Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
257/14.0IDAVR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONFLITO DE DEVERES
PAGAMENTO DE SALÁRIOS
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
SANAÇÃO DA NULIDADE
Nº do Documento: RP20180110257/14.0IDAVR.P2
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 743, FLS 145-156)
Área Temática: .
Sumário: I – A prova de que, fruto de uma opção de gestão errada e estrutural, o arguido resolveu dar prevalência ao pagamento dos salários dos trabalhadores, rendas e outros custos de laboração, não pode ser considerada suficiente para levar à conclusão de que actuou numa situação de conflito de deveres excludente da ilicitude.
II – A nulidade da sentença por omissão de pronúncia deve ser suprida em recurso, sempre que o tribunal dispuser de todos os elementos e não houver violação do princípio do contraditório e do direito ao recurso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 257/14.OIDAVR.P2
Comarca de Aveiro
1ª Secção do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira

Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório
1.1. Sentença recorrida
Por sentença proferida em 16 de Maio de 2017, foram os arguidos B... e “C..., Lda.”, condenados por um crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105º nºs 1, 2, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o primeiro na pena de 12 meses de prisão, com execução suspensa por 5 anos, sob condição entregar a Estado o montante de €11.591,58, em quantia mensal não inferior a €50,00, e a segunda na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €10,00.

1.2 Recurso
1.2.1. O arguido B... recorreu da sentença, pedindo a título principal a sua revogação e a consequente absolvição do crime e a título subsidiário a sua modificação, com a redução do montante que condiciona a suspensão da pena para €3.000 euros.
Concluiu a motivação do recurso invocando o seguinte (resumo nosso):
- Há erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, na medida em que o tribunal deu como não provado que a decisão do arguido, de não entregar o IVA ao Estado correspondente ao 4º trimestre de 2013, foi tomada em Dezembro de 2012, com base na confissão integral e sem reservas dos factos pelo arguido, o que é contraditório e notoriamente errado, visto que entre esses factos que o arguido confessou constava precisamente aquele facto dado como não provado.
- Há também insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou nulidade da sentença por omissão de pronúncia, caso se entenda ser essa a qualificação mais correcta do vício, porque o tribunal não deu como provada a data em que o arguido tomou a decisão de não entregar o IVA ao Estado, o que é relevante para a decisão.
- Há ainda nulidade da sentença por omissão de pronúncia, na parte em que se dá como provado que a razão da retenção do IVA foi a necessidade de pagar salários aos trabalhadores, mas não analisou se tal circunstância permite ou não excluir a ilicitude do facto.
- Se não for considerado erro notório, há erro de julgamento da matéria de facto, por não se ter dado como provado o facto que o arguido confessou integralmente e sem reservas.
- Ficando provado que a decisão do arguido não entregar o IVA ao Estado foi tomada em Dezembro de 2012, como resulta do ponto 24 dos factos provados, há violação do princípio ne bis in idem, por o arguido já ter sido julgado pelo mesmo facto.
- O arguido deve ser absolvido porque decorre dos factos provados 7 e 24 que actuou numa situação de conflito de deveres que exclui a ilicitude.
- O condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão a pagamento não deve ultrapassar os €3.000, visto que resulta da própria sentença ser esse o limite máximo que o arguido pode pagar.

1.2.2. O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, fundamentalmente pelas seguintes razões:
- Não há erro notório na apreciação da prova nem contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, uma vez que o tribunal atendeu à prova documental para considerar não provado o momento da decisão de não entregar o IVA ao Estado declarado pelo arguido, de onde resulta que essa confissão não foi integral e sem reservas.
- Não há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porque o apuramento da data da resolução criminosa só tinha relevância autónoma para a verificação da excepção de caso julgado, sendo irrelevante para o preenchimento do tipo. De todo o modo, dos factos provados resulta que essa resolução foi tomada no momento em que o arguido não entregou o IVA.
- Logo, a condenação do arguido não viola o caso julgado.
- Não há exclusão de ilicitude por conflito entre o dever de pagar impostos e o de pagar os salários dos trabalhadores, dado que o dever sacrificado é de maior relevância jurídica em relação ao dever observado: o dever de pagar impostos é de ordem pública e tem tutela penal; o dever de pagar salários é de ordem privada e tem apenas tutela civil.
- O condicionamento da suspensão da pena ao pagamento da indemnização tem de ser no valor em divida e não pode ser em valor inferior.

1.2.3 Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, remetendo para as alegações do Ministério Público no tribunal recorrido.

2. Questões a decidir no recurso
As questões a que temos de dar resposta no recurso são as seguintes:
(1) Há erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão?
(2) Há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou nulidade da sentença por omissão de pronúncia, por falta de apuramento da data da resolução criminosa?
(3) Há nulidade da sentença por omissão de pronúncia, por falta de decisão sobre a existência de causa de exclusão da ilicitude?
(4) Há erro de julgamento da matéria de facto?
(5) A condenação viola o princípio ne bis in idem?
(6) O condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento do valor em dívida ao Estado viola a lei?

3. Fundamentação
3.1. Matéria de facto considerada provada
(transcrição da sentença)
1. A arguida C..., Lda., com o N.I.P.C. ........., era sujeito passivo de I.V.A. enquadrado no regime normal de periodicidade trimestral, estando registada para o exercício da actividade de “fabricação de componentes para calçado”, com o CAE ......
2. Esta empresa tem como sócio - gerente o ora arguido B..., ficando a sociedade obrigada com a assinatura do gerente.
3. Assim, desde 27/02/2012, a gerência da sociedade arguida sempre esteve a cargo do gerente B..., competindo – lhe todos os actos de gestão e direcção da vida comercial da sociedade, decidindo da afectação dos respectivos recursos financeiros ao cumprimento das obrigações correntes, designadamente ao pagamento dos salários dos trabalhadores e dos débitos aos fornecedores, bem como ao apuramento e pagamento dos respectivos impostos, designadamente IVA, IRS, IRC, etc.
4. Nessa qualidade o arguido decidiu não entregar ao Estado/Serviços de Administração do IVA as quantias que a sociedade deveria pagar a título do referido imposto, sendo que a quantia a pagar resulta da diferença entre a totalidade das quantias que os clientes pagavam ao arguido, enquanto legal representante, a título de IVA e aquilo que ele suportava a título do referido imposto nas aquisições.
5. O arguido, com o objectivo de atingir um benefício económico indevido, liquidou e recebeu o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) proveniente das transacções comerciais da sociedade que representava, não entregando à Fazenda Nacional as quantias que liquidou e recebeu a título de IVA, ao qual estava obrigado, relativas às facturas que emitiu em nome da sociedade arguida.
6. O arguido liquidou, recebeu e não entregou ao Estado o IVA, no valor de 13.711,19€ (treze mil, setecentos e onze euros e dezanove cêntimos), referente ao 4º trimestre de 2013.
7. O arguido na qualidade de sócio gerente da sociedade C..., Lda. enviou as respectivas declarações periódicas de IVA, sem os meios de pagamento, estando o arguido obrigado a entregar as quantias devidas aos Serviços de Administração do IVA, não entregou no prazo estabelecido para o período a que respeita, nem nos noventa dias seguintes ou em momento ulterior, apesar de notificado pessoalmente e enquanto legal representante da sociedade, utilizando antes as quantias em causa no interesse da sociedade para satisfação das suas despesas e obrigações necessárias ao seu funcionamento, designadamente pagamento de salários aos trabalhadores.
8. Em consequência de tal conduta, os arguidos, obtiveram a seguinte vantagem patrimonial:
- O valor de 13.711,19€ (treze mil, setecentos e onze euros e dezanove cêntimos), correspondente ao valor liquidado, recebido e não entregue nos cofres do Estado, referente ao I.V.A. supra descrito.
9. Pelo exposto, através da conduta dos arguidos, o Estado Português sofreu um prejuízo patrimonial de igual montante.
10. Atento o factualismo descrito, agiu o arguido como legal representante da sociedade C..., Lda. de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era idónea a fazer diminuir as receitas do Estado em termos de I.V.A., pois sabia que estava obrigado a entregar à Fazenda Nacional as quantias que liquidou e recebeu a título de I.V.A., relativas às facturas emitidas pela sociedade arguida, mas não obstante isso, integrou tais quantias no património da sociedade.
11. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.
12. A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença datada de 04.09.2015, transitada em julgado em 05.10.2015.
13. A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.
14. O arguido B... foi condenado por sentença transitada em julgado em 26.11.2009, pela prática em 2004 de um crime de fraude fiscal na pena de multa de 160 dias à taxa diária de 6,00€.
15. O arguido B... foi condenado por sentença transitada em julgado em 14.11.2012, pela prática em 14.12.2011 de um crime de abuso de confiança fiscal na pena de multa de 100 dias à taxa diária de 6,00€.
16. O arguido B... foi condenado por sentença transitada em julgado em 05.01.2015, pela prática em 15.05.2012 de um crime de abuso de confiança fiscal na pena de 1 ano de prisão suspensa por igual período com a obrigação de efectuar o pagamento das quantias em dívida.
17. O arguido B... foi condenado por sentença transitada em julgado em 20.05.2014, pela prática em 11.2011 de um crime de abuso de confiança fiscal na pena de 9 meses de prisão substituída por 270 horas de trabalho.
18. O arguido B... foi condenado no processo 390/2013.5idavr por sentença transitada em julgado em 13.04.2015, pela prática em 2013 de um crime de abuso de confiança fiscal (referente ao IVA relativo ao 1º trimestre de 2013) na pena de 7 meses de prisão suspensa por 1 ano.
19. O arguido tem 54 anos, trabalha desde os 13 anos de idade, no ramo de calçado, como operário fabril, até aos 22 anos de idade, altura em que abriu o próprio negócio de calçado conjuntamente com os irmãos, o que ocorreu ao longo de 10 anos, tendo posteriormente, em 1993, iniciado actividade profissional por conta própria na mesma área de actividade, tendo tal empresa sido apresentada à insolvência em 2006, altura em que trabalhou por conta de outrem durante 3 anos. Em 2009 o arguido reinicia actividade por conta própria criando a empresa “D...”, a qual acabou por abrir insolvência. Em 2012 e até 2015 o arguido assume a gerência da empresa “C...”, a qual veio igualmente a abrir insolvência.
20. O arguido vive em casa arrendada com a companheira (de 51 anos de idade, auxiliar de geriatria) em residência com boas condições de habitabilidade, pagando 550,00€ de renda; trabalha numa empresa de calçado desde Outubro de 2015 e aufere o vencimento mensal de 620,00€; a companheira aufere o salário mínimo nacional; o arguido tem boas relações familiares; estudou até ao 6.º ano de escolaridade.
21. Em 25.10.2013 foi instaurado no Serviço de Finanças de Santa Maria da Feira o processo de execução fiscal nº ................ contra a sociedade C..., Lda. NIPC ......... por dívida de IVA do segundo trimestre de 2013, no montante de 4.759,21€. O referido processo encontra-se extinto por pagamento desde 12.09.2014 (pagamentos parciais efectuados a 01.03.2014, 23.07.2014, 29,07.2014 e 28.08.2014.
22. Em 13.11.2013 a sociedade acima identificada procedeu ao pagamento dentro do prazo, do IVA respeitante ao terceiro trimestre de 2013, no montante de 8.339,81€.
23. Em 17.04.2014 foi instaurado pelo Serviço de Finanças de Santa Maria da Feira o processo de execução fiscal nº ................ contra a sociedade C..., Lda. NIPC ......... por dívida de IVA do quarto trimestre do ano de 2013, no montante de 13.711,19€. Foram efectuados pagamentos parciais em 29.08.2014 (391,91€), 05.11.2014 (740,96€), 09.12.2014 (599,44€) e em 04.02.2015 (607,66€), permanecendo em dívida o montante de 11.591,58€, acrescidos de juros de mora e custas no total de 13.032,69€.
24. O arguido tomou a resolução de dar sempre prevalência ao pagamento dos salários dos trabalhadores, rendas e outros custos fixos de laboração e de não pagar o IVA devido ao Estado caso a tesouraria da sociedade não lhe permitisse cumprir tal obrigação.
Factos não provados:
- Que a decisão de não entregar o IVA em dívida relativo ao 4º trimestre de 2013 foi tomada pelo arguido em Dezembro de 2012.
- Que o arguido tenha utilizado os montantes indevidamente não entregues ao Estado no seu próprio interesse.

3.2. Erro notório e contradição insanável
Segundo o recorrente, ao se dar como não provado um facto que lhe estava imputado na acusação, com base na sua confissão integral e sem reservas, a sentença incorreu nos vícios do artigo 410º nº 2 als. b) e c) do CPP: contradição insanável entre a decisão e a fundamentação e erro notório na apreciação da prova.
O primeiro vício ocorre quando existe um conflito insanável de incompatibilidade lógica entre o facto provado e a respectiva motivação, imediatamente perceptível pela simples leitura da decisão. O segundo vício sucede quando a leitura da decisão revela que o facto foi considerado provado de maneira contrária a todas as evidências, de forma clamorosamente errada, com base num erro de raciocínio do julgador, que consiste em ter retirado da prova uma ilação manifestamente errada, insusceptível de levar ao convencimento de qualquer pessoa.
Constava na acusação o seguinte facto imputado ao arguido: “em data não concretamente apurada, mas situada em Dezembro de 2012, decidiu não entregar ao Estado/Serviços de Administração de IVA as quantias que a sociedade deveria pagar a título do referido imposto”.
O tribunal recorrido deu como não provado “que a decisão de não entregar o IVA em dívida relativo ao 4º trimestre de 2013 foi tomada pelo arguido em Dezembro de 2012”.
Na motivação da decisão da matéria de facto consta na sentença que o tribunal se baseou “na confissão integral e sem reservas efectuada pelo arguido”, “bem como nos documentos juntos aos autos”. No que respeita em concreto ao referido facto não provado, o tribunal considerou o seguinte: “não obstante a confissão por parte do arguido dos factos constantes da acusação, a verdade é que compulsados os demais elementos constantes dos mesmos autos e supra referidos e especificamente o teor da certidão de fls. 223 e ss. e ainda das declarações do arguido de que apenas não efectuou o pagamento do montante de IVA em causa porque não tinha possibilidades económicas de o fazer tendo dado prevalência ao pagamento dos salários dos trabalhadores e das dívidas necessárias ao funcionamento da empresa, não se pode concluir que tomou tal decisão em Dezembro de 2012 e que a mesma se manteve até ao 4º trimestre de 2013 ou até para todo o sempre da vida económica da empresa”. (…) “De facto e como resulta dos factos descritos em 18., o arguido não pagou o IVA relativo ao 1º trimestre de 2013, mas pagou já o IVA relativo ao 2º (este pagamento já no âmbito do processo executivo a correr termos nas Finanças) e ao 3º trimestre de 2013. Assim se conclui portanto que o arguido pagava ao Estado o IVA se nesse momento tivesse disponibilidade de tesouraria para o efeito, de contrário não o pagaria, ou seja, a resolução em concreto era tomada no momento do pagamento do VA devido, apesar do arguido já ter uma opção de gestão tomada e que era priorizar o pagamento de certas obrigações tidas como essenciais ao funcionamento e laboração da empresa. Ou seja, a prioridade de certos pagamentos sobre outros é uma decisão de gestão, contudo o arguido apenas no momento de efectuar o pagamento do IVA devido relativo àquele período em concreto é que ia averiguar se tinha ou não disponibilidade de tesouraria e se portanto era ou não efectuar tal pagamento. Face ao exposto, deu-se como não provado que o arguido tenha decidido não efectuar o pagamento do IVA relativo ao 4º trimestre de 2013 em Dezembro de 2012”.
A questão crucial a que agora temos de dar resposta é esta: tinha o tribunal de dar como provado que o arguido tomou a resolução criminosa em Dezembro de 2012, uma vez que ele fez uma confissão integral e sem reservas e esse facto constava na acusação?
Temos de começar por verificar se houve mesmo uma confissão integral e sem reservas dos factos, com todas as consequências daí resultantes.
Consta na acta do julgamento o seguinte: «Pelo arguido foi dito que desejava prestar declarações, tendo este confessado de forma integral e sem reservas todos os factos que lhe foram imputados, constantes da acusação». Na acta consta também o seguinte despacho proferido pelo tribunal: «Face à confissão integral e sem reservas do arguido atendendo igualmente ao teor do CRC constante de fls. 185 e ss. afigura-se relevante para a correta determinação da sanção a ser aplicada, a realização do relatório social por parte dos serviços de reinserção social, pelo que deverá solicitar-se à DGRS a elaboração de relatório social em conformidade, de acordo com o artigo 370º do CPP». Este despacho está registado na acta a seguir às alegações orais e às últimas declarações do arguido, mas isso não corresponde à realidade, pois do registo áudio da audiência resulta que foi proferido assim que terminou a prestação de declarações do arguido e antes das alegações orais.
A acta do julgamento confere uma presunção de veracidade ao que nela está consignado sobre os termos como os actos processuais ocorreram. Porém, se a veracidade do seu conteúdo for fundadamente posta em causa, o que dela consta pode ser afastado (artigos 99º nºs 1 e 4 e 169º do CPP).
Ora, o registo áudio do julgamento mostra que o que consta na respectiva acta não é inteiramente exacto. Ao prestar declarações, o arguido começou logo a explicar as razões porque não tinha pago o IVA, sem ter propriamente admitido de forma expressa os factos. Tratou-se pois, apenas, da admissão implícita, genérica e explicativa da veracidade dos factos da acusação, dos quais lhe tinha sido acabado de dar conhecimento. Não foi questionado sobre cada facto em concreto nem lhe foi perguntado, designadamente, para o que agora releva, se confirmava que a decisão de não entregar ao Estado o IVA do 4º trimestre de 2013, tinha sido tomada em Dezembro de 2012. Nem lhe foi perguntado, tão pouco, se tinha consciência do alcance da confissão e se o estava a fazer inteiramente livre.
Uma admissão implícita e genérica dos factos, como aquela feita pelo arguido, não pode ser considerada como confissão integral. E também não pode ser tida como confissão sem reservas, na medida em que deu explicações mitigadoras da sua responsabilidade, ao dizer que praticou os factos para satisfazer outras obrigações empresariais, designadamente pagamentos de salários e fornecimentos de matéria-prima – em sentido idêntico, o acórdão do TRC, de 15DEZ2010 (processo 44/10.4EALSB.C1, consultável em www.dgsi.pt).
Mas mesmo que se tratasse de uma verdadeira confissão integral e sem reservas, isso não impunha ao tribunal que desse como provados acriticamente todos os factos da acusação. O nº 4 do artigo 344º permite que o tribunal, mesmo quanto aos factos confessados, analise outras provas, designadamente os documentos disponíveis no processo – neste sentido o acórdão do TRG, de 16NOV2009 (processo 464/07.1GTVCT, consultável em www.dgsi.pt).
Resulta pois do que acabámos de expor que não é aplicável a consequência prevista na al. a) do nº 2 do artigo 344º, de se considerarem provados os factos da acusação. Em primeiro lugar porque não existiu uma verdadeira confissão integral e sem reservas, com a certificação da liberdade da vontade confessória, nos termos previstos no nº 1 do artigo 344º. Em segundo lugar, porque o tribunal entendeu necessário analisar prova documental para determinar se o facto em questão – a tomada da decisão criminosa em Dezembro de 2012 – estava ou não provado.
O que se passou foi que o tribunal – com a concordância do Ministério Público e da Defesa – achou desnecessária a produção de mais prova oral, face ao conteúdo das declarações prestadas pelo arguido. Mas isso não significa que não pudesse valorar outra prova, nomeadamente documental, para se certificar da veracidade dos factos imputados ao arguido na acusação. E foi o que o tribunal fez, ao dar tal facto como não provado, com base na motivação que expressou na sentença.
O princípio da predominância da justiça material sobre a justiça formal, unanimemente aceite como aplicável transversalmente todos os processos e em todas as fases de cada processo, não é válido apenas quando conduz a resultados favoráveis ao arguido. Sendo evidente, conforme exposto, que o arguido não fez, na substância, uma confissão integral e sem reservas dos factos, não pode o mesmo pretender que seja tido como provado um facto favorável ao seu interesse que o tribunal fundamentadamente considerou não verdadeiro, apenas pelo que consta erradamente na acta de julgamento.
Acresce ainda outro argumento que leva à mesma conclusão.
A confissão do arguido é, por definição, a admissão da veracidade de factos juridicamente relevantes para a culpabilidade ou determinação da pena, mas necessariamente desfavoráveis à sua posição processual, estejam tais factos imputados na acusação ou resultem da discussão em audiência. Quando se trata da admissão da veracidade de factos conformes ao interesse do arguido, as suas declarações não têm natureza nem valor confessório; são apenas um meio de prova sujeito à regra da livre apreciação – neste sentido o acórdão do TRC, de 18NOV2015 (processo 449/12.9PBCTB-C1), consultável em www.dgsi.pt).
No caso, se repararmos bem, o facto que consta na acusação – que o arguido decidiu em Dezembro de 2012 praticar o crime no 4º trimestre do ano seguinte – não lhe é desfavorável. Ao contrário, esse facto, a provar-se, permitiria discutir se os factos pelos quais veio a ser condenado neste processo já tinham sido objecto de julgamento anterior. Sendo assim, não tem sentido dizer que o arguido, ao prestar declarações confirmando a veracidade de um facto que pode ilibá-lo, está a confessar esse facto. O que a lei supõe, quando regula a prova por confissão do arguido, é que a mesma se refira aos factos imputados na acusação e determinantes da culpabilidade e não da ilibação. Factos não desfavoráveis ao arguido não são susceptíveis de ser confessados por ele. Também por este motivo não consideramos procedente a argumentação do recurso.
Não é aplicável ao caso a jurisprudência do acórdão do TRP, de 26NOV2008 (processo 0812537, consultável em www.dgsi.pt), segundo a qual a confissão integral e sem reservas faz prova plena e existe erro notório na apreciação da prova quando se dá como não provados factos da acusação, diante de uma confissão dessa natureza. No nosso caso, nem estamos diante de uma confissão integral e sem reservas, nem o facto em questão é susceptível de confissão em sentido estrito.
Explicado que está que o tribunal não tinha de dar como provado o facto já referido, torna-se agora claro que a sentença não incorreu nos apontados vícios de contradição insanável e erro notório. A leitura da sentença mostra, aliás, o contrário.
Não há contradição insanável porque o tribunal explicitou as razões porque deu como não provado o facto, apesar do que considerou ter sido a confissão integral e sem reservas. Portanto, a conclusão de dar como não provado que o arguido tomou a resolução criminosa em Dezembro de 2012 é a que se adequa logicamente à motivação, da qual resulta essa conclusão e não a contrária.
Também não há erro notório porque o tribunal deu o facto como não provado com base numa argumentação racional e lógica, que partiu da avaliação crítica das provas que analisou, à luz das regras da experiência comum. Não existe qualquer erro no raciocínio do tribunal que seja imediatamente perceptível pela simples leitura da sentença recorrida e que se deva considerar ostensivo e evidente.
Improcede portanto este fundamento do recurso.

3.3. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou nulidade por omissão de pronúncia
Considera o recorrente que o tribunal, ao não dar como provada a data da resolução criminosa, incorreu no vício do artigo 410º nº 2 al. a) do CPP: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou na nulidade do artigo 379º nº 1 al. c): omissão de pronúncia sobre questões que devessem ter sido apreciadas.
O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão ocorre nas situações em que se vê pela simples leitura da sentença, por si só ou conjugada com as regras da experiência, que a decisão a que se chegou foi tomada com base em factos inexistentes na própria sentença, porque os factos provados não são idóneos para fundamentar a decisão de direito, nas suas várias soluções plausíveis. Essa insuficiência pode resultar de o tribunal não ter considerado na sentença certos factos que investigou ou de não ter investigado os factos necessários para a decisão.
A nulidade da sentença por omissão de pronúncia sucede quando o tribunal deixa de decidir uma questão que faz parte do objecto do processo levado ao julgamento. Este objecto é definido em primeira linha pela acusação e pela contestação, mas também pode ser alargado no julgamento, quando surgem outras questões substanciais ou não substanciais modificativas, desde que sejam comunicadas e aceites nos termos dos artigos 358º e 359º do CPP.
Para o efeito que agora nos ocupa, é irrelevante saber se o fundamento de recurso se qualifica correctamente como insuficiência da matéria de facto ou omissão de pronúncia.
Numa ou noutra hipótese, só ocorrerá o vício se o facto em causa tiver relevância para a decisão. De acordo com o disposto nos artigos 368º nº 2 e 369º nº 2 do CPP o tribunal deve decidir todos os factos alegados pela acusação ou pela defesa e os que resultem da discussão da causa, desde que sejam relevantes (sublinhado nosso) para a decisão das diversas questões em que se desdobra a análise da culpabilidade e da determinação da espécie e da medida da pena. Por isso, como resulta da expressão que sublinhamos e também do princípio geral da utilidade dos actos processuais, só estão abarcadas pelo dever de averiguação e decisão os factos relevantes para a decisão, tendo em conta as suas diversas soluções plausíveis.
Ora, a data em que o agente do crime formula a resolução criminosa não tem autonomia por si só como pressuposto da infracção. O que releva para todos os efeitos é o momento em que os actos de execução do crime são praticados e em que o mesmo é consumado. Uma resolução criminosa formulada com maior ou menor antecedência em relação à data da execução do crime pode ser relevante, por exemplo, para a determinação da sanção, como índice de premeditação e maior culpabilidade, mas não tem importância para determinar se o crime ocorreu ou não.
Consta na sentença como provado que o arguido decidiu não entregar o IVA (facto 4), decisão que se traduzia em liquidar e receber o IVA e não o entregar (facto 5), o que sucedeu no 4º trimestre de 2013 (facto 6), quando enviou a declaração periódica e não pagou no prazo de 90 dias a seguir a esse envio (facto 7). Tais factos são os necessários para que o tribunal verificasse se o crime imputado na acusação foi ou não praticado. O facto de ter dado como não provado que a decisão de os praticar ocorreu em Dezembro de 2013, não impõe que tivesse de ter averiguado em que momento exacto o arguido decidiu proceder como descrito nos factos provados, Até porque resulta de forma clara da motivação dos factos provados e não provados que o tribunal considerou que a decisão criminosa foi tomada no momento em que o arguido deveria ter procedido ao pagamento e não o fez.
Deste modo, não ocorre qualquer dos vícios apontados à decisão e é improcedente este fundamento do recurso.

3.4. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a existência de causa de exclusão da ilicitude
Diz em suma o recorrente que ao dar como provada a razão de não pagamento do IVA e não ter apreciado se a mesma constituía ou não causa de exclusão da ilicitude, a sentença é nula por omissão de pronúncia. Isto é, contém os factos indiciários de uma determinada solução de direito plausível, mas não a analisou.
Na contestação o recorrente tinha invocado a extinção do procedimento criminal por verificação da excepção de julgado e violação do princípio ne bis in idem e, subsidiariamente, para a hipótese de ser condenado, os factos mitigadores da sua responsabilidade, com efeito atenuante da pena. Não alegou ter actuado em situação de conflito de deveres, excludente da ilicitude.
Em face do que resultou da discussão da causa e pelas razões que explicou na motivação, o tribunal deu como provado, resumidamente, que o arguido tomou a resolução de dar prevalência ao pagamento dos salários dos trabalhadores, rendas e outros custos fixos de laboração e, consequentemente, de não entregar o IVA ao Estado quando a tesouraria da sociedade não lhe permitisse cumprir tal obrigação.
Porém, o tribunal não analisou se esse facto dado como provado levaria ou não a excluir a ilicitude. Deveria tê-lo feito? Achamos que sim.
De acordo com o disposto no artigo 339º nº 4 do CPP, o objecto do julgamento é constituído pelos factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação, tendo em vista a determinação da culpabilidade e da sanção. Se o tribunal considerou necessário dirigir a actividade probatória para o apuramento de factos explicativos do crime, que podem relevar juridicamente para a verificação de uma causa de exclusão da ilicitude, não podia omitir a decisão dessa matéria. Não obsta a tal a circunstância de isso não ter sido sido pedido na contestação (desconhecemos se o foi nas alegações orais porque não dispomos da respectiva gravação e não consta na acta do julgamento), visto que foi o próprio tribunal que alargou o objecto do julgamento em razão do que aí se discutiu.
A questão que então se coloca é a de saber se a nulidade da sentença por omissão de pronúncia pode ser suprida em recurso pelo tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 379º nº 2 do CPP.
No Comentário do Código de Processo Penal, o Professor Paulo Pinto de Albuquerque considera que o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade da sentença nos casos de excesso de pronúncia, declarando suprimida a parte que não devia ter sido conhecida, mas não a omissão de pronúncia. No mesmo sentido podem ser consultados os acórdãos do TRL, de 14ABR2003 e TRE, de 8JUL2003 e o mais recente do TRL, de 8NOV2015[1]. O argumento fundamental daquelas decisões é o de que o suprimento do vício pela Relação elimina um grau de recurso.
Não concordamos com esta interpretação limitadora dos poderes da Relação. Por um lado, a garantia constitucional do direito ao recurso não exige que a parte vencida tenha direito a interpor recurso de cada segmento da decisão. Numa situação como esta que estamos a analisar, não vemos que sentido pudesse ter remeter para a primeira instância a decisão sobre a existência de uma causa de exclusão da ilicitude, para que depois o arguido ou o Ministério Público pudessem recorrer de novo para este tribunal e para que então pudéssemos proferir a decisão que neste momento já estamos em condições de proferir.
Por outro lado, julgamos que a redacção do artigo 379º nº 2 introduzida pela Lei 26/2010, de 30AGO, substituindo o vocábulo “sendo lícito ao tribunal supri-las” pelo vocábulo “devendo o tribunal supri-las”, outra finalidade não teve que não fosse a de impor ao tribunal de recurso um dever de suprimento do vício – pressupondo obviamente que estão disponíveis todos os elementos necessários – e não uma mera faculdade.
Parece-nos ainda que o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2016, de 22FEV, segundo o qual, resumidamente, a absolvição pelo tribunal de primeira instância, a ter de ser revertida para condenação, deve sê-lo no tribunal de recurso e não no tribunal recorrido com o reenvio do processo, retirou importância àquele argumento. Na verdade, se a garantia do duplo grau de recurso não obriga a reenviar para a o tribunal de primeira instância a prolação de uma decisão condenatória, por maioria de razão não imporá esse reenvio no caso de se tratar de sanar uma nulidade da sentença.
Concordamos assim com a solução interpretativa de que a nulidade da sentença por omissão de pronúncia deve, sempre que possível, ser suprida pelo tribunal de recurso, como decidido nos acórdãos do STJ, de 2JUN2014 e 30MAR2016[2]. Esta é a interpretação que em nosso entender melhor resposta dá às exigências de celeridade e economia processual, evitando que o tribunal de recurso deixe de se pronunciar sobre uma questão que podia conhecer e levando a que a mesma seja reenviada à primeira instância e objecto de novo recurso.
Evidentemente que tal solução só será admissível se o tribunal dispuser de todos os elementos e se não houver violação do princípio do contraditório e do direito ao recurso. Neste caso, o direito de todos os sujeitos processuais ao contraditório e à apreciação das questões em sede de recurso foi assegurado. Tanto o recorrente como Ministério Público tiveram oportunidade de discutir, e efectivamente discutiram, a questão de saber se no caso, face aos factos provados, se verifica ou não a causa de exclusão de ilicitude invocada.
Em face do exposto, passaremos a conhecer da questão omissa na sentença.
Diz o recorrente, sinteticamente, que a ilicitude do facto se encontra afastada pela causa de exclusão prevista no artigo 36º do CP: conflito de deveres. Em confronto o dever tributário de pagar impostos e os deveres jurídicos e laborais de assegurar os pagamentos de salários e a fornecedores, ambos com tutela constitucional, verifica-se que o valor bem jurídico observado não é inferior ao do bem sacrificado.
Contrapõe o Ministério Público argumentando, em suma, que o dever de pagar impostos tem valor superior ao de pagar salários, desde logo porque o primeiro tem tutela penal e o segundo não e porque o primeiro é de ordem pública e o segundo relativo apenas a interesses privados.
Praticamente sem excepções, a jurisprudência dos tribunais superiores tem negado a possibilidade de exclusão da ilicitude nos crimes fiscais por conflito de deveres, em situações de confronto entre o pagamento de impostos ou contribuições para a segurança social e o pagamento de salários dos trabalhadores. Neste sentido, entre muitos outros, os seguintes acórdãos, todos consultáveis em www.dgsi.pt: TRG, de 14MAR2005 (131/01-1) e de 4FEV2013 (285/11.7IDBRG.G1), TRC de 28MAR2012 (1133/10.0IDLRA.C1), TRE de 26ABR2016 (20/12.2IDSTR.E1), 7JUN2012 (98/10.3IDSTB.E1) e TRP de 20JUN2012 (6651/08.8TAVNG-P1).
Os argumentos principais para sustentar tais decisões têm sido a superioridade do interesse público do pagamento de impostos em relação ao interesse privado do recebimento dos salários, o maior desvalor jurídico da falta de pagamento de impostos, dado pela criminalização dessa conduta, a existência de alternativas em políticas públicas, que não estão na disponibilidade do infractor, como os mecanismos de recuperação de empresas e de assistência a trabalhadores com salários em atraso e a imputabilidade da criação da situação de conflito de deveres à violação, pelo infractor, do dever de boa gestão empresarial e de recurso atempado aos mecanismos de recuperação de empresas e até de insolvência de empresas inviáveis[3].
A uniformidade jurisprudencial na aplicação da lei é um valor com consagração legal (artigo 8º nº 3 do CC). Parece-nos, no entanto, que alguns dos argumentos a que fizemos referência não são inteiramente convincentes, ao ponto de, perante um caso concreto, se poder dispensar a análise de todas as suas variáveis.
É certo que a falta de pagamento de impostos constitui crime e que a falta de pagamento de salários deixou de o ser, depois da revogação lei 35/2004 que criminalizava essa conduta nos artigos 301º e 467º. Mas mesmo assim não deixa de ser duvidoso que se possa extrair da lei uma regra absoluta e inderrogável de hierarquização dos bens jurídicos presentes nos deveres de pagamento de impostos e de salários. O primeiro tem consagração constitucional, nos artigos 103º e 104º e constitui uma obrigação de natureza pública, sujeita até aos princípios da generalidade e igualdade, conforme disposto nos artigos 12º nº 1 e 13º nº 2. O que está em causa é essencialmente a protecção do bem jurídico inerente à satisfação das necessidades financeiras do Estado, que é instrumental da prossecução das suas finalidades. Mas o segundo também tem consagração constitucional, como corolário do direito fundamental do trabalhador à retribuição do trabalho, previsto no artigo 59º, que protege de forma directa o bem jurídico, também fundamental, que é a dignidade da pessoa humana.
De todo o modo, parece-nos escusado para a decisão do caso concreto avançar mais na explicitação das circunstâncias em que poderia cogitar-se uma possibilidade de admitir a exclusão da ilicitude por conflito de deveres no caso da falta de pagamento de impostos causada pela necessidade de pagamento de salários. O caso em apreço não reúne os pressupostos de facto necessários para que tal análise devesse ser mais aprofundada.
Em primeiro lugar, só haveria conflito no cumprimento de deveres se tivesse ficado provado que os deveres de pagar o IVA em falta e os salários dos trabalhadores eram para ser cumpridos em simultâneo e que a satisfação de um invalidaria a do outro. Neste caso, resulta da conjugação dos factos 3, 4 e 24 que o arguido tomou uma opção de gestão de privilegiamento geral e abstracto do dever de pagar salários em detrimento do de pagar impostos. Mas nem se sabe em concreto se o valor que ficou em dívida foi mesmo utilizado na satisfação do dever de pagar salários dos trabalhadores e em que medida.
Por outro lado, uma correcta hierarquização dos deveres em confronto não poderia prescindir do conhecimento da gravidade concreta que teria a falta de pagamento de salários no caso de o arguido ter optado por pagar o IVA. De quantos trabalhadores se tratava, se tinham ou não acesso às prestações sociais de subsídio de desemprego por salários em atraso, previstas na Lei nº 105/2009, se a falta de pagamento seria parcial ou total e qual o atraso que implicaria, de dias, semanas ou meses. Só o conhecimento desses factos poderia levar a uma ponderação sustentada sobre a supremacia dos interesses em confronto.
Nada disto se apurou. A prova de que, fruto de uma opção de gestão errada e estrutural, o arguido resolveu dar prevalência ao pagamento dos salários dos trabalhadores, rendas e outros custos de laboração, não pode ser considerada suficiente para levar à conclusão de que actuou numa situação de conflito de deveres excludente da ilicitude.
Consideramos assim improcedente este fundamento do recurso.

3.5. Erro de julgamento da matéria de facto
Continuando a esgrimir argumentos com o mesmo objectivo, o recorrente sustenta também que há erro de julgamento da matéria de facto. Considera, em suma, que o facto mal julgado é o não provado, de que a decisão criminosa foi tomada em Dezembro de 2012, e a prova que impõe decisão diversa é – de novo – a sua confissão
A impugnação do julgamento dos factos obedece às regras do artigo 412º nºs 3 a 6 do CPP. Foi cumprido suficientemente o ónus de alegação imposto pelo nº 3, interpretado de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2012, de 18 de Abril (DR nº 77, série I, de 18ABR2012). O recurso diz-nos qual é o facto impugnado e a prova que impõe decisão diversa.
Temos pois de verificar se há erro de julgamento.
Antes disso devemos tornar claros os limites do poder de cognição do tribunal de recurso nesta matéria ou, dito de outro modo, as circunstâncias em que podemos alterar a decisão da matéria de facto decidida pelo tribunal de primeira instância.
O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a um procedimento vinculado aos princípios da descoberta da verdade histórica e da procura da decisão justa. A regra da recolha da prova com imediação assume aqui uma relevância fundamental, obrigando a que se estabeleça uma relação de contacto pessoal e directo entre o julgador e o meio de prova. Ao contrário, em segunda instância, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização do registo das provas sugeridas no recurso e apenas se renovando provas sob impulso dos sujeitos processuais a renovação da prova.
Quer isto dizer que, por definição, a avaliação da prova em primeira instância, de forma directa, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que dá mais garantias de se chegar a uma decisão acertada, do que a avaliação feita com base na audição ou visualização segmentada do registo de provas produzidas no passado, à distância e perante terceiros, como sucede na Relação.
É sabido, por outro lado, que o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º do CPP. Esta norma confere ao julgador uma ampla margem de discricionariedade para valorar as provas, embora vinculada a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. É na fundamentação da sentença que o tribunal deve explicitar o percurso desse exame crítico e as razões das conclusões a que se chegou, indicando os motivos porque considerou demonstrado um certo facto e não demonstrado o seu contrário.
Portanto, à luz das regras que acabámos de expor, só haverá erro de julgamento da matéria de facto sindicável por via de recurso, caso as provas indicadas pelo recorrente, se necessário complementadas com outras que o tribunal entenda reapreciar, demonstrem que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade a não prova daquele facto acima referido é inadmissível.
Aplicando esta linha de pensamento à situação em apreço, temos de dizer já que o recorrente não tem razão. A prova por si indicada não demonstra de forma inultrapassável que o tribunal recorrido errou.
Já dissemos acima que não houve propriamente uma confissão sobre o facto controvertido. Aliás, o arguido não disse uma única palavra sobre esse facto, limitando-se a uma admissão implícita e genérica da acusação.
O tribunal explicou cabalmente na motivação a razão por que deu como não provado que a decisão de praticar o crime tivesse sido tomada em Dezembro de 2012. Fê-lo com base numa avaliação global e conjugada da prova oral e documental, que está explicitada na sentença de maneira racional, objectiva, perfeitamente razoável e compreensível e adequada às regras da experiência e do senso comum, apoiada em critérios de plausibilidade e probabilidade. A verdade histórico-processual a que chegou o tribunal é a única possível face a outras alternativas que se poderiam cogitar. Através dos mecanismos de controlo dessa decisão, em face das razões trazidas pelo recorrente ou de outras que nos competisse ponderar, temos como não sustentada a imputação de erro de julgamento da matéria de facto.
Improcede também este fundamento do recurso.

3.6. Violação do princípio ne bis in idem
O recorrente invocou este argumento apenas para a hipótese de se alterar a decisão da matéria de facto. Caso se provasse que a resolução criminosa foi tomada em Dezembro de 2012, então os factos objecto deste processo estariam cobertos pelo julgamento feito no processo 390/13.5IDAVR.
Com a matéria de facto inalterada é evidente a falência deste fundamento do recurso. Houve uma nova resolução criminosa, diferente daquela que deu origem ao crime pelo qual o arguido já foi condenado. Isso é quanto basta para dizer agora que os factos deste processo são distintos dos do outro e que não foi violado o princípio ne bis in idem.
Além disso, não podemos regressar à hipótese suscitada no nosso anterior acórdão, de, mesmo com duas resoluções criminosas, se dever discutir se não estaríamos na presença de um crime continuado. Trata-se de argumento não invocado no recurso e do qual não podemos conhecer oficiosamente.
Improcede assim este fundamento de recurso que importaria a absolvição do arguido.

3.7. Legalidade do condicionamento da suspensão da execução da pena
Ao abrigo do disposto no artigo 14º do RGIT, que considerou prevalecer sobre o regime geral previsto no artigo 50º do CP, o tribunal condicionou a suspensão da execução da pena de prisão pelo período de 5 anos ao pagamento da quantia em dívida ao Estado, de 11.591,58€, mas em montante mensal não inferior a 50€.
Considera o arguido que a condição imposta viola a regra de razoabilidade do artigo 50º nº 2 do CP, face a ter ficado provado que não dispõe de mais de 50€ por mês.
Contrapõe o Ministério Público que do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, nº 8/12 (publicado no Diário da República n.º 206, Iª série, de 24 de Outubro de 2012) resulta que a pena de prisão só pode ser suspensa com a condição de pagamento integral do valor em dívida, pois a alternativa, caso se não consiga antever a possibilidade de pagamento, é a aplicação da pena principal de multa ou de outra pena de substituição ou mesmo da pena de prisão efectiva.
Vejamos então.
O referido acórdão fixou a jurisprudência nos seguintes termos: «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado de prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade por omissão de pronúncia».
O que estava ali em causa era uma situação diferente daquela que nos ocupa agora. Ali punha-se a questão de saber qual a consequência de a sentença condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia em dívida, sem fazer a ponderação da razoabilidade desse pagamento, prevista no artigo 50º nº 2 do CP.
Ora, no nosso caso a sentença recorrida fez essa ponderação, pois teve em conta as condições económicas do arguido que se apuraram no julgamento (facto 20) e determinou que a condição se cumprirá com a entrega de quantia mensal não inferior a 50€.
Diz o arguido que, face ao que se provou, apenas é razoável condicionar a suspensão da pena ao pagamento de 3.000€. Não concordamos que assim seja.
Resulta dos factos provados que o arguido, com 54 anos de idade, é empresário desde os 22 anos e que teve negócios, primeiro com os irmãos e depois, a partir de 1993, embora com interrupções, por conta própria. Ora, sendo assim, o facto de no momento da sentença não ter rendimentos que permitam cumprir totalmente a condição, ficando por isso obrigado apenas a pagamentos mensais não inferiores a 50€, não impede que venha mais tarde a adquirir os meios que lhe permitam pagar o que deve. Essa ponderação deverá ser feita ao longo e no final do período de suspensão da execução da pena. O que não se pode é, a 5 anos de distância, dizer que alguém que tem um longo passado profissional de empresário, não está em condições de proceder ao pagamento de 11.591,58€, que corresponde a cerca de 193€ mensais, só porque no momento da decisão se encontra numa situação mais desfavorável. A solução preconizada pelo arguido não permitiria cumprir adequadamente o disposto no artigo 14º do RGIT, dado que, se entretanto viesse a adquirir meios para pagar o que deve ao Estado, acabaria por ver suspensa a execução da pena condicionada ao pagamento apenas de uma pequena parte dessa dívida.
A solução adoptada na sentença não afronta os princípios constitucionais da culpa e da necessidade de proporcionalidade da pena. O Tribunal Constitucional já se pronunciou várias vezes no sentido de não ser inconstitucional condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento de uma quantia que no momento não é totalmente adequada à situação económica do condenado. Tem sido salientado nessas decisões que a situação económica é uma realidade dinâmica que se pode alterar para melhor e que a revogação da suspensão por incumprimento da condição nunca é automática, antes dependendo de uma avaliação da culpa pela falta de pagamento. Neste sentido, os seguintes acórdãos: 256/03, 335/03, 376/03, 500/05, 309/06, 543/06, 29/07, 61/07, 360/07, 377/07, 327/08, 427/08, 563/08, 244/09, 556/09, 587/09 e 237/11, todos consultáveis em www.tribunalconstitucional.pt.
Improcede assim também este fundamento do recurso.

4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso improcedente e em confirmar a sentença recorrida.
Fixa-se a TJ devida pelo recorrente em 3,5 UC

Porto, 10 de Janeiro de 2018
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado
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[1] Respectivamente em CJ, XXVIII, 2, páginas 143 e segs., e CJ XXVIII, 4, páginas 252 e segs. e http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/d4317e798834746c80257ec8004de08f?OpenDocument
[2] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7b3427c1c70d074780257d70003fa445?OpenDocument
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/effc004ee8ef49f580257f87004eefc9?OpenDocument
[3] Sobre esta matéria pode ver-se o seguinte estudo: “Da justificação e desculpa no abuso de confiança fiscal - Ponto da situação em casos de pagamento de salários em detrimento do cumprimento de deveres fiscais”, Dissertação de Mestrado, Universidade Católica Portuguesa, João Nuno Correia Ornelas Camacho, 5 de Setembro de 2014, em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/19427/1/Tese%20de%20Mestrado%20UCP.pdf