Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2265/17.0T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI PENHA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO PELO TRABALHADOR
JUSTA CAUSA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201804112265/17.0T8AVR.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPACIAL (2013)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º273, FLS.101-105)
Área Temática: .
Sumário: I - Na apreciação da justa causa deverá valorar-se a culpa da entidade patronal, exigindo-se que o comportamento desta revele um grau de culpa que possa justificar a extinção da relação de trabalho.
II - É abusiva a resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, invocando como justa causa para a resolução a prestação de trabalho suplementar muito para além do limite legal, quando essa situação se prolongou por vários anos com o assentimento do trabalhador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2265/17.0T8AVR.P1
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
B…, residente no Largo …, nº …, …, Vagos, patrocinado por mandatário judicial, veio intentar a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra C…, S.A., com sede na Rua …, nº .., Viana do Castelo.
Pede que a ré seja condenada a:
a) a reconhecer a justa causa para a cessação do contrato por parte do autor;
b) a pagar a indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, no valor global de 3.904,00€ (três mil novecentos e quatro euros), acrescidos dos juros à taxa legal de 4%, a contar da data da cessação do contrato (15.06.2016) até integral e efectivo pagamento, a liquidar.
Alega, em síntese, que foi admitido sob ordens, direcção e fiscalização da ré, mediante contrato de trabalho escrito a termo certo de 13 de Julho de 2012, para o desempenho das funções inerentes à categoria profissional de maquinista prático de 2ª classe, com a retribuição mensal ilíquida de 601,00€, acrescida do subsídio de gases, no valor de 60,10€ e subsídio de condução no valor de 120,20€, contrato que se converteu em contrato sem termo; o autor unilateralmente pôs termo ao contrato, por comunicação escrita, que chegou ao conhecimento da ré em 15 de Junho de 2016, porquanto, face à exiguidade de recursos humanos, a ré sempre obrigou o autor a uma prestação de trabalho para além do horário pré - estabelecido das 08:00 às 12:00 horas e das 13:00 às 17:00 horas, com folga ao sábado e ao domingo, não sendo observados os dias de folga semanais, tendo prestado, anualmente, mais de 900 horas de trabalho suplementar; o autor, devido ao esgotamento e porque não havia quaisquer perspectivas de mudança na prestação de trabalho, entende ter atingido o limite, considerando que se havia tornado impossível a subsistência do vínculo laboral; o autor ficou privado do respectivo descanso semanal.
Regularmente citada a ré, realizou-se audiência de partes, não se logrando a conciliação das mesmas.
A ré veio contestar, impugnando o alegado pelo autor, tendo o trabalho suplementar prestado sido devidamente remunerado e concedidos os dias de descanso compensatório devidos.
Pede a condenação do autor como litigante de má-fé.
Foi proferido despacho saneador, que transitou em julgado, e dispensada a realização de audiência prévia.
Foi fixado à acção o valor de €5.001,00.
Procedeu-se a julgamento, com gravação da prova pessoal nele produzida, tendo-se fixado a matéria de facto provada e não provada, conforme consta da respectiva acta.
Foi proferida sentença, que decidiu a final julgar improcedente a acção, e em consequência, absolver-se a ré dos pedidos contra ela formulados, absolvendo-se o autor do pedido de condenação por litigância de má-fé.
Inconformado, interpôs o autor o presente recurso de apelação, concluindo:
A. Da decisão da matéria de facto resulta que o autor, ora recorrente, resolveu unilateralmente o contrato de trabalho a que estava vinculado, com o fundamento de a ré, recorrida, por exiguidade dos seus recursos humanos, recorrer, por sistema ao trabalho suplementar, quer em dias normais de trabalho, quer nos dias normais de descanso semanal, não possibilitando o gozo regular da folga a que tem direito, por força da lei geral e do contrato colectivo de trabalho aplicável;
B. Na verdade, para além do trabalho semanal de 40 horas, com descanso ao Sábado e Domingo, prestou trabalho suplementar: em 2013 – 1061 horas; em 2014 – 919 horas; em 2015 – 1046 horas; e em 2016, até Maio – 414 horas (cfr. 4 e 5 da decisão da matéria de facto);
C. O trabalho suplementar, nos termos do artigo 227º, nº 1, só pode ser prestado, quando a empresa tenha de fazer face ao acréscimo eventual e transitório de trabalho e não se justifique, para tal, a admissão de trabalhador;Sendo que o trabalho suplementar não pode exceder os limites impostos pelo nº 1 do artigo 228º do mesmo diploma legal – 170 horas em caso de micro empresas; e – 150 horas, em caso de médias ou grandes empresas;
D. Portanto, sendo infundada a prestação do trabalho e excedendo esta os limites permitidos, estamos perante uma contra - ordenação que a lei classifica como muito grave (cfr. nº 4 do art. 227º e nº 5 do art. 228º, ambos do Cód. Trabalho);
E. É por demais evidente que o comportamento é claramente ilícito, devendo ser enquadrado na alínea b) do nº 2 do art. 394º do Cód. Trabalho, o que constitui justa causa de resolução do contrato por parte do trabalhador;
F. A douta sentença assim não entendeu, fazendo uma errada aplicação do direito, em face da gravidade da factualidade provada;
G. A prestação do trabalho suplementar e as normas que o regem, são normas de interesse e de ordem pública, que têm por objectivo a salvaguarda do emprego e assegurar a organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e conciliação da actividade profissional com a vida familiar (cfr. art. 59º da Constituição da República Portuguesa);
H. É óbvio e notório e, portanto, sem necessidade de qualquer prova, que a sujeição do A., ora recorrente, à prestação de trabalho suplementar, nos termos supra descritos, para além de ser claramente ilegal, não permitia a sua realização pessoal, causava dano na saúde e bem-estar e, acima de tudo, era manifestamente incompatível com a vida familiar;
I. Nestas circunstâncias, o autor ao invocar, para efeitos de resolução do contrato, a factualidade que consta da decisão da matéria de facto, tinha justa causa para fazer cessar a relação contratual;
J. A aferição de que determinado comportamento constitui justa causa, determina-se pelo preenchimento de três requisitos: Um requisito objectivo, que é o comportamento do empregador violador dos direitos e garantias do trabalhador; Um requisito substantivo, que é a atribuição dum comportamento ao empregador, a título de culpa, que é de presumir, uma vez que estamos no âmbito da responsabilidade contratual (cfr. art. 799º do Cód. Civil); e Um terceiro requisito, que relaciona aquele comportamento com o vínculo laboral, no sentido de tornar impossível para o trabalhador a subsistência desse vínculo, que pode ser reconduzido à ideia de simples inexigibilidade da manutenção do vínculo pelo trabalhador;
K. Portanto, sendo ilícito o comportamento da entidade empregadora e configurando a sua conduta a estatuída na alínea b) do nº 2 do art. 394º do Cód. Trabalho, estão preenchidos os requisitos supra referidos; e
L. Verificada a justa causa, tem o autor, ora recorrente, direito à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, em conformidade com o disposto nos arts. 389º e ss. do Cód. Trabalho;
M. Assim não tendo decidido o Tribunal a quo, foram violadas, dentre outras, as disposições legais supra citadas.
A ré alegou, concluindo pela manutenção da sentença.
A Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, tendo emitido pareceno sentido da improcedência da apelação, parecer a que as partes não responderam.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
A única questão colocada consiste em determinar se era lícito ao autor proceder à resolução do contrato por justa causa.
II. Factos provados:
1. O A. foi admitido para trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização da R. em 30 de Julho de 2012, para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de maquinista prático de 2ª classe, por contrato de trabalho escrito a termo certo, pelo período de 6 meses, cuja cópia se mostra junta a fls. 4 e 5, mediante a remuneração mensal de €601,00, acrescido de subsídio de gases, no valor de €60,10 e subsídio de condução, no valor de €120,02.
2. Este contrato foi sucessivamente renovado, tendo-se convertido em contrato sem termo.
3. Em 13.6.2016, o A. comunicou à R. a resolução do contrato, invocando justa causa, através da carta cuja cópia se mostra inserta a fls. 6, recebida a 15.6.2016, a qual mereceu da R. a resposta constante da carta inserta a fls. 38v e 39, cujo teor é seguinte:
“Serve a presente para levar ao conhecimento de Vª Exª de que, a contar da recepção da presente comunicação, considero resolvido o contrato de trabalho subordinado ao qual estou vinculado desde 30 de Julho de 2012, para o que invoco, nos termos abaixo expostos, justa causa.
Na verdade, de acordo com a lei geral e em particular com as disposições do contrato colectivo aplicável, o horário de trabalho semanal é de 40 horas, distribuídas de segunda a sexta-feira, com folga ao sábado e ao domingo (cfr. cláusula 38º do CCT, publicado no BTE nº13 de 8.4.2005) entre as 8.00 e as 12.00 horas e das 13.00 às 17.00 horas.
Apesar desta garantia legal, essa empresa, por exiguidade dos seus recursos humanos, recorre por sistema ao trabalho suplementar, quer em dias normais de trabalho, quer nos dias de descanso semanal, não facultando a possibilidade de gozo regular das folgas a que tenho direito. Também, após a prestação do trabalho suplementar, a que se refere a cláusula 41ª do CCT não gozo a respectiva folga, nem a remuneração correspondente.”
4. O horário de trabalho do A. era das 8.00 às 12.00 horas e das 13.00 às 17.00 horas, com descanso aos sábados e domingos.
5. Face à organização do trabalho da R., o A. trabalhou para além do referido horário, as seguintes horas:
- No ano de 2013, prestou 1.061 horas de trabalho fora do seu horário de trabalho, sendo 456,39 horas de trabalho efectivo e as restantes de disponibilidade.
- No ano de 2014, prestou 919 horas de trabalho fora do seu horário, sendo 427 horas de trabalho efectivo e as restantes de disponibilidade.
- No ano de 2015, o A. prestou 1046 horas de fora do seu horário, sendo 414 horas de trabalho efectivo e as restantes de disponibilidade.
- No ano de 2016, até ao dia 21 de Maio, o A. prestou 359 horas de trabalho fora do seu horário, sendo 176 horas de trabalho efectivo e as restantes de disponibilidade.
6. Todo o trabalho prestado pelo A. para além do horário de trabalho lhe foi pago pela R., nos termos fixados pelo CCT do sector, celebrado entre a Associação dos Armadores de Tráfego Fluvial, o SIMAMEVIP – Sindicato dos Trabalhadores da Marinha Mercante, Agências de Viagens, Transitários e Pescas e o SITEMAQ – Sindicato da Mestrança e Marinhagem da Marinha Mercante, Energia e Fogueiros de Terra.
7. O A. já anteriormente havia trabalhado para a R., pelo menos, como estagiário após ter completado o curso de ajudante de máquinas e entre 8.6.2009 e 8.10.2009, mediante contrato a termo com a categoria profissional de maquinista prático de 3ª classe.
8. O A. efectuou o exame e obteve o Diploma de Aptidão para acesso à categoria de maquinista prático de 1ª classe em 17.3.2016, enquanto se encontrava ao serviço da R., tendo-lhe esta possibilitado a frequência do curso necessário para o efeito e suportado o custo inerente.
9. A R. elabora semanalmente uma escala de serviço e os trabalhadores constantes dessa escala sabiam e sabem que na semana em que estão escalados se houver serviço fora do horário normal são chamados para o efectuarem, sendo-lhes pago como trabalho suplementar.
10. Quando, por algum motivo, estando de folga são chamados a prestar serviço, essas horas são pagas como trabalho suplementar e gozam o dia de fola posteriormente.
11. Os trabalhadores, designadamente o A., sempre aceitaram a prestação do trabalho extraordinário porque a remuneração deste representa cerca de 50% do seu salário mensal.
12. É prática da R. que sempre mereceu a concordância dos trabalhadores juntar várias folgas semanais dos trabalhadores, que depois estes gozam conjuntamente, elaborando a R. para o efeito uma conta corrente, cuja cópia de mostra junta de fls. 51 a 59.
13. No início do ano de 2016, o A. tinha 21 dias e meio de folgas por gozar transitadas de 2015 e trabalhou 11 dias em domingos e feriados, tendo beneficiado apenas de 17 dias e meio de folgas, pelo que, aquando da cessação do contrato a R. pagou-lhe 14 dias de folga.
14. No final do ano de 2015, o A. foi colocado pela R. no Porto da Figueira da Foz para poder frequentar o curso de formação para maquinista prático de 1ª classe.
15. Devido a atrasos sucessivos no início do curso, o A. permaneceu aí colocado desde Outubro de 2015 até Março de 2016, resultando daí a acumulação de folgas por gozar nesse período.
III. O Direito
Nos termos do art. 394º, nº 1, do Código do Trabalho, ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.
Esclarece o nº 2 do mesmo preceito que, constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador:
a) Falta culposa de pagamento pontual da retribuição;
b) Violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador;
c) Aplicação de sanção abusiva;
d) Falta culposa de condições de segurança e saúde no trabalho;
e) Lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador;
f) Ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, praticada pelo empregador ou seu representante.
Dispõe, por outro lado, o art. 395º, nº 1, do Código do Trabalho, que o trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam,
nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.
A observância dos requisitos de natureza procedimental previstos neste normativo constituem condição de licitude da resolução, na medida em que dela depende a atendibilidade dos factos invocados pelo trabalhador para justificar a cessação imediata do contrato (neste sentido, Pedro Romano Martinez e outros, “Código do Trabalho”, 2005, pág. 721, citado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-3-2012, processo 1282/10.5TTBRG.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp).
Na comunicação de resolução do contrato de trabalho com justa causa invoca o recorrente a circunstância de a recorrida “recorre[r] por sistema ao trabalho suplementar, quer em dias normais de trabalho, quer nos dias de descanso semanal, não facultando a possibilidade de gozo regular das folgas a que tenho direito”. Mais acrescentando: “Também, após a prestação do trabalho suplementar, a que se refere a cláusula 41ª do CCT não gozo a respectiva folga, nem a remuneração correspondente.”
Porém, provou-se apenas que a recorrida recorria “por sistema” ao trabalho suplementar, uma vez que se provou igualmente que tal trabalho suplementar foi pago e foram concedidos os dias de descanso respectivos, ou pagos os mesmos, no que respeita aos ainda não gozados aquando da resolução do contrato, conforme resulta da matéria de facto provada sob os números 5, 6, 12 e 13.
Considerou-se na sentença:
“(...) embora não tenham sido alegados factos relativos à dimensão da R., não restam dúvidas que o número de horas de trabalho suplementar excedia o máximo legalmente permitido que é de 200 horas anuais, nos termos do disposto no art. 228º, nº3 do C.Trab..
“Com efeito, mesmo o número de horas de trabalho efectivo prestadas pelo A. excedia manifestamente o limite legal. No entanto, a cláusula 39º do CCT do sector, celebrado entre a Associação dos Armadores de Tráfego Fluvial, o SIMAMEVIP-Sindicato dos Trabalhadores da Marinha Mercante, Agências de Viagens, Transitários e Pescas e o SITEMAQ- Sindicato da Mestrança e Marinhagem da Marinha Mercante, Energia e Fogueiros de Terra, que ambas as partes aceitam como aplicável e para o qual remetem na cláusula 13ª do contrato de trabalho, estabelece uma forma de cômputo do trabalho suplementar que inclui horas em que não há prestação de trabalho mas em que o trabalhador para estar disponível para o trabalho vê prejudicado o seu período de descanso, daí a discrepância entre o número de horas de trabalho pagas e o número de horas de trabalho efectivo constante do documento inserto a fls. 7 a 21 dos autos.
No que concerne às folgas, entendemos que o sistema instituído pela R. também não respeitava integralmente o disposto no CCT do sector, pois não assegura o gozo do descanso compensatório nos três dias úteis seguintes à prestação de trabalho em dia de descanso obrigatório, como prevê a cláusula 41ª do CCT.
Destarte, é clara a ilicitude da conduta a R. que pode enquadrar- se na alínea b) do nº2 do art. 394ª do C.Trab.
Mas, assumirá essa conduta uma gravidade tal que justifique a resolução do contrato com efeitos imediatos por parte do A.
“Como vimos, a justa causa deve ser apreciada, nos termos do art. 351º, nº3 do C.Trab. e este preceito legal determina que deve atender-se, ao quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador e ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
“Na verdade, a prestação de um número extremamente elevado de horas de trabalho extraordinário, como o A. prestava, é susceptível de, como o mesmo alega na petição inicial, causar transtornos sérios na vida familiar e ter reflexos nefastos na saúde física e mental do trabalhador, podendo, em determinadas situações, justificar a resolução do contrato, com justa causa.
“Porém, cada caso exige uma avaliação concreta e competia ao A. indicar, logo na carta de resolução do contrato, de forma sucinta, os factos demonstrativos dos transtornos e dos reflexos negativos na sua vida que a prestação excessiva de trabalho suplementar lhe causava.
“Ora, a comunicação de resolução é totalmente omissa a esse respeito. E o art. 398º, nº3 do C.Trab. estabelece que na acção em que for apreciada a ilicitude da comunicação referida no nº1 do art. 395º do C.Trab, apenas são atendíveis os factos constantes da comunicação referida no nº1 do art. 395º.
“Assim sendo, não tendo o A. indicado na comunicação de resolução do contrato quaisquer factos demonstrativos das consequências negativas na sua vida da prestação de um elevado número de horas de trabalho suplementar e da falta de descanso, não são atendíveis os factos a esse respeito alegados na petição, sendo que, também apenas alegou que resolveu o contrato devido a esgotamento e porque não havia perspectivas de mudança na prestação de trabalho, factos que não lograram adesão de prova.”
Estamos, no essencial, de acordo com estas considerações.
Nos termos do art. 394º, nº 4, do Código do Trabalho, a justa causa é apreciada nos termos do nº 3 do artigo 351º, com as necessárias adaptações. Por sua vez, estabelece este normativo que, na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao caráter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
“A inexigibilidade de permanência do contrato de trabalho envolve um juízo de prognose sobre a viabilidade da relação laboral, a realizar segundo um padrão essencialmente psicológico – o das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura” (acórdão do STJ de 27 de Novembro de 2002, processo 02S2423, acessível em www.dgsi.pt).
“Deverá, pois, na apreciação da justa causa valorar-se a culpa da entidade patronal, exigindo-se que o comportamento desta revele um grau de culpa que possa justificar a extinção da relação de trabalho” (acórdão do STJ de 6 de Novembro de 2002, processo 02S4097, acessível em www.dgsi.pt).
Salienta-se no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 4 de Março de 2013, processo 517/11.1TTGDM.P1, ainda acessível em www.dgsi.pt, “Assim, é necessário que, além da verificação do elemento objetivo e subjetivo, se conclua que se tornou impossível a manutenção da relação laboral. A verificação de justa causa pressupõe, deste modo, a ocorrência dos seguintes requisitos: a) um de natureza objetiva – o facto material integrador de algum dos comportamentos referidos nas alíneas do n.º 2 do art. 394º do Código de Trabalho (ou outro igualmente violador dos direitos e garantias do trabalhador); b) outro de caráter subjetivo - a existência de nexo de imputação desse comportamento, por ação ou omissão, a culpa exclusiva da entidade patronal; c) outro de natureza causal – que o comportamento da entidade patronal gere uma situação de imediata impossibilidade de subsistência da relação laboral, tornando inexigível, em concreto e de acordo com as regras de boa fé, que o trabalhador permaneça ligado à empresa por mais tempo. Não basta, pois, uma qualquer violação por parte do empregador dos direitos e garantias do trabalhador para que este possa resolver o contrato de trabalho com justa causa. Torna-se necessário que a conduta culposa do trabalhador seja de tal modo grave, em si mesma e nas suas consequências, que, à luz do entendimento de um bonnus pater familias, torne inexigível a manutenção da relação laboral por parte do trabalhador.”
Conforme refere Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 2006, págs. 557 e 575, “não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in concreto dos interesses em presença - fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo (...). Basicamente, preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante realidade das relações de trabalho em que incidam e as circunstâncias específicas que rodeiem tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo.”
No sentido exposto vejam-se ainda os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Novembro de 2016, processo 2537/15.8T8VNG.P1, e do STJ de 14 de Janeiro de 2015, processo2881/07.8TTLSB.L1.S1, e de 17 de Dezembro de 2014, processo 397/11.7TTMTS.P1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Acresce que, conforme igualmente se reforça na sentença sob recurso, provou-se ainda que:
16. A R. elabora semanalmente uma escala de serviço e os trabalhadores constantes dessa escala sabiam e sabem que na semana em que estão escalados se houver serviço fora do horário normal são chamados para o efectuarem, sendo-lhes pago como trabalho suplementar.
17. Quando, por algum motivo, estando de folga são chamados a prestar serviço, essas horas são pagas como trabalho suplementar e gozam o dia de fola posteriormente.
18. Os trabalhadores, designadamente o A., sempre aceitaram a prestação do trabalho extraordinário porque a remuneração deste representa cerca de 50% do seu salário mensal.
19. É prática da R. que sempre mereceu a concordância dos trabalhadores juntar várias folgas semanais dos trabalhadores, que depois estes gozam conjuntamente, elaborando a R. para o efeito uma conta corrente, cuja cópia de mostra junta de fls. 51 a 59.
Sendo assim, e como igualmente salienta a Ilustre Magistrada do Ministério Público no seu parecer, subsistindo o regime de prestação de trabalho suplementar desde o início do contrato, por cerca de quatro anos, sem qualquer oposição do recorrente, antes com o seu assentimento, a invocação do mesmo regime para fundamentar a justa causa de resolução do contrato apresenta-se como abusiva, nos termos do art. 334º do Código Civil, tornando ilícita a resolução (acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 10 de Março de 2014, processo 1105/11.8TTBRG.P1, acessível em www.dgsi.pt). No mesmo sentido podem ver-se os acórdãos do STJ de 14 de Janeiro de 2016, processo 529/13.0TTOAZ.P1.S1, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de Março de 2016, processo 250/13.0TTCTB.C1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Assim, improcede a apelação.
III. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Porto, 11-4-2018
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes