Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4169/15.1T9AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: PEDIDO CÍVEL
PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
MEIOS COMUNS
Nº do Documento: RP201810034169/15.1T9AVR-A.P1
Data do Acordão: 10/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º43/2018, FLS.43-47)
Área Temática: .
Sumário: I - É possível formular pedido de intervenção principal provocada em sede de pedido de indemnização cível efectuado num processo-crime, pois que a regra legal vigente é a do princípio da adesão.
II - Assim sendo, não deverá remeter-se para os meios comuns a apreciação de pedidos civis a não ser que ocorra alguma situação excepcional que determine a apreciação em separado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4169/15.1T9AVR-A.
Juiz 1, competência genérica, Albergaria-A-Velha, Aveiro.
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1). Relatório.
B… e C… vieram interpor recurso do despacho proferido pelo tribunal recorrido em 29/05/2017 (fls. 99 a 102 dos presentes autos).
Os recorrentes, ali demandantes cíveis, requereram a intervenção principal provocada de «Companhia de Seguros D…» uma vez que o demandado cível E…, na sua contestação, veio invocar ser parte ilegítima, por à data do acidente em causa, ter transferido a sua responsabilidade para aquela Companhia de Seguros, cabendo a esta a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos reclamados em sede de pedido de indemnização civil.
Pelo referido despacho foi indeferida a requerida intervenção por, no que entendemos, por um lado, a lei processual penal não prever que seja possível este tipo de intervenção provocada (só permite a intervenção espontânea – artigo 73.º, n.º 1, do C. P. P.) e por tal incidente ir retardar intoleravelmente o regular andamento dos autos.
Os recorrentes, em síntese, sustentam que:
o artigo 74.º, n.º 3, do C. P. P. prevê a possibilidade de intervenção principal provocada;
o tribunal não concretizou em que consistia o atraso intolerável que a admissibilidade do pedido de intervenção poderia acarretar;
a companhia de seguros cuja intervenção se pede tem prestado colaboração ao demandante cível pelo que não irá criar problemas na celeridade dos autos;
a remessa para os meios comuns seria ela própria violadora do princípio da celeridade pois implicaria a repetição de produção de meios de prova o que pode suceder desde já nos presentes autos sem necessidade de se intentar uma nova ação.
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O M.º P.º junto deste tribunal apôs o visto.
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Cumpre decidir.
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2). Fundamentação.
2.1). De facto.
1). E…, nascido em 18/03/1981, em …, Arouca, filho de F… e de G…, residente no Lugar de …, …, Arouca, encontra-se acusado no processo em causa da prática em 07/05/2015 de um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, p. e p. pelo artigo 290.º, n.º 1, alíneas b), d) e n.º 2, do C. P. – fls. 3 a 6 dos presentes autos -.
2). Nesses autos, são ofendidos os ora recorrentes por indiciariamente serem o condutor do veículo de matrícula QD - .. - .., marca Opel, modelo … – C… – e proprietário da mesma viatura – B… - fls. 3 a 6 e 46 -.
3). Por requerimento de 11/11/2016, deduziram aqueles ofendidos, aqui recorrentes, pedido de indemnização cível contra E…, arguido, assim demandado cível, pedindo o pagamento da quantia de 7.500 EUR pelos danos não patrimoniais que sofreu, acrescido de juros (C…) - fls. 7 a 15 – e 7.372,50 EUR a título de danos patrimoniais e 600 EUR por danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros – B… – fls. 35 a 44 -.
4). Na sua contestação a tais pedidos, e após cumprimento do disposto no artigo 78.º, do C. P. P. (ordenado conforme fls. 81) o demandado cível arguiu a sua ilegitimidade por, à data do evento em causa, beneficiar de seguro válido e eficaz em relação à viatura – fls. 85 e 86 -.
5). Por requerimento de 22/03/2017, os demandantes cíveis, pedem a intervenção principal da referida companhia de seguros (fls. 91 a 94), tendo tal requerimento sido indeferido pelo mencionado despacho de 29/05/2017 (fls. 99 a 102).
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Cumpre decidir.
1). Da admissibilidade de intervenção principal provocada em processo penal.
Na nossa opinião, a lei processual penal não impede que seja tramitado num processo crime um incidente de intervenção de terceiros seja ele espontaneamente suscitado ou requerido por uma parte para fazer intervir um terceiro.
O respeito pelo princípio da adesão (artigo 71.º, do C. P. P. - «o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei) assim o exige à partida para se poder decidir em sede penal todas as consequências jurídicas advindas da prática de um crime.
Assim, se o legislador pretendeu que, por regra, o pedido de indemnização civil fosse apreciado no processo criminal e se existe um incidente de intervenção de terceiros que pode fazer com que a questão fique definitivamente sanada, com todas as vantagens que daí advêm para todos os intervenientes maxime demandantes cíveis, por regra é de admitir a tramitação desse mesmo incidente de intervenção.
Não só a lei não o proíbe, como admite expressamente a intervenção espontânea – artigo 73.º, n.º 1, parte final, do C. P. P. -, como do artigo 74.º, n.º 3, do C. P. P. -«os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do arguido quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo, sendo independente cada uma das defesas.» se retira essa possibilidade. Aqui não se distingue qualquer tipo de intervenção pelo que pensamos que se entendeu que toda a intervenção de terceiros seria teoricamente possível; o n.º 1, do artigo 73.º, do C. P. P. apenas reforçou que também era possível neste tipo de processos existir uma intervenção espontânea. A explicação para tal redação é referida no Ac. da R. Coimbra de 07/11/2007, www.dgsi.pt - «a razão é de índole prática e prende-se com a alteração do Código de Processo Civil então também a decorrer: De acordo com Maia Gonçalves «Código de Processo Penal Anotado e Comentado», 15ª ed, 2005, pg. 208 do Ante-Projeto constava uma disposição que foi discutida na Comissão Revisora, segundo a qual quando a indemnização fosse pedida no tribunal penal e o arguido declarasse que pretendia chamar à demanda pessoas só civilmente responsáveis, não cessaria por esse facto a competência para apreciar o pedido de indemnização contra todos. A eliminação desta disposição foi deliberada, por se entender dependente do que viesse a ser regulamentado no Código de Processo Civil, a cuja revisão se estava a proceder, e pela eventualidade de supressão deste tipo de matérias como o incidente de chamamento de pessoas.».
E refere-se ainda que «mas, que o propósito do legislador era o de permitir a intervenção provocada resulta ainda da leitura das Atas da Comissão Revisora do Código de Processo Penal Referência à Ata nº 5 de 26.3.91, constante do “Código de Processo Penal Anotado”, 1996, 1º vol, pg. 346, de Simas Santos, Leal-Henriques e Borges de Pinho: Colocada a questão de saber se a intervenção provocada pelo lesado, das pessoas com responsabilidade meramente civil era contemplada pela disposição do art. 73º nº 2 do Código de Processo Penal, a resposta foi negativa, por se entender que a intervenção provocada está prevista no nº 3 do art. 74º e que o nº 2 do art. 73º apenas pretende esclarecer que as pessoas com responsabilidade civil também podem intervir voluntariamente.».
Em igual sentido, admitindo intervenção principal provocada em sede de processo penal. Ac. da R. P. de 11/11/2015, Ac. do S. T. J. de 25/06/2008, no mesmo sítio.
Aliás, um incidente de intervenção principal espontânea também admite oposição das partes nos autos – artigo 315.º, nº 1, do C. P. C. ex vi artigo 4.º, do C. P. P. pelo que também aí há que aguardar prazos para se aferir da sua admissibilidade pelo pensamos que não poderia ser por esse motivo que o legislador iria permitir essa intervenção espontânea mas não permitiria a intervenção principal.
Conclui-se assim que é possível formular pedido de intervenção principal provocada em sede de pedido de indemnização cível efetuado num processo crime.
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2). Das razões de não admissibilidade em geral.
Podendo ser formulado tal pedido de intervenção, pode naturalmente o mesmo não ser admitido desde logo por não se preencherem os requisitos legais mas, no que concerne ao processo penal, por eventualmente existirem questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil que inviabilizam uma decisão rigorosa ou são suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal, o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis – artigo 82.º, n.º 3, do C. P. P. -.
Assim, ao ser deduzido, tendo em atenção o caso que é trazido aos autos, um pedido de intervenção principal, espontâneo ou provocado, pode o tribunal entender que o que aí se suscita ou acarreta a análise de questões que não se conseguirá decidir de modo rigoroso nessa sede ou então que se irão gerar incidentes que vão atrasar de modo intolerável o fim do processo penal que é a de definir do modo mais célere possível a situação do arguido.
Além de referir que o pedido de intervenção principal não seria admissível e que se atendeu à posição assumida por arguido e seguradora nos autos, pensamos que foi também por força de os tribunais cíveis poderem decidir os pedidos na sua plenitude (eventualmente de modo mais rigoroso, dizemos nós) que o tribunal recorrido optou ao decidir remeter as partes para os meios cíveis.
3). Da possibilidade em concreto de tal remessa.
Pensamos que não existe no despacho recorrido matéria suficiente para nos fazer concluir que ocorre ou iria qualquer aquele atraso intolerável dos autos pois além de entendermos que não foi esse o motivo usado pelo tribunal recorrido, não se menciona qual seria tal atraso (quanto tempo se atrasaria o julgamento e decisão final a proferir, quais as diligências que seriam necessárias efetuar prosseguindo o pedido de indemnização civil e tempo que as mesmas poderiam demorar - por exemplo perícia ou citação de pessoas no estrangeiro -).
Mesmo face aos elementos de que dispomos, não se deteta esse atraso pois desde logo a consequência da apreciação do pedido de intervenção principal ou seria o seu indeferimento por não estarem reunidos os pressupostos legais ou, sendo deferido, seria a intervenção do terceiro tendo um prazo curto para fazer mostrar a sua posição face ao pedido de indemnização (artigo 319.º, n.º 3, do C. P. C., ex vi artigo 4.º, do C. P. P.).
Quanto ao tipo de decisão a proferir em sede de processo cível onde, de acordo com o despacho recorrido, se poderiam analisar com maior abrangência as questões, também não se menciona quais as questões que possam estar em causa sendo que, por regra, o pedido de indemnização civil é apreciado no processo penal que apreciará todas as questões que tenham relevância sendo que, se assumirem foros de uma complexidade que provocam aquele atraso (intolerável e não somente atraso), então deverá remeter as partes para os meios cíveis comuns.
Mas não se referindo quais seja, e não se detetando que existam – o pedido cível abrange os pedidos de indemnização comuns neste tipo de ações, com danos patrimoniais referentes à viatura e gastos tidos por ter ocorrido perda da mesma além de danos não patrimoniais), não sendo pedida a realização de qualquer perícia -, pensamos que nada obsta a que o tribunal se debruce sobre o pedido de intervenção de terceiros e depois, sobre o pedido de indemnização civil se disso for caso.
A posição da seguradora que por ora consta nos autos é a de negar a sua responsabilidade conforme mail de 22/10/2015 que enviou à ilustre advogada dos aqui recorrentes – fls. 77 – pelo que não conseguimos determinar qual a consequência dessa postura da Companhia de Seguros no sentido de favorecer a remessa para os meios comuns quanto ao pedido de indemnização civil.
Se os demandantes podem ou não formular o pedido em separado não é um motivo que se possa atender para que se decida pela remessa para os meios comuns pois o que importa é aferir se se deve seguir o regime regra de esse pedido ser apreciado no processo crime e só se ocorrer alguma situação excecional é que tal apreciação deve ocorrer em separado.
As outras questões que se poderiam analisar face à postura de Companhia de Seguros e arguido também é algo que não se descortina quais possam ser – no processo cível, se houver coerência, a Companhia de Seguros nega a sua responsabilidade e ter-se-á de realizar a prova do que ocorreu, tal como sucederia na presente ação criminal.
A inadmissibilidade da dedução do pedido de intervenção principal que o tribunal recorrido adotou, por si só, seria conducente a que os pedidos de indemnização civil pudessem ser apreciados no processo criminal sem acréscimo de questões ou demora pois se não era de admitir, nenhum impedimento causava pois não havia a intervenção de qualquer terceiro nos autos, ficando mais linear a intervenção processual – demandantes e demandado cível/arguido – e a posterior análise dos pedidos de indemnização cível.
Outra questão seria a de saber, indeferido o incidente, qual a consequência que daí adviria para as partes cíveis mas isso seria apenas a análise que tinha de surgir em consequência do indeferimento, não sendo uma questão que só em sede cível iria merecer uma análise mais plena.
Assim, pensamos que não há motivos para concluir que a remessa para os meios comuns dos pedidos de indemnização civil é a que melhor defende os interesses processuais mormente os dos lesados e mesmo os do demandado cível (a abrangência de análise das questões é igual à de um processo cível, tendo o tribunal criminal igual competência à de um tribunal cível e não se detetam que razões ou questões possam existir que imponham tal remessa).
Note-se o seguinte: o objeto do presente recurso é o de aferir se se deve manter a remessa das partes cíveis para os meios comuns cíveis, algo que já se entende que não é a nossa visão; outra questão é a de saber o que deve suceder ao pedido de indemnização civil formulado e ao pedido de intervenção principal pois pode estar em causa a dedução de um pedido de indemnização com base num acidente de viação contra quem não tem legitimidade processual para o efeito – artigo 64.º, n.º 1, a), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08 - e pode o incidente de intervenção de terceiros não ter a potencialidade para anular tal consequência já que este visa a sanação da ilegitimidade coletiva e não da ilegitimidade singular – artigo 316.º, n.º 1, do C. P. C. (numa situação que o despacho recorrido menciona quando refere que …não é de admitir a intervenção apenas destinada a prevenir a hipótese de a parte primitiva não ser titular do interesse invocado» e ao citar Salvador da Costa, Os incidentes de Instância, 1999, página 104 quando se exara que «…a intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, ...».
Mas a análise destas questões, que até podem conduzir a que os pedidos de indemnização civil não sejam admitidos numa fase embrionária por ilegitimidade do demandado, além de não causar impedimento a que o julgamento do arguido se realize (não há efeito suspensivo dos autos por causa destes incidentes), surge na fase posterior a se entender que se deve revogar o despacho em causa, tendo então o tribunal recorrido de as apreciar ao se debruçar sobre o pedido de indemnização civil.
Mesmo tendo o tribunal admitido liminarmente os pedidos cíveis ao determinar a contestação dos mesmos nos termos do artigo 78.º, n.º 1, do C. P. P., nada impede que o aprecie agora até por que foi suscitada uma execção de que pode e se deve tomar conhecimento antes do início do julgamento por estar em causa uma questão processual.
Se o pedido for de prosseguir e houver questões novas que ainda não foram apreciadas pelo tribunal recorrido e que porventura se integrem na previsão do artigo 82.º, n.º 3, do C. P. P., nada impede o tribunal de o poder ponderar mas pelos motivos que estão em causa neste recurso é que tal já não poderá suceder.
Por fim, desconhece-se o estado dos autos, nomeadamente se foi ou não realizado julgamento e proferida sentença; no entanto, essa é uma questão que terá de ser ponderada pelo tribunal recorrido consoante, ao apreciar agora o pedido de intervenção de terceiros e a questão da legitimidade do demandado (ou outras que entenda), admita ou não o incidente e/ou os pedidos de indemnização civil, ponderando assim a consequência que tal decisão trará aos autos.
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3). Decisão.
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, determinando-se que o tribunal aprecie do pedido de intervenção de terceiros em causa e consequentemente da vigência do pedido indemnização civil.
Sem custas atento o provimento do recurso.
Notifique.
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Porto, 2018/10/03
João Venade
Paulo Costa