Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
262/16.1T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
REGRAS DE SEGURANÇA
VIOLAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
ATENDIBILIDADE DE FACTOS NÃO ALEGADOS
Nº do Documento: RP20180924262/16.1T8PNF.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º282, FLS.139-145)
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo a Ré seguradora se defendido, em acção emergente de acidente de trabalho, por excepção – alegando que o acidente ocorreu porque o sinistrado violou regras de segurança, concretamente, a obrigação do uso de luvas e da paralela na execução da tarefa e ainda a obrigação de dotar a lâmina de corte com protecção de modo a evitar o contacto das mãos com a mesma – contêm-se no âmbito da «defesa» da Ré, ter-se apurado que o que deveria ter sido utilizado, para evitar o acidente, seria a «extensão» e não a paralela ou as luvas, não obstante esses factos – o não uso de extensão e o nexo de causalidade entre esse facto e o acidente – não ter sido alegado.
II - Assim, deverá o Tribunal a quo atender a esses factos, ainda que não alegados, se os mesmos resultaram da discussão em audiência de discussão e julgamento, como o permite o artigo 72º do CPT.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº262/16.1T8PNF.P1
Relatora: M. Fernanda Soares – 1563
Adjuntos: Dr. Domingos José de Morais
Dra. Paula Leal de Carvalho

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
B… instaurou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo do Trabalho de Penafiel – Juiz 4 – contra C… – Companhia de Seguros S.A., acção emergente de acidente de trabalho, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe 1. A pensão anual, vitalícia e actualizável, no montante de €2.163,07, devida a partir de Janeiro de 2016; 2. €682,00 a título de despesas com a realização de sessões de fisioterapia; 3. €198,00 a título de despesas com deslocações; 4. Os juros de mora à taxa legal de 4% sobre todas as importâncias em que a Ré venha a ser condenada sendo sobre o montante da pensão anual contabilizados desde o dia seguinte ao da alta.
Alega o Autor ser trabalhador por conta própria, exercendo as funções de marceneiro num estabelecimento comercial que possui. No dia 21.09.2015, no exercício das suas funções, e quando efectuava o corte de uma peça de madeira, utilizando a máquina esquadrejadeira, foi atingido na mão direita pelo referido equipamento. Em consequência do evento o Autor sofreu lesões na mão direita, que descreve, e que lhe determinaram uma IPP de 41,1794%.
A Ré contestou alegando que o Autor, quando se encontrava a aparelhar uma peça de madeira, empurrando-a com as duas mãos, para que esta não saísse da esquadria, fê-lo sem usar qualquer paralela nem luvas de protecção, o que originou a aproximação da mão direita da lâmina de corte, a qual não possuía qualquer protecção. Defende, assim, que o acidente se ficou a dever a culpa do sinistrado por violação das regras de segurança que no caso se impunham, concluindo pela improcedência da acção.
O Autor veio responder dizendo que no caso era impossível a utilização de uma qualquer paralela ou luvas não sendo verdade que a máquina não estivesse equipada com protecção da lâmina, concluindo pela procedência dos pedidos que formulou na petição inicial.
O Centro Hospitalar C… E.P.E. veio, já após a participação do acidente apresentada pelo Autor em Tribunal, instaurar contra D… acção para cobrança de dívida pedindo a condenação da Ré seguradora a pagar-lhe a quantia de €1.320,86, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, a título de tratamentos hospitalares que prestou ao Autor em consequência do acidente de trabalho.
Tal acção foi apensa aos presentes autos de acidente de trabalho. A Ré veio contestar o pedido formulado pelo Centro Hospitalar, nos moldes que fez relativamente ao Autor, e ainda requerer a intervenção principal do Autor, a qual foi indeferida.
À acção para cobrança de dívida, foi fixado o valor de €1.320,86, dispensada a realização de audiência prévia, elaborado despacho saneador e identificado o objecto do litígio e os temas de prova.
Na acção emergente de acidente de trabalho foi proferido despacho saneador, consignados os factos já assentes e elaborada a base instrutória com desdobramento do processo para fixação da incapacidade. Procedeu-se a julgamento conjunto, com gravação da prova pessoal e foi proferida sentença, em 30.05.2018, que condenou a Ré seguradora a pagar 1. Ao Autor a) a pensão anual, vitalícia e actualizável no montante de €1.627,84, devida a partir de 15.01.2016, acrescida de juros de mora contados à taxa de 4% ao ano, devidos desde o vencimento de cada prestação até efectivo e integral pagamento; b) a quantia de €682,00, a título de despesas com a realização de sessões de fisioterapia e €198,00, a título de despesas de deslocações obrigatórias, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 23.05.2017 até integral pagamento; 2. Ao Centro Hospitalar C… E.P.E. a quantia de €1.320,86 acrescida de juros vencidos e vincendos contados à taxa legal supletiva desde o vencimento até efectivo e integral pagamento.
A Ré, inconformada, veio recorrer pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por acórdão que reconheça a violação, causal do sinistro, de regras de segurança pelo Autor, absolvendo a apelante do pedido. Conclui do seguinte modo:
1. Ao reconhecer que a causa do sinistro laboral dos autos tinha sido o uso pelo Autor de ambas as mãos para empurrar a peça em corte na aproximação à lâmina com o não uso por aquele de qualquer equipamento que o impedisse, máxime de uma extensão, mas depois não o considerar na sua decisão, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 72º, nº1 do CPT e no artigo 5º, nº2, alíneas a) e b) do CPC.
2. Por terem sido reconhecidos pelo Tribunal a quo como resultantes da instrução da causa, como provados e relevantes para a decisão daquela, sujeitos ao contraditório das partes e deverem sempre, pelo menos, ser considerados como instrumentais ou corolários de outros já antes alegados pela apelante, deverão, como tal, ser dados como provados os factos 1. Que o equipamento individual de protecção apto a evitar a produção do acidente seria a extensão; 2. Que o Autor não a usou; 3. Que esse não uso foi causal do dito acidente.
3. Daqueles factos, mas também já dos factos 4 a 7 provados nos autos, terá de se considerar que o acidente dos autos se ficou a dever à violação de regras de segurança pelo Autor, por violação do previsto nos artigos 15º, nº2, al. c) da Lei 102/09 de 10.09, 3º, 16º e 147º da Portaria nº53/71, de 03.11, 4º, al. b) do DL nº349/93 de 01.10.
4. O Tribunal a quo ao impor o ónus da prova do nexo causal entre os sobreditos factos ilícitos e violadores de regras de segurança e o acidente à apelante e antes não exigir que fosse o Autor a provar a inexistência desse nexo, face à prévia prova daqueles factos ilícitos, fez uma errada aplicação do artigo 342º do CC.
O Autor apresentou contra alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos:
5. A Ré não cumpriu com o ónus de impugnação da matéria de facto prevista no artigo 640º do CPC, limitando-se a referir, aliás, com base em factos que nem sequer foram articulados pelas partes, que determinados factos deveriam ser considerados provados, sem invocar nenhum meio probatório em abono da sua tese e não indica qualquer meio probatório que tenha sido incorrectamente valorado pelo Tribunal a quo.
6. Os factos que a apelante pretende incluir na decisão sobre a matéria de facto são factos essenciais e não instrumentais. Esses factos não foram alegados pelas partes e, consequentemente, não poderiam ser atendidos na sentença ao abrigo do artigo 5º do CPC.
7. Resulta da fundamentação da sentença a distinção entre aquilo que é uma paralela e o que é uma extensão. São utensílios diferentes e com finalidade de uso e protecção diferentes.
8. Mesmo que se admitisse a inclusão daquele facto – não utilização da extensão – nos factos provados, tal não permitiria que se considerasse como provado que o não uso da extensão fosse causal do acidente, porque tal não foi provado.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta junto desta Relação emitiu parecer no sentido a) da rejeição da requerida ampliação da matéria de facto por não cumprimento dos ónus previstos no artigo 640º do CPC; b) da improcedência do recurso quanto ao mérito.
Admitido o recurso cumpre decidir.
* * *
II
Matéria de facto dada como provada.
1. O Autor/sinistrado é um empresário em nome individual que, no exercício da sua actividade profissional, exerce as funções inerentes à categoria profissional de marceneiro, com estabelecimento comercial sito na Rua …, nº.., na freguesia de …, no concelho de Paços de Ferreira.
2. Como contrapartida pela actividade desenvolvida, o Autor auferia, no ano de 2015, de uma retribuição salarial de €536,00 x 14, num total anual de €7.504,00.
3. O Autor, na qualidade de trabalhador por conta própria, celebrou com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº …. ……… …, através do qual transferiu para esta a responsabilidade pela reparação de dano emergente de acidente de trabalho.
4. No dia 21.09.2015, pelas 8H20M, quando o Autor se encontrava a trabalhar, no exercício das suas funções de marceneiro, nas suas instalações sitas na Rua …, nº, na freguesia de …, e efectuava o corte de uma peça de madeira, com utilização de uma máquina esquadrejadeira, foi atingido na mão direita pelo referido equipamento.
5. Na altura do acidente estava a cortar com alinhamento, a aparelhar, uma peça de madeira com as dimensões 60x40x8cm na máquina esquadrejadeira modelo … com o nº…. do ano de 1988.
6. Para o efeito, empurrava aquela peça de madeira com as duas mãos, para esta não sair da esquadria.
7. O Autor não usava qualquer paralela nem luvas de protecção.
8. O Autor foi orientado para os serviços clínicos da Ré, no Hospital E…, no Porto, no qual, no dia 23.11.2015, foi novamente submetido a uma intervenção cirúrgica à mão direita.
9. Desde essa data, passou a ser assistido na consulta externa de especialidade de ortopedia, nos serviços clínicos da Ré.
10. No dia 14.01.2016, os serviços da Ré atribuíram alta clínica ao Autor e, desde essa data, deixaram de lhe prestar qualquer assistência médica, inclusive, cessaram a prestação de sessões de fisioterapia que o Autor à data se encontrava a realizar.
11. No dia 23.05.2017 realizou-se tentativa de conciliação, com intervenção do Autor e da entidade seguradora, ora Ré.
12. O Autor nasceu em 02.04.1959.
13. Na data constante da factura discriminativa dos encargos da assistência prestada, a qual contém também o código do Grupo de Diagnóstico Homogéneo (GDH) aplicado, o Autor Centro Hospitalar prestou ao assistido, B…, os serviços e tratamentos constantes do processo clínico do doente e aí descriminados.
14. A referida assistência foi determinada por lesões apresentados pelo assistido, na sequência dos factos descritos em 4 e seguintes.
15. O assistido, em virtude desse acidente, recebeu tratamentos hospitalares no Centro Hospitalar Autor.
16. O custo total da assistência hospitalar, calculado nos termos legais, foi de €1.320,86.
17. O que lhe provocou traumatismo da mão direita e 5º dedo da mão direita, com esfacelo grave da mão, com secção dos flexores do 1º e 4º dedo, ferimento corto/contuso volar desde a raiz do polegar até à raiz de D3 e estende-se a D4; amputação de F3 e D5, com tenorrafias secundárias dos flexores do 3º e 4º e libertação de aderências dos tendões flexores.
18. Em consequência do atingimento pelo referido objecto contundente, o Autor sofreu lesões no membro superior direito, com cicatriz retráctil na face palmar da mão, a qual se estende desde o punho até ao 3º espaço interdigital, na base dos dedos, com 11cm de comprimento; ausência da última falange do 5º dedo; não faz a extensão completa da mão, pelas características da cicatriz; não faz oponencia do polegar aos restantes dedos, para além do indicador, fazendo pinça polegar-indicador pulpo-pulpar; ausência de mobilidade do 3º e 4º dedo; rigidez na flexão da articulação interfalangica proximal do 5º dedo; faz pinça esférica e em gancho, para além de pinça polegar indicador pulpo-pulpar.
19. Em consequência dos ferimentos que sofreu no acidente, o Autor foi transportado para os serviços de urgência do Centro Hospitalar C… E.P.E., em Penafiel, onde recebeu os primeiros tratamentos médicos, e foi submetido a intervenção cirúrgica à mão direita, tendo ficado internado neste hospital por um período de 3 dias.
20. O Autor passou a realizar, a expensas suas, as necessárias sessões de fisioterapia, na clínica F…, em Santo Tirso.
21. No período compreendido entre o dia 01.02.2016 e o dia 05.05.2016, o Autor realizou na sobredita clínica, em …, 31 sessões de fisioterapia, tendo despendido o valor de €682,00.
22. O Autor efectuou as seguintes deslocações: a) no dia 08.07.2016 ao Gabinete Médico Legal de Penafiel; b) no dia 23.05.2017 ao Tribunal para diligência de tentativa de conciliação; c) nos dias 1, 3, 5, 8, 10, 12, 15, 17, 19, 22, 24 e 29 do mês de Fevereiro de 2016; 3, 7, 11, 14, 17, 21, 24, 29 e 31 do mês de Março de 2016; 4, 7, 11, 14, 18, 21 e 27 do mês de Abril de 2016 e 2 e 5 do mês de Maio de 2016, num total de 30 deslocações, à Clínica F…, Lda., em Santo Tirso, para a realização de sessões de fisioterapia.
23. Nas idas à clínica F… o Autor deslocava-se da sua habitação – sita em …, Paços de Ferreira, realizando, em cada deslocação, 28 Km, pelo que se requer o pagamento da quantia de € 168,00, correspondendo esse valor ao cálculo de 30 deslocações x 28 Km x € 0,20.
24. No que se refere às deslocações ao gabinete Médico-Legal de Penafiel, a 08.07.2016, e ao Tribunal para diligência de tentativa de conciliação, a 23.05.2017, o Autor reclama o pagamento da quantia de €30,00.
25. As lesões decorrentes do acidente determinaram, um período de ITA de 22.09.2015 a 14.01.2016, num total de 115 dias.
26. O sinistrado encontra-se desde 14.01.2016 com alta clínica com uma IPP de 30,99%, já considerando a aplicação do factor 1.5 pela idade.
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III
Objecto do recurso.
1. Do aditamento de factos não alegados.
2. Da violação das regras de segurança – artigo 18º da Lei nº98/2009 de 04.09.
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IV
Do aditamento de factos não alegados.
Na sentença recorrida escreveu, em termos de aplicação do direito, o seguinte: (…) “no caso em apreço, ficou provado que o Autor não usava luvas de protecção nem paralela, e é igualmente certo que o Autor estava legalmente obrigado a fazer uso de tais equipamentos. Contudo, não ficou demonstrada a existência de nexo causal entre a violação dessas regras de segurança e a produção do acidente, o que – como já atrás dissemos – não se presume. O que vale por dizer que, não ficou provado que, no caso de o Autor usar luvas e paralela, o acidente não se produziria, ou seja, não se provou que, caso o Autor usasse luvas e utilizasse a paralela, a mão direita do sinistrado não seria atingida pelo disco de corte. O que resultou da audiência de julgamento foi antes que o equipamento individual de protecção apto a evitar a produção do acidente seria a extensão. Contudo, a não utilização de extensão e o nexo causal entre a violação dessa regra de segurança e a verificação do acidente dos autos constituem factos essenciais que não foram alegados por qualquer das partes. O Tribunal não pode suprir tal ónus de alegação, uma vez que apenas poderia considerar factos instrumentais não invocados pelas partes que resultem da instrução da causa, o que manifestamente não é o caso” (…).
A apelante defende: Ao reconhecer que a causa do sinistro laboral dos autos tinha sido o uso pelo Autor de ambas as mãos para empurrar a peça em corte na aproximação à lâmina com o não uso por aquele de qualquer equipamento que o impedisse, máxime de uma extensão, mas depois não o considerar na sua decisão, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 72º, nº1 do CPT e no artigo 5º, nº2, alíneas a) e b) do CPC. Por terem sido reconhecidos pelo Tribunal a quo como resultantes da instrução da causa, como provados e relevantes para a decisão daquela, sujeitos ao contraditório das partes e deverem sempre, pelo menos, ser considerados como instrumentais ou corolários de outros já antes alegados pela apelante, deverão, como tal, ser dados como provados os factos 1. Que o equipamento individual de protecção apto a evitar a produção do acidente seria a extensão; 2. Que o Autor não a usou; 3. Que esse não uso foi causal do dito acidente. Vejamos então.
Segundo o disposto no artigo 5º, nº2 do CPC “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”.
Jorge Augusto Pais de Amaral dá-nos a noção de factos complementares: “Trata-se de factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados pelas partes. Estes factos resultaram da instrução e discussão da causa” – Direito Processual Civil, 9ª edição, página 291.
Nos termos do artigo 72º do CPT “ 1. Se no decurso da produção da prova surgirem factos que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve ampliar a base instrutória ou, não a havendo, tomá-los em consideração na decisão da matéria de facto, desde que sobre eles tenha incidido discussão. 2. Se for ampliada a base instrutória nos termos do número anterior, podem as partes indicar as respectivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias” (…).
Os factos não alegados mas relevantes para a decisão da causa são aqueles que, apesar de não alegados – porque a parte não cumpriu integralmente o ónus de alegação relativamente a todos os factos integrantes do pedido, da reconvenção ou da excepção – foram objecto de discussão e mostram-se essenciais para completar a pretensão formulada pelas partes.
Abílio Neto refere, a propósito do artigo 72º do CPT, o seguinte: “Não há dúvida que, se no decurso da produção da prova, surgirem factos instrumentais, ou factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam meros complemento ou concretização de outros que tenham sido oportunamente alegados pelas partes, o juiz deve ampliar a base instrutória, com observância do disposto no nº2 deste artigo 72º, ou, não havendo base instrutória, tomá-los em consideração na decisão da matéria de facto, desde que sobre tais factos tenha incidido discussão” (…) – CPT anotado 5ª edição, página 177.
De igual modo, Joana Vasconcelos sustenta que “o regime especial traçado no artigo 72º do CPT, expressão «de um amplo poder inquisitório, sempre acompanhado pelo princípio do contraditório», que ora impõe ao juiz um dever de aquisição de matéria factual», relativo a factos porventura não articulados (nº1), ora lhe permite, já findos os debates, a ampliação da matéria de facto, com recurso a factos articulados (nº4), sempre com base na prova produzida, não resulta afectado pelo artigo 5º do CPC. Este, com efeito, se alarga face ao direito anterior o elenco de factos não alegados pelas partes que podem ser considerados pelo juiz aos que deles sejam instrumentais, complementares ou concretizadores, fica, assim, aquém da norma adjectiva laboral, pelo que não tem a virtualidade de se lhe substituir” – Direito Processual do Trabalho, página 89. Alberto Leite Ferreira defendia, na vigência do CPT de 1981, que “o que está subjacente aos princípios consagrados pelo preceito é o carácter público dos interesses que a lei adjectiva laboral procura acautelar com vista a uma melhor realização da justiça e da harmonia sociais” – CPT anotado, 4ª edição, página 333.
Ora, do exposto decorre que o CPT contém norma específica para regular a atendibilidade de factos não alegados mas discutidos em audiência de discussão e julgamento.
Assim, e ao se confrontar com tal situação, o Juiz deve aplicar o artigo 72º do CPT e não o determinado no artigo 5º do CPC – artigo 1º, nº1 do CPT – já que não estamos perante caso omisso.
Deste modo, ao caso não é aplicável o determinado no artigo 5º, nº2, al. b) do CPC.
Posto isto, podemos avançar.
A factualidade que a apelante pretende ver aditada [é ela: o equipamento individual de protecção apto a evitar a produção do acidente seria a extensão; o Autor não a usou; esse não uso foi causal do dito acidente] é matéria que não foi alegada mas decorreu da discussão da causa. É o que resulta do teor da própria sentença recorrida, conforme acima transcrita.
A Ré veio na contestação defender-se por excepção ao alegar que o acidente ocorreu porque o Autor violou regras de segurança que no caso se impunham, concretamente, a obrigação do uso de luvas e da paralela na execução da tarefa e ainda a obrigação de dotar a lâmina de corte com protecção de modo a evitar o contacto das mãos com a mesma.
Ora, e salvo o devido respeito, afigura-se-nos que se contém no âmbito da «defesa» da Ré, ter-se apurado que o que deveria ter sido utilizado seria a «extensão» e não a paralela ou as luvas.
Na verdade, as regras de segurança estabelecidas no artigo 16º, nº1 do DL nº50/2005 de 25.02 e ainda no artigo 40º da Portaria nº53/71 de 03.02, alterado pela Portaria nº702/80 de 22.09 – aplicáveis ao caso – não se referem concretamente a determinados meios de protecção mas antes ao risco a evitar, o risco de corte [O DL nº50/2005 de 25.02 veio transpor para a ordem jurídica interna a Directiva nº89/655/CEE, do Conselho, de 30.11, alterada pela Directiva nº95/63/CE, do Conselho, de 05.12, e pela Directiva nº2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27.06, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho – artigo 1º do referido diploma legal. Sob a epígrafe “Riscos de contacto mecânico”, determina o artigo 16º, nº1, do DL nº50/2005: “Os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas”. Sob a epígrafe “Protecção e segurança das máquinas”, o artigo 40º do Regulamento Geral de Segurança e Higiene do Trabalho nos Estabelecimentos Industriais, aprovado pela Portaria nº53/71 de 03.02 e alterado pela Portaria nº702/80 de 22.09, determina o seguinte: “1- Os elementos móveis de motores e órgãos de transmissão, bem como todas as partes perigosas das máquinas que accionem, devem estar convenientemente protegidos por dispositivos de segurança, a menos que a sua construção e localização sejam de molde a impedir o seu contacto com pessoas ou objectos. 2- As máquinas antigas, construídas e instaladas sem dispositivos de segurança eficientes, devem ser modificadas ou protegidas sempre que o risco existente o justifique”. O artigo 56º-A, nº1, do mesmo diploma refere, sob a epígrafe “Disposições específicas” “As máquinas de trabalhar madeira ou produtos similares devem ter a ferramenta de corte protegida de modo a impedir que as mãos do trabalhador contactem com ela”].
Ora, a Ré seguradora veio dizer que a máquina onde o Autor trabalhava oferecia risco de corte e que não foram implementadas as condições necessárias a evitar esse mesmo risco aquando da tarefa que o sinistrado realizava. E na verdade, apurou-se, segundo o que consta da sentença, que esse risco existia e que a conduta a evitá-lo seria o uso de «extensão». Tal circunstancialismo contém-se dentro da defesa apresentada pela Ré e como tal deveria ser matéria a atender pelo Tribunal a quo cumprido que fosse o contraditório, já que o artigo 72º do CPT assim o permite.
Em suma: os factos não alegados, e indicados pela apelante, e cuja ampliação requereu, contêm-se dentro da excepção que deduziu, a saber, a execução de tarefa por parte do Autor sem observância das medidas necessárias a evitar o risco de contacto das mãos com a lâmina de corte.
Mas poderá este Tribunal proceder à requerida ampliação da matéria de facto nos termos requeridos pela apelante?
Temos defendido que o poder/dever previsto no artigo 72º do CPT apenas compete ao Tribunal de 1ª instância, a determinar a improcedência da pretensão da apelante.
Contudo, e a bem da boa administração da justiça, não podemos ignorar o que a Mmª. Juiz a quo deixou consignado na sentença recorrida: “O que resultou da audiência de julgamento foi antes que o equipamento individual de protecção apto a evitar a produção do acidente seria a extensão”.
Tal significa, posto que foi elaborada a base instrutória, que a Mmª. Juiz a quo, ponderando todas as soluções plausíveis da questão de direito, deveria ter formulado novos quesitos, contendo a matéria de facto não alegada mas objecto de discussão, dando observância ao determinado no nº2 do artigo 72º do CPT, o que não aconteceu.
E ressalvando sempre melhor entendimento, afigura-se-nos que seria ainda possível que a Mmª. Juiz a quo, confrontada com a realidade dos factos discutidos em audiência – nos termos que deixou exposto na sentença – respondesse ao quesito 4 de forma explicativa aí fazendo incluir qual a «ferramenta» adequada a evitar o acidente [neste quesito pergunta-se: O uso de luvas, paralela e a protecção da lâmina teriam impedido o Autor de aproximar a mão da lâmina de corte da máquina, evitando o acidente?], sem que com tal resposta extravasasse o âmbito do quesito ou, como já referido, o âmbito da defesa da Ré.
Deste modo, impõe-se a devolução dos autos à 1ª instância, para a formulação dos quesitos adicionais e observância do determinado no nº2 do artigo 72º do CPT, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento da segunda questão colocada pela apelante.
Cumpre ainda referir o seguinte.
A Mmª. Juiz a quo deu como não provado que “ i) A lâmina da esquadrejadeira não tinha qualquer protecção. ii) O uso de luvas, paralela e a protecção da lâmina teriam impedido o Autor de aproximar a mão da lâmina de corte da máquina, evitando o acidente”, tendo deixado consignado, na fundamentação da matéria de facto o seguinte: “as declarações isentas, coerentes e credíveis da testemunha G… levaram o Tribunal a dar como não provada a matéria descrita em i) e ii) dos factos não provados. Na verdade, apesar de ser inequívoco que o sinistrado não utilizava estes equipamentos de protecção, também resultou demonstrado – desde logo por força das declarações desta testemunha e de regras de experiência comum – que o único equipamento de protecção que teria evitado o acidente era uma extensão – utensílio que deveria ser usado na parte final do corte da peça de madeira e que visaria impedir o contacto da mão direita com o disco de corte”.
Ora, se era necessário o uso da referida extensão, tendo em vista evitar o contacto da mão direita com o disco de corte, então, este não estava protegido ou estava indevidamente protegido. E se assim era, então não se poderia dar como não provado que a lâmina não tinha qualquer protecção.
Ou seja, afigura-se-nos existir contradição entre o que se considerou não provado [acima referido sob a al. i)] e o que consta a tal respeito da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a justificar, oficiosamente, o uso da faculdade prevista no artigo 662º, nº2, al. c) do CPC.
A referida contradição torna-se evidente tendo em conta o teor do “relatório de inquérito do acidente” elaborado pela testemunha G…, e junto aos autos. Neste relatório é referido que “a máquina tem a zona de corte completamente desprotegida e obriga a que seja o trabalhador a movimentar a madeira junto à lâmina. O mais pequeno erro ou distracção leva a que os dedos e as mãos do operador sejam atingidos”.
Assim sendo, impõe-se que a repetição do julgamento para ampliação da matéria de facto, inclua, igualmente, a resposta ao quesito 3 [a lâmina não tinha qualquer protecção?], devendo a Mmª. Juiz a quo explicitar se à data do acidente a lâmina de corte tinha ou não protecção e no caso de a ter se a mesma impedia o risco de corte da mão direita durante a operação que o sinistrado efectuava.
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Termos em que, e ainda que por fundamentos não totalmente coincidentes, se julga a apelação procedente, se revoga a sentença recorrida e se ordena que a Mmª. Juiz a quo proceda à ampliação da matéria de facto, observando o disposto no artigo 72º do CPT, com repetição do julgamento nesta parte, repetição que inclui também o quesito 3, e após profira decisão em conformidade.
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Custas a final a cargo da parte vencida.
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Porto, 24.09.2018
Fernanda Soares
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho