Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
300/18.3GAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: QUEIXA
PODERES
RATIFICAÇÃO
PRAZO
Nº do Documento: RP20211013300/18.3GAVFR.P1
Data do Acordão: 10/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O ato praticado por quem não possui os necessários poderes para o fazer não é um ato inválido, mas apenas inquinado de simples ineficácia, sanável através de «ratificação».
II - Daí que, não se tratando de «ato juridicamente inexistente» nem ferido de «nulidade absoluta», sendo ratificado pelo titular do direito ofendido, adquira toda a sua eficácia.
III - «A ratificação» opera retroativamente ab initio.
IV - “A queixa apresentada por uma pessoa sem poderes de representação doutra apenas é ineficaz em relação a ela se não for ratificada no prazo que for assinalado para o efeito”.
V - Sabendo-se que para a apresentação da queixa não é exigida forma especial, assim também não será exigida forma especial para a ratificação da queixa, considerando-se esta tempestiva, se aquela foi tempestivamente apresentada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 300/18.3GAVFR.P1
Recurso Penal
Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira (Juiz 2)

Acordam, em audiência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I - Relatório
No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 300/18.3GAVFR, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, foi proferida sentença datada de 26/3/2021 e depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo:
“Nos termos expostos, decido:
1) Condenar o arguido B…, pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, fixando-se o quantitativo diário em €12 (doze euros), perfazendo o montante global de €1.200 (mil e duzentos euros).
2) Condenar o arguido C…, pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de dois anos, com subordinação a regime de prova, assente em plano de readaptação social, e condicionada ao cumprimento dos seguintes deveres e regras de conduta:
- desempenhar atividade profissional (com carácter de estabilidade e fiscalmente declarada) ou letiva (por exemplo, a frequência do ensino recorrente ou de validação de competências informais ou outro);
- apresentar-se periodicamente da DGRSP com vista à apreciação da evolução e cumprimento do supra determinado.
- comunicar ao Tribunal a alteração de residência e requerer autorização para ausência para o estrangeiro;
- a obrigação de se apresentar, quando convocado, neste Tribunal ou nos Serviços da Direcção-geral de Reinserção Social.
3) Condenar os arguidos nas custas criminais do processo, fixando a taxa de justiça no mínimo legal – artigo 513.º, n.º 1, do Código Penal.”
Inconformados com a decisão condenatória, dela interpuseram recurso os arguidos para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que a seguir se transcrevem (….)
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Os recursos foram admitidos para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a inobservância, pelos recorrentes, dos requisitos formais e materiais impostos pelo art.º 412.º do CPP no que concerne às conclusões dos respetivos recursos.
Pugnou, ainda, pela improcedência dos recursos e consequente manutenção da decisão recorrida, nos termos constantes do respetivo articulado e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pronunciou-se pela negação de provimento aos recursos e confirmação da sentença recorrida.
Salientou a correção da decisão do tribunal a quo sobre a pretensa extinção do direito de queixa, acrescentando que não se verifica, igualmente, o vício do erro notório na apreciação da prova e, por último, que nenhum reparo merecem as medidas concretas das penas aplicadas aos arguidos, que são justas e adequadas.
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Cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do Código do Processo Penal, não foi apresentada resposta pelos recorrentes.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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A título prévio importa assinalar que, na nossa perspetiva, as conclusões dos recursos são inteligíveis e obedecem aos requisitos estipulados no art.º 412.º do CPP.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) Quanto ao recurso apresentado pelo arguido C…:
a) A “ratificação da queixa” foi efetuada depois de decorrido o prazo legalmente previsto para o exercício do direito de queixa, encontrando-se, portanto, extinto, pelo decurso daquele prazo, tal direito?
b) A decisão recorrida enferma do vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP (erro notório na apreciação da prova), por referência aos factos assentes constantes dos pontos 1) a 3) e 5) a 7), tendo sido, para além disso, violado o princípio in dubio pro reo?
c) O prazo e as condições estipuladas para a suspensão da execução da pena de prisão mostram-se excessivos e desproporcionados, devendo a suspensão ser determinada pelo período de um ano e com exclusão do elenco dos deveres e regras de conduta impostos ao arguido da obrigação de este desempenhar atividade profissional (com carácter de estabilidade e fiscalmente declarada) ou letiva?
2) Relativamente ao recurso apresentado pelo arguido B…:
a) Deve ser declarado extinto o procedimento criminal por ausência de queixa válida apresentada no tempo legalmente previsto?
b) A factualidade assente constante dos pontos 1) a 3) e 5) a 7) foi incorretamente julgada, com violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo?
c) A pena de multa aplicada mostra-se excessiva e desproporcionada, quer por referência aos dias de multa determinados, quer no que se refere ao respetivo quantitativo diário, que deverá ser reduzido ao mínimo legal?
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
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Factos provados e não provados (transcrição):
1) No dia 28 de Maio de 2018, em hora anterior às 23:00 horas, de acordo com um plano previamente combinado entre ambos, os arguidos C… e B… dirigiram-se, no veículo de matrícula ..-..-SU, ao estaleiro da Junta de Freguesia de …, sito na Rua …, em …, Santa Maria da Feira, no interior do qual se encontravam várias máquinas pertencentes à sociedade D…, Lda., gerida por E….
2) Lá chegados, após se terem introduzido no dito estaleiro, subtraíram, com recurso a uma mangueira de dois metros, 75 litros de gasóleo do depósito de combustível das máquinas que lá se encontravam estacionadas, no valor de €111,68, enchendo três bidões de vinte e cinco litros cada.
3) Nesse momento, apercebendo-se da presença nas imediações dos Militares pertencentes ao Posto Territorial de …. da Guarda Nacional Republicana, os arguidos colocaram-se em fuga, abandonando os referidos bidões de gasóleo no interior do mencionado estaleiro.
4) Os referidos bidões de gasóleo foram apreendidos no local pela Guarda Nacional Republicana e logo entregues ao representante da sociedade ofendida.
5) Ao agirem como se descreveu, os arguidos fizeram-no com a intenção alcançada de se introduzirem no interior do referido estaleiro e assim se apoderarem do gasóleo acima descrito e fazê-lo coisa sua, apesar de saberem que não estavam autorizados a aí entrar, que o gasóleo não lhes não pertencia e que agiam contra a vontade e sem o consentimento da sua proprietária.
6) Os mesmos atuaram de acordo com um plano previamente combinado entre ambos, em comunhão de esforços, vontades e fins, tendo a atuação parcial de cada um sido determinante para a obtenção do resultado que almejavam e que apenas não concretizaram por terem sido surpreendidos antes de carregar os bidões de gasóleo para a viatura automóvel em que se fizeram transportar até àquele local.
7) Agiram livre, voluntária e conscientemente e, embora soubessem que praticavam factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiram de os concretizar.
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Mais se provou com relevância para a determinação da sanção aplicável:
8) À data dos factos o arguido B… não tinha antecedentes criminais.
9) À data dos factos o arguido C… já havia sido julgado e condenado, por decisão proferida no dia 21 de Junho de 2017, transitada em julgado no dia 6 de Setembro de 2017, no âmbito do processo comum singular n.º 255/16.9PHVNG, do Juízo local criminal de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, na pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada a regime de prova, pela prática, no dia 25 de Maio de 2016, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal. Tal pena foi julgada extinta no dia 6 de Novembro de 2019.
10) O arguido C… tem o 4.º ano de escolaridade e encontra-se desempregado há, pelo menos, um ano e meio, aduzindo desempenhar trabalhos esporádicos como mecânico, auferindo proventos não apurados.
11) Vive com a sua mulher, a qual também não desempenha qualquer atividade profissional, um filho, de vinte e quatro anos de idade, igualmente desempregado, há, pelo menos, quatro anos, e uma filha, de nove anos de idade, a qual frequenta o 3.º ano do ensino básico.
12) O agregado familiar beneficia de rendimento social de inserção no monte de €510 mensais e de €30 de prestação familiar.
13) Vivem em casa arrendada, pagando uma renda de €170 mensais.
14) O casal é dono de um veículo automóvel, da marca “Peugeot”, modelo …, do ano de 2002.
15) O arguido B… tem o 4.º ano de escolaridade e desempenha a atividade profissional de colocação de tetos falsos, por conta própria, há cerca de dois anos.
16) Vive com a sua mulher, a qual trabalha como auxiliar num Lar, auferindo o vencimento de €670 mensais, e dois filhos, de nove e dezasseis anos de idade, ambos estudantes.
17) O agregado reside em casa própria.
18) O casal é dono de dois veículos automóveis, um da marca “Mercedes”, modelo “…”, do ano de 2000, outro da marca “Toyota”, modelo “…”, do ano de 1987, sendo o primeiro utilizado pela mulher do arguido e o segundo por este último.
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Matéria de facto não provada
Da acusação pública:
a) O estaleiro supra descrito é um espaço totalmente fechado por um muro e um portão com rede.
b) Os arguidos entraram no dito estaleiro transpondo o muro de vedação.
c) Os arguidos subtraíram cinco bidões em plástico, no valor de €125.”.
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Apreciação dos fundamentos do recurso.
I) Extinção do direito de queixa.
Defendem os recorrentes que a apresentação de queixa - a “ratificação da queixa” – foi apresentada depois de decorrido o prazo legalmente previsto para o exercício do direito de queixa, encontrando-se, portanto, extinto, pelo decurso daquele prazo, tal direito.
Debruçando-se sobre esta questão, o tribunal de primeira instância proferiu a seguinte decisão a título prévio, na sentença recorrida:
“Questão prévia
Da extinção do direito de queixa
Em sede de alegações finais, a defesa do arguido C… veio invocar a extinção do direito de queixa, aduzindo, em síntese, que a efetiva legal representante da sociedade ofendida apenas ratificou a queixa apresentada pelo sócio não gerente no dia 21 de Dezembro de 2018 (cfr. folhas 100) e, por isso, já depois dos seis meses para apresentação tempestiva da queixa.
Compulsados os autos, constata-se que, efetivamente, a queixa foi apresentada por quem não tinha poderes para tanto, pelo que foi determinada a notificação da gerente da sociedade ofendida (cfr. auto de notícia de folhas 13, certidão perante de folhas 89 a 96 e despacho de folhas 97), a qual veio a ratificar a queixa apresentada no dia 21 de Dezembro de 2018 (cfr. folhas 100).
Contudo, na medida em que a queixa foi apresentada por quem não tinha poderes para o ato, estamos perante uma situação de irregularidade da representação, a qual não torna o ato (a queixa) juridicamente inexistente. A queixa não é um ato inválido, mas apenas um ato inquinado de simples ineficácia que pode ser remediada ou suprida através de ratificação, nos termos que decorre da jurisprudência fixada no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/94, de 27 de Setembro, publicado no Diário da República, Iª série-A, de 4 de Novembro de 1994.
Como se salienta no Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/94, de 27 de Setembro, publicado no Diário da República, Iª série-A, de 4 de Novembro de 1994, que passaremos a transcrever «É abundante a jurisprudência incidente sobre a questão de direito que nos preocupa, «efeito de ratificação nos casos em que se esgotou, já, aquele prazo fixado para o exercício de direito de queixa».».
No domínio do Código de Processo Penal de 1929, na segunda parte do § 2.º do seu artigo 101.º, estabelecia-se que a pessoa ofendida, em casos semelhantes ao agora em apreço, poderia validar o processo desde que declarasse, em qualquer estado da causa, que desejava se tomasse conhecimento do facto em juízo, sendo certo não conter o atual Código de Processo Penal disposição semelhante ou equivalente à que foi referenciada e constava do diploma processual penal anterior.
Em defesa da tese de que «o decurso do prazo de caducidade fixado pelo artigo 112.º do Código Penal constitui obstáculo inultrapassável ao exercício do direito de queixa» poderá dizer-se que, se o diploma p. penal não contém disposição semelhante à já referenciada do Código de Processo Penal de 1929, tal significará que o legislador não pretendeu consagrar a solução que anteriormente vigorava e que, não sendo o direito exercido por aquele que é o seu titular, tudo se passa como se não tivesse sido exercido, daí que, expirado o prazo fixado, o mesmo se extinguiu e a ratificação, ainda que opere retroativamente, não possa operar após a ocorrência da caducidade sem que se olvide o carácter pessoalíssimo do exercício do direito de queixa, ter o legislador pretendido evitar a intromissão de pessoas alheias à ofensa no impulso processual e não ter querido deixar indefinidamente ao arbítrio do ofendido a iniciativa da perseguição penal.
Afigura-se, porém, de seguir a solução contrária à acabada de apontar, dado que:
Se o legislador não incluiu, no ora vigente Código de Processo Penal, uma disposição semelhante à contida na segunda parte do § 2.º do artigo 101.º do Código de Processo Penal de 1929, tal circunstância não poderá afastar a conclusão de isso unicamente se verificar por se ter entendido que seria de aplicar in casu o regime do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal;
O afirmar-se ter de considerar-se extinto o direito de queixa se a ratificação não tiver sido feita antes do decurso do prazo referido no artigo 112.º do Código Penal corresponderia ao entendimento de que «a ratificação» não tem efeito retroativo em todos os casos, operando ex tunc;
O ato praticado por quem não possui os necessários poderes para o fazer não é um ato inválido, mas apenas inquinado de simples ineficácia, sanável através de «ratificação», daí que, não se tratando de «ato juridicamente inexistente» nem ferido de «nulidade absoluta», sendo ratificado pelo titular do direito ofendido, adquira toda a sua eficácia, uma vez ser aceite uniformemente que «a ratificação» opera retroativamente ab initio, garantida assim ficando a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal. (citado aresto).
Nestes termos, e aderindo totalmente aos fundamentos da jurisprudência fixada, cremos que a irregularidade da representação não torna o ato (a queixa) juridicamente inexistente. A queixa não é um ato inválido, mas apenas um ato inquinado de simples ineficácia que pode ser remediada ou suprida através de ratificação.
Considerando que a ratificação opera retroativamente ab initio, a ratificação dos atos anteriormente praticados faz com que os atos anteriormente praticados passem a valer como se ele próprio (o titular do direito de queixa) os tivesse praticado.
Com a ratificação da queixa (e de todo o processado) pelo representante legal da sociedade ofendida, ficou garantida a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal relativamente aos factos de que aquela foi vítima (a subsidiariedade das disposições de processo civil que se harmonizem com o processo penal – artigo 4.º do Código de Processo Penal – justifica a aplicação do regime que decorre do artigo 23.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Assim, nos termos supra expostos, julgo improcedente a invocada extinção do direito de queixa.”.
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Os pressupostos processuais – verdadeiros obstáculos processuais ao procedimento criminal – podem ser conhecidos oficiosamente ou a requerimento [1].
Nas fases de instrução, de julgamento e de recurso, a competência para controlar os pressupostos processuais pertence, respetivamente, ao juiz de instrução, ao juiz de julgamento antes da audiência de julgamento (art.º 311.º, n.º 1 do CPP), ao tribunal durante a audiência de julgamento (art.º 338.º, n.º 1 e art.º 368.º, n.º 1) e ao relator na fase de recurso (art.º 417.º, n.º 6, alínea c)).
A legitimidade dos sujeitos processuais, incluindo a tempestividade do exercício do direito de queixa, fica, assim, sujeita à atividade de fiscalização do juiz de julgamento, na fase de saneamento do processo a que alude o art.º 311.º, n.º 1, do CPP.
No presente caso, o juiz de julgamento reconheceu que, efetivamente, a queixa foi apresentada por quem não tinha poderes para o efeito, tendo a gerente da sociedade ofendida ratificado a queixa apresentada no dia 21 de dezembro de 2018 e, portanto, para além do prazo de seis meses legalmente previsto para o exercício de tal direito.
Contudo, apelando aos ensinamentos contidos no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/94, de 27 de setembro, publicado no Diário da República, Iª série-A, de 4 de novembro de 1994, considerou que a irregularidade da representação não torna o ato (a queixa) juridicamente inexistente ou inválido, mas apenas ineficaz, ineficácia que pode ser suprida através de ratificação, mesmo que apresentada para além do prazo de seis meses estipulado no art.º 115.º do Código Penal.
Analisado este aresto verificamos que, para a defesa da tese contrária àquela que assentava no entendimento de que “o decurso do prazo de caducidade fixado pelo artigo 112.º do Código Penal constitui obstáculo inultrapassável ao exercício do direito de queixa”, foram invocados os seguintes argumentos:
- Se o legislador não incluiu, no ora vigente Código de Processo Penal, uma disposição semelhante à contida na segunda parte do § 2.º do artigo 101.º do Código de Processo Penal de 1929, tal circunstância não poderá afastar a conclusão de isso unicamente se verificar por se ter entendido que seria de aplicar in casu o regime do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal;
- O afirmar-se ter de considerar-se extinto o direito de queixa se a ratificação não tiver sido feita antes do decurso do prazo referido no artigo 112.º do Código Penal corresponderia ao entendimento de que «a ratificação» não tem efeito retroativo em todos os casos, operando ex tunc;
- O ato praticado por quem não possui os necessários poderes para o fazer não é um ato inválido, mas apenas inquinado de simples ineficácia, sanável através de «ratificação», daí que, não se tratando de «ato juridicamente inexistente» nem ferido de «nulidade absoluta», sendo ratificado pelo titular do direito ofendido, adquira toda a sua eficácia, uma vez ser aceite uniformemente que «a ratificação» opera retroativamente ab initio, garantida assim ficando a legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal.
Esta jurisprudência foi, de resto, reiterada no acórdão do STJ n.º 1/97, publicado no DR Série I-A de 1/10/1997, que fixou jurisprudência no sentido de que «Apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respetivo - mesmo que após o prazo previsto no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal de 1982.»
Tal orientação jurisprudencial permanece atual, como se reconhece no acórdão deste TRP de 13/9/2017 [2], reiterando-se que o prazo de caducidade em questão deverá abranger apenas a queixa, e já não a sua ratificação, sendo plenamente aplicável à hipótese que aqui nos ocupa, uma vez que, na falta de regime diverso contido na lei penal, a própria lei regula a representação sem poderes no artigo 268º do Código Civil.
Esta norma, depois de preceituar no seu n.º 1 que “o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este se não for por ele ratificado ", acrescenta no n.º 2 que "a ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroativa, sem prejuízo dos direitos de terceiro".
Assim, “A queixa apresentada por uma pessoa sem poderes de representação doutra apenas é ineficaz em relação a ela se não for ratificada no prazo que for assinalado para o efeito” – como foi salientado no acórdão deste TRP de 12/10/2016 [3].
No mesmo sentido pode ver-se o acórdão do TRL proferido em 17/4/2013 [4], no âmbito do qual foi igualmente sustentado, e sumariado, o seguinte (segue transcrição parcial):
“1 -Tendo uma queixa sido apresentada por pessoa que se apresentou como representante da pessoa coletiva titular do direito de queixa – não sendo mandatário forense -, sem que se mostrem comprovados os seus poderes especiais para expressar tal queixa em nome da representada, o Tribunal não pode considerar extinto o direito de queixa se a ratificação não tiver sido feita antes do decurso do prazo de seis meses referido no artigo 112º do Código Penal, pois tal solução corresponderia ao entendimento de que a ratificação não tem efeito retroativo em todos os casos, operando ex tunc (artigo 268º, nº 2, do Código Civil);
2 -Tal queixa, apresentada no prazo legal, corporiza um exercício tempestivo e válido do direito de queixa, embora não seja plenamente eficaz. […]”.
Sabendo-se que para a apresentação da queixa não é exigida forma especial, assim também não será exigida forma especial para a ratificação da queixa, tendo, por conseguinte, de considerar-se a ratificação apresentada nos autos como válida e eficaz, suscetível de sanar o vício decorrente da apresentação de queixa por pessoa diversa da sócia gerente da sociedade ofendida.
Nestas circunstâncias, e assim tendo sido decidido, nenhuma censura merece a sentença recorrida.
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II) Vícios decisórios e impugnação da matéria de facto – violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.(…)
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III) Prazo e condições da pena de prisão suspensa aplicada ao recorrente C….
IV) Dosimetria da pena de multa aplicada ao recorrente B… (…).
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido C… e em conceder parcial provimento ao recurso do arguido B…, reduzindo-se o quantitativo diário da pena de cem dias de multa aplicada de 12€ para 7€ (sete euros), confirmando-se, quanto ao demais decidido, a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente C…, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (art.º 513.º do CPP).
Notifique.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)
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Porto, 13 de outubro de 2021.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
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[1] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª edição anotada, em anotação aos artigos 311.º e 277.º, do CPP.
[2] Relatado pelo Desembargador Moreira Ramos e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[3] Relatado pelo Desembargador Castela Rio e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível para consulta em www.dgsi.pt.