, a ponderação do “regime mais favorável ao agente”, proíbe a aplicação retroativa da lei penal. Acresce que o princípio da proibição de aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido é valorado de uma forma especial pelo nosso legislador constituinte, sendo tão importante que nem em situação de estado de sítio ou de emergência pode ser suspendido no que respeita a matéria criminal, como decorre do artigo 19.º, n.º 6, da Constituição.
Importa também aqui fazer referência à posição que tem vindo a ser defendida, e que é referida no parecer emitido pelo Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto, e ínsita na declaração de voto da Exm.ª Sr.ª Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2021, de 29.07.2021, que concluiu no sentido de “Tal como a maioria, entendo que não é inconstitucional a interpretação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido «de que a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, se encontram já em curso». No entanto, afasto-me da fundamentação do presente acórdão, por considerar que a referida norma não é inconstitucional porque se inscreve no âmbito de um processo contraordenacional, está enquadrada por uma situação excecional de emergência e corresponde a uma situação em que a lei nova se aplica a um prazo já em curso, mas ainda não completado. Com efeito, o contexto de estado de exceção que vivemos justifica a aplicabilidade da nova causa de suspensão do prazo de prescrição a processos por contraordenações iniciados antes da sua vigência (i.e., por factos cometidos antes do início da vigência da lei que prevê a nova causa de suspensão) desde que aquele prazo ainda não tenha atingido o seu termo final. Trata-se de uma solução que responde, de forma proporcional, às necessidades impostas pela tutela de outros interesses jurídico-constitucionais, designadamente o controlo da epidemia da doença Covid-19. A necessidade de restringir os contactos sociais entre indivíduos teve implicações na administração da justiça, levando a uma paragem forçada do andamento dos processos contraordenacionais o que justificou a suspensão dos prazos para a prática dos atos processuais e, consequentemente, a justa medida da aplicação aos processos contraordenacionais pendentes da nova causa de suspensão do prazo de prescrição”. [Todavia]“Esta ponderação não pode, porém, ser estendida aos processos de natureza criminal”. “… a proibição de retroatividade da lei criminal ressalvada no artigo 19.º, n.º 6, entre os direitos invioláveis em estado de exceção, não pode deixar de ser compreendida de forma estrita na sua dimensão de proibição aplicável exclusivamente ao processo criminal, enquanto instrumento de defesa dos valores humanos essenciais e bens jurídicos mais sensíveis na vida em sociedade, em especial a liberdade individual. O processo contraordenacional não protege esses valores, sendo exclusivamente patrimonial o bem atingido pela coima. Por conseguinte, a proibição da retroatividade enquanto limite ao estado de exceção não pode deixar de ater-se exclusivamente à lei que a Constituição expressamente designa no artigo 19.º, n.º 6, e esta é a “lei criminal”. Entendo, assim, que a norma em causa não é inconstitucional, desde logo, por, ao incidir em matéria contraordenacional, não violar o artigo 19.º, n.º 6, que apenas proíbe a aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido no âmbito criminal. Sem prejuízo da extensão ao processo contraordenacional da proteção do princípio da proibição da retroatividade penal (em consonância, de resto, também com artigo 282.º, n.º 3, da CRP), num quadro de emergência sanitária coberta pelo estado de exceção, a proibição constitucional da retroatividade da lei penal desfavorável ao arguido (artigo 29.º, n.º 4, da Constituição), impõe uma apreciação menos exigente no processo contraordenacional do que no processo criminal (já que só neste âmbito se encontra proibida a aplicação retroativa da lei nova desfavorável ao arguido). Ora, num tal quadro, a norma em apreciação encontra justificação no estado de emergência que vigorou, exclusivamente por se reportar a ilícitos de mera ordenação social e se aplicar aos prazos que, embora já em curso à data da sua entrada em vigor, ainda não se mostravam completados”. (…) “Repito, no entanto, que uma tal ponderação não pode, de forma alguma, ser estendida aos processos de natureza criminal”.
Contudo, independentemente da posição que se tome, diferente desta causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal estabelecida nas Leis n.º 1-A/2020 e n.º 4-B/2021, a verdade é que outra causa suspensiva se verifica, relacionada com a paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, no domínio criminal e contraordenacional, primeiramente, por força dos nºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, e por força do artigo 6º-B, nº1, e artigo 6º-C, nº1, al. b), da Lei nº 4-B/2021, de 01/02.
Durante estes dois períodos o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, ante a paralisação imposta por lei para os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos tribunais (cf. Acórdão do TRP de 09.03.2022, in http://www.dgsi.pt/jtrp).
O prazo de prescrição suspendeu-se durante o período em que não foi autorizado legalmente o andamento do processo, ou seja, levantado legalmente o obstáculo legal da suspensão dos atos e prazos no procedimento contraordenacional.
A razão de ser desta suspensão baseia-se, como foi o caso, na existência de um obstáculo previsto na lei, de carácter geral, ao inicio ou continuação do procedimento contraordenacional, “o qual suspende o respetivo prazo de prescrição do procedimento mal o obstáculo legal produza os seus efeitos” (cf. Tiago Lopes de Azevedo, in Lições de direito das contraordenações, Almedina, 2020, pg.223).
Ora, aplicando ao caso o regime da suspensão previsto no art.º 27.º-A, al. a) do RGCO, correspondente ao art.º 120.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, já que os procedimentos criminal e contraordenacional não podiam legalmente continuar por falta de autorização legal, essa suspensão limitou-se ao período de 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2021 e de 22 de janeiro até 6 de abril de 2021, sendo aquela uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal expressamente contemplada na lei ao tempo dos factos e, por isso, a coberto do princípio da legalidade e não retroatividade da lei penal e contraordenacional.
Assim, e aplicando ao caso dos autos o que se deixa exposto, teremos que concluir que, à data da prolação da decisão recorrida, e ao contrário do ali decidido, a exceção perentória da prescrição não se verificava.
Contudo, atendendo ao prazo máximo de prescrição aplicável ao caso em análise, isto é, 3 anos, com a aplicação do período de suspensão de contagem dos prazos – desde 09 de março de 2020 até 3 de junho de 2021 e de 22 de janeiro até 6 de abril de 2021, a exceção perentória do procedimento contraordenacional ocorreu a 14 de novembro de 2022, logo após a apresentação das alegações de recuso pelo recorrente e antes do despacho do juiz a quo, de 18.11.2022, a convidar o recorrente a apresentar o requerimento previsto no art.º 73.º, n.º 2, do RGCO.
Assim, e por força do que se deixa expresso, a decisão recorrida deverá manter-se, exceto na parte que se refere à data em que ocorreu a prescrição, pois, conforme se deixou explicitado, esta ocorreu a 14 de novembro de 2022.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida, exceto na parte que se refere à data em que ocorreu a prescrição, que se verificou a 14 de novembro de 2022.
Sem custas.

Porto, 8 de março de 2023
((Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Paula Natércia Rocha
Pedro Afonso Lucas
Maria do Rosário Martins