Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
674/10.4TBFLG-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
LEGITIMIDADE
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
CESSÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RP20220405674/10.4TBFLG-E.P1
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE/DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2 . ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Como excepção ao princípio da estabilidade da instância, a habilitação de cessionário na acção executiva deve admitir-se se ocorrer substituição total de uma das partes primitivas da acção executiva por outra.
II - A acção executiva tem um regime especial em sede de legitimidade (cf. art.º 53.º do CP Civil), obrigando a que, ao contrário da acção declarativa, o Exequente e o Executado coincidam, em qualquer fase do processo, com os titulares do crédito e débito exequendos, sendo obrigatória a habilitação de cessionário, sob pena de ilegitimidade.
III – Uma cessão de créditos apresentada como fundamento de habilitação de cessionário, tendo por base um negócio de compra e venda, faz operar automaticamente a transmissão de todas as garantias do crédito cedido, designadamente a fiança e a hipoteca, independentemente de na escritura de cessão lhes ser feita referência expressa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 674/10.4TBFLG-E.P1
Comarca: [Juízo de Execução de Lousada (J1), Comarca do Porto Este]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Fernando Vilares Ferreira
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

“L... Unipessoal, Lda.”, sociedade com sede na Rua ..., União das freguesias ..., ... e ..., concelho de Celorico de Basto, veio, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que constitui o processo principal, intentada contra AA, BB, CC e DD, requerer a sua habilitação no lugar da Exequente “P...”.
«Alega para tanto ter adquirido à credora “P...”, pelo valor de €25 000,00, o direito ao crédito garantido, por contrato de “Cessão de Créditos”, celebrado em 20/08/21.
Juntou escritura pública de “Cessão de Créditos”.
Notificados os Executados, veio o Executado CC apresentar Contestação, alegando que no documento junto não é feita nenhuma menção à sua pessoa.
Bem como que se refere no mesmo documento que o crédito em causa está a ser executado e reclamado no Processo de Execução n.º 1334/08.1TBFLG e no Processo de Execução n.º 674/10.4TBFLG.
Advoga que a dita cessão não prevê a cedência de qualquer direito/crédito sobre si, não podendo a mesma abrange-lo, não podendo ser declarado válida quanto à sua pessoa.
Mais advoga que não é claro o que está a ser executado e o que está a ser reclamado e em que processos, tanto mais que ele nem sequer é parte do Processo de Execução n.º 1334/08.1TBFLG.
Defende que a cessão de créditos não abrange qualquer crédito que possa eventualmente existir sobre si.
Conclui pedindo que se julgue totalmente improcedente, por não provado, o pedido de habilitação de cessionário quanto à sua pessoa.
Foi proferida decisão final do presente incidente, a qual concluiu que “Nestes termos, defiro a requerida habilitação de cessionário e, em conformidade. Declaro habilitada a requerente, para com ela, no lugar da exequente, prosseguir a execução.”
Inconformado com esta decisão, o Executado/Contestante CC veio interpor o presente recurso, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
I. Com a devida vénia e consideração pelo Tribunal a quo, que é muito, não pode o Recorrente deixar de discordar com a sentença proferida.
II. A “cessão de créditos”, impugnada, nenhuma menção faz ao ora Recorrente.
III. Lida a mesma, na parte relativa ao objecto da cessão, consta que: “UM - Que a sua representada é titular do credito litigioso, em situação de incumprimento a seguir melhor identificado: Contrato de mutuo com Hipoteca celebrado com os mutuários AA e BB em 08/06/2005, pelo montante de €52.500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros) já incumprido e com o capital em divida no valor de €51.526,23 (cinquenta e um mil, quinhentos e vinte e seis euros e vinte e três cêntimos) ao qual acrescem juros às taxas contratualmente previstas até efectivo e integral pagamento”, e E acrescenta no ponto QUATRO “Que o crédito identificado em UM está a ser executado e reclamado no Processo de Execução nº 1334/08.1TBFLG, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, que corre termos no Juízo de Execução de Lousada – Juiz 2, e no Processo de Execução nº 674/10.4TBFLG, que corre os seus termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras”.
IV. Ora, apesar da dita cessão fazer menção expressa aos executados AA e BB, nenhuma menção faz ao ora Recorrente e à sua esposa, não se podendo inferir da mesma que estejam a ceder créditos que eventualmente existam sobre o ora Recorrente, pois que, se assim fosse, haveria, igualmente, de ao mesmo fazerem alusão.
V. Acresce que, faz aquela cessão menção ao processo de execução nº 1334/08.1TBFLG, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, do qual o ora Recorrente nem sequer é parte.
VI. Ou seja, do teor da cessão em causa não se consegue vislumbrar qualquer cedência de qualquer direito/crédito sobre o ora Recorrente.
VII. E como tal, na falta clara à sua menção e perante a impugnação por parte do Recorrente do teor, letra e assinatura da dita cessão de créditos, na ausência de outras provas, não poderia o Tribunal decidir como decidiu.
VIII. Por outro lado, diz a sentença recorrida que (…) o próprio contrato de cessão de créditos também refere expressamente que a cessão implica a transmissão de todas as garantias do crédito, onde se inclui, naturalmente, a fiança prestada pelo requerido.”
IX. Sucede que, da dita cessão, que nunca foi notificada ao ora Executado, não se infere que a fiança também tenha sido transmitida, pois que, nenhuma ressalva é feita à mesma, tendo, porém, os contraentes feito menção expressa à hipoteca, ressalvando-a, o que não sucedeu com a fiança.
X. E tal é o esquecimento da Requerente quanto ao ora Recorrente e à sua esposa, que no requerimento inicial nenhuma menção é feita aos mesmos, dizendo a Requerente que “(…) L... Unipessoal, Lda., NIPC ..., com sede na Rua ..., União das freguesias ..., ... e ..., concelho de Celorico de Basto, vem, ao processo em epígrafe, no qual é credora hipotecária P..., em que são executados AA, NIF. ... e BB, NIF...., dizer o seguinte:(…)”.
XI. Ou seja, nem da petição inicial/requerimento (início de processo), nem da dita cessão de créditos, consta o nome do Recorrente CC, nem da sua mulher, DD, apesar das demais partes serem ressalvadas e especificadas,
XII. E nem sequer uma simples menção a “e outros” é feita pela Requerente no requerimento inicial e/ou cessão de créditos,
XIII. O que faz presumir, isso sim, ao contrário do Tribunal que presume que “o próprio contrato de cessão de créditos também refere expressamente que a cessão implica a transmissão de todas as garantias do crédito, onde se inclui, naturalmente, a fiança prestada pelo requerido”, que a mesma não visou abranger qualquer cessão de eventual direito de crédito sobre o ora Recorrente.
XIV. Pelo que, perante a contestação apresentada e a impugnação dos documentos, sempre teria o Tribunal que julgar improcedente a habilitação ou, caso entendesse, ordenar a produção da prova que competia à Requerente L... Unipessoal, Lda.
XV. O Tribunal à quo, ao proferir aquela decisão, violou, entre outros, os artigos 356º CPC e 577º do CC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos de apenso e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
A questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso, prende-se com as condições de admissibilidade do incidente de habilitação de cessionário.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1) A Banco ..., S.A. requereu, em 25.03.2010, no então competente Tribunal Judicial de Felgueiras, execução contra os executados AA, BB, CC e DD para pagamento de quantia certa, a que foi atribuído o n.º 674/10.4TBFLG, por dívida decorrente de escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança junta com o requerimento executivo e cujo teor aqui se dá por reproduzido, constando da mesma, como mutuários, os executados AA e BB e, como fiadores, os executados CC e DD.
2) Por sentença proferida no apenso C, em 21.06.2019, a P... foi julgada habilitada, em substituição da exequente inicial.
3) A requerente L... Unipessoal, Lda. deduziu o presente incidente de habilitação de cessionário, juntando a escritura pública de “Cessão de Créditos”, datada de 20.08.2021, em que a exequente “P...” figura como primeira outorgante e “cedente” e a requerente figura como segunda outorgante e “cessionária”, a qual se mostra junta com o requerimento inicial e cujo teor aqui se dá por reproduzido, constando da mesma, além do mais, o seguinte:
“PELA PRIMEIRA OUTORGANTE, NA ALUDIDA QUALIDADE, FOI DITO:
UM – Que a sua representada é titular do crédito litigioso, em situação de incumprimento a seguir melhor identificado:
Contrato de mútuo com Hipoteca celebrado com os mutuários AA e BB em 08/06/2005, pelo montante de €52.500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros) já incumprido e com o capital em dívida no valor de €51.526,23 (cinquenta e um mil, quinhentos e vinte e seis euros e vinte e três cêntimos) ao qual acrescem juros às taxas contratualmente previstas até efectivo e integral pagamento;
DOIS – Para garantia do pagamento da importância mutuada, juros, despesas judiciais e extrajudiciais, relativas ao crédito supra identificado em UM, foi constituída uma Hipoteca Voluntária, AP. ... de 2005/03/10, sobre a fracção autónoma D, composta de primeiro andar direito, destinada a habitação, com entrada pelo n.º ... – composta por três quartos, sala comum, cozinha, quarto de banho, W.C., despensa e estendal – 92,80 m2, descrita sob o número ... - ..., da Conservatória do Predial de Felgueiras, e inscrito na matriz predial sob o artigo ......, da União de Freguesias ... (...), ..., ..., ... e ....
TRÊS – A referida Hipoteca está registada a favor da representada da primeira outorgante pelo AVERB. AP. ... de 2019/09/13 da AP – ... de 2005/03/10, conforme certidão predial permanente com o código de acesso ...CP-....
QUATRO – Que o crédito identificado em UM está a ser executado e reclamado no Processo de Execução n.º 1334/08.1TBFLG, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, que corre termos no Juízo de Execução de Lousada – Juiz 2, e no Processo de Execução n.º 674/10.4TBFLG, que corre os seus termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras.
CINCO – Que pela presente escritura, em nome da sua representada P..., cede os mencionados créditos à representada da Segunda Outorgante, pelo preço global de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), que a representada da Segunda Outorgante paga à representada da Primeira Outorgante, nesta data, através de cheque bancário n.º ..., do Banco 1..., S.A., quantia que esta recebe e da qual dá integral quitação.
SEIS – Que a presente cessão comporta, relativamente ao crédito, a transmissão para a representada da Segunda Outorgante de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes a esse mesmo crédito, designadamente a Hipoteca, bem como a posição processual que sociedade representa no processo judicial, relativo ao crédito ora cedido e sua hipoteca, processo esse devidamente identificado nos considerandos supra.
SETE – Que a sociedade sua representada, P..., garante a existência e a exigibilidade do crédito ora cedido, não garantido a solvabilidade dos mutuários.
DECLAROU A SEGUNDA OUTORGANTE, na mencionada qualidade:
Que aceita para a sua representada, a presente cessão nos termos exarados.
ASSIM O DISSERAM E OUTORGARAM, conforme minuta apresentada.”
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IV – CONDIÇÕES DE ADMISSIBILIDADE DO INCIDENTE DE HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO

O tribunal recorrido deferiu a habilitação de cessionário, declarando habilitada a requerente para com ela, no lugar da exequente, prosseguir a execução.
O Executado/Contestante CC veio interpor o presente recurso, pedindo que a mesma seja substituída por outra que julgue improcedente este incidente.
Alega, em resumo, que a cessão de créditos faz menção expressa aos Executados AA e BB, mas não faz nenhuma menção à sua pessoa e à sua esposa.
Entende que, da dita cessão, que nunca lhe foi notificada, não se infere que a fiança também tenha sido transmitida, pois que, nenhuma ressalva é feita à mesma, tendo, porém, os contraentes feito menção expressa à hipoteca, ressalvando-a, o que não sucedeu com a fiança.
Acrescenta que, da mesma forma, no requerimento inicial do presente incidente não é feita qualquer menção à sua pessoa e à sua mulher.
Defende que esta realidade faz presumir que a cessão de créditos não visou abranger qualquer cessão de eventual direito de crédito sobre si.
Conclui que, perante a contestação apresentada e a impugnação dos documentos, o Tribunal teria que julgar improcedente a habilitação ou, caso entendesse, ordenar a produção da prova que competia à Requerente “L... Unipessoal, Lda.”.
O princípio da estabilidade da instância, consagrado no art.º 260.º do CP Civil, indica que, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
Em termos de modificação subjectiva[2], esta pode ocorrer - entre o mais – em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio (cf. art.º 262.º, alínea a) do CP Civil), substituindo-se a parte primitiva pelo sucessor ou pelo adquirente.
Tal como se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães de 23/04/20, tendo como Relator José Moreira Dias[3], “A finalidade do incidente de habilitação e os efeitos jurídicos por este produzidos na ordem jurídica são meramente processuais e resumem-se a operar a substituição da parte primitiva na acção pendente (autor ou réu) pelo sucessor deste, em caso de falecimento ou extinção dessa parte, ou pelo adquirente da coisa ou do direito em litígio nessa acção em caso de transmissão dessa coisa ou direito, não comportando o incidente de habilitação qualquer discussão sobre a relação jurídica em discussão nessa acção principal, sequer interferindo nessa discussão.”
Especificamente para a acção executiva, o art.º 54.º do CP Civil prescreve, no respectivo n.º 1, que “Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda.”
Não fazendo a lei qualquer distinção, deve entender-se que esta disposição legal utiliza a palavra “sucessão” abrangendo quer a sucessão inter vivos, quer a sucessão mortis causa.
Nos termos legais, se esta “sucessão” tiver ocorrido antes no momento de interposição da acção executiva, a mesma deverá correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda (cf. art.º 54.º, n.º 1, do CP Civil).
Diversamente, se tal “sucessão” ocorrer já na pendência do processo executivo, o exequente e/ou adquirente terá que promover o incidente de habilitação, nos termos prescritos no art.º 351.º e ss. do CP Civil.
A acção executiva tem um regime especial em sede de legitimidade (cf. art.º 53.º do CP Civil), obrigando a que, ao contrário da acção declarativa, o Exequente e o Executado coincidam, em qualquer fase do processo, com os titulares do crédito e débito exequendos, sendo obrigatória a habilitação de cessionário, sob pena de ilegitimidade.
Feita esta breve análise do incidente, cumpre passar para a análise e decisão da questão controvertida no presente recurso.
O Recorrente centra o objecto do seu recurso no próprio negócio de cessão de créditos, negócio este que sempre teria que ser oficiosamente apreciado pelo tribunal recorrido, em face do disposto no art.º 356.º, n.º 1, alínea b), do CP Civil.
A Recorrida alega – no requerimento inicial – ter adquirido à credora “P...”, pelo valor de €25 000,00, o direito ao crédito garantido, por contrato de “Cessão de Créditos”, celebrado em 20/08/21.
Tal como explica Almeida Costa[4], a cessão de créditos consiste “(…) na substituição do credor originário por outra pessoa, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional. Sublinhe-se que não se produz a substituição da obrigação antiga por uma nova, mas uma simples modificação subjectiva que consiste na transferência daquela pelo lado activo.”
Em face desta estrutura legal, o art.º 582.º, n.º 1, do Código Civil determina expressamente – quanto ao âmbito da cessão de créditos - que, na falta de convenção em contrário, o crédito se transfere para o cessionário com as suas garantias e outros acessórios, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.
A regra geral é, portanto, a de que, com o negócio jurídico de cessão de créditos, se transmitem todas as garantias do crédito, designadamente as garantias pessoais (fiança) e as garantias reais (hipoteca, penhor, consignação de rendimentos ou privilégios mobiliários ou imobiliários).
No caso dos autos, estamos perante uma cessão de créditos, tendo por base um negócio de compra e venda.
O respectivo crédito teve a sua origem num contrato de mútuo incumprido, em que os Executados AA e BB figuram como mutuários e os Executados CC e DD figuram como fiadores.
Da escritura de cessão de créditos junta aos autos é incontestável – tal como se refere na decisão recorrida – que está identificado, de forma clara e objectiva, o crédito exequendo como cedido.
Da mesma escritura não se convencionou qualquer exclusão da transmissão das garantias pessoais ou reais do crédito cedido. Consequentemente, aplica-se automática e directamente ao caso em análise a regra geral acima referida, constante do art.º 582.º, n.º 1, do Código Civil.
Assim sendo, tem que se concluir que a cessão de créditos dos autos, tendo por base um negócio de compra e venda, fez operar automaticamente a transmissão de todas as garantias do crédito cedido, designadamente a fiança e a hipoteca, independentemente de na escritura de cessão lhes ser feita referência expressa.
De qualquer modo, a própria escritura pública de cessão de créditos faz referência, ainda que genérica, a esta transmissão, na respectiva Cláusula Seis, ao referir “Que a presente cessão comporta, relativamente ao crédito, a transmissão para a representada da Segunda Outorgante de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes a esse mesmo crédito (…).”
Decidiu-se, num caso paralelo ao dos presentes autos, no Acórdão desta Relação de 05/03/20, tendo como Relator Fernando Baptista[5] que “As garantias dadas pelos mutuários devedores mantêm-se enquanto existirem as dívidas que garantem, nos precisos termos e dimensão em que foram dadas aos mutuantes, independentemente de quem sejam ou venham a ser (por força de eventuais cessões de créditos) os válidos titulares dos créditos garantidos.”
Independentemente de tudo acima analisado, a análise da figura jurídica da fiança levar-nos-ia a idêntica conclusão.
A fiança é a figura central prevista no Código Civil no âmbito das garantias pessoais e encontra-se consagrada nos art.º 627.º e ss. do Código Civil.
A obrigação do fiador, tal como ficou dito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/12/2003, tendo como Relator Salvador da Costa[6], “é de natureza pessoal ou fidejussória, no sentido de que consiste na assunção pessoal por um terceiro, como todo o seu património, da obrigação de satisfação, a título subsidiário, do direito de crédito do credor.”
A responsabilidade do fiador molda-se pela do devedor principal e abrange, salvo convenção em contrário, tudo aquilo a que ele está obrigado: a prestação devida, a reparação de danos resultantes do incumprimento culposo (art.º 798.º) e/ou a pena convencional que se tenha estabelecido (art.º 810.º).
Assim sendo, uma das características da fiança é precisamente a sua acessoriedade, garantindo o fiador o direito de crédito com o seu património pessoal. Trata-se, pois, de uma garantia pessoal e especial.
Em face desta estrutura, seria absolutamente contrário à teleologia do instituto da fiança que o fiador pudesse, salvo casos especialmente acordados, desonerar-se da satisfação do crédito do devedor principal sempre que este transmitisse o seu crédito por qualquer das formas legalmente previstas na lei, como é o caso aqui em análise.
A conclusão necessária é, portanto, a da total improcedência do presente recurso.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso do Recorrente/Executado, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas a cargo do Recorrente – art.º 527.º do CP Civil.
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Notifique e registe.
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Porto, 05 de Abril de 2021
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira
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[1] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] A relevante para apreciação do presente recurso.
[3] Proferido no Processo n.º 5239/16.4T8GMR-A.G1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[4] In Direito das Obrigações, 12.ª Edição, 2016, Almedina, pág. 813.
[5] Proferido no Processo n.º 423/15-0T8LOU-A.P1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[6] Proferido no Processo n.º 03B3909 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.