Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2841/16.8T8AGD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: RELAÇÕES IMEDIATAS
RELAÇÃO SUBJACENTE
VÍCIOS DA VONTADE
Nº do Documento: RP201809242841/16.8T8AGD-A.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º680, FLS.83-90)
Área Temática: .
Legislação Nacional: ART.º 640º, N.º2 AL. A) DO C.P.C.
Sumário: I - A inobservância dos ónus de especificação previstos no artigo 640º nº 2 al. a) do CPC impõe a rejeição da reapreciação da decisão de facto.
II - Sendo o título executivo uma livrança, quem nele se obriga, mediante a aposição da respetiva assinatura, assume a respetiva obrigação cambiária.
III - Obrigação esta que se caracteriza pela sua natureza abstrata e formal/literal, independente de qualquer relação subjacente, sem prejuízo de no âmbito das relações imediatas esta relação subjacente poder ser discutida.
IV - Encontram-se no âmbito das relações imediatas aqueles que de forma direta se encontram ligados através da relação subjacente.
V - Considera-se que o avalista que teve intervenção no contrato subjacente à emissão do título que avaliza, se situa no âmbito das relações imediatas e como tal poderá discutir com o portador as exceções derivadas da violação do acordo em que tenha intervindo ou suscitar vícios relativos à formação da vontade.
VI - Enquanto factos impeditivos ou extintivos do direito do portador do título cambiário/exequente, cabe ao embargante alegar e fazer prova desses mesmos factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 2841/16.8T8AGD-A.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunto - Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Adjunto - Juiz Desembargador António Eleutério
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Jz. de Execução de Águeda
Apelante/ B…
Apelado/“Banco C…, S.A.”
Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
B…, melhor ids. a fls. 1 deduziu por apenso à execução que com o n.º 2841/16.8T8AGD lhe foi instaurada por “Banco C…, S.A.” igualmente melhor id. a fls. 1 a presente oposição à execução por embargos, pedindo pela procedência da mesma:
«a) ser declarado nulo e sem qualquer efeito o aval prestado na supra citada livrança;
b) ser declarada extinta a presente execução, ex vi art. 732.º n.º 4 do CPC pela procedência in totum dos presentes embargos;
c) ser a Embargada condenada no pagamento das custas e encargos a que deu origem.»
Para tanto e em suma alegou ter subscrito a livrança dada à execução, mas sem que então no verso da mesma constasse a frase “Dou o meu aval ao subscritor”.
Assim tendo assinado tal livrança desconhecendo em absoluto de que se tratava e que implicações acarretavam tal assinatura.
Por tanto e por não ter tido consciência da declaração emitida, não prestou a mesma aval à livrança, nenhum efeito tendo a declaração negocial nos termos do artigo 246º do CC.
Termos em que concluiu nos termos acima referidos.

Notificada a exequente, contestou esta nos termos de fls. 11 e segs., em suma tendo alegado:
- ter sido celebrado em abril de 2012 um contato de empréstimo no montante de 15.000,00€, sob a forma de conta dinâmica, no qual figuram a embargante como garante/avalista e como mutuário e subscritor do título dado à execução o filho da executada;
- contrato este que se mostra devidamente assinado pela ora embargante e rubricado em cada uma das folhas que o compõem;
- Bem sabendo a embargante que para garantia das obrigações emergentes de tal contrato foi por si e pelo mutuário entregue a livrança em branco, devidamente assinada e avalizada;
- Inexistindo qualquer impedimento a que a fórmula completa do aval seja posteriormente preenchida por outrem que não o avalista na sequência do pacto de preenchimento celebrado e aceite entre as partes, nomeadamente pela embargante, e em respeito pelo mesmo como foi o caso;
- Constituindo o invocado pela embargante uma atuação com abuso de direito, demonstrado que está que a mesma prestou e quis prestar garantia de aval, tendo perfeito conhecimento das condições contratadas.
Termos em que concluiu a exequente pela improcedência da oposição à execução.
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Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador. Identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando “improcedentes os presentes embargos” e determinando “o prosseguimento da execução” quanto à aqui embargante.
Do assim decidido apelou a opoente/embargante, oferecendo alegações e formulando as seguintes
Conclusões:
A) A douta sentença recorrida deveria ter dado como provado que “a embargante apôs a sua assinatura no verso da livrança sem que se encontrasse ali aposta a expressão “Dou o meu aval ao subscritor”, ao invés da sentença proferida, porquanto tal facto resulta da prova produzida através das declarações de parte da Embargante, ainda que desacompanhadas de outros meios de prova.
B) Reconhece-se que o ónus da prova seria da recorrente. Porém, logrou prová-lo, pelas suas declarações de parte, que deveriam ter sido valoradas positivamente pelo Tribunal a quo e não o foram.
C) Não se invertendo o ónus de prova, a verdade é que a embargada não apresentou prova testemunhal em audiência de discussão e julgamento, o que teria permitido, em face do princípio do contraditório, uma aproximação à verdade – o aval prestado em branco – e igualmente trazer luz sobre a falta de esclarecimento à embargante relativamente às penosas repercussões que a aposição da sua assinatura numa livrança lhe iria acarretar.
D) Não se questionando a licitude do aval prestado em branco, a questão que se coloca aqui é diversa: se aquando da aposição da assinatura da Avalista, no título – Livrança – constasse tal expressão, a Embargante teria certamente questionado o que tais dizeres significavam para si, ponderando então prestar ou não tal aval.
E) Pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente. As declarações da Embargante foram simplistas, espontâneas, quase a roçar o grotesco, com modos pouco polidos - é certo – mas com respostas prontas, com indicadores fortes que permitiram mostrar ao julgador a autenticidade e a verdade ínsita nas suas declarações, o que, dentro do princípio da sua livre apreciação cfr. n.º 3 do art. 466.º do CPC, poderia ou deveria ter conduzido a decisão diversa.
F) A douta sentença deveria ter dado como provado que “A embargante assinou o verso da livrança em causa desconhecendo as obrigações que em que incorria ao apor ali a sua assinatura” porquanto poderia ter valorado positivamente, as declarações de parte da embargada.
G) Efectivamente, a Recorrente declarou em juízo que intelectualmente não alcançou os efeitos da sua assinatura na livrança. É a esse deficit de conhecimento que se refere quando alega falta de consciência na emissão da declaração.
H) As declarações de parte não foram corroboradas por outro meio de prova. Mas como poderia provar tal deficit? Provar esta falta de consciência do vero alcance da declaração é provar um facto negativo, se não impossível porventura muito dificultado, aproximando-se da designada prova diabólica.
I) Nos termos do n.º 1 do citado art. 640.º do CPC, a Recorrente considera incorretamente julgados os dois factos dados como não provados na douta sentença recorrida porquanto as declarações de parte da Embargante, impunham decisão diversa que considere tais factos como provados e consequentemente procedentes os embargos.
TERMOS EM QUE, A QUE ACRESCE O MUITO QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER RECEBIDO, TER PROVIMENTO E, CONSEQUENTEMENTE, DEVE A DOUTA DECISÃO RECORRIDA SER REVOGADA E ALTERADA POR OUTRA QUE, CONSIDERANDO OS FUNDAMENTOS DA RECORRENTE, DÊ PROVIMENTO AO SEU PEDIDO.
ASSIM FARÃO V. EXAS. JUSTIÇA”

Apresentou o recorrido/exequente contra-alegações em suma tendo concluindo pela improcedência do recurso face ao bem decidido pelo tribunal a quo.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos (da oposição) e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelo apelante serem as seguintes as questões a apreciar:
I- erro na decisão de facto.
II- erro na decisão de direito.
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III- Fundamentação
O tribunal a quo deu como provada a seguinte matéria de facto:
«A) Foi dada a execução a livrança, cujo original se encontra junto a fls. 7 dos autos principais.
B) A livrança tem como local de emissão Porto, data de emissão 04.04.2012, data de vencimento de 10.07.2014, o valor de 12.707,93€, figurando como subscritor o executado D….
C) No verso da livrança e a seguir à expressão “Dou o meu aval ao subscritor, encontra-se aposta a assinatura do ora embargante pelo seu próprio punho.
D) Em 4 de abril de 2012, entre o exequente e o executado D… foi celebrado um contrato de empréstimo no montante de €15.000,00, sob a forma de conta dinâmica.
E) Figurando a aqui embargante, no âmbito do contrato celebrado, como garante/avalista da obrigação assumida pelo mutuário D…, constante de fls. 16 e ss dos presentes autos.
F) Contrato esse que se encontra rubricado em todas as páginas pela ora embargante e assinado pela mesma.
G) Nos termos da cláusula 14 do referido contrato, sob a epígrafe “caução”, foi acordado o seguinte: “Para garantia das obrigações emergentes deste contrato V. Ex.as compromete(m)-se desde já, a entregar ao Banco:
14-1. Uma Iivrança subscrita por V.Ex.a(s). e avalizada por B…, ficando o Banco expressamente autorizado, através de qualquer um dos seus funcionários, a preenche-la, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades emergentes deste contrato (capital e juros) e assumidas por V.Ex.a(s). perante o Banco, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem, caso se verifique o incumprimento por parte de V.Ex.a(s). de qualquer das obrigações que lhe competem e que aqui são referidas.”»
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O tribunal a quo deu ainda como não provada a seguinte factualidade
«II - Factos Não Provados:
1 – A embargante apôs a sua assinatura no verso da livrança sem que se encontrasse ali aposta a expressão “Dou o meu aval ao subscritor”.
2 – A embargante assinou o verso da livrança em causa desconhecendo as obrigações que em que incorria ao apor ali a sua assinatura.»
Conhecendo.
1) Em função do supra já enunciado, cumpre apreciar a decisão da matéria de facto.
Na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do artigo 662ºdo CPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão.
Tendo presente que o princípio da livre apreciação das provas continua a ser a base, nomeadamente quando em causa estão documentos sem valor probatório pleno; relatórios periciais; depoimentos das testemunhas e declarações de parte [vide art.ºs 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.ºs 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 (quanto às declarações de parte) do C.P.C.], cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis. Fazendo ainda [vide António S. Geraldes in “Recursos no Novo Código do Processo Civil, 2ª ed. 2014, anotação ao artigo 662º do CPC, págs. 229 e segs. que aqui seguimos como referência]:
- uso de presunções judiciais – “ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido” (vide artigo 349º do CC), sem prejuízo do disposto no artigo 351º do CC, enquanto mecanismo valorativo de outros meios de prova;
- ou extraindo de factos apurados presunções legais impostas pelas regras da experiência em conformidade com o disposto no artigo 607º n.º 4 última parte (aqui sem que possa contrariar outros factos não objeto de impugnação e considerados como provados pela 1ª instância);
- levando em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no artigo 607º n.º 4 do CPC (norma que define as regras de elaboração da sentença) ex vi artigo 663º do CPC (norma que define as regras de elaboração do Acórdão e que para o disposto nos artigos 607º a 612º do CPC remete, na parte aplicável).
Finalmente releva realçar ser ónus do recorrente apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Assim e sem prejuízo das situações de conhecimento oficioso que impõem ao tribunal da Relação, perante a violação de normas imperativas, proceder a modificações na matéria de facto, estão estas dependentes da iniciativa da parte interessada tal como resulta deste citado artigo 640º do CPC.
Motivo por que e tal como refere António S. Geraldes in “Recursos no Novo Código do Processo Civil, já supra citado, em anotação ao artigo 662º do CPC, p. 238 “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para circunscrever o objeto do recuso. Assim o determina o princípio do dispositivo (…)”.
Sobre a parte interessada na alteração da decisão de facto recai portanto o ónus de alegação e especificação dos concretos pontos de facto que pretende ver reapreciados; dos concretos meios de prova que impõem tal alteração e da decisão que a seu ver sobre os mesmos deve recair, sob pena de rejeição do recurso.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao recorrente [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
No caso dos autos verifica-se que a recorrente não cumpriu este ónus imposto pela al. a) do nº 2 do artigo 640º do CPC.
O fundamento único do desacordo da decisão do tribunal a quo é a valoração das declarações de parte da recorrente.
Porém a mesma, nem no corpo alegatório nem nas conclusões fez qualquer alusão às passagens da gravação ou sequer transcreveu quaisquer excertos do seu depoimento tidos por relevantes.
Apenas e tão só alegou ter no decurso das suas declarações negado a autoria da frase “dou o meu aval(…) ” e garantido que a mesma ali não constava aquando da sua assinatura. Mais alegou ter afirmado (após reproduzir um trecho da fundamentação impugnada relativo à analise das suas declarações) que confirmou o desconhecimento das obrigações assumidas.
Em parte alguma indica portanto a recorrente com “exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso” nem tão pouco procede “à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Concluindo, impõe-se rejeitar a reapreciação da decisão de facto por inobservância dos ónus de especificação previstos no artigo 640º nº 2 al. a) do CPC acima aludido.
Termos em que se rejeita a reapreciação da decisão de facto.
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Do direito.
Em função do acima decidido, cumpre apreciar de direito.
A aqui embargante foi demandada na qualidade de avalista do subscritor, sendo a exequente, portadora do mesmo título a contraparte do avalizado na relação jurídica subjacente à emissão da mesma.
Do disposto no artigo 77º da LULL decorre que às livranças são aplicáveis, na parte em que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras e respeitantes, entre o mais; ao endosso (artigos 11º a 20º da LULL); vencimento (artigos 33º a 37º da LULL); pagamento (artigos 38º a 42º da LULL); direito de acção por falta de pagamento (artigos 43º a 50º e 52º a 54º da LULL); letra em branco (artigo 10º da LULL) e aval (artigos 30º a 32º) sendo no caso previsto na última alínea do artigo 31º - se o aval não indicar a pessoa por quem é dado – entendido que é dado pelo subscritor da livrança.
Sendo o título executivo uma livrança, quem nele se obriga, mediante a aposição da respetiva assinatura, assume a respetiva obrigação cambiária. Obrigação esta que se caracteriza tradicionalmente pela sua natureza abstrata e formal e assim independente de qualquer relação subjacente “ causa debendi” (Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, 2º fascículo II, As Letras, 45 e art.º 17º da LULL), válida por si, sem prejuízo de no âmbito das relações imediatas esta relação subjacente poder ser discutida.
Encontram-se no âmbito das relações imediatas aqueles que de forma direta se encontram ligados através da relação subjacente.
Encontram-se no âmbito das relações mediatas aqueles que na relação subjacente à emissão do título não intervieram.
Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito Comercial – Títulos de Crédito, Reimpressão, AAFDL, Lisboa, 1997, 55, citado no Ac. do TRC, Relatora Albertina Pedroso de 19/02/2013 in www.dgsi.pt/jtrc diferencia assim as relações imediatas das mediatas. “Quando entre dois intervenientes num título existe uma relação subjacente diz-se que a relação é imediata; quando não estão ligadas por uma relação subjacente, diz-se que a sua relação é mediata. As relações imediatas no título, designadamente a letra, são as relações existentes entre obrigados cambiários que se encontrem ligados por uma relação subjacente e uma convenção executiva. As relações mediatas são as que suscitem entre obrigados cambiários que se não encontrem ligados por qualquer relação subjacente ou convenção executiva. Nas relações mediatas não existe, pois qualquer relação subjacente ou convenção executiva.”
Nos termos do preceituado no art.º 32º da LULL “O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”. Mantendo-se a sua obrigação, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
Vício de forma este que se reporta aos requisitos externos da obrigação cambiária, desde que os mesmos se tornem percetíveis à simples inspeção do título, quer esses requisitos externos faltem inicialmente quer não seja reconhecível a sua existência (cfr. Prof. Vaz Serra, in BMJ 60º, p. 122, nota 206).
O aval visa garantir o pagamento de uma letra (no todo ou em parte) conforme o expressa o artigo 30º da LULL, tendo porém como limite a medida da responsabilidade do avalizado (artigo 32º da LULL) e implica para o avalista uma responsabilidade solidária com o avalizado – art.º 47º da LULL (e não subsidiária) – vide Ferrer Correia, Letras de Câmbio, 1966, 3º, 204.
Como tal o avalista assume uma obrigação autónoma, embora formalmente dependente da obrigação do avalizado, sendo certo que se mantém, mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma[1], o que se entende atendendo à natureza formal/literal e abstrata da obrigação cambiária.
Significa isto que a garantia dada pelo aval nada tem de comum com a obrigação causal que origina o título.

Pelo aval constituem-se dois grupos de relações: as do portador com o avalista e as do avalista com o avalizado e obrigados precedentes.
No âmbito das relações estabelecidas entre avalista e portador, não pode portanto aquele opor a este as exceções fundadas sobre as relações pessoais do devedor avalizado contra o portador na medida em que quanto a estas é res inter alios acta e sob pena de violação da caraterística da autonomia desta garantia (vide o referido artigo 32º da LULL).
Pode porém acontecer e tal ocorre com frequência, que o avalista seja parte no contrato subjacente à emissão do título que avaliza e/ou no pacto de preenchimento do título cambiário, caso em que perante o portador/credor cambiário ligado ao avalizado se considera situar o mesmo no domínio das relações imediatas. Consequentemente, conforme é entendimento pacífico na jurisprudência, podendo então discutir com o portador as exceções derivadas da violação do acordo em que tenha intervindo.
Incumbindo-lhe o ónus de fazer prova da violação desse pacto de preenchimento [vide Ac. STJ de 22/02/2011, Relator Sebastião Póvoas; Ac. STJ 12/10/2017 Relator Manuel Tomé e da mesma data Relator António Piçarra, onde também esta temática é abordada; Ac. STJ 28/09/2017, todos in www.dgsi.pt/jstj].
“Sempre que interceda uma relação subjacente entre o avalista e o credor, as exceções dela emergentes são oponíveis pelo primeiro ao segundo sem qualquer ofensa ao princípio res inter alios acta” [2]
No mais, há ainda que ponderar que a inoponibilidade das exceções pessoais não é absoluta, já que se tem entendido que o princípio da independência das obrigações cambiárias e das obrigações do avalista e do avalizado não obsta a que o avalista possa opor ao portador a exceção da liberação, por extinção da obrigação do avalizado (cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 113, p. 187; Carolina Cunha in ob. cit. p. 112; Ac. STJ de 26/02/2013, Relator Azevedo Ramos e demais jurisprudência deste supremo tribunal ali citada in www.dgsi.pt/jstj). Na verdade e neste caso já não está em causa uma exceção pessoal do devedor principal mas antes falta de causa ou de fundamento jurídico do portador do título que como tal lhe pode ser oposta pelo avalista e demais obrigados cambiários.
Neste mesmo contexto em que o avalista é interveniente na relação extracartular pode de igual forma perante o credor cambiário que se situa nas relações imediatas invocar falta ou vícios na formação da vontade (vide artigos 240º e segs. do CC).
Tecidos estes considerandos sobre a natureza jurídica do aval e condicionalismo em que ao avalista é legítimo deduzir exceções relativas à relação subjacente perante o portador ou perante o mesmo invocar vícios de vontade, impõe-se dos mesmos retirar as necessárias consequências jurídicas relativamente à pretensão deduzida pela embargante que na qualidade de avalista foi demandada.
Fundou a ora recorrente a oposição à execução em alegada falta de consciência da declaração emitida por desconhecer a obrigação que assumia, tanto mais que na livrança dada à execução não constava aquando da sua assinatura a expressão “Dou o meu aval ao subscritor”.
Em causa erro vício da vontade por falta de consciência da declaração.
Tal como resulta da factualidade provada, a embargante/recorrente interveio no contrato subjacente à emissão da livrança dada à execução, nomeadamente no contrato de mútuo precisamente como garante/avalista.
E por esta via situa-se a mesma nas relações imediatas, o que lhe dá o direito de opor ao credor as exceções fundadas sobre as relações pessoais do devedor avalizado contra o portador que se encontra nas relações imediatas ou invocar o já mencionado vício de vontade.
Enquanto facto exceptivo obstativo da pretensão do portador exequente, à recorrente incumbia desde logo ter feito prova da factualidade demonstrativa de tal vício (artigo 342º do CC).
O fundamento do recurso deduzido estava dependente da alteração da decisão de facto, mantida pelos motivos acima expostos.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente confirmando a decisão proferida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
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Porto, 2018-09-24.
Fátima Andrade
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Abrangendo o vício de forma aquelas situações em que o simples exame do título na sua aparência objetiva evidencia que a obrigação do avalizado se não constituiu validamente ou não se constituiu de todo. Motivo por que na insubsistência da obrigação cambiária do avalizado resulta pelo simples exame do título não determinável a responsabilidade do avalizado [vide Carolina Cunha in Letras e Livranças, Paradigmas Atuais e Recompreensão de um Regime, ed. Almedina 2012, p. 114/115.
[2] vide Carolina Cunha in ob. Cit., p. 252.