Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4438/11.0TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DANO PRÓPRIO
FURTO DE VEÍCULO
VALOR DO BEM
ÓNUS DA PROVA
PRIVAÇÃO DO USO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RP201306134438/11.0TBVNG.P1
Data do Acordão: 06/13/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nada impede que as partes estipulem o valor do bem objecto do contrato de seguro e, quando isso ocorrer, ainda que não tenha sido acordado que esse era o valor a indemnizar em caso de furto, o segurado não tem de provar qual o valor do bem, bastando-lhe provar, como elemento constitutivo do seu direito, que o valor do bem objecto do seguro foi fixado por acordo ou pela seguradora.
II - O segurado só tem de provar o valor do bem na data do sinistro quando o valor tenha sido indicado por ele aquando da celebração do contrato.
III - Sendo o valor fixado pelo agente da seguradora, recai sobre esta o ónus de provar que, na data do furto, o valor real do bem era inferior ao valor constante da apólice.
IV - Não havendo convenção das partes em contrário, a seguradora não suporta os danos causados com a privação do bem ou com os lucros cessantes decorrentes do sinistro.
V - A afectação psicológica sem determinação das suas concretas consequências não assume gravidade que mereça atribuição de indemnização a título de dano não patrimonial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 4438/11.0TBVNG.P1
Relator – Leonel Serôdio (303)
Adjuntos – Amaral Ferreira
- Ana Paula Lobo

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Relatório

B… intentou acção declarativa, com processo sumário contra C… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.P.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL pedindo a sua condenação no pagamento de: “a) € 10.000 a titulo de indemnização decorrente do contrato de seguro com danos próprios celebrado, em consequência do furto de veículo de matrícula ..-GT-..; b) € 3 950,00, a título de indemnização pela privação do uso de veículo e prejuízo moral decorrente do incumprimento da Ré; c) € 910,00 que se consubstancia na diferença de gastos que o A teve como encargo até Abril; d) juros vencidos desde 14.06.2010,no montante de € 360,55; e) juros vincendos.”

Alega, em suma, que, em 3.12.2009, o seu veículo de matrícula ..-GT-.. foi furtado e que se encontrava coberto por um contrato de seguro que vigorou entre 28.10.2009 e 31.01.2010, titulado pela apólice n. …………. Ao abrigo desse contrato de seguro, para além de outras coberturas, estava previsto que, em caso de roubo ou furto, a R. indemnizaria o A. no valor de € 10.000,00. Mais alega que depois do furto ter ocorrido a interpelou para pagar o valor do veiculo e que a Ré recusou efectuar o pagamento, o que lhe causou os danos peticionados.

A Ré contestou, impugnando ter ocorrido o furto e alegando que o valor do capital seguro foi indicado pelo A e que o valor do veículo era apenas de € 1800. Sustenta ainda que o A não tem direito aos restantes danos por não estarem cobertos pelo contrato de seguro. Concluiu pela improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.

O A respondeu mantendo a posição assumida na petição.

O processo prosseguiu os seus termos e a final foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou a Ré a pagar ao A. “a quantia de € 10.000,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento e ainda na quantia que se vier a liquidar em execução de sentença em consequência da privação do uso de veiculo e prejuízo moral e diferença de gastos em combustível que o A. teve como encargo”.

A Ré apelou e apresentou as seguintes conclusões que se transcrevem:

“I. A resposta aos factos nºs 7 e 16 do relatório da sentença recorrida, com base na apólice de seguro junta aos autos e no previsto nos artºs 128º e 130º/1 do RJCS, deverá ser alterada por este tribunal, no uso dos poderes previstos no art.º 712º do CPC, para o seguinte: - ao facto sob o nº 7 ser alterada para “De acordo com aquele contrato de seguro, além de existirem outras coberturas, estava previsto que, em caso de furto ou roubo, a R. indemnizaria o A. até ao valor de 10000,00 euros”; - e ao facto sob o nº 16 ser alterada para “As partes celebraram entre si um contrato de seguro, mediante o qual a seguradora se obrigava a pagar ao A, em caso de furto, o valor do veículo.”
II. O apelado não provou o valor do veículo seguro na data do sinistro/furto (valor em risco), apenas o valor do capital seguro (valor seguro), sendo aquele e não este o que determinaria o valor concreto da indemnização a pagar pela apelante e, como tal, um facto essencial para lograr a condenação desta. Ao não o reconhecer o tribunal recorrido fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do disposto nos artºs 128º e 130º/1 do RJCS e ainda nos artºs 342º do CC e 516º do CPC, devendo a sua decisão ser revogada e substituída por outra que absolva a apelante do pedido.
III. Os danos de (a) privação do uso, (b) diferença de gastos em combustível e (c) prejuízo moral, mandados indemnizar em liquidação de sentença, não deverão ser indemnizados, devendo, como tal, a apelante ser absolvida de o fazer:
a) por não cobertos pelo contrato de seguro, no que foi violado este, os artºs 128º e 130º/2 e 3 do RJCS e o artº 406º do CC;
b) por não provada a existência daqueles dois primeiros, no que foram violados os artºs 562º e 563º do CC;
c) por, atenta essa não prova, não ser lícito remeter a liquidação do seu valor para momento ulterior, no que foi violado o artº 661º/2 do CPC;
d) por não provado o nexo causal entre o não pagamento do capital seguro e todos aqueles danos, no que foi violado o artº 563º do CC;
e) por a apelante, nesse não pagamento e no tempo que levou a comunicá-lo ao apelado não ter violado qualquer dever contratual acessório de conduta ou da prestação, no que foram violados os artºs 406º e 798º do CC e os artºs 128º e 130º/2 e 3 do RJCS;
f) por o dano não patrimonial em causa, tal como provado (esta situação desgastou psicologicamente o autor), não ter gravidade que justifique a tutela do direito, no que foi violado o artº 496º/1 do CC.
IV. Ainda que assim se não entenda então a decisão em apreço deverá sempre, ao menos, ser alterada por forma a condenar apenas a apelante a pagar os danos em causa no período que mediou de 03.02.2010 (03.12.2009/sinistro + 60 dias) a 16.03.2010 e, ainda assim e em qualquer caso, sempre com o limite máximo de € 5.220,55, dado que, ao não o fazer, o tribunal recorrido violou o disposto no contrato de seguro e no artº 661º/1 do CPC.”
A final pede que o recurso seja julgado procedente, revogando-se ou, ao menos, alterando-se a decisão recorrida conforme atrás concluído.

O A contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

Factos dados como provados na 1ª instância (transcrição):

1 O A. é proprietário do veiculo automóvel de matricula ..-GT-.., marca smart, modelo ….
2. Em consequência da aquisição do veículo supra referido, o A. celebrou um contrato de seguro com a R. tendo, para o efeito, recorrido a um agente da mesma – D…, onde era habitual celebrar os seus contratos de seguro e, onde, inclusivamente, tinha outros contratos de seguro em vigor.
3. Apresentou uma factura de extras aplicados na viatura em causa.
4. Aquele agente apresentou uma simulação de prémio de seguro, vulgarmente chamado de «contra todos os riscos», tendo atribuído à viatura o valor de 10.000,00 euros, com extras incluídos, para efeitos de cálculo de pagamento de prémio.
5. A. e R. celebraram um contrato de seguro automóvel que vigorou entre 28.10. 2009 e 31.01.2010.
6. E incluiu danos próprios em caso de furto ou roubo – apólice n. ………… -, tendo o prémio de seguro respectivo sido pago pelo A., no valor de 142,23 euros.
7. De acordo com aquele contrato de seguro, além de existirem outras coberturas, estava previsto que, em caso de furto ou roubo, a R. indemnizaria o A. pelo valor de 10.000,00 euros.
8. Em 3.12.2009, no período compreendido entre as 00h30 m e as 8 horas e 50 m, a viatura em causa foi furtada, com objectos no seu interior, assim como os respectivos documentos.
9. No mesmo dia, o A. participou o sinistro - furto da viatura.
10. Em 16.03.2010, a R. comunicou ao A. que não processaria qualquer indemnização a titulo de danos e/ou prejuízos, afirmando, nessa comunicação, que: «… terminadas as diligências levadas a efeito para clarificação do circunstancialismo que rodeou o evento em causa, não conseguiriam os nossos serviços enquadra-los nos factos que nos foram transmitidos».
11. O A. solicitou explicações sobre tal afirmação, através da sua mandatária, assim como a concretização das mesmas.
12. Em 11 de Junho de 2010, o A. enviou à R. uma carta, que a recepcionou em 14 de Junho de 2010, na qual aquele informou a R. que, caso não solucionassem o seu caso, iria peticionar, além do valor da viatura – 10.000,00 euros –, uma indemnização, assim como os respectivos juros.
13. Desde a data da aquisição do veículo GT, o A. utilizou-o diariamente até ao dia 3 de Dezembro de 2009, data em que constatou o seu desaparecimento do local onde a deixara estacionada.
14. A viatura GT não foi recuperada até hoje.
15. Não obstante terem decorridos sessenta dias sobre o desaparecimento do veiculo, a R. recusa – se a efectuar qualquer pagamento no âmbito do contrato de seguro celebrado.
16. As partes celebraram entre si um contrato de seguro, mediante o qual a seguradora se obrigava a pagar ao A, em caso de furto, o valor atribuído ao veículo.
17. Trata-se de um contrato de seguro de risco de coisas ou objetos, que visa garantir a conservação do património do segurado.
18. Nesse contrato, tendo por objecto um veiculo automóvel, o seu desaparecimento, por efeito de furto, traduz o dano.
19. O A. adquiriu a viatura em causa por ser um veiculo de baixo consumo, com vista à sua deslocação diária para o seu emprego e afazeres pessoais, fazendo o A. uma utilização diária do mesma.
20. Esta situação desgastou psicologicamente o A, que se viu forçado a recorrer a Advogado.

Fundamentação
As questões a decidir são as seguintes:
I - Recurso da decisão da matéria de facto
Se há fundamento para alterar a factualidade constante dos nºs 7 e 16 do relatório da sentença recorrida.

II -Recurso da matéria de direito
1. Se o A tinha o ónus de provar o valor do veículo furtado;
2. Se o A tem ou não direito a ser indemnizado pela privação do uso e pela diferença de gastos em combustível;
3. Se o A tem direito a indemnização por danos não patrimoniais.

Recurso da decisão da matéria de facto

Nos nºs 7 e 16 dos factos provados consta:
7. De acordo com aquele contrato de seguro, além de existirem outras coberturas, estava previsto que, em caso de furto ou roubo, a R. indemnizaria o A. pelo valor de 10000,00 euros;
16. As partes celebraram entre si um contrato de seguro, mediante o qual a seguradora se obrigava a pagar ao A, em caso de furto, o valor atribuído ao veículo.

A Ré pugna pelas seguintes alterações:
7. De acordo com aquele contrato de seguro, além de existirem outras coberturas, estava previsto que, em caso de furto ou roubo, a R. indemnizaria o A. até ao valor de 10.000,00 euros;
16. As partes celebraram entre si um contrato de seguro, mediante o qual a seguradora se obrigava a pagar ao A., em caso de furto, o valor do veículo.

A alteração da decisão da matéria de facto nos termos peticionados, baseia-se no art. 712 n.º 1 al. b) do CPC, que permite ao tribunal alterar a decisão da matéria de facto “ se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outras provas.”
Desta disposição resulta que a Relação pode alterar a decisão da matéria de facto, quando haja no processo um qualquer meio de prova plena que, por isso mesmo, não possa ser destruído por quaisquer outras provas.
Assim, deve dar-se como provado determinado facto desde que esteja provado por documento autêntico ou por documento particular que faça prova plena, ou seja, quando não possa ser afastado quaisquer que sejam as provas produzidas em julgamento. [1]
No caso a questão tem de ser solucionada pela interpretação da apólice, documento que formaliza o contrato de seguro (art. 16º n.º 2 do DL n.º72/2008, de 16.04, que estabeleceu o novo regime jurídico do Contrato de Seguro -RJCS).
A apólice deixou de ser um documento ad substantiam, como decorre do n.º 1 do citado art. 32º, que estabelece que a validade do contrato de seguro não depende de forma especial, ou seja, a forma escrita deixou de ser imprescindível para a validade do contrato de seguro, como ocorria na vigência do art. 426º do Código Comercial.
Contudo continua a ser a apólice o instrumento escrito de formalização do contrato e inclui todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis, como estipula o art. 37º n.º 1 do RJCS.
Por outro lado, o n.º2 do art. 37º nas suas várias alíneas indica os elementos mínimos que devem constar da apólice.
É o segurador que está obrigado a formalizar o contrato (art. 32º n.º 2 do RJCS) e também a entregá-la ao tomador (art. 34º n.º1 do RJCS).
Contudo inexplicavelmente os documentos que comprovam a outorga do contrato de seguro juntos aos autos, são apenas os apresentados pelo A com a petição e que constam de fls. 22 dos autos (doc.n.º 3 da petição) – recibo emitido pela Ré relativo à apólice n.º …………; que tem como objecto o veículo matrícula ..-GT-.. e validade de 28.10.2009 a 31.01.2009 e prémio total -142,22€ e ainda o junto a fls. 24 (doc. n.º 4 junto com a petição) certificado de tarificação – emitido pela Ré e que para além dos elementos referidos, consta como riscos cobertos, o seguinte (que agora interessa):
“Veiculo – danos próprios
Danos acid. sofridos pelo veículo ..…….. 10.000,00
Incêndio, raio, explosão ……………….. 10.000,00
Furto ou roubo ………………………….10.000,00.”
Por outro lado, consta dos autos o documento junto a fls. 21 (doc. n.º2 da petição) – elaborado pelo agente da R e que esteve na base da factualidade dada como provada sob o n.º 4, não impugnada, a recordar:
“Aquele agente apresentou uma simulação de prémio de seguro, vulgarmente chamado de «contra todos os riscos», tendo atribuído à viatura o valor de 10.000,00 euros, com extras incluídos, para efeitos de cálculo de pagamento de prémio.”
Quanto à interpretação do clausulado do contrato de seguro, vale, conforme é entendimento pacífico o regime geral do Código Civil (arts. 236.º a 239º ex vi 3º do RJCS) e as regras decorrentes dos arts. 7.º, 10.º e 11.º do DL. n.º 446/85, de 15.10 ( cf. art. 4º do RJCS), que no caso não têm relevância dado que não foram juntas aos autos as condições gerais e especiais que, em regra, constituem clausulas contratuais gerais nos contratos de seguro.
O n.º 1 do artigo 236º do CC, consagra, na primeira parte, a denominada teoria da impressão do destinatário. Dele resulta que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.
Assim, atendendo ao que consta dos referidos documentos, ao facto dado como provado sob o n.º 4, entendemos que se deve afastar a versão conclusiva adoptada pela 1ª instância e que não espelha o que consta dos referidos documentos, sendo que deles não decorre para um tomador médio que tenha acordado com a Seguradora que caso se verificasse o sinistro seria sempre indemnizado pelo valor de 10000,00 euros, mas também não se pode acolher a proposta redutora da Ré que pretende escamotear que o valor do veículo foi atribuído pelo seu agente, como está definitivamente assente.
Por isso, dá-se uma reposta conjunta aos dois números, eliminando-se o 16 e passando o 7, a ter a seguinte redacção:
7. De acordo com aquele contrato de seguro, além de existirem outras coberturas, estava previsto que, em caso de furto ou roubo, a R. indemnizaria o A. pelo valor do veículo, tendo esse valor sido fixado pelo agente da Ré em 10.000,00 euros.

Recurso da matéria de direito

Critério de determinação do valor dos bens.
Ónus da prova do valor do veículo.

A questão é de saber se o A tem direito a ser indemnizado pelo valor do veículo furtado fixado pelo agente da Seguradora (posição do A – acolhida pela sentença) ou, pelo contrário, aquele apenas teria direito ao valor real do veículo e ainda se era o segurado que tinha de provar esse valor (posição da Ré).

O contrato de seguro em causa foi celebrado em 28.10.2009, já depois da entrada em vigor do DL n.º 72/2008, de 16.04, que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro (RJCS).
Atento o principio da liberdade contratual, expressamente reafirmado no art. 11º do RJCS, o contrato de seguro é regulado pelas estipulações da respectiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas disposições do RJCS aprovado pelo citado DL n.º 72/2008 e subsidiariamente pelas disposições da lei comercial e da lei civil (art. 4º do RJCS).
Importa, contudo, recordar que o art. 4º do DL n.º72/2008, revogou os artigos 425º a 462º do Código Comercial, ou seja, o titulo XV, que regulamentava os contratos de seguro nesse Código.

O presente contrato de seguros integra o tipo denominado “seguro de danos” - título II, do RJCS – arts. 123º a 174º.
O art. 123º - Sobre o objecto deste tipo de seguro estipula: “O seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais.
As disposições relevantes constam da secção III - intitulada “Principio Indemnizatório” e estipulam:
art.º 128º
“A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”
art. 130º
“1. No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.
2. No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.
3. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.”

Por outro lado, o art. 131º (Regime Convencional) estipula:
1.Sem prejuízo do disposto no artigo 128º e no n.º1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado.

O citado art.128º em que se baseia a Apelante consagra o chamado “princípio indemnizatório” que visa evitar um enriquecimento do segurado com o sinistro nos seguros de danos em coisas.
O anterior regime continha uma disposição que também consagrava o mesmo princípio – o art. 435º do Código Comercial que estipulava: “ Excedendo o valor do objecto segurado, só é válido até à ocorrência desse valor.”

Contudo o n.º 1 do citado art. 130º do RJCS expressamente prevê a admissão genérica de derrogação esse princípio indemnizatório, consagrando a prevalência sobre este do princípio da liberdade contratual.
Importa, agora, atentos estes artigos e o disposto no artigo 342º do CC, decidir a quem compete o ónus da prova do valor do bem furtado, abrangido pela coberta do seguro.
Não está em causa que atento o art. 128º e não havendo acordo em contrário, o segurador atento o referido princípio indemnizatório apenas é obrigado a pagar o valor da coisa no momento do sinistro.
No entanto, dele não decorre, ainda que conjugado com o n.º1 do art. 342º do CC, que estabelece que cabe àquele que invocar um direito a prova dos factos constitutivos, que seja sempre o segurado que tem o ónus de provar o valor da coisa ao tempo do sinistro.

A repartição do ónus da prova deve fazer-se de harmonia com a previsão traçada na norma jurídica que serve de fundamento à pretensão deduzida mas "não se trata... de lançar o ónus da prova do facto sobre a parte que o invocou", pois o ónus "imposto a quem alega o direito não se estende a todos os factos que interessam à vigência actual desse direito mas somente aos factos constitutivos dele" (cf. A. Varela, RLJ, ano 116, pág. 346).
Esses factos são os "que servem de fundamento à acção" ou os "idóneos, segundo a lei substantiva, para fazer nascer o direito que o autor se arroga..." (cf. A. Reis, no CPC, III, pág. 282).
Assim sendo, tendo de se distinguir as situações consoante a forma como foi fixado o valor do bem no contrato, ou seja, se o valor foi indicado pelo tomador de seguro ou antes foi fixado por acordo entre tomador e seguradora.

Como decorre do citado art.131º do RJCS e do art. 405º do CC nada impede que as partes estipulem o valor do bem objecto do contrato e quando assim ocorre como no caso em apreço, ainda que não tenha sido acordado que esse era o valor a indemnizar em caso de furto, o segurado não tem de provar qual o valor do bem, precisamente por este ter sido fixado por acordo das partes.
Por isso, o segurado apenas tem de provar, como elemento constitutivo do seu direito que o valor do bem objecto do seguro, foi fixado por acordo das partes ou pelo segurador.
No plano dos princípios, a indemnização deve corresponder numa primeira linha ao valor do seguro, sendo certo que foi em função dele, que o segurador recebeu o prémio.
O segurado só tem de provar o valor do bem na data do sinistro quando o valor tenha sido indicado por ele aquando da celebração do contrato.
Neste caso, como o valor foi fixado pelo agente da Seguradora recai sobre ela o ónus de provar que na data do furto, o valor real do bem era inferior ao valor constante da apólice.
De resto, mesmo que se entendesse que era o segurado que tinha de provar o valor do veículo, no caso, importa recordar, que ficou provado que o contrato foi celebrado em 28.10.2009 e nessa altura foi fixado pelo agente da Ré Seguradora o valor de € 10.000,00 ao veículo, que ficou a constar na apólice e que o furto ocorreu em 3.12.2009, ou seja, pouco mais de 2 meses depois.
Viola pois as mais elementares regras da experiência e do senso comum que nesse curto espaço de tempo, ou seja, pouco mais de 2 meses depois, o veículo tenha diminuído de valor.
A posição da Ré ao pretender que se desconsidere esse valor, que aceitou dois meses antes, integra mesmo uma situação de abuso, na modalidade de “venire contra factum proprium.”
De resto, a Ré alegava que o veículo apenas valia € 1.800,00 mas não provou essa factualidade, nem impugnou a decisão da matéria de facto, quanto a este facto.
Podemos, pois, concluir que era facto constitutivo do direito do A, este provar que o valor do veículo seguro foi fixado por acordo das partes ou pela seguradora e era facto limitativo ou modificativo desse direito a provar pela seguradora (nos termos do art.342º n.º2 do CC) que o valor do bem ma data do furto era inferior ao acordado.
Não há pois fundamento para alterar a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a indemnizar o A no montante de € 10 000, a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde 14.06.2010, data da interpelação da Ré.

2. Se o A tem ou não direito a ser indemnizado pela privação do uso e diferença de gastos em combustível.

Sobre o direito a ser indemnizado dos referidos danos patrimoniais, o art.130º n.º 2 e 3 do RJCS afasta expressamente esse ressarcimento.
Na verdade o n.º 2 estabelece que o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado e o n.º 3 determina que se aplique o mesmo regime quanto ao valor de privação do uso do bem.
Estabelece-se, pois, um regime especifico para os contratos de seguro de danos, que se afasta do regime comum e do qual resulta que não havendo convenção das partes em contrário, a seguradora não suportará os danos causados com a privação do bem ou com os lucros cessantes decorrentes do sinistro.
A sentença recorrida seguindo a posição do A, dado que a Ré não efectuou o pagamento da indemnização mesmo após interpelação, decidiu que esta violou um dever acessório da prestação que, decorre do principio da boa fé, em conformidade com o disposto no art. 762, do C. Civil e que se a prestação tivesse sido cumprida, permitiria ao A. o recurso a uma viatura nova.
Mesmo admitindo que a violação do principio geral boa fé, pode conduzir à condenação da Ré/Seguradora por danos não cobertos pelo contrato de seguro, no caso, não se pode desconsiderar que o furto ocorreu apenas cerca de 2 meses após a celebração do seguro, sendo pois legítima a posição da Ré de questionar a sua ocorrência e pretender que o segurado provasse em tribunal que o mesmo tinha ocorrido.
Por outro lado, não se pode imputar à Ré ter a acção apenas sido intentada em 09.05.2011. Para além disso, como se referiu, desde a data que foi interpelada para pagar e não o fez (14.06.2010), a Ré teria de suportar os juros de mora, que constitui a indemnização legalmente estabelecida para as obrigações pecuniárias (cf. art. 806º n.º 1 do CC).
Acresce que a factualidade provada sobre esta questão é apenas que o “A adquiriu a viatura em causa por ser um veículo de baixo consumo, com vista à sua deslocação diária para o seu emprego e afazeres pessoais, fazendo o A. uma utilização diária do mesma.” Ora, dela apenas se pode inferir que teve um prejuízo que decorre directamente de ter sido privado de utilizar o veículo em consequência do furto.
No entanto, como referimos, a obrigação da Ré de indemnizar o A por essa privação, como estabelece o n.º 3 do art. 130 do RJCS, tinha de ser convencionada. Por outro lado, nada permite dar como provado que foi por não ter recebido a referida quantia de 10.000€ quando a Ré foi interpelada, que teve outros danos, designadamente que não adquiriu outro veículo com as mesmas características.
Assim, mesmo que se entendesse que a Ré violou de forma grave o princípio da boa fé não se provaram factos que permitissem a sua condenação a pagar ao A “a diferença de gastos em combustível que teve.”

3. Quanto à indemnização a titulo de danos não patrimoniais.

É actualmente largamento maioritário o entendimento que no âmbito da responsabilidade contratual são ressarcíveis os danos não patrimoniais (cf. a titulo exemplificativo, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 552 e nota 3, em que enumera os autores e cita vários acórdãos do STJ e das Relações que defendem esta posição).
Como refere, este autor, não há entre a responsabilidade contratual e a extracontratual diferenças essenciais que justifiquem a exclusão da indemnização nos danos não patrimoniais naquela.
O argumento que a inserção do art. 496 do CC na subsecção «Responsabilidade por Actos Ilícitos» implica a sua aplicabilidade apenas a casos de responsabilidade extra-contratual é puramente formal.
Desde que no âmbito da responsabilidade contratual, concretamente no domínio do incumprimento das obrigações, se produzam danos de natureza não patrimonial, que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, nada justifica não serem indemnizáveis, pelo art. 496 do CC.
Contudo como é entendimento pacífico os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais.
Ora, no caso apenas ficou provado que a “ situação afectou psicologicamente o A., que se viu forçado a recorrer a Advogado”.
Ora a afectação psicológica sem se ter provado as suas concretas consequências no A, não assume gravidade que mereça protecção jurídica e a consequente atribuição de uma indemnização a título de dano não patrimonial.
Não há pois fundamento para condenar a Ré a indemnizar o A por danos não patrimoniais.
*
Decisão

Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e revoga-se a sentença na parte em que condenou a Ré a pagar ao A a “quantia que se vier a liquidar em execução de sentença em consequência da privação do uso de veiculo e prejuízo moral e diferença de gastos em combustível que o A. teve como encargo” mantendo-se a condenação a pagar a A a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 14.06.2010 até integral pagamento.
Custas em ambas as instâncias por A e Ré na proporção do decaimento.

Porto, 13.06.2013
Leonel Gentil Marado Serôdio
António do Amaral Ferreira
Ana Paula Fonseca Lobo
_________________
[1] cf. Alberto dos Reis, “ C.P.C. Anotado”, vol. VI, pág. 472 e acórdão do S.T.J. de 12.3.81, B.M.J. n.º 305, pág. 276.