Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2346/18.2T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
REGIME TRANSITÓRIO
CADUCIDADE DO ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RP201910072346/18.2T8GDM.P1
Data do Acordão: 10/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 703-A, FLS. 12-22)
Área Temática: .
Sumário: I - O NRAU, relativamente aos contratos de arrendamento para habitação celebrados anteriormente à sua entrada em vigor, passou a não permitir a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60% (v. art. 57º, norma transitória).
II - Com esta limitação, reforçou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, restringindo-se esta aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras atuais do mercado, entendendo o legislador não ser a mera convivência, no locado, com o arrendatário falecido suficiente para motivar a imposição de sacrifícios ao interesse do senhorio (em ver cessado o contrato sujeito a um regime vinculístico) e ao interesse público (de ampliação do mercado de arrendamento), cedendo o interesse daqueles perante estes.
III - A aplicação do referido regime transitório não enferma de inconstitucionalidade, não gerando a referida não inclusão destes descendentes no art. artigo 57.º, do NRAU, inconstitucionalidade de tal norma, por violação do princípio da igualdade, pois que, as razões, eminentemente sociais, de consagração legal das situações aí previstas, a reclamar e justificar o sacrifício de direitos e interesses privados ou públicos (como o de propriedade de senhorio e da ampliação do mercado de arrendamento segundo as atuais regras), não estão presentes naquele caso. Na verdade, não se verifica uma discriminação injusta e arbitrária, dado caber aos referidos descendentes, capazes, excluídos, diligenciar, ativamente, pela satisfação das suas necessidades, estando todos os outros casos consagrados, presumivelmente, em situação mais desfavorecida e, mesmo, vulnerável. Surgindo, na família, os “laços de sangue” e a “relação conjugal” ou de “união de facto”, em posição de igualdade, tal paridade deixa de existir, para os referidos efeitos, no momento em que os descendentes adquirem, naturalmente, capacidade de organizarem as suas vidas, de constituírem a sua família e de proverem pela satisfação das suas necessidades, pessoais e familiares.
IV - E também não configura violação do direito à habitação, pois que tal direito (v. art. 65.º da Constituição da República Portuguesa), reveste, acima de tudo, natureza programática, dirigindo-se ao Estado, que o assegura por variados meios, e, desde logo, no nº1, do art. 57.º, do NRAU, foi salvaguardada a parte mais frágil e de essencial relevo do direito à habitação, com a eleição dos aí previstos beneficiários na transmissão por morte do arrendamento, nomeadamente nos contratos mais antigos, sujeitos a um regime vinculístico, e com proteção das pessoas mais vulneráveis, situações essas em que mais se reclama e justifica especial proteção.
V - Não se encontrando o réu em nenhuma das situações previstas nas alíneas do n.º 1, do citado art. 57.º, do NRAU, cuja aplicação não pode ser afastada, é de concluir pela caducidade do arrendamento, com a morte de sua mãe.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2346/18.2T8GDM.P1

Processo do Juízo Local Cível de Gondomar - Juiz 1

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Sumário (elaborado pela relatora - cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
B…, residente na rua …, n.º …, …. – … …, Matosinhos, C…, residente na rua …, n.º …, …, … – … Porto e D…, residente na rua …, n.º .., …. – … Gondomar, intentaram a presente ação de reivindicação sob a forma de processo comum contra E…, residente na rua …, n.º …, …, …. – … …, Gondomar, pedindo a condenação do Réu:
- a reconhecer que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na rua …, n.º …, na freguesia de …, concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º 10487/20120703, da freguesia de …, concelho de Gondomar, inscrito à matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o artigo 706.º;
- a reconhecer que não tem qualquer título que justifique ou legitime a ocupação que vem fazendo sobre tal habitação desde 19 de fevereiro de 2018, ou seja, seis meses após o decesso da arrendatária, ocorrido em 19 de agosto de 2017;
- a reconhecer que a sua posse é abusiva e, como tal, insubsistente;
- a entregar ao Autores a habitação que ocupa, sita na rua …, n.º …, …, …, Gondomar, livre de pessoas e bens.
Alegam, para tanto e resumidamente, que são donos e legítimos possuidores do referido prédio, que, por contrato verbal celebrado há cerca de 50 anos, o anterior proprietário deu de arrendamento a F…, pai do Réu, uma habitação, pelo prazo de um mês, considerando-se prorrogado por iguais e sucessivos períodos, enquanto não denunciado, destinando-se o local arrendado a habitação, que devido a sucessivos aumentos legais a renda mensal era de €60,00€, que o primitivo arrendatário faleceu, há mais de dez anos, tendo o contrato de arrendamento em causa sido transmitido à sua mulher, G…, a qual faleceu em 19 de agosto de 2017, no estado de viúva de F…, primitivo arrendatário, decesso que não foi comunicado aos Autores, que só recentemente tiveram conhecimento do óbito, e que face à confirmação do óbito da arrendatária, através de carta registada, datada de 15/05/2018, rececionada em 18/05/2018, o primeiro Autor comunicou ao Réu que teve conhecimento do decesso da arrendatária e que o contrato caducou, nos termos do artigo 1051.º, alínea d) do Código Civil, que o mesmo não tinha direito à transmissão por morte do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 57.º, do NRAU e que deveria fazer de imediato a entrega do locado, livre de pessoas e bens, nos termos do artigo 1053.º, do Código Civil, em virtude de já ter decorrido o prazo de seis meses a contar do óbito.
O Réu apresentou contestação, onde se defende por impugnação e por exceção, sustentando que o óbito da mãe foi comunicado ao senhorio e que o Autor B… acordou com a irmã do Réu, H…, em manter o contrato de arrendamento a favor do aqui Réu, sendo que sempre viveu naquela habitação aí permanecendo há 47 anos, aí tendo a sua residência fiscal e encontrando-se desempregado e sem condições para arrendar outra habitação.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido o despacho saneador de fls. 59 a fls. 63, no qual foram identificados o objeto do litígio e fixados os temas da prova.
O despacho saneador proferido nos autos não foi objeto de reclamação.
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Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
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Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Nos termos e fundamento exposto, decide o Tribunal julgar totalmente procedente, por totalmente provada, a presente ação e, nesta conformidade;
a) condena o Réu a reconhecer que o prédio urbano que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, freguesia de … sob o n.º 10487/201207003, situado no lugar de …, com a área total de 880 m2, com a área coberta de 309 m2, com a área descoberta de 571 m2; composto por casa com dependências, anexos e quintal; que confronta a norte com a rua Dr. I…, a nascente com a rua …, a sul com J…, a poente com rua …, inscrito à matriz sob o artigo 706.º; é propriedade dos Autores;
b) condena o Réu a restituir aos Autores a habitação devidamente delimitada no prédio identificado em a), que corresponde ao primeiro andar direito, com entrada pelo n.º 164 da rua de Soutelo, em Rio Tinto, Gondomar, livre de pessoas e bens.

Custas a cargo do Réu, nos termos do artigo 527.º, do Código de Processo Civil”
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O Réu apresentou recurso de apelação pugnando por que seja revogada a decisão recorrida.
Fá-lo com base nas seguintes:
CONCLUSÕES:
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Os Autores apresentaram contra alegações a pugnar pela improcedência do recurso, concluindo:
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
A única questão a decidir é a seguinte:
- Se o artigo 57.º, do NRAU, padece do vício de inconstitucionalidade, por violar o princípio da igualdade e o direito à habitação, ao não incluir, no seu âmbito, os descendentes do arrendatário, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
São os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância:
a) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, freguesia de … sob o n.º 10487/201207003, o prédio urbano situado no lugar de …, com a área total de 880 m2, com a área coberta de 309 m2, com a área descoberta de 571 m2; composto por casa com dependências, anexos e quintal; que confronta a norte com a rua Dr. I…, a nascente com a rua …, a sul com J…, a poente com rua …, inscrito à matriz sob o artigo 706.º (resposta ao artigo 1.º da petição inicial).
b) O facto aquisitivo – sucessão mortis causa – que tem por objeto o prédio identificado em a) encontra-se inscrito a favor dos Autores sob a AP 1976 de 2012/07/03 (resposta ao artigo 1.º da petição inicial).
c) Por contrato verbal celebrado há cerca de 50 anos, o anterior proprietário deu de arrendamento a F…, pai do Réu, uma habitação devidamente delimitada no prédio identificado em a), que corresponde ao primeiro andar direito, com entrada pelo n.º … da rua …, em …, Gondomar (resposta ao artigo 3.º da petição inicial e ao artigo 3.º da contestação).
d) O arrendado destinava-se à habitação (resposta ao artigo 5.º da petição inicial e ao artigo 4.º da contestação).
e) O primitivo arrendatário, F…, faleceu há mais de dez anos no estado de casado com G…, mãe do Réu que se manteve a residir no arrendado (resposta aos artigos 7.º e 8.º da petição inicial e ao artigo 8.º da contestação).
f) G… faleceu no dia 19 de agosto de 2017, no estado de viúva de F… (resposta ao artigo 9.º da petição inicial e ao artigo 13.º da contestação).
g) Atento o decesso da mãe do Réu, o primeiro Autor enviou uma carta datada de 15/05/2018 ao Réu, que a recebeu, com entre outros dizeres “Tive agora conhecimento que a minha inquilina, viúva do primitivo arrendatário, Senhora D. G…, do locado sito na morada acima indicada, faleceu no passado dia 19/08/2017. Assim sendo, o contrato de arrendamento caducou, nos termos do art.º 1051.º alínea d) do Código Civil pelo que em conformidade com o art.º 1053.º do Código Civil, teria de proceder à entrega do locado em questão completamente devoluto de pessoas e coisas, em virtude de já ter decorrido o prazo de seis meses a contar do óbito. Nesta conformidade, informo V.ª Ex.ª na qualidade de ocupante do imóvel sito na morada acima indicada, deverá entregar o mesmo de imediato, sob pena de ser intentada em Tribunal a competente ação” (resposta ao artigo 11.º da petição inicial).
h) Em resposta à missiva referida em g), o Réu enviou a missiva datada de 21 de maio de 2018 ao 1.º Autor, que a recebeu, com entre outros dizeres “No seguimento da V/missiva, que mereceu a N/melhor atenção, vimos pelo presente, informar V. Exa. que o referido contrato verbal de arrendamento celebrado e ainda vigente, não caducou, uma vez que resido com a minha mãe naquela imóvel há mais de vinte anos, e atento o facto de V. Exa., após tomar conhecimento do falecimento da minha mãe, em setembro de 2017, ter concordado com a transmissão do referido arrendamento para mim, como descendente do primitivo arrendatário. Isto porque, estipula o n.º 2 do art. 57.º da Lei n.º 6/2006 que “….a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho”. O n.º 4 do art. 57.º, estabelece uma transmissão do arrendamento do cônjuge do primitivo arrendatário, para um filho ou enteado deste. Transmissão que já havia sido comunicada a V. Exa. em setembro de 2017, há mais de nove meses, com a que V. Exa. concordou. Posto isto, não há lugar à aludida caducidade do contrato nem a restituição do locado” (resposta ao artigo 12.º da petição inicial e ao artigo 16.º da contestação).
i) Em resposta à missiva referida em h), o 1.º Autor enviou a missiva datada de 24 de maio de 2018 ao Réu, que a recebeu, com entre outros dizeres “Dou em meu poder a carta de V.ª Ex.ª datada de 21 de maio de 2018, cujo conteúdo mereceu a minha melhor atenção. Face ao exposto na mesma, informo que não aceito o seu conteúdo, por não ser legalmente admissível a transmissão do contrato de arrendamento por morte e não ter havido qualquer acordo quanto à manutenção. Só recentemente houve conhecimento do falecimento da mãe de V.ª Ex.ª e em nenhuma altura houve acordo para que se transmitisse para V.ª Ex.ª, como descendente do primitivo arrendatário. O artigo 57.º do NRAU apenas permite a transmissão do contrato de arrendamento por morte para os filhos que vivessem com o primitivo arrendatário há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, o que não é o seu caso, nos termos do n.º 1 alínea e), dessa disposição legal. Assim, deverá entregar a casa, livre de pessoas e bens, que se encontrava arrendada à S/mãe, num prazo de quinze dias, sob pena de ser intentada a competente ação judicial para restituição da mesma” (resposta aos artigos 15.º, 16.º e 17.º da petição inicial e ao artigo 17.º da contestação).
j) O Réu não entregou a casa aos Autores (resposta aos artigos 18.º e 27.º da petição inicial).
k) O Réu reside na habitação referida em c) desde que nasceu, ou seja, há 47 anos (resposta ao artigo 21.º da contestação).
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Factos não provados:
1) O prazo de duração do contrato de arrendamento referido no facto provado c) era mensal, considerando-se prorrogado por iguais e sucessivos períodos, enquanto não fosse denunciado nos termos legais (resposta ao artigo 4.º da petição inicial).
2) O Autor, B…, acordou com a irmã do Réu, H…, em manter o contrato de arrendamento a favor do aqui Réu, mesmo após o falecimento da mãe do Réu (resposta aos artigos 14.º e 25.º da contestação).
3) O Réu assistiu ao acordo referido em 2) (resposta ao artigo 28.º da contestação).
4) O Autor B… comprometeu-se com o Réu para que este ficasse no imóvel mesmo após a morte da sua progenitora (resposta ao artigo 29.º da contestação).
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da inconstitucionalidade do nº1, artigo 57.º, do NRAU, por violação dos princípios da igualdade e do direito à habitação, ao não incluir os descendentes do arrendatário, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade.
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O objeto do presente recurso circunscreve-se à determinação da ocorrência de erro de direito na aplicação que foi efetuada do artigo 57º, do NRAU, por este preceito ser inconstitucional, violando os princípios da igualdade e o direito à habitação, ao não incluir, no seu âmbito, os descendentes do arrendatário, residentes no locado, com idade compreendida entre os 26 e os 65 anos, sem deficiência causadora de incapacidade.
Invocando o Réu ter título que legitima a ocupação que faz de parte do prédio dos Autores, por a mãe ser dela arrendatária e ter, por óbito da mesma, comunicado, direito à transmissão do arrendamento, considerou, quanto a tal, o Tribunal a quo:
“Conforme resulta do facto provado c), o contrato de arrendamento celebrado entre o anterior proprietário do prédio identificado no facto provado a) e o pai do Réu ocorreu há mais de 50 anos, ou seja, em data anterior ao RAU, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
Com a entrada em vigor do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, no seu artigo 27.º estatui-se que “As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto – Lei n.º 257/95, de 30 de setembro”.
Por seu turno, estabelece o artigo 28.º, n.º 1 que “Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26.º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30.º a 37.º e 50.º a 54.º”.
O que significa que se aplica o n.º 2, do artigo 26.º “À transmissão por morte aplica- se o disposto nos artigos 57.º e 58.º”.
Atento o facto provado d) estamos em face de arrendamento para habitação.
Logo, o que está em causa é a aplicação da norma estatuída no artigo 57.º, do NRAU.
Como é sabido a Lei n.º 6/2006, de 27/02 sofreu alterações até à recente Retificação n.º 11/2019, de 04/04. A questão é saber qual a redação dada ao citado artigo 57.º que será de aplicar nestes autos, a que se encontra atualmente em vigor ou a que se encontrava em vigor à data do decesso da mãe do Réu.
O Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 16/12/2015, com o n.º de processo 403/14.3TBGDM.P1, com o n.º convencional JTRP000, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Leonel Serôdio, disponível para consulta in www.dgsi.jtrp dá-nos a resposta “I – A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico morte do arrendatário”.
De acordo com o facto provado f), a mãe do Réu faleceu no dia 19 de agosto de 2017, logo, é de aplicar a norma estatuída no artigo 57.º, do NRAU com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 43/2017, de 14 de junho, que estatuía que “ – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11º ou o 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%”.
À data do decesso da sua mãe, o Autor não era menor de idade, nem tinha idade inferior a 26 anos, nem sendo maior de idade (como era e como confessado pelo próprio) tivesse uma deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, logo, nesta data o contrato de arrendamento identificado no facto provado c), caducou.
Atento o disposto nos artigos 1051.º, alínea d) e 1053.º, ambos do Código Civil, os Autores tinham o direito de exigir que o Réu desocupasse o arrendado passados 6 meses do decesso da arrendatária, prazo que há muito se verificou.
Assim sendo como é, o Réu não dispõe de título que legitime a ocupação do prédio”.
Cumpre analisar, sendo que, na verdade, “As sucessivas intervenções do legislador ao longo dos anos que vieram mexer com a possibilidade de perpetuar o contrato por várias gerações de arrendatários bem como a consagração de diferentes regimes simultaneamente vigentes levam a que se levantem dúvidas de aplicação da lei no tempo, de delimitação das fronteiras das regras em vigor e de interpretação do seu sentido[1].
No Acórdão da Relação de Lisboa de 9/12/2015, afirmando-se a regra, consagrada no art. 1051.º, alínea d), do Código Civil, abreviadamente CC, de que o contrato de locação caduca por morte do locatário, analisa-se a evolução que o regime jurídico da transmissão do arrendamento urbano, para habitação, por morte do arrendatário, teve em que se foram “ampliando ou reduzindo as possibilidades de suceder no contrato ao arrendatário, numa área de extrema sensibilidade social”[2].
Aí se refere que o art. 1106.º do CC, foi introduzido pelo NRAU, que estabeleceu, também, no art. 57.º, um regime transitório, quanto à transmissão por morte no arrendamento para habitação, aplicável aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro (art. 27.º do NRAU) e um regime transitório semelhante foi também fixado para os contratos celebrados na vigência do RAU (art. 26.º, n.º s 1 e 2, do NRAU), que o art. 57.º, n.º 1, do NRAU sofreu, entretanto, alteração, decorrente da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, nomeadamente no sentido de que a transmissão por morte no arrendamento para a habitação pode ser feita a “pessoa que com ele (“primitivo arrendatário”) vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano” e que o regime transitório, fixado no NRAU, continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do RAU, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art. 1106.º do CC, consagrado pelo NRAU, nele bem se decidindo num caso semelhante ao dos autos, o que, aqui, se reafirma, “Tendo o contrato de arrendamento para a habitação dos autos sido celebrado em (…) 1958, é aplicável o regime transitório do NRAU, nomeadamente o disposto no art. 57.º, n.º 1.
Não sendo já a falecida a primitiva arrendatária, não podia transmitir-se ao Apelante o contrato de arrendamento para a habitação, mesmo que tivesse residido, em economia comum e há mais de um ano, com a mãe.
Para além disso, o Apelante não se enquadra em qualquer uma das categorias de beneficiários previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 57.º do NRAU.
Nestes termos, o contrato de arrendamento caducou, nos termos da alínea d) do art. 1051.º do CC, não se transmitindo ao Apelante.
Por isso, não há motivo válido que obste à restituição do imóvel, reconhecido o direito de propriedade”.
O direito de transmissão por morte é um direito de gozo que só existe a partir da data do falecimento do arrendatário, consagrando-se, presentemente, um regime diferenciado[3] de transmissão por morte do arrendamento[4].
No atual regime do contrato de arrendamento para habitação a regra para os novos contratos é a de que o arrendamento se transmite aos sucessores do arrendatário – cfr art. 1106º, do Código Civil - e o referido não é aplicável aos contratos celebrados antes do NRAU, valendo, para estes, como bem refere o Tribunal a quo, e como se acabou de analisar, o regime transitório consagrado, previsto no art. 57º, da Lei nº6/2006, de 27/2, que estabelece condições muito restritivas para a transmissão mortis causa do arrendamento habitacional[5]. O NRAU consagrou, assim, duas soluções aplicáveis aos contratos de arrendamento:
- uma aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor – a do art. 1106º, do CC;
- outra aplicável aos arrendamentos celebrados antes da sua entrada em vigor – a estatuída pelo art, 57º, do NRAU.
Quanto aos descendentes, este preceito “apenas admite a transmissão do arrendamento para filho do arrendatário ou do cônjuge deste, para quem haja sido transmitido o direito ao arrendamento, desde que tenha menos de 1 ano de idade ou com ele convivesse há mais de 1 ano e fosse menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequentasse o 11º ou 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior ou, sendo maior de idade, com ele convivesse há mais de 1 ano e fosse portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (nºs 1, als. a), d) e e) e 4).
O RAU (art.85º) permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário ou do cônjuge sobrevivo para quem houvesse sido transmitido o direito ao arrendamento, para os descendentes que com ele convivessem há mais de 1 ano, independentemente da sua idade e da verificação de qualquer situação de incapacidade. O NRAU (art. 57º) alterou tal regime, já que, passou a não permitir, nos contratos que lhe são anteriores, a transmissão do arrendamento para os descendentes maiores de 26 anos que não sofram de qualquer incapacidade ou que tenham uma incapacidade inferior a 60%. Mas para os contratos que lhe são posteriores, o novo regime do C.Civil (art. 1106º) liberalizou a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário e fê-lo deliberadamente, certamente por ter tido em consideração que nestes novos contratos o prolongamento da relação contratual já não pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário (o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado – arts.1096, nº2 e 1097º, do C.Civil – ou, não tendo sido fixado qualquer prazo, pode denunciá-lo com uma antecedência de 5 anos – art.1101º, al.c), do C.Civil).
O que bem se compreende, pois que, tendo findado o sistema de renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação, deixaram de se justificar as limitações que antes eram impostas à transmissão do arrendamento. Mas como na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto for essa a vontade do arrendatário, considerou-se justificado diminuir, em algumas circunstâncias, a possibilidade de transmissão do arrendamento.
Como se refere no citado Acórdão do TC, «Com esta modificação visou-se limitar a transmissão do arrendamento para os descendentes que convivessem com o arrendatário em economia comum apenas àqueles que, presumivelmente, atenta a sua idade ou grau de incapacidade, vivessem numa situação de dependência económica do transmitente. Com esta limitação acentuou-se o cariz social da transmissibilidade da posição de arrendatário, assegurando-se somente aos descendentes que, em princípio, terão dificuldade económica em aceder ao gozo de uma habitação segundo as regras actuais do mercado. Nos restantes casos, entendeu-se que a mera convivência com o arrendatário falecido no locado não era suficiente para se sacrificarem não só os interesses do senhorio no termo de um contrato sujeito a um regime severamente vinculístico, mas também o interesse público de ampliação do mercado de arrendamento»”[6].
Aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL nº 321-B/90, de 15/10, e em que o primitivo arrendatário tenha falecido na vigência do NRAU, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27/5, aplica-se, pois, o regime de transmissão por morte do locatário previsto nas normas transitórias do art. 57º, desta Lei, não se vislumbrando que este preceito seja inconstitucional[7].
Na verdade, tal dualidade de regimes e de soluções pretendidas justifica-se e impõe-se pois, como vimos, o introduzido pelo art. 1106º, do CC, deve-se ao sistema da renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação[8], ao passo que o regime transitório do art. 57º, do NRAU visou aperfeiçoar as regras de transmissão do arrendamento, no âmbito do cariz vinculístico da grande maioria dos contratos a que era aplicável, diminuindo, em algumas circunstâncias, a possibilidade de transmissão do arrendamento. Essa distinção não afronta qualquer princípio constitucional, nomeadamente os princípios do respeito e garantia da democraticidade económico-social ou da confiança (art. 2º, da CRP), igualdade (art. 13º, da CRP), proibição de retroatividade de leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias (art. 18º, da CRP) e do direito à habitação (art. 65º, da CRP)[9].
Vejamos as razões por que se considera não violado o princípio da igualdade, sequer o direito à habitação.
O princípio da igualdade engloba: “(i)tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes); (ii) tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objetivamente desiguais e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador; (iii) tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação; (iv) tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir (acrescentando-se, assim, uma componente ativa ao princípio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei); (v) consideração do princípio não como uma “ilha”, antes como princípio a situar no âmbito dos padrões materiais da Constituição”[10].
Ora, não sendo as situações consagradas no mencionado art. 57º, do NRAU, iguais, sequer similares, mas, ao invés, diferentes da que constitui objeto do recurso e que concretamente estamos a analisar, é exigível e impõe-se, para ser observado o princípio da igualdade, um tratamento normativo desigual, distinto, não se verificando, dado caber aos referidos descendentes, excluídos, diligenciar, ativamente, pela satisfação das suas necessidades, uma discriminação injusta e arbitrária e, consequentemente, a violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da Constituição.
Na verdade, é aqui de afirmar a “máxima de que o princípio da igualdade postula o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais”[11] e o cônjuge ou o membro da união de facto que com o falecido arrendatário resida no locado, de que o apelante fala nas conclusões das suas alegações, não podem ser equiparados, em termos de dependência e vulnerabilidade a um filho com mais de 26 anos, capaz de prover pela satisfação das suas necessidades, pelo que, ao desigualá-los, como desigualou, não consagrando a situação destes descendentes no referido preceito, em nenhuma inconstitucionalidade incorreu.
Sem que se possa atribuir maior relevância aos ditos “laços de sangue” do que à relação conjugal ou de união de facto, valorizando a família e vendo-se cada um dos seus membros numa posição de igualdade, entende-se que bem conclui o apelante ao referir que “descendentes carecem de um tratamento igualitário ao cônjuge e ao unido de facto, do primitivo arrendatário”. Porém, tal não se verifica e prolonga do mesmo modo por toda a vida daqueles. A referida igualdade deixa de existir, para os efeitos em análise neste recurso, no momento, reconhecido, em que os descendentes adquirem, naturalmente, capacidade para organizarem as suas vidas, para constituírem a sua família e proverem à satisfação das suas necessidades, pessoais e familiares.
Assim, respeitado se mostra o princípio da igualdade ao dar tratamento igualitário ao que é igual - diversas situações consagradas na norma em análise do NRAU - e tratamento desigual ao que é divergente, bem andando o legislador ordinário ao nela não incluir a situação dos referidos descendentes maiores.
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E, também, não ocorre a violação do direito à habitação (consagrado no art. 65.º, da Constituição), pois que tal direito reveste, acima de tudo, natureza programática, dirigida ao Estado, e está contemplada no art. 57.º, n.º 1, do NRAU, a parte essencial do direito à habitação, ao estabelecer um conjunto, eleito, de beneficiários na transmissão por morte do arrendamento, nomeadamente nos contratos mais antigos e com um regime fortemente vinculístico, encontra-se salvaguardada, adequadamente, a essência do direito à habitação e em relação às pessoas mais vulneráveis, situações em que mais se justifica uma proteção especial. Por isso, ao legislar nos termos conhecidos, o Estado, no âmbito da sua função soberana enquanto legislador, assegurou, em termos razoáveis, o direito à habitação[12].
E, como decidiu a Relação de Lisboa, seguindo a orientação que vem sendo traçada pelo Tribunal Constitucional, o “art.1º, que baseia a República Portuguesa, além do mais, na dignidade da pessoa humana, tem, no caso, que ser conjugado com o direito à habitação a que alude o citado art.65º. Na verdade, a dignidade da pessoa humana é que legitima e justifica, designadamente, a garantia de condições dignas de existência, que, por seu turno, é indissociável do direito à habitação. É certo que este implica determinadas obrigações positivas do Estado (nºs 2, 3 e 4, do citado art.65º), embora não confira um direito imediato a uma prestação efectiva dos poderes públicos, mediante a disponibilização de uma habitação. Todavia, o incumprimento por parte do Estado e demais entidades públicas das referidas obrigações constitucionais constitui uma omissão constitucional. É igualmente certo que o direito à habitação também pode ser realizado por via do direito de arrendamento, cumprindo ao Estado, além do mais, fomentar a oferta de casas para arrendar. No entanto, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol.I, 4ª ed., págs.836 e 837, « … o direito à habitação não preclude o funcionamento de um mercado de arrendamento, através da possibilidade de despejos em casos justificados e da liberdade de fixação de rendas. O direito à habitação justifica seguramente limitações à propriedade no caso de prédios arrendados e não só (…). Mas essas limitações devem obedecer a um princípio de equidade e de proporcionalidade». E acrescentam aqueles autores, in ob. e loc. cits., «Os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais colectividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios».
Assim, a Constituição “reconhece a todos, no artigo 65º, o direito à habitação e, em conjugação com o artigo 1º, o direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família” e, “enquanto direito fundamental de natureza social, tal direito “pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo” (Ac. nº829/96 – cfr. ainda Acs. nºs 131/92, 508/99 e 29/00)” [13]. Tal artigo, é configurado, fundamentalmente, como um direito à proteção do Estado. O nº2 impõe ao Estado um conjunto de incumbências em vista a assegurar o direito de todos à habitação e os nºs 3 e 4 têm igualmente como destinatários os poderes públicos. Tal direito não se move, à partida, no círculo das relações entre particulares. Destinatários do direito à habitação são o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais e não, em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios (Ac. nº. 130/92 – cfr. Ainda Ac. nº 590/04)[14], sendo que, contudo, a propriedade tem uma “função social” a ponderar sempre que há conflito de interesses entre o inquilino e o senhorio, embora se não revele legítimo, adequado, proporcional nem constitucional “obrigar os proprietários a sub-rogarem-se ao Estado no cumprimento das incumbências infungíveis que, por expresso imperativo constitucional, sobre ele recaem. Por outro lado, a realização do direito à habitação através da imposição de limitações intoleráveis e desproporcionadas ao direito de propriedade, não só não é constitucionalmente exigível (Ac. nº 633/95 – cfr. ainda Acs. nºs 101/92, 130/92 e 570/01), como, em rigor, se apresenta como constitucionalmente interdita”[15].
Deste modo, atentas as razões do regime introduzido pelo art.57º, do NRAU, e as situações a que o mesmo é aplicável, entendemos que da interpretação e aplicação efetuadas pela decisão recorrida nenhuma violação ao direito à habitação, constitucionalmente consagrado, resulta ocorrer.
Não se verificando a invocada inconstitucionalidade, como vimos, pois que há específicas razões para, no domínio do arrendamento, acautelar determinadas situações de presumida maior vulnerabilidade, afastando a caducidade do contrato de locação, por morte do locatário, prevista na al. d), do art. 1051º, do CC, nuns casos e não o fazer noutros, cumpre referir que o acautelar da situação da união de facto se justifica e deve ser aferido perante o regime da Lei nº 7/2001, de 11 de maio, diploma que protege a união de facto quando a convivência se estenda por mais de dois anos[16]. E essa situação nada tem em comum com casos de filhos maiores de 26 anos e capazes de diligenciar por prover pelo seu próprio sustento e pela satisfação das suas necessidades, inclusive de habitação, não devendo ser sacrificados interesses superiores, do senhorio e públicos, ante a mera conveniência particular.
As situações, supra referidas, previstas no art. 57º, do RAU, nenhuma similitude têm com o caso dos autos, em nada sendo violado o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado, pois que situações distintas merecem soluções legais diversas.
E a restrição ou compressão do direito à habitação é admitida e aceite pela Constituição, limitando-se o mesmo ao estritamente necessário à salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (o direito de propriedade privada e de livre iniciativa económica, direitos expressamente previstos nos artºs 61º e 62º da CRP).
Não se nos afigura, assim, desproporcional a solução consagrada no regime legal em questão, em que direitos dos inquilinos apenas foram restringidos na medida do necessário a assegurar o direito dos senhorios e o interesse público.
Destarte, não estando o Réu nas condições previstas no nº1, do art. 57º, do NRAU, não se lhe transmite o arrendamento para habitação e não ocorrendo transmissão do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, a morte deste constitui causa legal de caducidade automática desse contrato e da consequente obrigação de restituição do locado ao senhorio após o decurso de seis meses sobre a data da morte do locatário[17].
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Porto, 7 de outubro de 2019
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Maria Raquel Guimarães, Revista eletrónica de direito, outubro de 2017, nº3, file:///C:/Users/MJ01518/Downloads/Artigo%20Raquel%20GuimaraÞes%20(2).pdf
[2] Aí se descreve a evolução verificada: “Primitivamente, o Código Civil previa que o arrendamento não caducava por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobrevivesse cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto, ou deixasse parentes ou afins na linha reta que com ele vivessem, pelo menos, há um ano (art. 1111.º, n.º 1).
Depois, essa norma foi alterada pelo DL n.º 293/77, de 20 de julho, suprimindo o termo primitivo e, desse modo, ampliando os casos de transmissão do arrendamento. (…)
Nova modificação foi introduzida pelo DL n.º 328/81, de 4 de dezembro, no sentido de que “o arrendamento não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto ou deixar parentes ou afins, na linha reta, com menos de um ano ou que com ele vivessem, pelo menos, há um ano”.
Desta feita, a lei voltou a introduzir a expressão primitivo, reduzindo novamente as situações de transmissão do arrendamento, e, por outro lado, alargou os beneficiários, nomeadamente a parentes ou afins, na linha reta, com menos de um ano.
Não obstante nova alteração ao art. 1111.º do CC pelo art. 40.º da Lei n.º 46/85, de 20 de setembro, a norma manteve-se na sua essência.
Mais tarde, com o DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), foi revogado o art. 1111.º do CC, estipulando o art. 85.º do RAU:
“1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Afim na linha reta, nas condições referidas nas alíneas b) e c);
e) Pessoa que com ele viva há mais de cinco anos em condições análogas às dos cônjuges, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens.
2 – (…)”.
A principal inovação foi alargar a transmissão do arrendamento às uniões de facto.
Por sua vez, com a Lei n.º 6/2001, de 11 de maio, aditou-se ao n.º 1 do art. 85.º do RAU uma alínea f), com a seguinte redação:
“f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos”.
Com a aprovação do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, a matéria regressou, de novo, ao Código Civil, nomeadamente ao art. 1106.º, nos seguintes termos:
“1. O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado ou pessoa que com o arrendatário vivesse no locado em união de facto e há mais de um ano.
b) Pessoa que com ele residisse em economia comum há mais de um ano.”
Todavia, no âmbito do NRAU, foi ainda fixado um regime transitório para os contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, nomeadamente no art. 57.º:
“1 – O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto, com residência no locado;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado maior de idade, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.”
Finalmente, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, alterou o art. 57.º, n.º 1, do NRAU, nomeadamente nos seguintes termos:
“c) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
d) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano.”
[3] Edgar Valles, Arrendamento Urbano Constituição e Extinção, Almedina, pág 107 e seg
[4] V. Luís Menezes Leitão, Arrendamento urbano, 9ª Edição, Almedina, pág. 122182 e seg
[5] Ana Prata (Coord.) Código Civil Anotado, 2017, Almedina, pág. 1367
[6] Ac. da RL de 15/12/2011, processo 129/10.7TBFUN.L1 (Roque Nogueira), in dgsi.net
[7] Cfr. Acs da RP de 29/5/2008, Processo 0832054, da RP de 27/5/2010, Processo 314/09.4TBESP.P1, da RL de 18/5/2010, proc. 319/09.5TBFUN.L1-7 e da RG de 4/5/2010, Processo 4262/07.4TBVCT.G1, in dgsi.net, citados in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição Actualizada, Abril/2018, Ediforum, pág 1037, analisando-se neste último que “O arrendamento não se transmitiu à Ré, por esta apenas haver alegado e provado ter nascido em 3/2/1974, ser filha do primitivo inquilino e ter vivido com ele, no locado, em economia comum, desde o seu nascimento, ininterruptamente, faltando-lhe alegar e provar que era portadora de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%”.
V., ainda, no sentido da não inconstitucionalidade desta restrição, Ac. da RL de 15/3/2011(António Valente) in CJ 36 (2011), 2, págs 92-94.
[8] “A transmissão por morte do arrendatário deixou de ser prejudicial ao senhorio, dado que não afeta a duração normal do contrato, atento o abandono legal do vinculismo arrendatício” Luís Menezes Leitão, Arrendamento urbano, 9ª Edição, pág. 122
[9] Ac. do STJ de 4/6/2013, Processo 653/07, Sumários 2013, p. 407, citado in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição Actualizada, Abril/2018, Ediforum, pág 1037,
[10] Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, volume I, Universidade Católica Editora, pág. 166 e seg
[11] Ibidem, pág. 167
[12] Acs da RL de 12 de novembro de 2015, processo n.º 894/13.0TVLSB.L1-6, e de 09-12-2015 processo 396/14.7TVLSB-A.L1-2 (OLINDO GERALDES), onde se considerou que “O regime transitório, fixado no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do Regime do Arrendamento Urbano, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art. 1106.º do Código Civil” in dgsi.net.
[13] Jorge Miranda, Rui Medeiros, idem, pág. 958 e seg
[14] Ibidem, pág 961
[15] Ibidem, pág 961
[16] Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição Actualizada, Abril/2018, Ediforum, pág. 1366
[17] V. supra referido Ac. da RG de 4/5/2010, Processo 4262/07.4TBVCT.G1