Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
667/19.6T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ACÇÃO DE DIVÓRCIO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20210429667/19.6T8STS.P1
Data do Acordão: 04/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não existe fundamento jurídico, legal ou convencional, para o cônjuge que permanece a habitar na casa de morada de família na sequência de um acordo dos cônjuges homologado judicialmente na acção de divórcio que lhe atribuiu, até à partilha, essa utilização exclusiva, com a finalidade de lhe proporcionar, bem como aos filhos menores ao seu cuidado, habitação, tenha de pagar ao cônjuge de saída uma contrapartida, compensação ou indemnização por essa exclusividade da utilização.
II -Tal situação não preenche os pressupostos dos institutos da responsabilidade civil ou do enriquecimento sem causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:667.19.6T8STS.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em …, Trofa, instaurou acção judicial contra C…, contribuinte fiscal n.º ………, com domicílio profissional no Porto, pedindo a condenação do réu a pagar à autora a metade que ela pagou a mais de dívidas que eram da responsabilidade de ambos e ainda a pagar-lhe a metade das quantias mensais pagas para amortização dos empréstimos hipotecários e inerentes seguros e impostos correspondentes que se vencerem posteriormente e que a autora venha a pagar e ainda nos juros sobre as quantias em divida a partir da citação.
Alegou para o efeito que foi casada com o réu, tendo o respectivo casamento sido dissolvido por divórcio, que na pendência do casamento contraíram empréstimos bancários para construção da casa de morada de família e para aquisição de um veículo automóvel, tornando-se devedores do reembolso desses empréstimos, que para reembolso dos empréstimos, seguros associados e IMI da cada de morada de família a autora efectuou pagamentos no montante global de 46.739,82€ os quais eram da responsabilidade de ambos, que no inventário instaurado para partilha dos bens comuns os interessados foram remetidos para os meios comuns.
O réu contestou, por impugnação e por excepção, defendendo a improcedência da acção.
Em reconvenção pediu a condenação da autora a pagar-lhe o montante de 23.100€ referente a metade do valor da ocupação do imóvel pertencente a ambos, pelo período de 66 meses, bem como metade da quantia de 700€, até à adjudicação do imóvel no processo de inventário.
Alegou para o efeito que na sequência da separação do casal a autora ficou a ocupar o imóvel comum, enquanto ele teve de arranjar uma nova habitação e suportar o respectivo custo, e que no mercado de arrendamento esse imóvel proporcionaria uma renda mensal na ordem dos 700€.
Findos os articulados foi realizada audiência prévia e após foi proferida sentença, julgando a acção provada e procedente e a reconvenção não provada e improcedente.
Do assim decidido, o reconvinte interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença que julgou improcedente, por não provado, o pedido reconvencional, e em consequência, absolveu a autora do mesmo.
2. Como se tentará demonstrar fez aquela sentença má interpretação dos factos e provas constantes dos autos, fazendo consequentemente má aplicação do direito, pelo que deve ser revogada.
3. Considerou o tribunal a quo que não assiste à ré o direito a peticionar uma compensação como contrapartida pela utilização exclusiva da casa morada de família por parte da autora uma vez que “resulta dos autos, por acordo homologado por sentença judicial já transitada em julgado, autora e réu definiram que o direito à habitação daquela que foi a casa morada de família fica atribuído ao cônjuge mulher até à partilha. Ora, em tal acordo não foi contemplado qualquer compensação ao réu/reconvinte pelo direito de habitação daquela que foi a casa morada de família à autora até à partilha, pelo que, entendemos que agora não pode vir, tão singelamente, reclamar tal compensação pela referida ocupação em contrário do acordo que deu.”
4. No caso concreto, tendo as partes em processo de inventário sido remetidas para os meios comuns, é este, salvo devido respeito por melhor opinião, o momento concreto para que a parte que ficou privada do uso do bem comum, possa reclamar o pagamento de uma compensação pela ocupação, da outra parte, de tal bem.
5. Porém, presumir-se que tal ocupação/cedência foi efectuada a título gratuito, sem que se ouça as partes, sobre qual a sua interpretação do acordo outorgado, não faz qualquer sentido.
6. Tal presunção assumida pelo douto tribunal “a quo” carece assim de fundamentação jurídica, que a sustente.
7. Entende assim como não correto, o réu, a fundamentação da inexistência de um direito no simples facto de tal direito não ter sido comtemplado num acordo homologado num processo de jurisdição voluntária
8. Até e porque: a compropriedade e a comunhão de bens têm regime diverso.
9. Não é assim correto, e diga-se, nem justo, proporcional, nem equitativo sequer, que um herdeiro (neste caso um cônjuge meeiro) possa fazer uso exclusivo do prédio comum, impedindo o outro (herdeiro) de entrar, usar, gozar e fruir do mesmo, durante sete anos consecutivos.
10. Assim, como não é válido: considerar que um herdeiro meeiro tenha de suportar metade dos custos e encargos de um prédio (empréstimos bancários, impostos, etc.), que está impedido de usar, gozar e fruir, por oposição concreta do outro herdeiro meeiro; não considerando que esse herdeiro meeiro tenha direito de ser compensado, por essa limitação do seu direito de propriedade, em favor de outrem.
11. A verdade é que o réu foi impedido de entrar num prédio seu pela autora desde a data em que foi decretado o divórcio até aos dias de hoje.
12. Aliás a considerar-se como válida, correta e justa a afirmação que “em tal acordo não foi contemplado qualquer compensação ao réu/reconvinte pelo direito de habitação daquela que foi a casa morada de família à autora até à partilha, pelo que, entendemos que agora não pode vir, tão singelamente, reclamar tal compensação pela referida ocupação em contrário do acordo que deu“ dever-se-á também considerar como válida, correta e justa a afirmação que em tal acordo não foi contemplado quaisquer pagamentos referentes ao crédito hipotecário existente sobre o imóvel propriedade de autora e réu, pelo que tais montantes devem ser suportados por quem beneficia exclusivamente do imóvel e a quem foi atribuído o direito à habitação até à partilha.
13. Ora ambas as afirmações, na humilde opinião do recorrente, não fazem sentido, até e porque a atribuição da casa morada de família à aqui autora esteve e está condicionada à realização da partilha, ou por outras palavras, ao fim da comunhão do bem.
14. O processo “de partilhas” – inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento – compreende em si uma panóplia de situações jurídicas a ser analisadas e decididas.
15. Sendo uma delas: d) a relação dos créditos e das dívidas da herança, acompanhada das provas que possam ser juntas.
16. Tentou o recorrente demonstrar neste autos, que foi obrigado a sair de casa após a separação do casal, que em face de tal teve de arrendar casa e custear todos os gastos inerentes a tal, ao longo de sete anos (que na realidade serão mais uma vez que a partilha ainda não está realizada); afirmando ainda que foi impedido de entrar, usar, gozar e fruir, de um prédio seu, por oposição directa da aqui autora.
17. E que, por outro lado, a autora não teve esses custos, tendo ficado a habitar a casa pertença de ambos, sem qualquer custo acrescido.
18. Condenou o tribunal “a quo” o recorrente no reembolso à “autora em metade das dividas da responsabilidade de ambos e por esta paga, que à data da instauração da presente acção computavam o valor de €23.369,92 (vinte e três mil, trezentos e sessenta e nove euros e noventa e dois cêntimos), acrescido dos respectivos juros, à até efectivo pagamento e ainda no pagamento do valor correspondente a metade das quantias mensais que a autora tenha pago desde tal data ou que venha a pagar até à partilha referente às amortizações do créditos hipotecários, inerentes seguros e impostos que incidam sobre bens comuns.”
19. Ora, não é equitativo, nem sequer proporcional, condenar o réu ao pagamento desses supra mencionados créditos relativos ao bem comum, quando ao mesmo foi negado os seus direitos enquanto proprietário desse mesmo bem comum.
20. Assim como também não é legítimo desconsiderar que o réu passou a ter de suportar um novo encargo, após a separação, traduzido no pagamento de uma prestação mensal para pagamento de uma renda, que resultou num empobrecimento do seu património próprio
21. É notório que a aqui autora, ao manter-se na habitação pertença do património comum do ex-casal, enriqueceu o seu património próprio à custa desse património comum.
22. O tribunal a quo ao fundamentar a sua decisão nos termos em que o fez e consequentemente absolver a autora do peticionado na reconvenção pelo réu violou de forma concreta os artigos 1689.º, 1730.º e 1790.º do Cód. Civil, e 615 n.º 1 al. b) e c) do Código Processo Civil, pelo que
23. A douta sentença, incorre num erro de análise do direito e consequentemente dos factos.
24. Assim, violou a douta sentença todos os normativos legais supra mencionados, quando considerou inexistir direito de compensação do réu sobre a autora como forma de obviar a um inadmissível enriquecimento do cônjuge a quem o imóvel foi provisoriamente atribuído à custa do outro interessado.
25. A douta sentença recorrida deveria, pois, sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, ter reconhecido a existência desse direito de compensação, julgando procedente a reconvenção do réu.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
a) Se a sentença recorrida é nula;
b) Se o cônjuge que após a separação do casal deixou de habitar a casa de morada de família, bem comum do casal, pode reclamar do cônjuge que passou a utilizar em exclusivo esse bem comum uma compensação por essa utilização exclusiva e, na afirmativa, se essa compensação deve equivaler a metade do valor locativo do imóvel.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1. Autora e réu contraíram casamento sem convenção antenupcial em 3 de Dezembro de 1999.
2. Em 11.07.2013 a autora instaurou processo de divórcio contra o réu.
3. Por decisão datada de 20.11.2013 foi decretado o divórcio entre autora e réu.
4. Em tal decisão foi homologado o acordo entre autora e réu, de que o direito à habitação daquela que foi a casa morada de família, sita na Travessa…, n.º …, …, …, fica atribuído à cônjuge mulher até à partilha.
5. Na constância do matrimónio, autora e réu adquiriram um terreno para construção de casa de habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o n.º 1532 – … e subsequentemente contratualizaram dois empréstimos com a D…, S.A., um no montante de Esc. 23.502.700, correspondente a €117.231, denominado de crédito habitação e um outro de €70.369, denominado de crédito Multiopções, ambos para fazer face aos encargos com a construção e garantidos cada um por hipoteca sobre o referido imóvel, conforme inscrição Ap. 2 de 2000.07.20 e inscrição Ap. 576, de 2010.10.20.
6. Em 7 de Julho de 2015, o réu instaurou processo de inventário e nela relacionou como verba n.º 30 “um prédio, casa morada de família, sito na Rua…, …, …, …, inscrito na matriz no n.º 10048 da União de Freguesias de … e descrito na respectiva CRP sob o n.º 152, com o valor patrimonial de 140.749,15€” conforme documento n.º 11 junto com a pi.
7. Foi ainda relacionado como passivo e sob a verba n.º 31 “Devem os interessados ao Banco D… o valor de 98.152,44€ garantido por hipoteca que onera o imóvel atrás relacionado na verba 30.
8. Como bem comum a partilhar foi ainda relacionado o veículo automóvel de marca Citroen, matrícula ..-AE-.., no valor de €5.000.
9. Em 4 de maio de 2017, a autora reclamou da relação de bens apresentada pelo réu, por falta de relacionamento dos seguintes créditos: “B – Omissão: A quantia de 14.419,31€, correspondente às prestações pagas desde 22.07.2013 a 17.4.2017 referente ao empréstimo de crédito da habitação (…). A quantia de 11.803,51€ correspondente às prestações pagas desde 22.7.2013 a 20.4.2017 referente ao empréstimo de crédito multiopções (…). A quantia de 2.363,08€ correspondente aos prémios de seguro de vida relativo ao empréstimo da habitação pagos desde 2.9.2013 a 20.4.2017 e despesas de manutenção da conta conjunta (…). A quantia de 407,94€ correspondente aos prémios de seguro da habitação pagos desde 12.8.2014 a 17.7.2017 (…). A quantia de 2.627,39 €, correspondente ao pagamento do IMI do prédio urbano (casa morada de família) desde Julho de 2013 a Abril de 2017 (…). A quantia de 1.270,13€, correspondente às últimas 4 prestações relativamente ao empréstimo do veículo automóvel com a matrícula ..-AE-..(…)”
10. Em 15 de Julho de 2017, a autora reclamou nesses autos o pagamento da quantia de 2.133,57€, correspondente às prestações pagas desde 15.5.2017 a 14.11.2017, referente ao empréstimo de crédito da habitação; a quantia de 1.474,67€, correspondente às prestações pagas desde 22.05.2017 a 20.10.2017 referente ao empréstimo de crédito multiopções; a quantia de 360€, correspondentes aos prémios de seguro de vida relativo ao empréstimo da habitação pagos desde 22.05.2017 a 20.10.2017 e despesas de manutenção da conta conjunta; a quantia de 128,18€, correspondente ao prémio de seguro da habitação de 17.7.2017 a 17.7.2018; a quantia de €211,12€, correspondente ao pagamento do IMI referente à 2.ª prestação – Julho de 2017.
11. No dia 1 de Fevereiro de 2018, o Sr. Notário remeteu as partes para os meios comuns, conforme ata de conferência preparatória.
12. Desde Julho de 2013 até à instauração da presente acção, a autora entregou à D… a quantia de €37.504,91 (trinta e sete mil, quinhentos e quatro euros e noventa e um cêntimo) para pagamento dos dois empréstimos bancários garantidos pelas hipotecas acima referidas.
13. A autora em 22.07.2013, 5.8.2013, 03.09.2013 e 3.10.2013 entregou à D… a quantia global de €1.270,10 (mil, duzentos e setenta euros e dez cêntimos) respeitantes ao pagamento das 4 últimas prestações do empréstimo bancário contraído por ambos, ainda casados, para a aquisição do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-AE-.., modelo ….
14. A autora desde Julho de 2013 até à instauração da presente acção entregou à Autoridade Tributária a quantia de €3.683 (três mil, seiscentos e oitenta e três cêntimos), correspondente ao IMI que se venceram relativamente ao imóvel supra mencionado.
15. A autora desde Julho de 2013 até à instauração da presente acção entregou à D… para pagamento dos prémios de seguro do imóvel, prémios de seguro de vida e despesas de manutenção da conta inerente a tais empréstimos bancário a quanta global de €4.281,78 (quatro mil, duzentos e oitenta e um euros e setenta e oito cêntimos).
16. As entregas/pagamentos identificados em 8 a 11 dos factos provados foram efeitos com dinheiro da autora.
IV. O mérito do recurso:
A] da nulidade da sentença:
Nas conclusões 22 e 23 das alegações o recorrente afirma que «o tribunal a quo ao fundamentar a sua decisão nos termos em que o fez e consequentemente absolver a autora do peticionado na reconvenção pelo réu violou de forma concreta os artigos 1689.º, 1730.º e 1790.º do Cód. Civil, e 615 n.º 1 al. b) e c) do Código Processo Civil, pelo que … a douta sentença, incorre num erro de análise do direito e consequentemente dos factos».
Ao aludir ao artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código Processo Civil, o recorrente refere-se às causas de nulidade da sentença, pelo que a sua afirmação é errada: a sentença não pode ter violado estes preceitos, quando muito pode preencher a respectiva previsão.
Interpretada a alegação desse modo, isto é, como imputando à sentença recorrida os vícios de nulidade previstos no aludido normativo legal, esta alegação é absolutamente destituída de conteúdo na medida em que não consubstancia em que consiste esse vício, em que se traduz a nulidade, como era imperioso que fosse feito na medida em que as questões a suscitar perante o tribunal têm de ser concretizadas, fundamentadas, consubstanciadas em aspectos que lhe atribuam sentido e conteúdo.
Como que quer seja, caso houvesse que apreciar a arguição dos aludidos vícios, seria de dizer, sem mais, que essa arguição é manifestamente improcedente na medida em que a sentença recorrida apresenta de forma clara os respectivos fundamentos de facto e de direito, estes encontram-se em perfeita sintonia com a decisão proferida e a decisão não enferma de ininteligibilidade.
Como assim, sem mais, declara-se que a sentença recorrida não padece de nulidades.
B] da matéria de direito:
A questão que vem suscitada no recurso e que cumpre apreciar consiste em saber se tendo a casa de morada de família, bem comum do casal, passado, na sequência da separação do casal, a ser utilizada exclusivamente por um dos ex-cônjuges, o outro pode reclamar do utilizador uma compensação por essa utilização exclusiva até ao momento da partilha e, na afirmativa, se essa compensação deve equivaler a metade do valor locativo do imóvel.
A questão tem recebido na jurisprudência respostas opostas, sendo conhecidos arestos que reconhecem sempre o direito à compensação com o objectivo de evitar o prejuízo daquele que ao sair da casa de morada de família vai (ou pode vir a) ter despesas acrescidas para obter uma nova habitação para si, bem como, nos antípodas, arestos que recusam esse direito afirmando a inexistência de fundamento legal para que surja a obrigação do cônjuge utilizador.
Em direito, toda a obrigação tem de ter uma fonte. Essa fonte terá de resultar da vontade das partes ou da lei, podendo corresponder a um contrato, um negócio unilateral, gestão de negócios, enriquecimento sem causa ou à responsabilidade civil. As obrigações que se fundem apenas num dever de ordem moral ou social, embora corresponda a um dever de justiça, não são judicialmente exigíveis (artigo 402.º do Código Civil).
Não basta, portanto, o recorrente defender que deve ser compensado ou que é justo ser compensado, é necessário que exista um fundamento legal donde brote a obrigação que entende recair sobre a ex-mulher.
Refira-se, a propósito, que a comparação que o recorrente faz entre esta situação e a obrigação de pagar metade do valor das prestações que a autora pagou para liquidação parcial de créditos bancários contraídos por ambos e dos impostos sobre o imóvel comum não tem razão de ser.
A obrigação de pagamento dessas quantias tem a sua origem na natureza comum das dívidas que lhe estão na origem.
Os empréstimos bancários foram contraídos por ambos os cônjuges para fazer face aos encargos normais da vida familiar, como a aquisição de veículos e de habitação própria. Por conseguinte, a dívida de reembolso das quantias mutuadas e respectivos encargos, juros e impostos é uma dívida comum, da responsabilidade de ambos os cônjuges (artigo 1691.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Civil). Por sua vez os impostos sobre o imóvel comum correspondem a dívidas que oneram um bem comum e por isso são sempre da responsabilidade comum dos cônjuges (artigo 1694.º do Código Civil).
Uma vez que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo comum, sendo nula qualquer estipulação em contrário (artigo 1731.º do Código Civil), se, em virtude do regime da responsabilidade solidária dos cônjuges perante os credores (artigo 1695.º do Código Civil), um deles pagar mais que metade da dívida pode accionar o outro para obter o que pagou a mais que a sua metade (artigo 1697.º do Código Civil).
Esta obrigação está relacionada com o património comum do casal, com o ter. O que os cônjuges têm o direito a receber na partilha desse património não é o activo, é o saldo patrimonial, o resultado da diferença entre o activo e o passivo. Por isso, se para terem esse património os cônjuges incorrem em responsabilidade obrigacional perante terceiros (tornam-se devedores) essa responsabilidade tem de ser acertada no âmbito da partilha, de modo a que cada um dos cônjuges receba exactamente o que lhe cabe no património comum.
O recorrente não pode querer receber o correspondente a metade do imóvel comum, sem se responsabilizar em igual medida pelas dívidas que permitiram a sua aquisição, sendo certo que essas dívidas se constituíram no momento em que receberam os empréstimos em causa e só o respectivo reembolso é que foi escalonado no tempo.
As prestações que se venceram no futuro não são contrapartida da utilização do património pelos cônjuges, são contrapartida dos empréstimos contraídos por ambos e em resultado dos quais lograram tornar-se titulares do direito de propriedade do imóvel.
A questão colocada na reconvenção é totalmente diversa. Já não se prende com a titularidade do património comum, prende-se com o modo como esse património comum é utilizado pelos ex-cônjuges após a dissolução do casamento. Do que se trata é apenas de saber se o ex-cônjuge que não utiliza o património comum deve ser compensado ou indemnizado pelo outro ex-cônjuge pelo facto de este ser o único a utilizar aquele património. Por outras palavras, do que se trata é de saber se a utilização exclusiva por um dos ex-cônjuges gera uma lesão para o outro e existe fundamento para responsabilizar juridicamente o cônjuge utilizador pelas consequências dessa lesão.
Como começou por se referir, essa obrigação de compensação/indemnização necessita de uma fonte jurídica, uma causa. Em tese, essa causa pode emergir do regime jurídico da dissolução do casamento, da figura da responsabilidade civil ou do instituto do enriquecimento sem causa.
Antes de avançar na análise convém precisar um aspecto. A utilização que está em causa não tem por objecto um património comum inespecífico, tem sim por objecto a casa de morada de família, sendo que no caso a família era constituída pelos progenitores e pelos três filhos, dos quais dois eram menores e nos acordos de regulação do exercício das responsabilidades parentais apresentados para efeitos de divórcio por mútuo consentimento foram entregues à guarda e cuidados da mãe «com quem residem» (acta da tentativa de conciliação realizada no processo de divórcio). Por outras palavras, o que o recorrente pretende é que a ex-mulher lhe pague um valor por ter ficado a habitar na casa de morada de família com os filhos.
É por isso oportuno ver como a lei trata a casa de morada de família no âmbito de uma relação conjugal.
Quando a casa de morada de família é arrendada, o artigo 1105.º do Código Civil estabelece que em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens o seu destino é decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles, sendo que na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros factores relevantes.
Esta norma estabelece, portanto, a possibilidade de o arrendamento passar a ser titulado apenas por um dos cônjuges, o qual passará naturalmente a pagar a renda ao senhorio, mas sem ter de compensar o outro cônjuge por este ficar privado do gozo da casa.
E estabelece ainda que na falta de acordo a decisão cabe ao tribunal, o qual decidirá levando em consideração as necessidades de cada um dos ex-cônjuges, os interesses dos filhos e outros factores relevantes, donde resulta que a legislação dá relevo à circunstância de os filhos ficarem a habitar com um dos progenitores.
Os artigos 1682.º-A e 1682.º-B do Código Civil prescrevem que relativamente à casa de morada de família, carecem sempre do consentimento de ambos os cônjuges, a resolução, a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário; a revogação do arrendamento por mútuo consentimento; a cessão da posição de arrendatário; o subarrendamento ou o empréstimo, total ou parcial e a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo.
Daqui resulta que a casa de morada de família é sujeita a um regime de protecção que pressupõe o acordo de ambos os cônjuges para a prática de todo um conjunto de actos jurídicos que possam colocar em risco a manutenção da sua utilização para morada de família.
Com a introdução pela Lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, da possibilidade de os cônjuges celebrarem convenção nupcial estabelecendo a renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário do outro cônjuge, o artigo 1707.º-A do Código Civil, introduzido por aquela lei, veio consagrar que essa renúncia apenas afecta a posição sucessória do cônjuge e que sendo a casa de morada de família propriedade do falecido, o cônjuge sobrevivo pode nela permanecer, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio.
Esse prazo pode até ser prorrogado pelo tribunal, excepcionalmente e por motivos de equidade, considerando, designadamente, a especial carência em que o membro sobrevivo se encontre, por qualquer causa. Este direito só não existe se o cônjuge sobrevivo tiver casa própria no concelho da casa de morada da família, ou neste e nos concelhos limítrofes se esta se situar nos concelhos de Lisboa ou do Porto.
Esgotado o prazo em que beneficiou do direito de habitação, o cônjuge sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado, e tem direito a permanecer no local até à celebração do respectivo contrato, salvo se os proprietários satisfizerem os requisitos legalmente estabelecidos para a denúncia do contrato de arrendamento para habitação, pelos senhorios, com as devidas adaptações, cabendo ao tribunal, na falta de acordo sobre as condições do contrato, fixá-las (n.ºs 7 e 8 da norma).
Aqui temos portanto outra norma de protecção, da qual resulta a possibilidade de o ex-cônjuge que renunciou à qualidade de herdeiro do outro continuar a habitar a casa de morada de família durante algum período sem qualquer contrapartida e, neste caso, note-se mesmo que não haja filhos menores que fiquem ao seu cuidado e mesmo que não careça de meios para arranjar nova habitação ou inclusivamente possua outra casa que possa usar para a sua habitação desde que situada noutro concelho.
Temos depois as normas que regulam o divórcio por mútuo consentimento que exigem a obtenção pelos cônjuges de acordo sobre o destino da casa de morada de família (artigo 1775.º, alínea d), do Código Civil), o qual se filia no já mencionado regime do 1105.º do Código Civil.
A exigência deste acordo encontra a sua regulamentação adjectiva no artigo 994.º do Código de Processo Civil, cujo n.º 2 acrescenta que se outra coisa não resultar dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior.
Ainda na pendência do processo de divórcio e agora no seio do Código de Processo Civil vamos encontrar normas legais que abordam especificamente a atribuição da utilização da casa de morada de família. Estabelece o artigo 931.º do Código de Processo Civil que nos processos de divórcio e separação sem consentimento do outro cônjuge, o juiz deve, na tentativa de conciliação, procurar obter o acordo dos cônjuges quanto à utilização da casa de morada de família durante o período de pendência do processo (se for caso disso, leia-se, excepto se os cônjuges disso não tiverem necessidade designadamente por terem resolvido o problema da habitação de outro modo).
O n.º 7 desta norma prescreve que em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família na pendência do divórcio.
A norma não fornece qualquer pista sobre os moldes como essa decisão provisória deve ser proferida, rectius, sobre a natureza da utilização que resultar dessa atribuição e, designadamente, se a mesma pressupõe o pagamento de qualquer remuneração. Como quer que seja, resultando a faculdade de utilização da decisão judicial que a atribua, parece que o cônjuge utilizador fará a utilização nos termos que o tribunal fixar, pelo que se a decisão não estabelecer qualquer remuneração ou compensação ela não será devida.
Finalmente encontramos o artigo 1793.º do Código Civil que rege sobre o destino da casa de morada de família, leia-se, após o divórcio uma vez que o preceito se insere na subsecção relativa aos efeitos do divórcio. Nos termos deste preceito, o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
Este arrendamento fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem. A regulação adjectiva deste direito encontra-se no artigo 990.º do Código de Processo Civil.
O artigo 1793.º do Código Civil rege, como vimos, para o período posterior ao divórcio, tenha ou não sido realizada já a partilha dos bens comuns. De acordo com a norma, quer o bem seja próprio do outro cônjuge, quer ainda permaneça como comum ou mesmo já tenha sido adjudicado na partilha ao outro cônjuge, o tribunal pode impor que a casa de morada de família continue a ser habitada por um só dos cônjuges. Essa utilização terá lugar a título de arrendamento, o que significa que será remunerada, cabendo a remuneração ao cônjuge titular do bem.
Nesta situação a protecção legal da casa de morada de família vai apenas ao ponto de subtrair a decisão de contratar o arrendamento à vontade negocial do cônjuge titular do bem, vontade que é substituída pela decisão judicial, a qual pode, no entanto, limitar-se a homologar o acordo dos cônjuges caso ele tenha sido alcançado (n.º 3).
Como resulta deste percurso legal, a casa de morada de família não é tratada como qualquer outro imóvel comum, antes beneficia de um regime especial de protecção cuja finalidade clara é a preservação da casa de morada de família, evitar que a dissolução da comunhão conjugal (por acto inter vivos ou mortis causa) arraste consigo a destruição do espaço que constituía o lar daquela família e no qual a família criou as suas relações sociais, familiares, escolares, etc., e desenvolveu os laços afectivos e emocionais próprios da família, designadamente os relacionados com os filhos.
Em muitas situações a intenção é mesmo preservar o espaço vital do agregado familiar que permanece junto, mais especificamente o cônjuge que permanece com os filhos na casa de morada de família.
Como vimos também, a protecção é mais ampla e favorável no período que antecede o divórcio e naturalmente menos ampla e favorável após o divórcio e, sobretudo, após a partilha, na medida em que é suposto que nesta fique em definitivo acertada a composição patrimonial do dissolvido casal.
Por outro lado, o primeiro critério de decisão sobre (os termos e modo da) a utilização é a vontade dos cônjuges através do estabelecimento de acordo quanto a essa utilização, acordo que, excepto se ele não acautelar os interesses de algum dos cônjuges, a autoridade competente para decretar o divórcio se limitará a homologar (ou seja, a tornar juridicamente vinculante o acordo).
Se esse acordo não for obtido a decisão cabe ao tribunal ponderando os diversos interesses em jogo, em especial as necessidades dos cônjuges e do restante agregado familiar (os filhos). Nessa situação distinguem-se dois tempos. Se estivermos na pendência do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, a decisão do tribunal é provisória mas pode ter o conteúdo que o tribunal julgar mais adequado às circunstâncias do caso, designadamente, atribuir a utilização a apenas um dos cônjuges sem pagamento de nenhuma contrapartida. Se o divórcio já tiver sido decretado, essa decisão encontra-se vinculada ao disposto no artigo 1793.º do Código Civil: a utilização terá lugar a título de arrendamento, ainda que o montante da renda seja fixado pelo tribunal que para o efeito se guiará não pelas condições do mercado de arrendamento mas primordialmente pelas necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
No caso, como vimos, a utilização da casa de morada de família pelo cônjuge mulher encontra-se estabelecida em virtude do acordo dos cônjuges no decurso da tentativa de conciliação realizada no processo de divórcio, então convertido em divórcio por mútuo acordo. Tal acordo dos cônjuges, homologado pelo tribunal, tem três particularidades: não estabelece para o cônjuge utilizador qualquer prestação pecuniária como contrapartida da utilização; define expressamente que esse regime vale até à partilha dos bens, ou seja, mesmo no período futuro entre a produção de efeitos do divórcio e a partilha; atribui a utilização ao cônjuge mulher com quem, por força do acordo de regulação das responsáveis parentais, os filhos menores ficam (rectius, continuam) a residir.
O que daqui resulta de imediato é que a fonte jurídica da utilização da casa de morada de família (a decisão judicial de homologação do acordo dos cônjuges sobre essa matéria) não prevê que essa utilização esteja subordinada ao pagamento de qualquer contrapartida. Não importa que isso possa ou não fazer presumir que a contrapartida não é devida. O que importa é que não resultando da respectiva causa que a relação jurídica criada tenha na sua composição esse elemento jurídico (o dever de prestação, como contrapartida), o dever de prestação correspondente não pode ser ancorado nessa causa, pelo que terá de ser procurado noutra sede.
Em tese pode encontrar-se na figura da responsabilidade civil (artigo 483.º do Código Civil).
Como sabemos a regra básica de distribuição dos riscos e que constitui um dos princípios básicos da responsabilidade traduz-se na máxima casum sensit dominus. A imputação delitual dos danos a outrem pressupõe a lesão de direitos subjectivos, de posições jurídicas que mereçam ser protegidas de qualquer agressão.
Quando limita a ilicitude aos casos de violação de um direito subjectivo ou à infracção a uma disposição legal de protecção, mais que do erigir um critério de ponderação do valor do direito ou bem que possa ser violado, a lei preocupa-se em fixar balizas claras de delimitação da extensão da responsabilidade.
A responsabilidade delitual não cobre a totalidade das manifestações da vida em sociedade, sob pena de esta se tornar impossível, tais os riscos que qualquer acto poderia desencadear. Há situações em que se produz um dano e não é possível responsabilizar um terceiro pelo mesmo, tendo o lesado de suportar as consequências danosas como um risco social e juridicamente próprio.
O artigo 483.º do Código Civil divide a ilicitude em duas modalidades básicas: a violação de um direito subjectivo de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios. No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um determinado bem jurídico que a lei protege mediante a qualificação desse interesse como um verdadeiro direito subjectivo da pessoa. O direito de propriedade é um direito subjectivo pelo que em tese a violação do mesmo consubstancia um acto ilícito gerador de responsabilidade.
Todavia, na prática podemos estar perante uma violação do direito de propriedade e não estar perante um acto ilícito. É, cremos nós, precisamente o caso.
Desde logo, o direito de propriedade em causa não é um direito exclusivo do recorrente, é um direito que assume a natureza de comunhão conjugal e, por isso, não apenas tem como titulares ambos os cônjuges como se encontra subordinado a um regime jurídico específico que vincula a utilização do bem a determinados fins e afecta o bem a medidas específicas de tutela da casa de morada de família. Logo se a utilização do bem por apenas um dos cônjuges é, em determinadas circunstâncias que se verificam no caso, juridicamente permitida, ela não pode constituir um ilícito civil.
Por outro lado, essa utilização não pode constituir um ilícito porque a mesma foi autorizada expressamente pelo outro cônjuge. Com efeito, no domínio do direito civil, o consentimento do lesado é causa de exclusão da ilicitude (artigo 340.º do Código Civil), sendo certo que nos encontramos no domínio dos direitos patrimoniais e consequentemente dos direitos disponíveis.
Refira-se que por esse motivo soçobra igualmente a alegação do recorrente a propósito de estar impedido de utilizar a casa de morada de família: está, de facto, mas porque acordou estar, sendo que esse acordo foi homologado judicialmente e por isso produziu efeitos jurídicos válidos e eficazes.
Deste modo, excluído de modo irremediável que a actuação da recorrida consubstancie um acto ilícito, o dever de prestação correspondente à indemnização do dano da privação da utilização da casa de morada de família pelo recorrente numa poderá ter como fonte o instituto da responsabilidade civil.
Por isso, a discussão só pode afinal centrar-se no instituto do enriquecimento sem causa.
Estabelece o artigo 473.º do Código Civil que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. A norma acrescenta que essa obrigação de restituir tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
Os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa são assim os seguintes: a) a existência de um enriquecimento, b) que esse enriquecimento seja obtido à custa de outrem, c) que o enriquecimento careça de causa justificativa (por todos cf. Júlio Gomes, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Portuguesa, UC Editora, pág. 250).
Por enriquecimento entende-se a obtenção de uma prestação, vantagem, proveito ou mera posição com valor económico. Não é, portanto, indispensável que o enriquecido, para o ser, haja recebido um valor económico, bastando para o efeito que ele possa ter feito uma poupança, usufruído sem contrapartida de um património alheio, adquirido um crédito sobre terceiro, etc.. O que releva é pois a melhoria da situação patrimonial através da obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial seja ela resultado de um aumento do activo patrimonial, de uma diminuição do passivo ou de uma poupança de uma despesa1.
Galvão Teles, in Direito das Obrigações, 7ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 196, sustenta que «o enriquecimento supõe que o benefício se projectou no património, influiu no seu conteúdo, o tornou mais valioso ou impediu que passasse a ser menos, originando pois um ganho ou a desnecessidade de um dispêndio».
Segundo Pereira Coelho, in O Enriquecimento e o Dano, Separata da RDES, pág. 42 e ss., o enriquecimento pode ser visto sob dois ângulos, o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objectivo e autónomo da vantagem adquirida, e o do enriquecimento patrimonial, que reflecte a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido, e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado.
Júlio Gomes, loc. cit., pág. 250, manifesta a opinião de que a palavra enriquecimento tem aqui, um significado diferente do usual. Segundo o autor a nossa lei utiliza tanto o conceito de enriquecimento real, como o de enriquecimento patrimonial mas o objecto da restituição é o enriquecimento real, funcionando o enriquecimento patrimonial como o limite da obrigação de restituir, quando e enquanto o enriquecido está de boa-fé. Por isso, escreve, deve ser restituído o que tiver sido «indevidamente recebido>> e, como a nossa lei parte do primado da restituição natural, nessa sede nem sequer se coloca a questão do valor patrimonial, a qual só surge quando se transita para a restituição em valor ou por equivalente, situação em que importa proteger o enriquecido de boa-fé e a sua obrigação de restituir não deverá exceder o seu enriquecimento patrimonial (o valor a mais no seu património).
Exige-se depois que esse enriquecimento seja obtido à custa de outrem, ou seja, que a vantagem patrimonial obtida por uma parte corresponda a um prejuízo para outrem, que o benefício obtido por uma equivalha a um prejuízo sofrido para quem fica privado da vantagem. Não é necessário, obviamente que tenha havido uma intervenção directa da pessoa que sofre o prejuízo, mas é necessário que a vantagem patrimonial obtida pelo beneficiário da deslocação corresponda a uma diminuição do património daquele ou a uma perda da vantagem económica que de outro modo ele teria obtido.
O que significa que no enriquecimento sem causa há sempre um enriquecido e um empobrecido e que é em função das suas posições relativas que o instituto deverá repor o equilíbrio destruído pela vantagem indevida. Todavia, deve assinalar-se que para este efeito o empobrecimento não exige que haja propriamente uma perda patrimonial, a existência de um dano patrimonial. O conceito de empobrecimento basta-se aqui com a circunstância de haver uma vantagem patrimonial que não é recebida por aquele a quem devia caber segundo o ordenamento jurídico.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.11.2010, in www.dgsi.pt, escreveu-se a esse propósito o seguinte: «A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, como regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro. O benefício obtido pelo enriquecido deve, pois, resultar de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido. Daí que se postule a necessidade de existência de um nexo (causal) entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro. (…) tem gerado controvérsia o saber se se torna ou não ainda necessário que a vantagem económica do enriquecido deva ser obtida imediatamente à custa do empobrecido. Questão essa que resulta do facto de a relação entre o enriquecimento e o seu suporte por outrem poder ser directa ou indirecta, dado que a deslocação patrimonial para o enriquecido tanto poder ocorrer ou ser conseguida por via directa ou com via indirecta/reflexa. Vem, contudo, ganhando predominância a corrente doutrinal que amplia o referido requisito no sentido de exigir que, além de uma vantagem obtida à custa de outrem, se torna ainda indispensável, para que haja lugar à obrigação de restituição, que haja uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial directa – no sentido de que entre o acto gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer outro acto jurídico. Ou seja, para que haja lugar à obrigação de restituir torna-se ainda necessário que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito à restituição, por forma a não dever haver de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro qualquer acto jurídico. A isso designa a doutrina alemã por carácter imediato da deslocação patrimonial. Porém, dado, por um lado, não resultar directa e forçosamente da lei a imposição de tal solução, e dado, por outro, a complexidade e a variedade de situações ou hipóteses que podem ser abrangidas ou colocadas, vem uma parte dessa doutrina – a que aderimos – defendendo dever ter a jurisprudência os movimentes livres para atender a uma ou outra situação em que tal exigência de deslocação patrimonial directa se venha, em concreto, a mostrar excessiva, conduzindo, por via disso, a soluções que choquem com o comum sentimento de justiça».
Por outro lado, para que se constitua a obrigação de restituir com base no enriquecimento é necessário que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca a houve por não se ter verificado o escopo pretendido ou este ter, entretanto, deixado de existir, quer porque a causa jurídica em que assenta é inválida (cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, I, 1970, pág. 320 e 321, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2.º volume, reimpressão, 1990, pág. 56).
Embora a lei não ofereça uma noção de causa do enriquecimento e indique apenas dois casos exemplificativos em que se verifica o pressuposto da obrigação, entende-se que o enriquecimento carece de causa quando o mesmo é injustificado à luz da ordem jurídica, ou seja, quando correndo as diversas fontes legais e contratuais de que aquele incremento patrimonial poderia emergir nenhuma se encontra de que, no caso, este pudesse ser o efeito normal, legítimo, aceite pela ordem jurídica (cf. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, págs. 499 e 500, e Galvão Teles, in Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, pág. 200.
Como refere Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5.ª edição, pág. 438, e in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 454 e segs. a causa justificativa do enriquecimento constitui «… um dos conceitos mais controvertidos entre os autores e dos mais difíceis de precisar, pela extrema variedade das situações a que tem de aplicar-se. A lei civil não o definiu, limitando-se cautelosamente a facultar ao intérprete algumas indicações capazes de, com meros subsídios, auxiliarem a sua formulação pela doutrina e pela jurisprudência». Mais à frente acrescenta que «…o enriquecimento é injusto porque, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outro. E esta é a directriz que importa seguir em todos os casos, para saber se o enriquecimento criado por determinados factos assenta ou não numa causa justificativa. Trata-se de um puro problema de interpretação e integração da lei, tendente a fixar a correta ordenação à luz do Direito vigente. Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.»
O enriquecimento não terá causa quando, segundo a lei, não devia pertencer ao enriquecido mas a outrem, sendo necessário averiguar, por interpretação ou integração da lei, se esta o quer radicar no beneficiado ou não, sendo que na primeira hipótese não ocorre o pressuposto da falta de causa. Operando-se a deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, donde que se esse fim falta, as obrigações resultantes do negócio ficam sem causa (cf. Leite de Campos, in A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir no Enriquecimento, págs. 317 e 412).
Por outro lado, como se menciona no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2013, proc. n.º 2777/10.6TBPTM.E1.S1, in www.dgsi.pt, «o enriquecimento sem causa … é fonte autónoma de obrigações, sendo que a causa da deslocação patrimonial só releva na ausência de relação obrigacional, negocial ou legal e, designadamente, tratando-se de prestação sem qualquer finalidade típica tutelada. Por isso, a pretensão de enriquecimento é sempre subsidiária (ou residual), de sorte que só é possível se não existir meio alternativo para ressarcimento dos prejuízos (declaração de nulidade ou de anulação de negócio, por ex.). Sendo, ele mesmo, fonte autónoma de obrigações, embora subsidiária, a falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento terá de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências das regras gerais sobre os ónus de alegação e prova – art. 342º C. Civil. A mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar que efectivamente a causa falta (…)».
Sendo assim parece que podemos concluir facilmente que pelo menos este último requisito, a ausência de causa justificativa, não se encontra preenchida. Com efeito, no caso existe uma causa perfeitamente justificada para a recorrida utilizar em exclusivo a casa de morada de família para nela continuar a residir com os filhos menores do dissolvido casal, nem mais nem menos que a autorização do recorrente, concedida através do acordo estabelecido com esse conteúdo e homologado judicialmente no processo de divórcio!
A recorrida não se encontra a utilizar um bem alheio, encontra-se a utilizar um bem de que é igualmente proprietária e sobre o qual dispõe, por conseguinte, da faculdade de gozo e fruição. Ela está pois no exercício de um direito próprio, fazendo a utilização que até aí vinha fazendo e nos moldes em que a vinha fazendo.
A única alteração relaciona-se com a separação do casal e com a saída de casa do cônjuge. Essa saída não era obrigatória, mas existe interesse público na resolução do conflito pessoal e familiar subjacente à ruptura do casamento, razão pela qual a legislação incentiva os cônjuges a resolverem esse aspecto da sua vida, designadamente exigindo o acordo sobre a utilização para poderem requerer o divórcio por mútuo consentimento e atribuindo ao juiz do poder-dever de fixar oficiosamente um regime provisório de utilização que crie condições para aquela resolução.
Por esse motivo, entendemos que a utilização exclusiva da casa de morada de família pelo cônjuge que vai continuar com os filhos menores a seu cargo e a não utilização pelo cônjuge que se aparta desse núcleo familiar não só não afronta o ordenamento jurídico como inclusivamente serve interesses específicos que este tutela, pelo que não preenche os pressupostos do enriquecimento sem causa.
Dir-se-á que o cônjuge que sai de casa pode ter necessidade de arranjar nova habitação para si e de suportar os respectivos custos, o que não vai suceder com o cônjuge que permanece na casa de morada de família, o que gera uma desigualdade entre eles no aproveitamento das faculdades inerentes à titularidade do património comum.
Por certo é (pode ser) assim, mas as opções que se fazem na vida nunca são inócuas ou irrelevantes. Isso é assim porque houve ruptura da vida conjugal e essa ruptura implica a aceitação de muitas das suas consequências.
Tratando-se da casa de morada de família, da casa onde vão continuar a habitar os filhos menores na companhia do progenitor ao cuidado do qual se mantém e em relação aos quais o cônjuge de saída mantém a obrigação de proporcionar alimentos, designadamente habitação, do único bem imóvel do património comum que permite essa utilização, e não se demonstrando a existência de uma desproporção entre as condições económicas dos cônjuges desfavorável ao cônjuge que sai da habitação, afigura-se-nos que essa consequência da utilização exclusiva até à partilha dos bens comuns pelo outro cônjuge não é juridicamente tutelável.
Em conclusão, não existe fundamento jurídico para o cônjuge que permanece a habitar na casa de morada de família na sequência de um acordo dos cônjuges homologado judicialmente que lhe atribuiu, até à partilha, a utilização exclusiva com a finalidade de lhe proporcionar, bem como aos filhos menores ao seu cuidado, habitação, tenha de pagar ao cônjuge de saída uma contrapartida, compensação ou indemnização por essa exclusividade da utilização.
A reconvenção foi, pois, a nosso ver, correctamente julgada não provada, decisão que é de manter, improcedendo o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão de julgar a reconvenção improcedente e absolver a recorrida do pedido.
Custas do recurso pelo recorrente.
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Porto, 29 de Abril de 2021.
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Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 612)
Paulo Dias da Silva
João Venade (em substituição da Dr.ª Francisca Mota Vieira, temporariamente impedida).
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]