Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
478/05.6TAVLG.P1
Nº Convencional: JTRP00043856
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
CONTRA-ORDENAÇÃO
DÍVIDA
Nº do Documento: RP20100505478/05.6TAVLG.P1
Data do Acordão: 05/05/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Estando em causa a utilização de meio de transporte, a dívida contraída, para efeitos do art. 220º, 1, alínea c) do C. Penal, corresponde apenas ao preço do bilhete em singelo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso penal
no processo nº 478/05.6TAVLG.P1
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
1 – Relatório
Nos autos de processo comum com julgamento em tribunal singular nº 478/05.6TAVLG do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo foi proferida em 15 de Outubro de 2009, sentença que decidiu: «Condenar o arguido B…….., pela pratica de um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. pelo art. 220° n°1 al. c), do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de 3€ (três euros), o que perfaz 150€ (cento e cinquenta euros).»
Inconformado com esta decisão, dela veio interpor recurso no interesse do arguido, o M. Público, extraindo-se das conclusões elaborada os seguintes argumentos:
Discorda-se da condenação por se considerar não estarem preenchidos os elementos objectivos do tipo legal do crime pelo qual o arguido vinha acusado.
Acompanhamos o entendimento expresso no Acórdão do TRP de 15.11.2006 no sentido de que «Para efeitos de preenchimento do crime de burla do art. 220 nº 1, al. c) do CP, a "divida contraída" corresponde ao valor do bilhete, sem quaisquer acréscimo.»
O crime em apreço encontra a sua previsão legal no art. 220 nº 1 al. c) do C.P. que dispõe que comete este crime quem, com intenção de não pagar, utilizar meio de transporte (...) sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e se negar a solver a dívida contraída.
Da factualidade dada como provada resulta que ao arguido foi emitido um título de € 50, correspondente ao bilhete que é emitido nessas circunstâncias, de acordo com o artigo 1º do DL 415-A/86 de 17/12, que o arguido não pagou, no prazo de 8 dias subsequentes.
Em momento nenhum se refere que o arguido se recusou a pagar a quantia referente ao bilhete correspondente ao trajecto efectuado.
Falta, assim, um elemento factual relevante no apuramento do preenchimento deste tipo de ilícito - recusa de pagar a dívida contraída.
Entendemos que a divida contraída é o preço do bilhete em singelo sem quaisquer acréscimos, ainda que legalmente previstos, pois estes são já a sanção para a contravenção eventualmente aplicável ao caso.
Como se refere no Ac. 0612288, argumento que nos parece decisivo, «considerar que a expressão "dívida contraída" engloba também o montante das multas ou "sobretaxas" (ou seja, das quantias devidas a titulo de sanção) só seria possível através de uma interpretação extensiva e, "... como se sabe, a adopção de interpretações extensivas para efeitos de incriminação de condutas é violadora do principio da tipicidade, enquanto uma das dimensões do principio da legalidade, decorrente do art. 29 nº 1 da C. Rep. e 1º do Código Penal."».
Conclui que não resultando dos autos que o arguido se tenha negado a solver a quantia referente a viagem, (bilhete em singelo), deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido.
Ao recurso respondeu o arguido também defendendo que a sentença omite um elemento factual relevante no apuramento do preenchimento do ilícito pelo qual o arguido foi condenado,- recusa de pagar a dívida contraída, - e que por isso, o mesmo deve ser absolvido.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 230.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso dado que desde logo a acusação pública não imputou ao arguido o facto de notificado para solver a dívida, no sentido de valor do bilhete, o mesmo se recusou a fazê-lo. Seja tal facto mera condição de procedibilidade ou elemento objectivo do tipo, a verdade é que não vindo, desde logo, narrada no libelo tal factualidade essencial à perfectibilização do tipo legal em referência, o arguido não pode deixar de ser absolvido.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos, cumpre decidir, o que se fará em conferência.

2. Fundamentação
A – Circunstâncias com interesse para a decisão.
Pela sua relevância para a decisão passamos a transcrever a matéria de facto dada como provada pela decisão recorrida e respectiva motivação:
«Factos provados:
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão os seguintes factos:
1) No dia 29 de Dezembro de 2004, cerca das 13 horas e 30 minutos, o arguido fazia-se transportar no comboio nº 15215 pertencente aos Caminhos de Ferro Portugueses, EP, quando ao quilómetro 12,00 da linha do Minho, Ermesinde, o mesmo foi abordado pelo revisor que constatou que o arguido não era possuidor de qualquer título de transporte válido;
2) Consequentemente foi emitido ao arguido um título de 50 euros, correspondente ao bilhete que é emitido nestas circunstâncias, de acordo com o art. 1º do DL nº 415-A/86, de 17/12, (correspondente ao acréscimo do serviço) que o arguido não pagou, no prazo de 8 dias subsequentes a data acima referida;
3) Sabia o arguido que não lhe era permitida a utilização de tal meio de transporte, sem possuir bilhete válido para o mesmo e que ao recusar proceder a tal pagamento no prazo que lhe foi estipulado estava a lesar patrimonialmente a CP e a alcançar benefício que sabia não lhe ser devido;
4) Actuou o arguido com a intenção de utilizar o meio de transporte sem proceder ao seu pagamento, o que e conseguiu, contra a vontade da ofendida;
5) Agiu o arguido livre voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
6) O arguido é solteiro;
7) É empregado de hotelaria, mas actualmente encontra-se detido;
8) Tem uma companheira que aufere cerca de 500€ mensais;
9) Tem um filho de 19 meses de idade;
10) Está a pagar ao banco uma prestação mensal de 49 € referente a um crédito;
11) Possui como habilitações literárias o 8° ano de escolaridade;
12) Do CRC junto aos autos consta ter sido o arguido condenado por decisão de 15-7-2005, proferida no processo nº …/04.6TAPRD, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Paredes, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e 6 meses, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, ocorrido em 27-2-2004;
13) Consta ainda ter sido o arguido condenado por decisão de 29-5-2006, proferida no processo nº …/05.6TAVCT, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Paredes, na pena de 50 dias de multa a taxa diária de 3 euros, pela prática de um crime de burla para obtenção de alimentos bebidas ou serviços, ocorrido em 25-9-2004.

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa, nomeadamente:

Fundamentação da convicção do tribunal:
Na determinação dos factos que considerou provados, atendeu o tribunal, ao teor do documentos juntos aos autos (fls. 2, 3 e 107 a 109) e às declarações do arguido que assume ter efectuado de comboio de Ermesinde para Viana do Castelo, pois, na altura encontrava-se a viver com a sua mãe em Paredes, mas esta maltratava-o e, então decidiu ir para casa do seu pai que morava em Areosa, Viana do Castelo, mas como não tinha dinheiro e o único meio de transporte que conhecia para se deslocar para junto do seu pai era o comboio. Salienta que tentou explicar a situação ao revisor e acrescenta que viajou até Viana do Castelo. Mais refere que perguntou ao seu pai se tinha possibilidades de pagar a quantia que lhe era exigida pela CP, mas aquele disse-lhe que não e, por isso, não pagou. Esclarece que na altura era menor e não tinha condições nem possibilidades de pagar. Mais esclarece que o revisor lhe solicitou o bilhete e o arguido disse que não possuía. Então, o revisor disse-lhe que se não tinha bilhete tinha de pagar a multa. Declarações espontâneas e coerentes, onde assume com frontalidade a prática dos factos.
Atendeu ainda o tribunal ao depoimento da testemunha: C……. que refere não se recordar da situação, mas que o procedimento normal em situações destas é regularizar a situação e que não foi dada qualquer possibilidade ao arguido de pagar o bilhete em singelo. Depoimento pouco esclarecedor, mas claro e espontâneo no que concerne a ter dado possibilidade ao arguido de pagar o bilhete em singelo.
Quanto a sua situação sócio-económica e familiar, baseou-se o tribunal nas declarações prestadas pelo arguido.»

B – Fundamentação de direito
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extraiu das respectivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto o recurso está limitado à questão de saber se da matéria de facto provada se podem extrair os elementos típicos do crime p.p. pelo art. 220 nº 1 al. c) do C.Penal pelo qual o arguido foi condenado nestes autos.

O art. 220 nº 1 al. c) do C.Penal, correspondente ao art. 316 nº1 al. c) do Código de 1982, na redacção que lhe foi dada pela reforma de 1995, dispõe:
« Quem, com intenção de não pagar :
Utilizar meio de transporte ou entrar em qualquer recinto público sabendo que tal supõe o pagamento de um preço;
e se negar a solver a dívida contraída é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias.»
A mesma punição é aplicável a quem com intenção de não pagar:
Se fizer servir de alimentos ou bebidas em estabelecimento que faça do seu fornecimento comércio ou indústria; - al. a) do art. 220 nº1 do C. Penal.
Utilizar quarto ou serviço de hotel ou estabelecimento análogo; - al. a) do art. 220 nº1 do C. Penal.
Os elementos do tipo legal são o dolo específico de não pagar, a utilização de meio de transporte, o conhecimento de que tal utilização corresponde a um serviço que pressupõe um pagamento, e a recusa em solver a dívida contraída através da qual se efectiva a lesão do património do fornecedor do serviço e se consuma o crime.
Questão controversa, que há muito tem vindo a dividir a jurisprudência é a de saber a que corresponde em concreto a dívida contraída.
Ora, da análise das alíneas do citado nº1 do art. 220 do C.Penal verificamos que em todas elas a acção típica se integra numa relação jurídica sinalagmática, ou seja, o lesado é o fornecedor ou prestador do serviço: profissional de restauração, hotelaria, transportador ou empresário organizador de espectáculo, e o agente a pessoa que beneficia do serviço prestado com intenção de não o pagar e que confrontado com a necessidade de proceder ao respectivo pagamento se recusa a efectuá-lo.
Então o que deve entender-se por dívida contraída, neste contexto?
Nos termos do art. 9º nº 3 do C.Civil o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, e de acordo com o nº2 do mesmo artigo não deve ser considerada a interpretação que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal.
Por seu turno, especificamente em direito criminal o legislador, expressamente proíbe o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, incluindo-se na proibição o recurso à interpretação extensiva da incriminação em detrimento do arguido e o recurso à interpretação restritiva de causas de justificação.
Este princípio da legalidade penal ou da tipicidade, está consagrado no art. 29 da CRP e no art. 1º do C.Penal.
O respeito por esta exigência de garantia supõe o conhecimento pelo cidadão, antecipadamente, das condutas que lhe são penalmente vedadas e também lhe permite conhecer os comportamentos irrelevantes para o direito penal. Só assim é possível preservar uma ordem de liberdade e a dignidade da pessoa humana, que não pode estar sujeita a variações motivadas por objectivos políticos.
Tendo em atenção os citados princípios, consideramos que a dívida contraída para efeitos das várias alíneas do nº1 art. 220 do C.Penal, tem de entender-se como o valor dos géneros ou serviços fornecidos e não pagos pelo agente da infracção.
Na verdade, nada permite distinguir entre o valor do bilhete para um espectáculo ou de entrada para um museu, e o valor do bilhete de um transporte, para efeitos de considerar que no caso do transporte, a dívida corresponde ao valor do bilhete acrescido dos suplementos que as operadoras rodoviárias entendem aplicáveis aos casos em que o passageiro é encontrado a viajar sem estar munido do respectivo título de transporte.
Considerar que a dívida nos casos do transporte engloba as taxas ou acréscimos que as operadoras entendem cobrar em tais situações é interpretação, a nosso ver, violadora do principio da tipicidade e uma distinção inadmissível entre as restantes situações similares previstas no mesmo art. 220 nº1 do C.Penal, como são a obtenção de serviços de restauração ou hotelaria.
Pelo exposto, perfilhamos a posição dos que defendem que o significado da expressão dívida contraída corresponde ao valor do bilhete em singelo, tal como é posto à venda na respectiva bilheteira. (1)
Da análise dos factos considerados provados verificamos que o arguido viajava num comboio pertencente aos Caminhos de Ferro Portugueses tendo sido detectado pelo respectivo revisor que não era portador de título de transporte válido.
Então foi emitido um título com o valor de 50 € que corresponde ao bilhete com acréscimo de serviço.
Este valor é actualmente o mínimo fixado livremente pelos Caminhos de Ferro Portugueses para as situações como a descrita, previstas na Portaria 403/75 de 30 de Junho com as alterações da Portaria 1116/80 de 31 de Dezembro e do DL 415-A/86 de 17 de Dezembro.
Assim, verifica-se que não consta do elenco dos factos provados o valor do bilhete em singelo, nem o elemento essencial para a consumação do crime que seria a recusa do arguido em liquidar o valor correspondente ao preço do serviço desprovido de outros acréscimos.
Resulta até da motivação da convicção do tribunal que ao arguido não foi dada a possibilidade de efectuar o pagamento do bilhete em singelo.
Nestes termos, e face ao que ficou exposto, temos de concluir que efectivamente os factos assentes não contêm um elemento essencial para o preenchimento do tipo legal pelo qual o arguido foi condenado, motivo por que entendemos assistir razão ao recorrente.

3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, acordam os juízes neste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo M. Público, e em consequência, decidem revogar a sentença recorrida e absolver o arguido B……. da prática do crime de burla para acesso a meios de transporte por que fora condenado nos presentes autos.
Sem tributação.

Porto, 5/05/2010
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
______________
(1) Neste sentido citamos os Acórdãos da Relação do Porto de 21 /06/2006 e de 4/10/2006, relatados respectivamente por Joaquim Gomes e Élia São Pedro, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e também o Acórdão da Relação de Coimbra de 3/11/2003 publicado na Col. Jur. Tomo V, pág. 39.
Defendendo opinião contrária veja-se, por todos, o Acórdão da Relação do Porto de 29 de Junho de 2005, relatado por Isabel Pais Martins, publicado na Col. Jur. Tomo III, pág. 222.