Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0546855
Nº Convencional: JTRP00038998
Relator: DIAS CABRAL.
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
Nº do Documento: RP200603290546855
Data do Acordão: 03/29/2006
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: LIVRO 221 - FLS. 58.
Área Temática: .
Sumário: A «Dívida contraída», referida no artº 220, nº 1, alínea c), do CP95, corresponde ao preço do bilhete em singelo, isto é, sem acréscimos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto.

O Mº. Pº. junto do Tribunal Judicial de Valongo interpôs recurso do despacho que, nos termos do artº 311º, nºs 2, al. a) e 3 do CPP, rejeitou a acusação por si deduzida contra B….., a quem imputava a prática de um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. no artº 220º, nº 1, al. c) do CP, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:
I – Nos presentes autos, o MMº Juiz não designou dia para julgamento por considerar que na acusação pública não se alegou o elemento subjectivo específico e não se ter verificado a condição objectiva de punibilidade do crime de burla p.p. pelo artº 220º, nº 1, al. c).
II – O MºPº não concorda com o MMº Juiz, pois verifica-se da leitura dessa acusação que todos os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado ao arguido aí estão alegados.
III – Quanto à falta da condição objectiva de punibilidade, o MºPº também não concorda com o MMº Juiz, uma vez que contrariamente ao defendido no despacho de não recebimento da acusação, a dívida não corresponde ao bilhete que em condições normais seria pago, mas à recusa do pagamento do bilhete que naquelas condições excepcionais é emitido no valor de 50 Euros, que efectivamente o arguido não pagou.
IV – Pelo que, ao não designar dia para julgamento, violou o MMº Juiz o disposto no artº 220º, nº 1, al. c) do C.P. e artº 313º do C.P.P..
V – Devendo tal despacho ser substituído por outro, que submeta o arguido a julgamento.
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Respondeu o arguido defendendo o não provimento do recurso.

Nesta Relação a Exmª Procuradora Geral Adjunta limitou-se a apor “visto”.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Em face das conclusões da motivação, que delimitam o âmbito do recurso, a única questão a decidir é a de saber se os factos constantes da acusação integram o crime de burla p. e p. no artº. 220º, nº 1, al. c) do CP.
A acusação é a seguinte:
«O Magistrado do Ministério Público, nesta comarca, em processo comum e perante Tribunal Singular deduz acusação contra B….… porquanto:
No dia 12 de Dezembro de 2003, cerca das 10h e 10m, o arguido fazia-se transportar no comboio nº 15711 pertencente aos Caminhos de Ferro Portugueses, E.P., quando ao quilómetro 0,2, da linha do Minho, área desta comarca de Valongo foi abordado por agente de fiscalização, vulgo revisor de bilhetes, que constatou que o arguido não era possuidor de qualquer título de transporte válido.
Consequentemente foi emitido ao arguido um título de 50 Euros, correspondente ao bilhete que é emitido nestas circunstâncias de acordo com o artº 1º do DL-415-A/83, de 17/12, (correspondente ao acréscimo do serviço) que o arguido não pagou, no prazo de 8 dias subsequentes à data acima referida.
Sabia o arguido que não lhe era permitida a utilização de tal meio de transporte, sem possuir bilhete válido para o mesmo, e que ao recusar proceder a tal pagamento no prazo que lhe foi estipulado estava a lesar patrimonialmente a C.P. e a alcançar benefício que sabia não lhe ser devido.
Assim, agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente.
Bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida por lei.
E com a factualidade descrita, cometeu o arguido dois crimes de burla para obtenção de serviços, previstos e punidos pelo artº 220º, nº 1, al. c), do C.Penal.».

O Srº Juiz rejeitou a acusação por ter considerado que “os factos descritos não constituem crime”.
A jurisprudência sobre a questão em apreço está muito dividida.
O STJ, em Ac. de 21/10/87, BMJ 370, 312, considera que «A conduta do passageiro que se faz transportar de comboio sem estar munido do respectivo título de transporte válido pode integrar a previsão das normas contravencionais dos artºs. 39º e 43º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro aprovado pelo Dec.-Lei nº 39780, em caso de negligência, ou da norma criminal da al. c) do nº 1 do artº 316º (actual 220º) do CP, em caso de dolo».
Por sua vez o Ac. da Relação de Évora de 4/4/2000, in CJ XXV, t II, 283, considera que «o passageiro que utilize o transporte ferroviário sem possuir título de transporte válido, comete a contravenção prevista e punida pelos artigos 39º e 43º do Regulamento.... e não o crime de burla», mantendo-se em vigor o Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro.
Já o Ac. dessa mesma Relação, de 11/4/00, a fls. 287 da mesma CJ, entende que «A utilização de transporte público, sem título válido, sabendo e tendo consciência de que deve pagar um preço por essa utilização recusando-se, no entanto, a pagá-lo, constitui o crime de burla, previsto e punido na alínea c) do nº 1 do artigo 220º do CP).
Neste último Aresto considerou-se que o elemento integrador do crime de burla p. e p. no artº 220º do CP, “se negar a solver a dívida contraída”, era o não pagamento do preço do bilhete, sem qualquer acréscimo, nomeadamente uma sobretaxa por não se ser possuidor de bilhete.
Como já decidimos nos acs. proferidos nos processos nº 5630/03 e 6954/04 parece-nos ser de acolher esta última solução.
Em sentido contrário os Acs. desta Relação de 8/1/03, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo I/2003, p. 207 e de 29/6/05, no proc. nº 1016/05, em que foi relatora a ora 1ª Adjunta (Drª Isabel Pais Martins).
O crime de burla para a obtenção de alimentos, bebidas ou serviços está previsto no citado artº 220º, onde estão previstas várias situações que o integram. Não se compreendendo que, por ex., para o caso de não pagamento de uma refeição a dívida fosse apenas o preço do almoço e para a viagem de transporte público já fosse o preço de bilhete acrescido de acréscimos por falta desse bilhete.
Concordamos com o Ac. RC, de 3/11/03, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo V/2003, p. 39 e ss., onde se escreveu: «De avivar, desde já, que a dívida contraída é o preço do bilhete e, nunca, os acréscimos previstos, pois que estes são já a sanção para a contravenção.».
Até o próprio acto de autuação referido na “queixa” anda ligado à ideia de aplicação de multa. E do auto de notícia consta que o arguido foi informado de que não pagando os 50 euros ficava “sujeito ao pagamento do décuplo daquela importância, ou seja Euros 500,00, de acordo com o disposto no nº 8 do artº 14 da Tarifa Geral de Transportes, Parte I, aprovado pela Portaria nº 403/75…..».
A sanção para o não pagamento atempado dos 50 euros é o pagamento do décuplo dessa importância, ou seja a sanção para a contravenção.
Antes de entrar no comboio o arguido tomou a resolução de viajar “de borla” e sabendo que tinha que adquirir bilhete antes do embarque não o fez. Parece-nos ser esta a dívida contraída – o preço do bilhete adquirido na bilheteira ou na máquina. O “acréscimo” para 50 euros, o mínimo, para o preço do bilhete tem que ser considerado como uma penalização. Qual era a quantia em dívida no caso do arguido não ter sido encontrado a viajar sem bilhete e só passado um mês a CP tivesse conhecimento do facto e participasse criminalmente? O preço do bilhete na bilheteira (1, 2 euros?) ou o mínimo de 50 euros, montante que seria devido se tivesse intervindo a fiscalização? Parece evidente que a quantia em dívida seria o preço do bilhete na bilheteira.
O efectivo prejuízo da CP foi o preço do bilhete e foi esse o prejuízo que o arguido sabia e decidiu que ia causar.
Para que se verifique a consumação do crime torna-se necessário que se verifiquem os seguintes requisitos: intenção de não pagar; utilização de meio de transporte; saber que tal pressupõe o pagamento de um preço; recusa de solver a dívida contraída.
Não entendemos como é que os factos constantes da acusação integram dois crimes, como aí é referido. Será um pela falta de bilhete adquirido antes de entrar no comboio e o outro pela falta do pagamento da quantia fixada pelo agente da fiscalização? Parece ter sido esse o entendimento.
A intenção de não pagar, conforme se escreveu no Ac. da RE, de 11/4/00, acima citado, «…essa intenção deverá ocorrer antes da autuação, isto é, imediatamente antes da viagem ou no decorrer desta, e, assim, da acusação deveria constar que a arguida utilizou o transporte com o antecedente propósito de não pagar… a assim não se entender, estaríamos a confundir essa prévia intenção de não pagar com o dito quarto requisito, ou seja, “o negar-se a solver a dívida contraída”».
Da acusação constam, embora de forma pouco explicita, factos que integram o elemento subjectivo (dolo), já que se refere Sabia o arguido que não lhe era permitida a utilização de tal meio de transporte, sem possuir bilhete válido para o mesmo e Assim, agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente. Bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida por lei.
O que não constam são factos que integrem o requisito acima referido de recusa de solver a dívida contraída (preço do bilhete adquirido antes de embarcar).
Faltando um dos elementos constitutivos do crime de burla, p. e p. no artº 220º, nº 1, al. c) do CP, é evidente que outra solução não há que não seja a rejeição da acusação.

DECISÃO

Em conformidade, decidem os juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, manter a decisão recorrida.

Sem tributação.

Porto, 29 de Março de 2006
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Isabel Celeste Alves Pais Martins (com a seguinte declaração de voto: Daria provimento ao recurso, em sintese, pelas razões que constam do acórdão de 29.6.2005 que relatei no processo nº 1016/05, publicado na C. J. 2005, Tomo III, pp. 222-223.)
David Pinto Monteiro