Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
240/18.6T8AMT-H.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
AMPLITUDE DOS PODERES DA RELAÇÃO
NULIDADES OFICIOSAMENTE CONHECIDAS EM RECURSO
Nº do Documento: RP20210920240/18.6T8AMT-H.P1
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A anulação da decisão da primeira instância e o recurso ao mecanismo previsto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, deve reservar-se para os casos em que se revele indispensável, não bastando que os factos objecto da ampliação pretendida tenham alguma conexão com uma das “soluções plausíveis da questão de direito”;
II – Não se revela a necessidade de ampliação da matéria de facto por essa via se o próprio recorrente defende que, por via de um juízo inferencial, é possível considerar provada essa matéria factual;
III - Em processo civil, o objecto dos recursos é determinado pela regra tantum devolutum quantum iudicatum, nos recursos julga-se a decisão viciada nos limites do objecto desta, o mesmo é dizer que a matéria de que trata o recurso deve coincidir com a matéria da decisão recorrida;
IV - A nulidade de um negócio jurídico só pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal se o processo fornecer os elementos indispensáveis e, para tanto, há que distinguir o vício de que possa padecer o acto e o respectivo efeito, ou seja, a consequência legalmente cominada para essa patologia;
V - Não é legítimo falar em prejudicialidade do acto de alienação de imóvel para a massa insolvente se é a própria adquirente quem, adiantando o valor necessário, permitiu que a devedora comprasse o mesmo imóvel, pelo seu valor residual, à locadora financeira;
VI - Não pode imputar-se à compradora uma actuação de má fé se a factualidade provada, não impugnada, aponta para uma situação económica difícil, tal como a define o artigo 17.º-B do CIRE, e não para uma situação de insolvência eminente da vendedora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 240/18.6 T8AMT-H.P1
Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante (J2)
Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
IRelatório
Em 06.08.2018, “B…, veio, por apenso ao processo de insolvência que corre termos pelo Juízo de Comércio de Amarante (J2), Comarca de Porto Este, em que é insolvente “C…, L.da”, intentar contra a respectiva “MASSA INSOLVENTE” acção de impugnação de resolução em benefício desta, alegando, em síntese[1]:
Por carta registada de 13.06.2018, recepcionada no dia seguinte, foi notificado pelo Sr. Administrador de Insolvência (AI) da resolução do contrato de compra e venda que celebrou com a sociedade “C…, L.da” (insolvente) tendo por objecto o prédio urbano composto por pavilhão de dois pisos, com logradouro, com a área coberta de 3.633 m2 e a área descoberta de 6 367 m2, sito na Rua…,…, freguesia de…, Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número … daquela freguesia, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo …, cujo valor patrimonial era, à data do negócio, de €765.560,00.
Porém, a declaração resolutiva carece de fundamento legal.
O B… foi criado pelo DL 104/2009, de 12 de Maio, e está especialmente vocacionado para a aquisição de imóveis integrados no património de empresas em situação económica difícil como forma de dotação destas de recursos financeiros imediatos, aquisição normalmente acompanhada da reserva da utilização e da obrigação de recompra desses mesmos imóveis pelas empresas transmitentes.
A compra e venda foi formalizada em 4 de outubro de 2017, mas previamente efetuou uma série de diligências tendentes a averiguar a situação patrimonial e financeira da “C…, L.da”, a fim e apurar se esta se enquadrava no quadro legal que permitia a intervenção do B….
Analisada a situação financeira da empresa por entidade especializada e por si mandatada para o efeito, veio esta a concluir que a vendedora estava em dificuldades económicas, mas tinha capacidade de resolver tal situação, mediante uma série de reestruturações, que lhe foram impostas.
Foi nesse contexto que o negócio se concretizou, por um valor que resultou da média de duas das avaliações imobiliárias efetuadas e, no mesmo contrato, não só foi conferido à vendedora o arrendamento do imóvel transacionado, com renda calculada em função daquele valor, mas também a possibilidade de o recomprar.
Pagou o valor acordado pela venda (€1.346.000,00) pelo que o negócio não foi ruinoso para os credores.
Conforme acordado, reteve o valor de 8.539,13€ para pagamento das rendas referentes aos 28 dias de outubro de 2017 e para o mês de Novembro de 2017, bem como a quantia de 40.380,00€ a titulo de caução destinada a garantir o cumprimento das obrigações que do contrato decorrem para a vendedora.
Realça que a situação financeira difícil das empresas é condição para se candidatarem a este fundo do Estado, que exclui do seu âmbito sociedades financeiramente saudáveis e acrescenta que, à data da candidatura, a vendedora apresentou certidões comprovativas de ter a sua situação fiscal e contributiva regularizada.
Adquiriu tal imóvel de boa fé e convicto de que com tal aquisição estaria a reforçar a tesouraria da ora insolvente, para além de liquidar um passivo junto da entidade bancária, com quem a vendedora havia efetuado um contrato de locação financeira que tinha por objeto o dito imóvel e que era muito mais desvantajoso para a mesma.
Concluiu pedindo que, na procedência da acção, seja declarada «validamente impugnada, por ausência de verificação dos respectivos pressupostos, a decisão de resolução em benefício da massa operada pelo AI através de carta datada de 13 de Junho de 2018, devendo ser declarada e reconhecida a validade e a regularidade da compra efectuada pelo B… à insolvente do prédio urbano» atrás identificado.
Citada, a demandada “Massa Insolvente de C…, L.da” apresentou contestação, alegando:
A resolução está de harmonia com o legalmente previsto.
O negócio em causa foi efectuado cerca de 3 meses e meio antes da insolvência.
O imóvel alienado tinha um valor de mercado nunca inferior a 2.000.000,00€ e foi vendido por €1.346.000,00, logo, existe uma manifesta desproporção entre o valor declarado na venda em resolução e o valor de mercado deste imóvel na data da alienação.
Mesmo que o preço declarado tivesse correspondência com o valor de mercado do imóvel, o que não é o caso, tal negócio foi realizado com prejuízo para os credores.
Tal imóvel foi adquirido pela insolvente à D… no dia em que foi vendido ao Autor por 624 023,00€, sendo que, este preço correspondia ao capital em dívida nesse contrato de locação financeira, pelo que o imóvel detinha um valor de mercado superior ao da dívida ao credor.
A subtração do imóvel aos credores implicou uma diminuição do valor da massa insolvente e esse prédio era o único bem imóvel de que, em 04.10.2017, a insolvente era proprietária, sendo a única garantia patrimonial dos credores
Alega, ainda, que o autor sabia da situação económica difícil da vendedora, até porque recorreu a peritos financeiros para analisar a capacidade financeira da insolvente, conhecendo, assim, os valores em dívida.
Imputa actuação de má-fé ao autor no âmbito do negócio, uma vez que existe, pelo menos, desconhecimento negligente.
Concluiu pela improcedência da ação e consequente manutenção da resolução operada pelo senhor administrador de insolvência.
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Realizou-se a audiência prévia e, após tentativa de conciliação que se frustrou, fixou-se o valor da acção (€1.346.000,00), foi proferido despacho saneador tabelar, fixou-se o objecto do processo, foram enunciados os temas de prova, sem reclamações, admitiu-se a produção dos meios de prova indicados pelas partes e não designou logo data para a audiência de julgamento porque foi deferido o pedido de realização de perícia.
Concluída a perícia, realizou-se a audiência final, em duas sessões, após o que, com data de 11.12.2020, foi proferida sentença[2] com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, em conformidade com as disposições legais citadas, decide-se julgar a presente ação totalmente procedente, por provada e, consequentemente:
- declara-se a validade e a regularidade da compra do prédio urbano composto por pavilhão de dois pisos, com logradouro, com uma área coberta de três mil seiscentos e trinta e três metros quadrados e uma área descoberta de seis mil trezentos e sessenta e sete metros quadrados, sito na Rua…, número…, freguesia …, concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número … da mencionada freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …, efetuada pelo Autor à insolvente, mantendo-se tal venda a favor do A. válida e eficaz.»
Contra essa decisão reagiu a ré “Massa Insolvente”, dela interpondo, em 03.01.2021, recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que “condensou” nas seguintes “conclusões”:
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A autora apresentou contra-alegações, que sintetizou assim:
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O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo).
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
O recorrente não impugna a decisão sobre matéria de facto (diz mesmo que utiliza «apenas os factos em que a sentença recorrida se apoiou» para demonstrar que a compra e venda «consubstanciou um acto prejudicial à massa insolvente, previsto no nº 2 do art. 120º do CIRE – pois a insolvente recebeu como contrapartida da alienação do imóvel uma soma pecuniária facilmente dissipável em detrimento dos seus credores» e para evidenciar a situação de má fé a que se refere o nº 5 desse mesmo preceito – «por ser cognoscível pelo recorrente/comprador, na data de celebração do negócio, a existência de uma situação de insolvabilidade, iminente ou próxima, da vendedora»).
No entanto, defende que é necessário ampliar a matéria de facto, pelo que «em conformidade com o que dispõe a parte final da alínea c) do nº 2 do artº 662º do cpc, deve ser anulada a sentença recorrida, ordenando-se à 1ª Instância que, em repetição do julgamento, amplie a matéria de facto de forma a contemplar o 4º tema de prova acima referido» (conclusão XII).
Essa é a primeira questão (apresentada como “questão prévia”) que, logicamente, deve ser apreciada e decidida em primeiro lugar.
Também como “questão prévia” é qualificada a invocação da nulidade da compra e venda de cuja resolução aqui se trata.
Alega a recorrente “Massa Insolvente” que «nesta acção não se trata de apurar eventual nulidade ou anulabilidade da venda, mas tão só de indagar a existência dos pressupostos que permitissem ao administrador da insolvência resolvê-la em benefício da massa insolvente”, mas acaba por assacar ao acto a violação de norma de proibição expressa, o que acarretaria a sua nulidade (conclusão VI).
Mas a questão fundamental que é submetida à sindicância deste tribunal de recurso é a da prejudicialidade para a massa insolvente da alienação do imóvel, que fundamentou a declaração resolutiva efectuada pelo AI.
São, assim, questões a apreciar e decidir:
- necessidade de ampliação da matéria de facto para contemplar o que foi enunciado como tema de prova n.º 4;
- nulidade da compra e venda;
- verificação dos pressupostos da resolução em benefício da massa insolvente do negócio de compra e venda do imóvel.
IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Na primeira instância, foram considerados provados os seguintes factos com relevância para a decisão:
1-Por Escritura pública de “Compra e Venda, Promessas Unilaterais de Compra, Promessa Unilateral de Venda e Arrendamento”, outorgada em 4 de Outubro de 2017 no Cartório Notarial do Notário E…, a C… vendeu ao Autor, livre de ónus ou encargos e demais responsabilidades, e pelo preço de €1.346.000,00, o prédio urbano composto por pavilhão e dois pisos, com logradouro, com uma área coberta de três mil seiscentos e trinta e três metros quadrados e uma área coberta de seis mil trezentos e sessenta e sete metros quadrados, sito na Rua…, n.º…, …, freguesia de … concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º … da mencionada freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ….
2- O Imóvel encontra-se registado a favor do A. nos termos da AP. …. de 2017/10/04, por aquisição.
3 -Pela escritura referida em 1) e em ato imediatamente subsequente à alienação do Imóvel pela C… ao B…, aquela tomou de arrendamento a este o referido Imóvel, para fins não habitacionais e com prazo certo, caducando sempre e em qualquer caso no dia 10 de Outubro de 2027.
4- No citado contrato de arrendamento, as partes fixaram o valor da renda mensal em €4.486,66 (sendo este valor calculado em função do valor de aquisição do imóvel), a pagar pela arrendatária ao senhorio no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que respeita.
5- Na escritura mencionada em 1) ficou ainda acordada a possibilidade de recompra do imóvel por parte da C… pelo preço da venda, acrescido de demais despesas, conforme cláusula 15.ª do documento complementar anexo à escritura que se dá por integralmente reproduzido.
6- O Imóvel referido em 1) foi comprado pela C… à D… - Instituição Financeira de Crédito, S.A. [doravante D…], no dia 4 de outubro de 2017, pelo preço de €624.020,85.
7- Até esta data a C… a locatária financeira do Imóvel.
8- A C… pagava pela locação financeira à D…, o valor mensal de €6.591,39.
9- No ato da escritura citado em 1) o Autor entregou à C… dois cheques emitidos à ordem da mesma: um cheque no valor de €641.043,07 (seiscentos e quarenta e um mil quarenta e três euros e sete cêntimos), que se destinou a pagar à D…; outro cheque no valor de €656.037,80 (seiscentos e cinquenta e seis mil trinta e sete euros e oitenta cêntimos)
10. Do preço acordado para a venda, o Autor reteve a quantia de €8.539,13 para pagamento das rendas referentes a 28 dias de Outubro de 2017 e ao mês de Novembro de 2017, bem como a quantia de €40.380,00, a título de caução destinada a garantir o cumprimento das obrigações que do contrato decorrem para a C…, entre elas a do pagamento pontual e integral da renda.
11- A C… declarou que a operação de venda proposta ao Autor visava liquidar o contrato de locação financeira associado ao imóvel objeto da operação e reduzir a dívida, o que permitiria recompor o fundo de maneio de forma a permitir uma menor pressão da tesouraria.
12- O Autor contratou a empresa F…, S.A. (doravante F…) para proceder à elaboração de um relatório com o objetivo de avaliar a capacidade da C… para cumprir as obrigações pecuniárias previstas no contrato de arrendamento a celebrar com o Autor.
13- No relatório efetuado pela F… pode ler-se o seguinte: “o risco económico é médio-baixo (dada a boa carteira de clientes), mas o risco financeiro é elevado, se não forem tomadas as medidas referidas atrás.
A viabilidade económica da Empresa, a qualidade dos seus activos e os seus 130 empregados, merecem que sejam dados todos os passos possíveis que permitam a resolução do problema financeiro, sendo a aquisição das instalações pelo B… um passo determinante na prossecução do objectivo de viabilização e rentabilização da C….”
14- Para além da alienação do Imóvel, foram recomendadas à C… as seguintes medidas complementares, que deveriam constituir um compromisso firme por parte da sua gerência:
a) negociação com as principais instituições financeiras apoios financeiros de médio e longo prazo, com carência de capital nos primeiros anos e com custos menos onerosos;
b) promover acções tendentes à realização de um aumento de capital até 1 milhão de euros não concessão de mais crédito à G… enquanto se mantiver a dívida actual, a qual deverá reduzir-se progressivamente;
c) centrar a produção de calçado na capacidade instalada (meios próprios) e só recorrer a subcontratos em situações excepcionais;
d) implementar uma gestão de tesouraria mais rigorosa, com o objectivo de reduzir os custos financeiros e os riscos de financiamento, tal como um controlo de gestão mais efectivo.
15- O encaixe financeiro decorrente da operação com o Autor permitiria à C…:
a) a aquisição antecipada do imóvel pela C… à D… pelo valor de 661.420€;
b) o pagamento de letras (papel comercial) a fornecedores no montante de 570.000,00€;
c) o reforço do fundo maneio em 114.580,00 € (subtraído do pagamento da caução e de no máximo duas rendas antecipadas).
16- Consta no n.º 1 da cláusula 2.ª do documento complementar à escritura mencionada em 1) o seguinte:
“1. A C… e os SÓCIOS garantem que o montante recebido do FUNDO a título de preço da aquisição do PRÉDIO será utilizado para os efeitos indicados no Projecto ou na respectiva aprovação que apresentou no âmbito do Decreto-Lei n.º 104/2009, nomeadamente para (i) liquidação antecipada do leasing imobiliário que recai sobre o PRÉDIO; (ii) pagamento de letras de crédito aceites a fornecedores da C… e (iii) reforço de tesouraria.”
17- À data de apresentação do projeto a C… tinha a situação totalmente regularizada com o Autoridade Tributária e com a Segurança Social.
18- A C… apresentou-se à insolvência em 15/2/2018 e foi declarada nesse estado em 26/2/2018.
19- Por carta registada datada de 13 de Junho de 2018, rececionada em 14 de Junho de 2018, foi o B…, aqui A., notificado pelo Sr. Administrador de Insolvência [doravante AI] da resolução do contrato de compra e venda celebrado entre o A. e a sociedade C…, Lda. (doravante C…), aqui insolvente, tendo por objecto o prédio urbano composto por pavilhão de dois pisos, com logradouro, com uma área coberta de três mil seiscentos e trinta e três metros quadrados e uma área descoberta de seis mil trezentos e sessenta e sete metros quadrados, sito na Rua …, número …, freguesia …, concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número… da mencionada freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …, cujo valor patrimonial era, à data da transmissão, de €765.560,00 [doravante designado por Imóvel]
20- Em 4/10/2017 a insolvente não tinha quaisquer outros imóveis, para além do vendido.
21- O passivo da insolvente era, na data da alienação, de 5.000 000,00€.
22- As dívidas ao setor público estatal, designadamente à segurança social, ultrapassavam os 500.000,00€.
23- No processo de insolvência foi apreendido para a massa insolvente equipamento com o valor de €64.640,00.
Factos provados:
a) O imóvel vendido tem um valor de mercado de € 2.000.000,00;
b) O imóvel era a única garantia patrimonial dos credores.
c) O valor patrimonial do Imóvel é de € 765.560,00 (setecentos e sessenta e cinco mil quinhentos e sessenta euros).
2. Fundamentos de direito
2.1 A ampliação da matéria de facto
É o julgamento de facto que decide a concreta aplicação do direito, ou, na expressão mais douta do Professor J. Lebre de Freiras e de Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Almedina, 4.ª edição, pág. 704) «a aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material».
A modificação da decisão em matéria de facto, quando desencadeada pelo recorrente, via de regra, depende da reapreciação de meios de prova de livre apreciação e, quando assim sucede, a Relação só pode intervir se o recorrente tiver cumprido os chamados ónus de impugnação, definidos no artigo 640.º do CPC, desde logo, a indicação dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido.
Mas a decisão pode revelar vícios que não correspondem a verdadeiros erros de apreciação ou de julgamento e que serão objecto de conhecimento oficioso pela Relação, que deverá supri-los[3].
A essas patologias se refere o n.º 2 do artigo 662.º do CPC e para o caso importa considerar a situação que exige a ampliação da matéria de facto alegada pelas partes (segmento final da alínea c)) que se revele essencial para a solução jurídica da causa, ou melhor, na medida em que assegure enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo.
Essa necessidade de ampliação pode revelar-se, quer porque foi omitida dos temas de prova, quer porque, tendo sido neles incluída, foi depois desconsiderada no julgamento.
A recorrente alega que assim aconteceu com o tema de prova n.º 4, que tinha o seguinte conteúdo: «Saber se efectivamente a insolvente pagou alguma quantia aos credores com a contrapartida da venda».
Apesar da sua relevância, o tribunal a quo teria omitido pronúncia sobre esse tema, pois não consta, nem dos factos provados, nem dos não provados.
Por isso propugna a anulação da sentença e a repetição do julgamento para que seja ampliada a matéria de facto de forma a contemplar esse tema (conclusão XII).
Antes de mais, importa referir que a enunciação dos temas de prova (balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções deduzidas), pouco ou nada tem a ver com o velho questionário ou, sequer, com a base instrutória que se lhe seguiu após a reforma de 1995/1996.
Os temas de prova são meramente enunciativos e traduzem-se em «questões formuladas de modo abrangente, que orientem a posterior produção de prova, sem todavia a condicionar ou restringir»[4], ou, como anotam A.S. Abrantes Geraldes, L. F. Pires de Sousa e P. Pimenta (in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2019, pág. 700), «(…) é agora evidente e indiscutível que não há qualquer cristalização da matéria de facto na fase intermédia do processo, ficando relegado para a sentença, isto é, para depois de concluída a instrução, a definição do quadro fáctico da lide, o que é, aliás, uma decorrência do dever de o juiz considerar na decisão os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução (art. 5.º, n.º 2, al. b))».
Por isso, na sentença, o juiz não só não tem que se cingir aos factos enunciados nos temas de prova como não tem que dar uma resposta de provado ou não provado a cada um deles.
O que importa mesmo é que na sentença estejam reflectidos todos e cada um dos factos essenciais alegados pelas partes, por forma a cobrir todas as soluções plausíveis da questão ou questões de direito.
Se assim não acontecer, então sim, poderá haver necessidade de recorrer ao instrumento previsto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.
Por outro lado, como alerta A.S. Abrantes Geraldes (ob. cit., 307/308), a anulação do julgamento é uma medida de último recurso, «apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que isso determina nos vetores da celeridade e da eficácia». Deve, pois, ser reservada para os casos em que se revele indispensável, não bastando que os factos tenham alguma conexão com uma das “soluções plausíveis da questão de direito”.
Ora, o que o recorrente diz é que, não só o autor não fez qualquer prova do que alegou na petição inicial, em especial nos artigos 201.º e 202.º (que reduziu o passivo em função dos pagamentos efectuados e, consequentemente, da liquidação de responsabilidades que tinha para com os seus credores) como é possível, através de um raciocínio inferencial, concluir que nada pagou (citando: «E o que se sabe, ainda, através da conjugação destes autos com o apenso de Reclamação de Créditos, é que o total dos créditos reclamados na insolvência é superior àquele passivo de 5.000.000,00 €, à data de 04.10.2017, donde se infere que a insolvente nada terá pago aos credores com a contrapartida da venda»).
Por isso, bem pode dizer-se, como afirma o recorrido, que a pretensão do recorrente não tem lógica, pois o que seria, logicamente, de esperar é que pugnasse pela inclusão, como matéria de facto provada, que a insolvente nada pagou aos credores com o que recebeu como contrapartida da venda do imóvel.
Por outro lado, se bem se atentar na decisão de facto, facilmente se chega à conclusão que não houve omissão de pronúncia sobre esse tema de prova, pois vem provado (n.º 15 do elenco de factos provados, que o recorrente não impugnou) que, com o encaixe financeiro obtido na operação realizada, a “C…, L.da” adquiriu, antecipadamente, à locadora financeira o imóvel pelo valor residual de € 661 420,00 e pagou letras a fornecedores no montante total de € 570 000,00.
Não há, pois, fundamento para a pretensão do recorrente de que seja ampliada a matéria de facto.
2.2 A nulidade do negócio da compra e venda do imóvel
Esta “questão prévia” é assim equacionada pelo recorrente:
Decorre do artigo 11.º, n.º 1, al. a), do Dec. Lei n.º 104/2009, de 12 de Maio, que criou o B…, que a apresentação dos projectos a que se refere o seu artigo 3.º tem de ser acompanhada dos elementos referidos no ANEXO a esse diploma, nomeadamente «Declarações comprovativas da regularidade da situação fiscal e perante a Segurança Social da proponente». No entanto, à data da venda (que é o momento que para aqui importa), não era essa a situação da vendedora, pois a certidão emitida pela Autoridade Tributária, em 19.01.2017, e a Declaração emitida pela Segurança Social, em 08.03.2017, onde consta que a vendedora tinha a sua situação tributária e contributiva regularizada (e nas quais a sentença recorrida se estriba para legitimar a venda) eram válidas pelo prazo de 3 meses e 4 meses, respectivamente, pelo que à data da venda já não eram válidas para atestar essa situação.
Ora, de harmonia com o disposto no artigo 177.º-B, alínea a), do CPPT, aos contribuintes que não tenham a sua situação tributária regularizada é vedado “Celebrar contratos de fornecimentos, empreitadas de obras públicas ou aquisição de serviços e bens com o Estado, regiões autónomas, institutos públicos, autarquias locais …”.
Daqui decorre que o negócio jurídico de compra do prédio urbano, aqui em causa, é nulo (art.º 280.º/1 do Código Civil) por violação de norma que expressamente vedava a celebração do contrato com contribuinte que não tem a situação tributária regularizada (citado artigo 177.º-B, alínea a) do CPPT), nulidade que é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art.º 286.º do Código Civil).
Como decorre da sua leitura, a sentença recorrida não aborda esta questão e não o faz pela simples razão de que a ré “Massa Insolvente” não a submeteu à apreciação do tribunal a quo.
Na verdade, só em sede de recurso ela foi suscitada, o que coloca o problema dos limites do objecto do recurso, sabido que este, via de regra, só pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem ser confrontado com questões colocadas ex novo, excepto quando se trata de questões de conhecimento oficioso e o processo contenha os elementos imprescindíveis.
Com efeito, em processo civil, o objecto dos recursos é determinado pela regra tantum devolutum quantum iudicatum, nos recursos julga-se a decisão viciada nos limites do objecto desta, o mesmo é dizer que a matéria de que trata o recurso deve coincidir com a matéria da decisão recorrida.
Nas palavras de A.S. Abrantes Geraldes (ob. cit., 31), «Na fase de recurso, as partes e o Tribunal Superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do Tribunal Superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo de se suscitarem ou de serem apreciadas questões de conhecimento oficioso, como a inconstitucionalidade de normas, a nulidade dos contratos, o abuso de direito ou a caducidade em matéria de direitos indisponíveis, relativamente às quais existem nos autos elementos de facto suficientes».
Na doutrina e na jurisprudência, são correntes asserções como [os recursos] são «meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas» e «o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido», justamente, para transmitir essa ideia fundamental de que «sem prejuízo da autonomia do objecto recursório, a matéria de que ele trata coincida com a matéria da decisão recorrida»[5].
Para o recorrente, isso não constitui um obstáculo porque a nulidade da compra e venda é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
Ressalvado o devido respeito, o argumento, aparentemente inatacável, na realidade, é falacioso.
Há que distinguir o vício de que, eventualmente, padecerá o negócio jurídico e o respectivo efeito, ou seja, a consequência legalmente cominada para essa patologia.
Segundo o recorrente, a compra e venda realizada seria contrária à lei porque o artigo 177.º-B, alínea a), do CPPT, veda aos contribuintes que não tenham a sua situação tributária regularizada, como aconteceria com a “C…, L.da”, a celebração de contratos com o Estado, as regiões autónomas, os institutos públicos e as autarquias locais, pelo que o negócio seria nulo nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil.
A nulidade pode, efectivamente, ser declarada oficiosamente pelo tribunal e, portanto, nada obstaria a que este tribunal de recurso dela conhecesse.
Porém, a conclusão de que o negócio é contrário à lei exige, não só que se possa reconduzir o B… a alguma daquelas entidades, mas também que a “C…, L.da” não tivesse a sua situação tributária regularizada.
Ora, ao contrário de que parece ser entendimento da recorrente, a circunstância de ter caducado a validade da certidão emitida pela Autoridade Tributária, em 19.01.2017, e da Declaração emitida pela Segurança Social, em 08.03.2017, atestando que aquela sociedade tinha a sua situação tributária e contributiva regularizada, não implica, ipso facto, que já assim não seria na data (04.10.2017) em que foi celebrado o negócio da compra e venda do imóvel.
Quer isto dizer que não existem no autos elementos factuais bastantes para se poder afirmar a contrariedade à lei do negócio em causa e por isso fica arredada a possibilidade de declarar a sua nulidade, como pretende a recorrente.
2.3 A (não) verificação dos pressupostos da resolução em benefício da massa insolvente do negócio de compra e venda do imóvel.
Na sentença recorrida excluiu-se a aplicabilidade ao caso da resolução incondicional prevista no artigo 121.º do CIRE por não ocorrer nenhuma das situações enquadráveis nas várias alíneas do seu n.º 1 e está assim justificada a conclusão pela inverificação dos pressupostos da resolução definidos no artigo 120.º daquele compêndio normativo:
«Vejamos, agora, se se provaram factos que demonstrem que tal negócio foi prejudicial à massa.
Ora, in casu, este requisito não se provou.
Com efeito, e se é certo que o imóvel era o único bem imóvel da insolvente, também é certo que o autor pagou o preço correspondente e este preço não foi inferior ao seu valor real.
Assim sendo, não existiu qualquer prejuízo para os credores da insolvente.
Por outro lado, para além de estar afastada qualquer situação de presunção de má fé, provou-se que neste negócio não participou ou aproveitou pessoa especialmente relacionada com o vendedor.
Por fim, para além de ser indiscutível que na data dos factos não corria qualquer processo de insolvência da vendedora, de igual modo não se provou que o autor tinha conhecimento de que a mesma estava em situação de insolvência ou que esta se encontrava iminente. De facto, o autor até tomou medidas destinadas a perceber daquele estado, tendo concluído que assim não era, pelo que claramente este requisito não se provou.
Em face do sobredito, o Autor logrou provar todos os factos constitutivos do direito que invocou, pelo que, em consequência, a ação terá de proceder».
A recorrente “Massa Insolvente” considera que na sentença se adoptou um conceito de prejudicialidade “muito restrito” e contrapõe que «um negócio oneroso pode ser celebrado pelo seu valor real mas ser prejudicial à massa se o comprador, no caso de contrato de compra e venda, conhecer a situação de insolvência iminente do vendedor (devedor)».
Citando, em abono, jurisprudência, sustenta que o dinheiro, pela sua natural fungibilidade, é facilmente «mobilizável e sonegável à acção dos credores» e «à luz dos parâmetros de uma normalidade que não pode ser ignorada, a venda do seu único imóvel por parte da insolvente poucos meses antes de se apresentar à insolvência é, salvo circunstancialismo excepcional, um acto que prejudica a satisfação dos credores da massa».
A venda de um imóvel, atenta a natureza volátil da contrapartida, é, a priori, um acto prejudicial à massa insolvente.
Conclui que «deveria o impugnante/recorrido ter demonstrado a ausência de prejuízo, cujo ónus lhe incumbia, pois este resulta, em princípio, do negócio e tal não sucedeu».
Apreciando esta argumentação, a primeira nota que queremos deixar aqui expressa é a de que comungamos da dificuldade, manifestada pela recorrida, de compreender a opção do Sr. Administrador da Insolvência pela via litigiosa.
À vendedora, ora insolvente, foi conferido o direito de recomprar, pelo mesmo preço por que o vendeu, o imóvel alienado. Ora, se o prédio tinha um valor de mercado de €2.000.000,00, como alegou a ré “Massa Insolvente”, o Sr. Administrador da Insolvência não teria dificuldade em arranjar comprador que pagasse esse preço e por isso a defesa dos interesses dos credores exigia que exercesse essa opção. Tanto mais que era previsível que o comprador reagisse, impugnando a resolução, e havia sempre a possibilidade de reverter a situação, como acabou por acontecer na primeira instância.
A segunda nota que se impõe diz respeito ao ónus da prova na acção de impugnação da resolução.
É entendimento corrente na jurisprudência que se trata de uma acção de simples apreciação negativa, cabendo, portanto, ao réu (massa insolvente) o ónus da prova dos pressupostos da resolução (prejuízo para a massa e má-fé)[6].
Ninguém de bom senso negará que a alienação de um imóvel torna mais problemática, mais difícil a satisfação dos credores, sobretudo tratando-se do único imóvel existente no património da alienante que, alguns meses depois, se apresenta à insolvência.
A recorrente censura a sentença por nela se ter adoptado um conceito de prejudicialidade muito restrito, atendendo, apenas, ao valor real do imóvel e ao pagamento do preço, sem ponderar o circunstancialismo que rodeou o acto.
Mas, em boa verdade, é a recorrente quem faz uma análise parcial, subjectiva, redutora e pouco rigorosa do circunstancialismo que envolveu o negócio de compra e venda do imóvel que veio a ser objecto da declaração resolutiva emitida pelo AI.
Desde logo, porque “esquece”, ou menospreza, o facto de, imediatamente antes de realizado o negócio, a vendedora “C…, L.da” não ser a titular do direito de propriedade sobre o imóvel.
Proprietária do prédio era a “D…, S.A. (…)”, que o deu em locação financeira à ora insolvente.
A devedora “C…, L.da”, sendo locatária financeira, tinha a expectativa de vir a ser proprietária do imóvel, se exercesse o direito de opção de compra pelo seu valor residual. Foi isso que veio a acontecer, adquirindo a propriedade do prédio pelo valor residual de €624.020,85. E foi, precisamente, a recorrida quem lhe permitiu exercer essa opção, adiantando o valor de €656.037,80, tendo, de seguida (no mesmo dia), comprado o imóvel pelo preço de €1.346.000,00 e assim proporcionando uma injecção de liquidez na devedora de €721.979,15.
Não fosse a intervenção da recorrida e, provavelmente, essa injecção de capital não teria acontecido, pois o incumprimento, pela “C…, L.da”, do contrato de locação financeira imobiliária era uma possibilidade real, se não mesmo um cenário previsível, o que levaria, inevitavelmente, à resolução, pela locadora, do contrato de locação.
Por isso não é transponível para aqui o argumento, esgrimido pela recorrente, de que a volatilidade da contrapartida pela venda do imóvel é um acto prejudicial à massa insolvente.
Mas, se o pressuposto da prejudicialidade fica, assim, afastado, a existência de má fé na actuação da recorrida é uma imputação que, ressalvado o devido respeito, roça a ligeireza, pois está a afirmar que tudo o que foi feito previamente à concretização do negócio não passou de uma farsa.
Não sendo aplicável a presunção de má fé estabelecida no n.º 4 do artigo 120.º do CIRE, só poderá concluir-se pela sua existência se, à data do acto (do negócio de compra e venda do imóvel), o autor, aqui recorrido, tinha conhecimento de algumas das circunstâncias enunciadas no seu n.º 5:
- que a devedora estava, de facto, em situação de insolvência (tal como a define o artigo 3.º);
- do carácter prejudicial do negócio e que a “C…, L.da” se encontrava em situação de insolvência eminente ou
- do início do processo de insolvência.
A recorrente sustenta que o autor agiu, pelo menos, com negligência consciente, pois tinha um conhecimento privilegiado das sérias dificuldades financeiras por que passava a insolvente, das avultadas dívidas à Segurança Social, à Banca e aos fornecedores e por isso não poderia ignorar a situação de insolvência eminente e o carácter prejudicial do acto porque iria afectar, necessariamente, os direitos dos credores, já que era o único bem imóvel existente no património da devedora (conclusões LVII a LIX).
Convém sublinhar que, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do diploma legal que o criou, o B… tem como principal objectivo o apoio de empresas economicamente viáveis, ainda que enfrentando eventuais dificuldades financeiras, apostando por este modo no seu saneamento, na sua estabilização e consolidação, na sua modernização e eventual redimensionamento e, em qualquer caso, na criação, manutenção e qualificação do respectivo emprego.
Para aquilatar se a “C…, L.da” estava nessas condições (pois só assim poderia beneficiar desse apoio), o autor encomendou a uma entidade externa, a “F…, S.A”, um estudo sobre a viabilidade económica da empresa e o relatório por esta elaborado refere, como conclusão da avaliação efectuada, que «o risco económico é médio-baixo (dada a boa carteira de clientes), mas o risco financeiro é elevado, se não forem tomadas as medidas referidas atrás».
Entre essas medidas estava a aquisição à locadora financeira das instalações onde a “C…, L.da” desenvolvia a sua actividade e a sua posterior venda ao B…, operação esta que lhe iria permitir:
- a aquisição antecipada do imóvel à “D…, S.A. (…)” pelo valor de €661.420,00;
- o pagamento de letras (papel comercial) a fornecedores no montante de € 570.000,00;
- o reforço do fundo maneio em €114.580,00 (subtraído do pagamento da caução e de no máximo duas rendas antecipadas).
O que se configurava era uma situação económica difícil da devedora, tal como a define o artigo 17.º-B do CIRE.
Não se ignora quão difícil é traçar a linha de fronteira entre essa situação e a de insolvência eminente, mas a recorrente imputa ao recorrido uma actuação de má fé por ter conhecimento desta (insolvência eminente) sem que tenha impugnado a decisão em matéria de facto neste ponto específico.
Na realidade, a matéria de facto assente não legítima as conclusões, neste conspecto, formuladas pela recorrente, pelo que tem de improceder a apelação.
III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por “Massa Insolvente de C…, L.da” e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da massa insolvente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 20 de setembro de 2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Com pontuais alterações, seguimos aqui o relatório da sentença recorrida.
[2] Notificada às partes mediante expediente electrónico elaborado em 14.12.2020.
[3] Cfr. A.S. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª edição, págs. 304-308.
[4] J. Lebre de Freitas Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º. Almedina, 4.ª edição, pág. 670.
[5] Rui Pinto, Manuel do Recurso Civil, vol. I, AAFDL, pág. 351-352.
[6] Além do acórdão do STJ de 10.03.2014 (processo n.º 251/09.2 TYVNG-I.P1) e do acórdão da Relação de Guimarães de 13.02.2020 (processo n.º 554/19.8T8VNF-E.G1), citados pelo recorrido, pode ver-se o acórdão do STJ de 25.02.2014 e o acórdão desta Relação de 24.11.2011. Manifestam concordância com este entendimento, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Quid Juris, 3.ª edição, 514, e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, 7.ª edição, pág. 260.