Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
234/17.9PRPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
ARQUIVAMENTO
PROCESSO CRIME
COMPETÊNCIA
JULGAMENTO
Nº do Documento: RP20200401234/17.9PRPRT.P1
Data do Acordão: 04/01/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário:
Reclamações: Encerrado o inquérito com a prolação de despacho de acusação, no qual seja imputado o cometimento, em concurso, de crime e de contraordenação, não é admissível a separação posterior dos processos criminal e contraordenacional, com a remessa às entidades administrativas de certidão para conhecimento da contraordenação, mas antes cabe desde então ao tribunal criminal o conhecimento da matéria contraordenacional, independentemente do desfecho da ação penal.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 234/17.9PRPRT.P1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO:
No âmbito deste processo de comum, com intervenção do tribunal singular, tendo sido julgada extinta a responsabilidade criminal, por desistência de queixa, para além de extinta a instância civil, foi proferido despacho judicial em 10-10-2019 que determinou a remessa de certidão à autoridade administrativa (Direção de Serviços de Alimentação e Veterinária da Região Norte) para conhecimento de infração contraordenacional imputada ao arguido na acusação.
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, rematando a motivação com as seguintes.
CONCLUSÕES:
1 - O douto despacho recorrido enferma de erro “de jure”, na parte em que se abstém de decidir sobre a responsabilidade contra-ordenacional do arguido, entendendo não ter o Tribunal “ a quo” competência para tal.
2 - A determinada remessa de certidão à autoridade administrativa (DGAV) apenas pode ter lugar na fase de Inquérito, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 38.º do Regime Geral das Contra-Ordenações.
3 - Os artºs 38º e 39º do RGCO estipulam que a competência da jurisdição penal abrange o julgamento das contra-ordenações praticadas em concurso real com ilícitos criminais, sendo que a aplicação da coima e das sanções acessórias cabe ao juiz competente para o julgamento do crime; e o artigo 77.º nº 1 deste mesmo diploma estipula inclusivamente que o Tribunal pode apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime.
4 - A competência do Tribunal fixou-se aquando da prolação do despacho de saneamento proferido nos termos do artigo 311º do CPP, pelo que, sendo certo que a Acusação pública nos autos proferida imputava ao arguido a prática de um crime e de uma contra-ordenação, e atento o princípio da suficiência do processo penal – cfr. artigo 7.º/1 do CPP, o Tribunal “ a quo” não só tem competência para julgar a contra-ordenação imputada ao arguido, como sobre si impende o poder-dever de o fazer: tal competência não cessa em relação à apreciação da matéria contra-ordenacional, pelo facto de o procedimento criminal ser declarado extinto por desistência de queixa.
5 - O douto despacho recorrido violou, no segmento em que se abstém de apreciar a matéria contra-ordenacional, dando sem efeito o julgamento designado, o disposto nos artºs. 38º, 39º, 77º do Regime Geral das Contra-Ordenações, e, bem assim, os artºs 7º/1 e 311º do CPP, pelo que, revogando-o nesta parte, e determinando a sua substituição por diversa decisão, que determine o prosseguimento dos Autos, para Julgamento da contra-ordenação por cuja prática o arguido se encontra acusado,

Farão Vª.s. Excelências

JUSTIÇA.
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Não foi apresentada resposta.
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Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer em que sustenta a procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:
A. Despacho recorrido:
O(A)(s) arguido(a)(s), B…, com os demais sinais nos autos, encontra(m)-se acusado(a)(s), nos presentes autos, da prática de um crime(s) de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artº 148º, nº 1 do CP e da contraordenação, p. e p. pelo artº 6º do D.L. nº 276/2001, de 17/10, com a redação introduzida pelo D.L. nº 260/2012, de 12/12 e artº 68º, nº 2, al. b) e 69º, do mesmo diploma legal.
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A fls. 152 a 155, a ofendida apresentou desistência da queixa a favor do(a)(s) arguido(a)(s).
Por sua vez, o(a)(s) arguido(a)(s) não se opõe(m) a tal desistência (cfr., fls. 152 a 155 ).
Pelo MºPº foi dito nada ter a opor à desistência da queixa apresentada, no que toca a tal crime.
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Atenta a desistência de queixa da ofendida, a sua aceitação pelo(a)(s) arguido(a)(s) e o disposto nos artºs 116º, nº 2 e 148º, nº 4, ambos do CP e 51º do CPP, homologo a desistência de queixa apresentada, por ser válida e legal, e, em consequência, julgo extinto o procedimento criminal instaurado contra o(a)(s) mesmo(a)(s), ordenando o oportuno arquivamento dos autos.
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Fls. 152 a 155 :
Face à qualidade dos intervenientes e à natureza disponível do objeto do processo, julgo válida e relevante a desistência apresentada, quanto ao pedido cível de fls. 119, homologando a mesma e declarando, em consequência, extinta a instância cível (art.º 285º, nº 1, 290º e 277º, al. d), todos do CPC).
Custas pela requerente (artº 537º, nº 1 do CPC).
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Julgo extinta a instância quanto ao pedido cível de fls. 107 e 108, por impossibilidade superveniente da lide (artº 277º, al. e) do CPC).
Sem custas (artº 4º, nº 1, al. n) do RCP).
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Subsistindo apenas a referida contraordenação, a qual é punível com coima cujo montante mínimo é de €500 e o máximo de €3740 e carecendo, em nosso entender, este Tribunal de competência apenas para a sua apreciação, determino que, oportunamente, se extraía certidão de fls. 5 (auto de notícia), 59 a 93 (processo de contraordenação), 97/98 (acusação) e do presente despacho e ordeno a sua remessa à Direção de Serviços de Alimentação e Veterinária da Região Norte (DGAV), para ulterior processamento administrativo de tal contraordenação (cfr., a este propósito, artº 130º, nº 2 al. d) e 4º, al. b) da Lei nº 62/2013, de 26/8, alterada pela Lei nº 40-A/2016, de 22/12 – Lei da Organização do Sistema Judiciário).
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Sem efeito o julgamento designado.
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Notifique.
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A. Elementos processuais relevantes:
1. Acusação de 10-10-2018:
Em processo comum e com intervenção de tribunal singular, o Ministério Público vem deduzir acusação contra o arguido.
B…, nascido em ......1958, casado, advogado, portador do B.I. nº , ………, residente na Rua …, nº .., … . piso, Porto, porquanto indiciam suficientemente os autos que:
No dia 12.3.2017, pelas 13h20, quando a ofendida C… passava junto a um jardim sito nas imediações da Rua …, foi abordada por um canídeo da raça D… que a mordeu no antebraço esquerdo, rasgando-lhe o casaco polar que vestia e projetando-a ao chão.
O mencionado canídeo pertencia ao arguido B… e encontrava-se naquele local sem qualquer trela ou açaime.
Em consequência daquela mordidela a ofendida ficou com uma lesão escoriada no antebraço do membro superior esquerdo e equimoses na coxa do membro inferior esquerdo.
Tais lesões determinaram 8 dias para a cura sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional - tudo conforme relatório médico-legal de fls. 18 a 20, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
O arguido sabia que era obrigado a levar o seu cão à rua com uma trela e que o deveria manter preso e junto a si no entanto, não o fez, e deixou-o solto e livre naquele local, não evitando, por isso, que o mesmo mordesse a ofendida.
O arguido não agiu, pois, com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz.
O arguido conhecia o caráter proibido e punido da conduta que adotou.
Com a factualidade descrita, o arguido incorreu na prática de:
- um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 148º/1 do C.Penal e,
- a contra-ordenação p. e p. pelo art.º 6.º do D.L. nº 276/2001, de 17 de Outubro, com a redação introduzida pelo D.L. 260/2012, de 12 de Dezembro e art.º 68.º, nº 2, al. b) e 69.º, do mesmo diploma legal.
(…)
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2. Despacho judicial de 17-01-2018:
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Autue como processo comum com intervenção do Tribunal Singular.
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O Tribunal é competente.
Não há nulidades nem outras questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa.
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1ª Data da audiência: (…);
2ª Data da audiência: (…).
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O arguido, B…, será julgado pela prática dos factos narrados na acusação pública de fls. 97 e 98 e pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artº 148º, nº 1 do Código Penal (CP) e da contraordenação, p. e p. pelo artº 6º do D.L. nº 276/2001, de 17/10, com a redação introduzida pelo D.L. nº 260/2012, de 12/12 e artº 68º, nº 2, al. b) e 69º, do mesmo diploma legal.
(…)
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B. APRECIAÇÃO DO RECURSO:
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.
Neste recurso a única questão colocada consiste em saber se, deduzida acusação pela prática, em concurso, de um crime e de uma contraordenação, e extinta a responsabilidade criminal em momento anterior ao julgamento da causa, o tribunal mantém competência para o conhecimento da contraordenação.
Importa, desde já, esclarecer que, face às normas legais aplicáveis, se impõe resposta afirmativa à questão suscitada.
Vejamos.
No caso presente, decorre dos elementos coligidos supra que o arguido foi acusado em processo comum, com intervenção do tribunal singular, pela prática em concurso de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, e de uma contraordenação, p. e p. pelos artigos 6.º, 68.º, n.º 2, alínea b), e 69.º, do DL n.º 276/2001, de 17/10 (com a redação dada pelo DL n.º 260/2012, de 12-12), tendo sido recebida a acusação e designada data para julgamento. Posteriormente foi homologada a desistência de queixa apresentada pela ofendida, para além de extinta a instância cível, antes do julgamento, sendo nessa sequência proferida a decisão ora recorrida.
De acordo com o entendimento expresso pelo tribunal a quo a competência inicialmente reconhecida ao tribunal criminal para apreciar a imputação contraordenacional constante da acusação pública deixou de subsistir com a extinção do procedimento criminal, passando então a ser aplicável o regime legal do processamento das contraordenações.
Sucede que tal entendimento ignora o circunstancialismo que justificou a submissão a julgamento conjunto das condutas imputadas ao arguido, não tem suporte legal e mais ainda viola norma legal aplicável.
Na realidade, a situação processual gerada nestes autos com a extinção do procedimento criminal não é equivalente àquela que ocorreria se ab initio ao arguido estivesse unicamente atribuída a autoria de infração contraordenacional, nem como tal deve ser analisada.
Diversamente deve ser contextualizado que nos presentes autos foi deduzida acusação contra o arguido sob a imputação da prática em concurso de um ilícito criminal e de um ilícito contraordenacional, tendo o processo prosseguido para a fase de julgamento. Nesta fase processual veio a ser declarado extinto o procedimento criminal, antes de ser realizado o julgamento, subsistindo para conhecimento a responsabilidade pela imputada contraordenação. Portanto, não pode ser desconsiderado o percurso processual seguido e a fase alcançada para se decidir sobre se a competência para conhecer da matéria contraordenacional pertence à autoridade administrativa ou compete ao tribunal criminal.
Depois, conforme refere o recorrente, a competência do tribunal a quo para apreciar a responsabilidade contraordenacional decorre da regra especial de competência por conexão constante do artigo 38.º, n.º 1, do RGCO (DL n.º 433/82, de 27-10), que confere às autoridades competentes para o processo criminal o processamento por contraordenação[1].
De harmonia com o disposto no citado artigo 38.º, n.º 1, do RGCO, o processamento da contraordenação cabe às autoridades competentes para o processo criminal, quando se verifique concurso de crime e contraordenação, ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a título de crime e outra a título de contraordenação[2].
Mais estatui o n.º 3 do mesmo preceito legal que se arquivar o processo criminal mas entender que subsiste a responsabilidade pela contraordenação o Ministério Público remeterá o processo à autoridade administrativa competente.
Assim, ao Ministério Público compete a tramitação do processo de contraordenação conjuntamente com a investigação do ilícito criminal conexo e apenas é admitida a devolução ou remessa do processo para as autoridades administrativas, com vista ao processamento da contraordenação, no caso de ser proferida decisão que arquive o inquérito relativamente à matéria criminal e simultaneamente considere subsistirem os pressupostos da responsabilidade contraordenacional.
Encerrado o inquérito com a prolação de despacho de acusação, no qual seja imputado o cometimento em concurso de crime e de contraordenação, não é admissível a separação posterior de processos criminal e contraordenacional, com a remessa às entidades administrativas de certidão para conhecimento da contraordenação, mas antes cabe desde então ao tribunal criminal o conhecimento da matéria contraordenacional, independentemente do desfecho da ação penal[3].
Por conseguinte, a determinação constante do despacho proferido pelo tribunal a quo, na fase de julgamento, no sentido de, por ter sido declarada a extinção do procedimento criminal, competir à autoridade administrativa o processamento posterior da contraordenação carece de fundamento legal.
Ademais, tal segmento decisório envolve violação da norma contida na previsão do artigo 31.º, n.º 1, alínea a), do Código Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, na medida em que ali se regula a situação em que se extinga a responsabilidade criminal relativa ao crime determinante da competência por conexão antes do julgamento, e se preceitua que, apesar disso, persiste a competência por conexão. O que transposto para o caso em análise significa que a extinção da responsabilidade criminal não implica modificação ao nível da competência por conexão derivada da regra especial prevista no citado artigo 38.º, n.º 1, do RGCO, ou seja, a competência do tribunal criminal para o conhecimento de contraordenação imputada em concurso real com a prática de um crime mantém-se, não obstante a responsabilidade criminal se extinguir antes de realizado o julgamento, por isso, o processo deve prosseguir para julgamento da infração contraordenacional.
No seguimento do exposto conclui-se que, nas circunstâncias descritas, o tribunal a quo é competente para apreciar a responsabilidade contraordenacional imputada ao arguido na acusação[4], pelo se impõe revogar o decidido e determinar o prosseguimento do processo com julgamento da matéria contraordenacional, assinalando-se que deverá atentar-se no decurso do prazo prescricional (vd. artigos 27.º, alínea b), 27.º a) e 28.º do RGCO).
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III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam que, em substituição, seja determinado o prosseguimento dos autos para apreciação da responsabilidade contraordenacional imputada ao arguido na acusação.
Sem custas.
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Porto, 01-04-2020
Maria dos Prazeres Silva
William Themudo Gilman
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[1] Cf. António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, pág. 360.
[2] Aliás, nessas circunstâncias se estiver pendente um processo na autoridade administrativa, devem os autos ser remetidos à autoridade competente para o processo criminal, nos termos do n.º 2 do artigo 38.º do RGCO.
[3] Vd. Neste sentido, para além da jurisprudência citada no recurso, o acórdão da Relação de Coimbra de 24-10-2018, proc. 137/18.0T9LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt, mormente no segmento seguinte: Cumpre ainda assinalar que nos termos do n.º 3 do art 38º a remessa do processo de contraordenação do MP para a autoridade administrativa só pode ocorrer quando o MP arquivar o processo crime, e entender que subsiste a contraordenação. Em suma, o julgamento da contraordenação compete ao juiz criminalmente competente.
Com efeito, só a (estrita) obediência ao mandado de esgotante apreciação do ilícito ocasionará a curial (e desejável) densificação, quer do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido (art.º 32.º, n.º 1, do CRP), quer do princípio da presunção da inocência (art.º 32.º, n.º 2, da CRP).(…)
[4] Vd. No mesmo sentido o Acórdão da Relação de Évora de 08-05-2018, proc. 45/12.8FBOLH.E1, citado no recurso, disponível em www.dgsipt, no segmento seguinte: Uma vez proferida acusação por crime e por contra-ordenação, em concurso efectivo, proferido despacho de saneamento que recebeu, nos seus precisos termos o despacho acusatório, e adiante extinto o procedimento criminal, sobrando o procedimento contra-ordenacional nos termos acusados, impende sobre o tribunal o poder-dever de apreciar a responsabilidade contra-ordenacional imputada à arguida.