Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
297/11.0TTVCT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: AÇÃO ESPECIAL EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
RESPOSTA À CONTESTAÇÃO
Nº do Documento: RP20140709297/11.0TTVCT.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Na acção especial emergente de acidente de trabalho, por força do que estatui o n.º 3 do artigo 129.º, do Código de Processo do Trabalho, quer o Réu se defenda por impugnação, quer se defenda por excepção, não é admitida resposta à contestação;
II - Apenas no caso de estar em causa a determinação da entidade responsável é admissível a resposta à contestação, mas somente quanto a essa questão;
III - Por isso, ainda que a Ré se tenha defendido na contestação por excepção, não podem dar-se como assentes os factos inerentes a essa matéria com fundamento que o Autor não respondeu à excepção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 297/11.0TTVCT.P1
Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) António José Ramos, (2) Eduardo Petersen Silva.

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B… (NIF ………, residente na Rua …, …, ….-… Viana do Castelo) intentou no Tribunal do Trabalho de Viana do Castelo a presente acção especial, emergente de acidente de trabalho, contra Companhia de Seguros C…, SA (NIPC ………, com sede na Rua …, n.º .., ….-… Lisboa), pedindo a condenação desta a pagar-lhe:
a) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 484,70, devida desde o dia 13-02-2012, dia seguinte ao da alta;
b) a quantia de € 6.333,54 a título de indemnização pelos dias (373) em que esteve com incapacidade temporária absoluta;
c) a quantia de € 1.331,12 a título de taxas moderadoras, fisioterapia, transportes/deslocações, consultas médicas, medicamentos, almoços e portagens;
d) juros de mora à taxa legal sobre as quantias em dívida, desde os respectivos vencimentos até integral pagamento.

Alegou para o efeito, em síntese, que exerce a actividade de carpinteiro mecânico, como trabalhador independente, e que no dia 5 de Fevereiro de 2011, quando se encontrava a acertar a máquina orladora, esta atingiu-o na mão direita, o que lhe provocou as sequelas constantes dos autos, que lhe determinaram uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 7,93%.
Acrescentou que por virtude do referido acidente, que deve ser qualificado como de trabalho, tem direito ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia desde o dia 13 de Fevereiro de 2012, dia seguinte ao da alta, assim como ao pagamento das despesas com transporte, tratamentos, etc., que teve de suportar, sendo a responsabilidade pelo pagamento da Ré seguradora, para quem havia transferido a responsabilidade infortunística.

O Centro Distrital de Viana do Castelo do Instituto de Segurança Social, IP, deduziu contra a Ré seguradora um pedido de reembolso no montante total de € 5.260,05, acrescido dos respectivos juros de mora, a título de subsídios de doença que pagou ao Autor.

Em contestação, a Ré seguradora, reconhecendo embora que para si se encontrava transferida a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho sofridos pelo Autor, sustenta que o acidente resultou exclusivamente de falta grave e indesculpável deste – uma vez que havia adulterado intencionalmente o sistema de segurança da máquina –, pelo que o mesmo deve ser descaracterizado.
Pugna, por consequência, pela improcedência da acção, bem como pela improcedência do pedido de reembolso formulado pelo Instituto de Segurança Social, IP.

Foi proferido despacho saneador stricto sensu, consignados os factos assentes e a base instrutória.
O Autor reclamou da selecção da matéria de facto, tendo para o efeito formulado o seguinte requerimento:
«B…, A e sinistrado nos autos à margem referenciados, tendo sido notificado do douto despacho saneador, vem ao abrigo do disposto no art.º 511º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, por remissão do art.º 1.º do Cód. Proc. Trabalho, reclamar contra a selecção da matéria de facto, nos seguintes termos:
1- O A., na sua petição inicial descreveu o acidente dos autos, concretamente nos artigos 2º a 5º.
2- Por sua vez, a Ré impugnou tais factos (além de outros), tendo apresentado uma versão diferente da forma como alegadamente ocorreu o acidente, nos artigos 2º a 17º da sua contestação.
3- Ou seja, trata-se de matéria controvertida e não de matéria assente,
4- pelo que, a matéria das alíneas D) (com excepção da parte em que se diz que no dia 5 de Fevereiro de 2011, pelas 16,30 horas, o A. encontrava-se a trabalhar numa máquina orladora), E), F), G), H), I) e J) do despacho saneador não deve considerar-se como assente, mas antes deve ser transposta para a Base Instrutória.
5- Deste modo, deve considerar-se como matéria assente, apenas as alíneas A), B) e C) do despacho saneador, devendo, contudo, dar-se como assente que no dia 5 de Fevereiro de 2011, pelas 16.30 horas ocorreu um acidente, quando o A. se encontrava a trabalhar numa máquina orladora e de que de tal acidente resultaram lesões na mão direita.
6- No que respeita à matéria das alíneas D) (com excepção da parte em que se diz que no dia 5 de Fevereiro de 2011, pelas 16,30 horas, o A. encontrava-se a trabalhar numa máquina orladora), E), F), G), H), I) e J) do despacho saneador deve tal matéria ser quesitada, por se tratar de matéria controvertida.
7- Acresce que, o A. considera relevante para a discussão da causa, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, a inclusão da matéria alegada nos artigos 5º a 8º e 12º a 21º da petição inicial,
8- o que se requer.
Deste modo, deve a presente reclamação ser julgada procedente e, em consequência, deve o douto despacho saneador proferido ser alterado nos termos supra expostos.
Pede deferimento.».

Sobre tal requerimento foi proferido o seguinte despacho:
«Reclamação apresentada pelo A.:
A R. seguradora, na sua contestação, defendeu-se por excepção, invocando uma actuação do sinistrado que consubstanciaria uma negligência grosseira; para tanto, descreve em pormenor o comportamento do A. naquela data.
Esta matéria, a qual, repete-se, é matéria de excepção, não foi impugnada pelo A.
Por outro lado, na sua petição inicial, o A. não forneceu uma descrição pormenorizada do sinistro que seja incompatível com a que é fornecida pela R. seguradora. Com efeito, limitou-se a dizer que o acidente ocorreu quando se encontrava a acertar a máquina orladora, tendo sido atingido na mão direita (factualidade esta que, aliás, resulta da matéria que se deu como assente).
Assim, aquela factualidade alegada pela R. seguradora não pode ser considerada como controvertida, mas antes assente por acordo das partes.
Por outro lado, a matéria dos artºs. 5 a 8 e 12 a 21 da petição inicial é apenas relevante para o competente apenso de fixação de incapacidade, ou seja, para ser apreciada em sede de junta médica e não em audiência de julgamento.
Nestes termos, e embora com respeito por opinião contrária, indefere-se a reclamação apresentada.
Notifique.».

Entretanto os autos prosseguiram os trâmites legais, tendo-se procedido ao desdobramento do processo para fixação da incapacidade, e houve lugar a julgamento, após o que, em 26-02-2014, foi proferida sentença, que julgou improcedentes os pedidos formulados pelo Autor e pelo Instituto de Segurança Social, deles absolvendo a Ré seguradora.

Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«1- Vem o presente recurso interposto do douto despacho de 25 de Junho de 2013 que indeferiu a reclamação apresentada pelo A., ora recorrente, contra a selecção da matéria de facto, bem como, contra a douta sentença proferida que julgou totalmente improcedentes os pedidos formulados pelo A.
2- Após o articulado da contestação, o Tribunal a quo deu como assente, além do mais, a matéria das alíneas D) a J) do despacho saneador.
3- Apresentada reclamação contra selecção da matéria de facto de facto pelo recorrente, em 4 de Abril de 2013, na qual requer que a referida matéria seja transposta para a base instrutória, veio o Mmo Juiz a quo indeferir a mesma, por douto despacho de 25 de Junho de 2013, com o fundamento de que a mesma é matéria de excepção, a qual não foi impugnada pelo A.
4- O sinistrado/recorrente apresentou a sua petição inicial, em 17 de Dezembro de 2012, nos termos do art.º 11º, n.º 1 do Código de Processo de Trabalho (CPT).
5- A Ré/recorrida, Companhia de Seguros, apresentou contestação nos termos do art.º 129º do CPT.
6- O A./recorrente descreveu o acidente dos autos nos artigos 2º a 5º da sua petição inicial.
7- A Ré Companhia de Seguros apresentou, na sua contestação, uma versão diferente do acidente, descrevendo o mesmo nos artigos 2º a 17º.
8- Pelo que, contrariamente, ao que resulta do douto despacho recorrido, não se trata de matéria de excepção, mas antes de matéria controvertida, razão pela qual, deveria a mesma ter sido quesitada e não dada como assente.
9- Nas acções emergentes de acidente de trabalho não existe articulado de resposta à contestação.
10-Decorre do art.º 131º do CPT, que “findos os articulados, o juiz profere, no prazo de 15 dias, despacho saneador destinado a…,
11- disposição legal esta que vem imediatamente a seguir aos artigos relativos ao articulado da contestação (artigos 129º e 130º do CPT).
12- É esse também o sentido da norma do art.º 129º do CPT, o qual refere expressamente em que situação concreta é possível apresentar resposta.
13- Conforme resulta do referido artigo, só é possível apresentar resposta quando está em discussão determinação da entidade responsável e apenas para responder àquela questão.
14-A lei quis determinar em que situação específica é possível o articulado de resposta, situação que não é o caso dos autos.
15-Ainda que se entendesse que a matéria em causa (a matéria das alíneas D) a J) do despacho saneador), consubstancia matéria de excepção, o que não se concebe, não era permitido ao A./recorrente responder, porquanto na situação em causa dos autos não é permitido apresentar articulado de resposta.
16- Tendo em conta que a matéria das alíneas D) (com excepção da parte em que se diz que no dia 5 de Fevereiro de 2011, pelas 16.30 horas, o A. encontrava-se a trabalhar numa máquina orladora), E), F), G), H, I) e J)do despacho saneador que o Tribunal a quo deu como assente, trata-se de matéria controvertida e não de matéria assente, terá a mesma de constar da base instrutória.
17-Ainda que assim não se entenda, ou seja, ainda que se entenda que se trata de matéria de excepção, ao A, ora recorrente não era possível responder a tal matéria, porquanto na situação em causa, isto é, nas acções emergentes de acidentes de trabalho não é possível apresentar articulado de resposta,
18- a não ser na situação específica prevista no art.º 129º, n.º 3 do CPT, o que não é o caso dos autos.
19-Deste modo, a referida matéria deveria ter sido quesitada e, por conseguinte, não devia constar dos factos assentes da douta sentença proferida.
20- O Tribunal a quo violou, por errada interpretação e aplicação, os artigos 511º, n.º 1 do CPC, actual 596º, n.º 1 do CPC e 129º, n.º 3 do CPT.
Ainda, quanto à douta sentença recorrida
21- Em todo o caso, ainda que se entenda que não deverá ocorrer alteração da matéria dada como provada, o que não se concebe, a verdade é que, contrariamente ao que resulta da douta sentença recorrida, não houve inobservância das regras de segurança por parte do A./recorrente.
22-Na douta decisão proferida, o Tribunal a quo não considerou todos os elementos constantes dos autos, concretamente o inquérito de acidente de trabalho da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), de fls. 25 a 60.
23- Com base nos factos dados como provados, nos pontos 4 a 9 da douta sentença, o Mmo Juiz a quo considerou que houve inobservância das regras de segurança no trabalho por parte do A., ora recorrente, a qual foi a causa única e exclusiva da produção do sinistro.
24-Atento o inquérito realizado pela ACT, não deveria o Tribunal a quo ter julgado a acção improcedente, porquanto a produção do sinistro não se deveu à inobservância das regras de segurança do trabalho.
25- Como resulta do inquérito da ACT, não houve falha humana, mas antes uma falha do equipamento,
26- sendo perfeitamente previsível e aceitável que, em caso de falha do equipamento, o sinistrado abrisse a cabine de insonorização, facto que implicaria a paragem automática/bloqueio do equipamento.
27- Conforme decorre do inquérito elaborado, o ora recorrente levantou a tampa de protecção da máquina com que trabalhava, sendo que, tal operação, contrariamente ao que deveria ter acontecido, não originou o bloqueio da mesma, o que foi causa determinante do acidente.
28-Não foi a inobservância das regras de segurança no trabalho que originou o acidente, mas antes uma falha do equipamento.
29-O Tribunal a quo não considerou todos os elementos constantes dos autos, concretamente o relatório da ACT, o que, a ser tido em conta imporia uma decisão diversa da que foi proferida.
30-Atento o resultado do inquérito efectuado pela ACT, a douta sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente.
31-Assim, o Tribunal a quo violou, por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 18º e 79º da LAT e o art.º 607º, n.º 4 do CPC.
TERMOS EM QUE
A) deve o douto despacho recorrido, de 25 de Junho de 2013, ser revogado e substituído por um outro que julgue a reclamação apresentada pelo A./recorrente contra a selecção da matéria de facto totalmente procedente, com as legais consequências;
B) em todo o caso, deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente procedentes os pedidos formulados pelo A./recorrente.».

A Ré/recorrida apresentou contra-alegações, a pugnar pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, a subir de imediato nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste tribunal em 09-05-2014, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, que não foi objecto de resposta, no qual se pronuncia pela procedência do recurso, tendo em conta que na selecção da matéria de facto o tribunal a quo deu como assentes factos que deviam ter sido levados à base instrutória e ser objecto de prova.

II. Objecto do recurso e factos
Sabido como é que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui não se colocam (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil, ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), no caso colocam-se à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
- saber se alguns dos factos dados como assentes no despacho saneador lato sensu deviam ser levados à base instrutória (questão inerente ao despacho de 25-06-2013 que decidiu a reclamação contra a selecção da matéria de facto);
- saber se a matéria de facto deve ser alterada tendo em conta a prova documental junta aos autos (relatório da ACT) e se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente (questão inerente ao mérito da causa).

III. Factos
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1 - O A. nasceu a 13/9/64.
2 - Exerce a actividade profissional de carpinteiro mecânico, como trabalhador independente.
3 - Nessa qualidade celebrou com a R. seguradora contrato de seguro, ramo de acidentes de trabalho, pela remuneração anual de €8.731,80.
4 - No dia 5 de Fevereiro de 2011, pelas 16,30 horas, encontrava-se a trabalhar numa máquina orladora – máquina rebordeadora automática monolateral, indicada para rebordear painéis de madeira e similares, a qual permite aplicar bordas em papel melamínico, PVC., folheado e material em rolos.
5 - Quando colocou a peça de madeira, o A. constatou que a fresa não estava a cortar a orla e estava a deixar resíduos, tendo ido tirar os resíduos com a mão, com a máquina e as fresas em funcionamento, introduzindo as mãos numa zona de corte.
6 - Aquela máquina originalmente pára automaticamente se a tampa/protecção da cabina for levantada.
7 - O A. havia colocado uma peça no interruptor de forma a “simular” que a tampa/protecção estava fechada, de forma à máquina continuar em movimento.
8 - Por isso, quando introduziu a sua mão direita para retirar os resíduos, a fresa movimentou-se, provocando-lhe lesões nessa mão.
9 - O A. era um trabalhador experimentado.
10 - O CD de Viana do Castelo da Segurança Social pagou ao A. a quantia de € 5.260,05, a título de subsídio de doença pelo período de 9/2/2011 a 8/2/2012.
11 - Em consequência do sinistro, o A. teve que se deslocar várias vezes ao Centro de Saúde …, tendo gasto € 60,75 em taxas moderadoras.
12 - E em consultas externas na ULSAM despendeu a quantia de € 24,80 em taxas moderadoras.
13 - E em exames complementares de diagnóstico gastou €242,60
14 - Teve que se submeter a 74 sessões de fisioterapia, tendo gasto € 384,80 em deslocações.
15 - Gastou €107,50 em 21 sessões de fisioterapia na “D…” e € 109,20 em deslocações para essas sessões.
16 - Numa consulta médica na cidade de Coimbra, gastou €95,00, mais €170,20 em transporte e portagens, bem como € 8,65 numa refeição.
17 - Em farmácia despendeu €74,87.
18 - Em taxas moderadoras, para análises clínicas e exames radiológicos, gastou a quantia de €42,35.
19 - Em deslocações ao GML e a este tribunal, gastou € 10,40.
20 - O A. ficou com uma IPP de 7,38%, tendo tido as seguintes incapacidades temporárias:
- ITA desde 5/2/2011 a 25/10/2011;
- ITP de 30% desde 26/10/2011 a 12/2/2012, data da alta.

Estes os factos dados como provados.
Estando em causa no recurso matéria de facto que, de acordo com o recorrente, foi no despacho saneador indevidamente levada à “matéria assente”, quando deveria ter sido levada à base instrutória, importa aqui consignar a mesma.
Assim, acrescenta-se um facto, sob o n.º 21, do seguinte teor:
«Da “matéria assente” no despacho saneador constam os seguintes factos:
D)
No dia 5 de Fevereiro de 2011, pelas 16,30 horas, encontrava-se a trabalhar numa máquina orladora – máquina rebordeadora automática monolateral, indicada para rebordear painéis de madeira e similares, a qual permite aplicar bordas em papel melamínico, PVC., folheado e material em rolos.
E)
Quando colocou a peça de madeira, o A. constatou que a freza não estava a cortar a orla e estava a deixar resíduos, tendo ido tirar os resíduos com a mão, com a máquina e as frezas em funcionamento.
F)
Introduzindo as mãos numa zona de corte.
G)
Aquela máquina originalmente pára automaticamente se a tampa/protecção da cabina for levantada.
H)
O A. havia colocado uma peça no interruptor de forma a “simular” que a tampa/protecção estava fechada, de forma à máquina continuar em movimento.
I)
Por isso, quando introduziu a sua mão direita para retirar os resíduos, a fresa movimentou-se, provocando-lhe lesões nessa mão.
J)
O A. era um trabalhador experimentado.».

IV. Fundamentação
Delimitadas supra, sob o n.º II, as questões essenciais decidendas, é o momento de analisar cada uma delas.

1. Da selecção da matéria de facto
Em 21-03-2013 foi proferido despacho saneador stricto sensu, no qual se afirmou, além do mais, não haver nulidades excepções ou questões prévias a conhecer, e consignou-se a matéria assente e a base instrutória.
Como resulta do relato supra está em causa uma acção emergente de acidente de trabalho, a qual segue uma forma de processo especial (artigo 48.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo do Trabalho).
A acção inicia-se com uma fase conciliatória, dirigida pelo Ministério Público e que tem por base a participação do acidente (artigo 99.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
Não havendo acordo na fase conciliatória do processo, inicia-se então a fase contenciosa, que tem por base a petição inicial, em que o sinistrado formula o pedido, expondo os respectivos fundamentos [artigo 117.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo do Trabalho].
Já se tiver havido apenas discordância com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho, a fase contenciosa inicia-se com um requerimento fundamentado ou acompanhado de quesitos, a apresentar pela parte que não aceita a incapacidade fixada, em que pede a realização de exame por junta médica [n.º 1, alínea b) e n.º 2 do artigo 117.º e artigo 138.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho].
No caso em apreciação, não tendo havido acordo na tentativa de conciliação não só sobre o grau de incapacidade do sinistrado, como também por a seguradora, aqui recorrida, entender que o acidente se encontrava(a) descaracterizado “por violação de normas de segurança/negligência grosseira por parte do sinistrado”, o Autor apresentou petição inicial em que formulou os pedidos e a causa de pedir para os mesmos.
No que ora importa, alegou, no essencial, exercer a actividade profissional de carpinteiro mecânico, como trabalhador independente, auferir a retribuição anual de 8.731,80, e no dia 05 de Fevereiro de 2011, pelas 16.30h, quando se encontrava acertar a máquina rebordadora, esta atingiu-o na mão direita, provocando-lhe o esfacelo dos 1.º, 2.º e 3.º dedos dessa mão, com atingimento ósseo e tendinoso dos 1.º e 3.º dedos (artigos 1.º a 5.º da petição inicial).

Tendo a Ré sido citada para contestar (artigo 128.º do Código de Processo do Trabalho), veio a fazê-lo, alegando, no que também ora releva, que no referido dia, quanto o Autor trabalhava com a máquina orladora, quando colocou a peça de madeira constatou que a fresa não estava a cortar a orla e estava a deixar resíduos, tendo ido tirar os resíduos com a mão e com a máquina e a fresa em funcionamento (artigos 5.º a 9.º da contestação).
E – prosseguiu a Ré – o Autor introduziu as mãos numa zona de corte, sendo que a máquina originalmente pára automaticamente se a tampa/protecção da cabina for levantada: mas como o Autor havia colocado uma peça no interruptor – de forma a “simular” que a tampa/protecção estava fechada e, assim, a máquina continuar em movimento – quando introduziu a mão direita para retirar os resíduos, a fresa movimentou-se, provocando-lhe lesões nessa mão (artigos 11.º, 13.º, 14.º, 15.º e 16.º da contestação).

O Autor não apresentou resposta à referida contestação, nem, acrescentamos nós, como resulta do n.º 3 do artigo 129.º do Código de Processo do Trabalho, a podia apresentar.
Com efeito, de acordo com o n.º 1 e 2, do normativo legal em referência, na contestação, além de invocar fundamentos de defesa, pode o réu (a) requerer a fixação da incapacidade nos mesmos termos que o autor e (b) indicar outra entidade como eventual responsável, que é citada para contestar.
Nesta última situação, de acordo com o referido n.º 3 do mesmo artigo, ao autor e a cada um dos réus é entregue cópia da contestação dos outros réus, podendo cada um responder no prazo de cinco dias, “mas apenas sobre aquela questão”.
Isto é, a regra no processo especial de acidente de trabalho é a da admissibilidade de apenas dois articulados: petição inicial e contestação; a excepção a essa regra verifica-se nas situações em que está em causa a determinação da entidade responsável pelo acidente, caso em que o autor e cada um dos réus pode responder, mas apenas sobre essa questão da determinação da entidade responsável pelo acidente.
Daqui decorre que na acção especial de acidente de trabalho, por força da regra, também especial, do artigo 129.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho, quer o Réu se defenda por impugnação, quer se defenda por excepção, não é admitida resposta à contestação (exceptuando, como se disse, o caso de estar em causa a determinação da entidade responsável, em que a resposta admitida apenas o será sobre tal questão).
Este é, de resto, o entendimento, ao que se conhece, pelo menos maioritário na jurisprudência [como pode ver-se do acórdão da Relação de Coimbra de 11 de Março de 2003 (CJ, ano XXVIII, tomo 2, págs. 56-58), convocado pelo recorrente, e do acórdão deste tribunal de 31-03-2008 (Proc. n.º 5797/07, disponível em www.dgsi.pt)], e na doutrina [Leite Ferreira, Código de Processo de Trabalho, Coimbra Editora, 4.ª edição, pág.595, e Abílio Neto, Código de Processo do Trabalho, 5.ª edição, pág. 344).
Como Carlos Alegre já assinalava no âmbito do Código de Processo do Trabalho de 1981 (Código de Processo do Trabalho, 2.ª Edição, 1987, Almedina, pág. 177), com referência ao n.º 3 do artigo 132.º, que corresponde, grosso modo, ao n.º 3 do artigo 129.º do actual Código de Processo do Trabalho, aquele número “(…) introduz uma novidade de tomo quanto ao princípio geral de que, no processo especial emergente de acidente de trabalho ou de doença profissional, apenas existem dois articulados, ao permitir que, quando haja pluralidade de réus, ao autor e a cada um dos réus é lícito responder, no prazo de cinco dias, à contestação dos restantes, no que concerne exclusivamente à determinação da entidade responsável”.
Ora, o n.º 3 do artigo 129.º do actual Código de Processo do Trabalho é ainda mais expressivo quanto à regra geral da existência de apenas dois articulados no processo especial de acidente de trabalho, e da excepção somente para responder à questão da determinação da entidade responsável, ao estatuir na parte final que poderá haver resposta “mas apenas sobre aquela questão”.
E compreende-se que assim seja, tendo em conta não só razões inerentes à simplificação e celeridade processual que enformam a fase contenciosa do processo de acidente de trabalho, como até os próprios direitos indisponíveis em discussão, que impedem que a não resposta do sinistrado à contestação determine a admissão por acordo de factos inerentes a matéria de excepção.

Face ao entendimento que se deixa expresso é de concluir que no caso em apreço só eram admitidos dois articulados: petição inicial e contestação.
É certo que tendo o Autor alegado os factos constitutivos do direito, em síntese, a ocorrência de um acidente que a lei qualifica como de trabalho, o direito à reparação e a responsabilidade da Ré por essa reparação (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), sustentando a Ré na contestação que o acidente se mostra descaracterizado e, por isso, que não há lugar à sua reparação, tal significa que invocou um facto impeditivo do direito reclamado pelo Autor, competindo-lhe a prova da materialidade integradora dessa descaracterização (cfr. artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), o que vale por dizer que se defendeu por excepção (cfr. artigos 487, n.º 22 e 493.º, n.º 3, do anterior Código de Processo Civil, em vigor à data da apresentação dos articulados).
Todavia, como já se deixou amplamente assinalado, quer a Ré se defendesse por excepção, quer a Ré se defendesse por impugnação, face ao n.º 3 do artigo 129.º do Código de Processo do Trabalho ao Autor não era permitido apresentar articulado de resposta.
Daí que, ao contrário do sustentado no despacho de 25-06-2013 do tribunal a quo, não pode a matéria da contestação referente aos factos que poderão descaracterizar o acidente dar-se por assente, com fundamento em acordo das partes, por não ter sido impugnada pelo Autor.
E também não se sufraga o entendimento constante do mesmo despacho, no sentido de que o Autor não forneceu uma descrição pormenorizada do sinistro que seja incompatível com a fornecida pela Ré seguradora: se o Autor na petição inicial alegou ter sofrido um acidente que deve ser qualificado como de trabalho, que tem direito à reparação do mesmo e que a Ré é responsável por essa reparação, e a Ré na contestação fez uma descrição do acidente não coincidente com a do Autor, para daí retirar a conclusão que este não tem direito à reparação do acidente, não se pode concluir que haja acordo das partes quanto às circunstâncias do acidente.
Por isso se impõe afirmar que são controvertidas as circunstâncias em que ocorreu o acidente.

De acordo com o disposto no artigo 131.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo do Trabalho, findos os articulados o juiz profere despacho saneador para seleccionar a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida.
O Autor reclamou contra essa selecção, argumentando que factos dados como provados são controvertidos, pelo que deviam ser levados à base instrutória.
Independentemente dessa reclamação, é hoje entendimento uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que a fixação da matéria de facto assente não conduz à formação de caso julgado formal, o que significa que a circunstância de se ter dado como assente um determinado ponto da matéria de facto não obsta a que o tribunal superior o venha a ter como controvertido e ordene a respectiva transição para a base instrutória (cf., a este propósito, o Assento n.º 14/94, publicado no Diário da República, I Série-A, de 4 de Outubro de 1994, actualmente com o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 686.º e 687.º do actual Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, bem como os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2009, Processo n.º 766/05.1TTSTR.S1, da 4.ª Secção, de 28 de Fevereiro de 2013, Processo n.º 396/05.8TBSAT.C1.S1, da 2.ª Secção, e de 18 de Junho de 2013, Processo n.º 10964/08.0TBMAI.P1.S1, da 1.ª Secção, todos com sumários disponíveis em www.stj.pt, podendo o acórdão de 27 de Outubro de 2009 ser, também, consultado em www.dgsi.pt).
Nesta sequência e, tendo em conta a concreta factualidade alegada pelas partes quanto às circunstâncias do acidente, entende-se que a matéria constante das alíneas D) a I) da “matéria assente” (com excepção do facto constante da alínea D), de que no dia 5 de Fevereiro de 2011, pelas 16.30h, o Autor encontrava-se a trabalhar numa máquina orladora), por controvertida devia(deve) ser levada à base instrutória e, consequentemente, a mesma ser objecto de prova.
Tal matéria afigura-se essencial ao apuramento das concretas circunstâncias do acidente e, com elas, à decisão quanto procedência ou improcedência da acção.
Por tal motivo, entende-se ser de julgar procedente o recurso quanto à selecção da matéria de facto considerada por assente, ficando prejudicada a 2.ª questão supra equacionada, ou seja, a questão, referente ao mérito da causa, de saber se a sentença deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a acção (artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

Vencida no recurso, atenta a oposição deduzida, deverá a Ré/recorrida ser condenada nas custas respectivas (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil).

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto por B… e, em consequência, a matéria assente no despacho saneador que consta das alíneas D) (com excepção de “No dia 5 de Fevereiro de 2011, pelas 16,30 horas, encontrava-se a trabalhar numa máquina orladora”) a J), deverá ser levada à base instrutória, seguindo-se os termos subsequentes do processo, designadamente tendo em vista a realização de julgamento sobre essa matéria e prolação de nova sentença.
A repetição do julgamento abrangerá apenas os referidos factos, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições.
Custas do recurso pela recorrida.
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Porto, 09 de Julho de 2014
João Nunes
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva
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Sumário elaborado pelo relator, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
(i) na acção especial emergente de acidente de trabalho, por força do que estatui o n.º 3 do artigo 129.º, do Código de Processo do Trabalho, quer o Réu se defenda por impugnação, quer se defenda por excepção, não é admitida resposta à contestação;
(ii) apenas no caso de estar em causa a determinação da entidade responsável é admissível a resposta à contestação, mas somente quanto a essa questão;
(iii) por isso, ainda que a Ré se tenha defendido na contestação por excepção, não podem dar-se como assentes os factos inerentes a essa matéria com fundamento que o Autor não respondeu à excepção.

João Nunes