Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1194/18.4T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO APTO PARA CONSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP202009081194/18.4T8PVZ.P1
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O direito de preferência apenas está consagrado para assegurar a rentabilidade das explorações agrícolas e evitar o excessivo parcelamento do solo apto para cultura, no pressuposto necessário de ser previsível que o prédio do preferente e o objecto da preferência vão continuar a ser destinados à produção agrícola ou florestal.
II - É à luz da lei civil mas também com recurso às regras administrativas do PDM ou da Fazenda Pública que se deve procurar o critério diferenciador para a natureza rústica ou urbana dos prédios preferendos.
III - Assim, apesar dos prédios em causa integrarem a definição de prédios rústicos nos termos do art.º 204.º, n.º 2, do CCivil, estando demonstrado a sua potencialidade edificativa é previsível que se destinem à construção, pelo que nos termos do art.º 1381.º, a), daquele diploma legal, resulta afastado o direito de preferência conferido pelo art.º 1380.º, n.º 1.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1194/18.4T8PVZ.P1-Apelação
Origem-Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim- J4
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B… e mulher C…, residentes na Rua …, n.º .., …. - … …, vieram intentar a presente acção declarativa de processo comum contra D… e marido E…, residentes na Rua…, …, …. - … … Santo Tirso, pedindo:
a) que seja reconhecido o direito de preferência aos autores na venda do terreno rústico a que se referem os artigos 2º a 4º da petição, substituindo-se aos réus no respectivo título de transmissão da propriedade;
b) a condenação dos réus a entregarem de imediato aos autores o referido terreno, livre e desocupado;
c) que se ordene o cancelamento do registo de compra em processo de execução a favor dos réus, efectuado pela AP. 1500 de 18.05.2018, e de todas as inscrições que estes venham entretanto a fazer.
Alegam para o efeito que:
- são proprietários e possuidores do terreno rústico situado em …, com a área total de 4.721 m2, o qual confronta a norte e a poente com caminho público, a sul com F… e a nascente com caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso com o n.º 143 da freguesia de … e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 897.
- tiveram conhecimento que tinha sido vendido, em processo de execução, o terreno rústico confinante a norte com o seu, situado em …, com a área total de 7.072 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso com o n.º 588 da freguesia de … e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 900, venda feita pelo preço de 112.060,00 €.
- têm todavia, direito de preferência legal, pois são proprietários de um terreno rústico confinante com o terreno rústico vendido, sendo que ambos têm uma área inferior à unidade de cultura estabelecida para aquela região, a qual é de 2,5 hectares. Nenhum dos terrenos é parte componente de um prédio urbano ou se destina a algum fim que não seja a cultura, não tendo a venda judicial abrangido um conjunto de prédios que formem uma exploração agrícola de tipo familiar.
Concluem que, na qualidade de titulares do direito de preferência na venda, deveriam ter sido notificados do dia, hora e local aprazados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito, caso o pretendessem, o que não aconteceu.
Assim, têm o direito de haver para si o bem vendido.
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Válida e regularmente citados os réus contestaram.
Invocaram a inexistência dos pressupostos para o exercício do direito preferência.
Alegam que o autor, aos 22 de Janeiro de 2018, apresentou nos autos de execução um requerimento no qual exercia o seu eventual direito de preferência e que veio a ser indeferido.
Referem ainda que:
- sobre o prédio dos réus incidiu um pedido de loteamento, tendo parte dele sido cedido à Câmara para feitura de uma rotunda. Para esse prédio foi emitido o alvará de loteamento no processo com o nº 951/2000. É verdade que com a morte do então proprietário e com a instauração do processo executivo supra identificado não foram realizadas as infra-estruturas e o alvará de loteamento caducou. Mas, o prédio continua a ser urbano, ainda que agora como urbanização especial;
- que os terrenos em causa são aptos à construção e como tal urbanos.
Invocaram ainda a caducidade do direito de exercer o direito de preferência e o exercício abusivo desse direito.
Peticionam, por fim, a condenação dos autores como litigantes de má fé.
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Notificados os autores pronunciaram-se, pugnando pela improcedência das excepções invocadas pelos réus, bem como do pedido de condenação como litigantes de má fé, pedindo ainda a condenação destes nessa qualidade.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu pela improcedência da excepção de caducidade invocada pelos réus, concluindo-se, quanto ao mais, pela validade e regularidade da instância.
Após, foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
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Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, como da respectiva ata consta.
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A final foi proferida decisão que julgando a acção totalmente improcedente por não provada absolveu os réus do pedido contra eles formulado.
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Não se conformando com o assim decidido, vieram os Autores interpor recurso rematando com as seguintes conclusões:
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Devidamente notificados, contra-alegaram os Réus concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta é apenas uma a questão que importa apreciar a decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido fez, ou não, uma correcta subsunção jurídica dos factos que nos autos resultaram provados.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
São os seguintes os factos que vêm dados como provados:
1.1. Encontra-se descrito na CRP de Santo Tirso sob o n.º 143/19890619 da freguesia de …, como rústico, o prédio sito em …, com a área total de 4.721 m2, composto por terreno, a confrontar a norte e a poente com caminho público, a sul com F… e a nascente com caminho, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 897.
1.2. Pela Ap. 12 de 19.06.1989, foi inscrita a favor do autor B…, casado com a autora C… de acordo com o regime da comunhão de adquiridos, a “Aquisição” por “Compra” do prédio identificado em 1.1.
1.3. Encontra-se descrito na CRP de Santo Tirso sob o n.º 588/20020405 da freguesia de …, como rústico, o prédio denominado de “… ou …”, sito em …, com a área total de 7.072 m2, composto por terreno, a confrontar a norte com B…, a sul com caminho e Estrada Nacional e a nascente e poente com caminho, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 900.
1.4. Pela Ap. 1500 de 18.05.2018, foi inscrita a favor da ré D…, casada com o réu E… no regime da comunhão de adquiridos, a “Aquisição” por “Compra em Processo de Execução” do prédio identificado em 1.3., aí se identificando o “Proc. execução n.º 722/09.0TBSTS, Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Maia – Juízo de Execução–Juiz 2”.
1.5. No âmbito do processo de execução n.º 722/09.0TBSTS identificado em 1.4. foi emitido pelo Agente de Execução o “Termo de Adjudicação de Imóveis” datado de 18.05.2018, junto aos autos por cópia a fls. 11 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta, designadamente:
“Aos 15 de Janeiro de 2018 e na sequência da abertura de propostas em carta fechada para a venda do bem imóvel penhorado e identificado infra, foi apresentada, por D…, UMA proposta de aquisição no valor de 112.060,00 € (…), pelo que se vende a D… (…) casada no regime da comunhão de adquiridos com E… (…), o seguinte bem:
- Prédio rústico, composto por terreno, sito em …, com a denominação de “… ou da …”, na freguesia da …, concelho de Santo Tirso. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º 588 e inscrito na matriz predial rústica da freguesia de … sob o artigo 900 (...)”.
1.6. Em data não concretamente apurada mas situada entre 15.01.2018 e 22.01.2018, os autores ficaram a saber da venda a que se alude em 1.5.
1.7. Os autores ficaram ainda a saber que os compradores foram os réus.
1.8. Para além do preço, os réus pagaram os impostos devidos e os emolumentos de registo predial, concretamente, a quantia de 5.603,00 € a título de IMT (imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis), bem como a quantia de 896,48 € a título de imposto de selo e ainda a quantia de 250,00 € a título de emolumentos com o registo predial de aquisição do bem comprado.
1.9. O prédio identificado em 1.1. confina com o prédio identificado em 1.3.
1.10. Nenhum dos prédios identificados em 1.1. e 1.3. é parte componente de outro prédio, designadamente, urbano, sendo que em ambos apenas existem árvores e mato.
1.11. A venda identificada em 1.5. não abrangeu um conjunto de prédios que formem uma exploração agrícola de tipo familiar.
1.12. Os autores não foram notificados do dia, hora e local aprazados para a abertura de propostas.
1.13. Os autores procederam ao depósito do preço, acrescido das despesas efectuadas pelos réus em impostos e emolumentos do registo predial, tudo no valor de 118.809,48 €.
1.14. O autor, aos 22 de Janeiro de 2018, nos autos que corriam seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Maia - Juízo de Execução - Juiz 2 - Processo nº 722/09.0TBSTS, apresentou o requerimento junto aos autos por cópia a fls. 26 verso a 27, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta, designadamente:
“B… (…) diz o seguinte:
(…)
3º Tomou conhecimento que, o prédio confinante com o seu na freguesia de …, concelho de Santo Tirso, descrito na competente Conservatória, sob o nº 588, e inscrito sob o artº 900, foi objeto de penhora, cuja abertura de propostas foi feita no passado dia 15 deste mês (…)
3.1, Da própria certidão vê-se que o requerente, confina pelo lado norte com o dito prédio, não tendo sido notificado para exercer o direito que lhe assiste.
O requerente é o possuidor do prédio contíguo com o prédio atrás referido, inscrito sob o artº 897 rústico da freguesia de …, cuja caderneta junta, pelo qual se verifica que o mesmo confronta pelo sul com F….
4º A proposta mais elevada foi no valor de 112,060,00 conforme informação recebida.
5º Como se vê da descrição é o requerente, o único confrontante pelo lado norte do indicado prédio objeto da dita penhora.
6º Está o requerente, interessado nos termos da lei, em exercer o direito de preferência, que lhe assiste, na compra do indicado prédio.
7º O requerente está preparado para pagar de imediato o valor de 112,060,00, proposta essa, que foi a mais elevada.
Pelo que,
Requer a V. Exª, se digne atribuir o prédio ao requerente, no indicado valor de 112,060,00 euros solicitando as necessárias instruções para proceder ao pagamento integral do valor atrás referido.
1.15. A ré, por requerimento de 07.02.2018, junto aos autos por cópia a fls. 32 a 35 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pronunciou-se, expondo os respectivos fundamentos, no sentido de que “deve ser indeferido o requerido por B….”
1.16. Sobre o requerimento identificado em 1.14. foi proferido despacho em 28.02.2018, junto aos autos por cópia a fls. 37 verso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta que “por ser inviável reconhecer o direito de preferência do requerente no contexto dos presentes autos, indefiro o requerido a fls. 288 verso.”
1.17. Quer o prédio identificado em 1.3., quer o prédio identificado em 1.1., estão, de acordo com o Plano Director Municipal de Santo Tirso, integrados na denominada “Área de Urbanização Especial”.
1.18. Sobre o prédio identificado em 1.3. incidiu um pedido de loteamento requerido por F….
1.19. Para o prédio identificado em 1.3. foi emitido o alvará de loteamento n.º 25 de 03.05.1985.
1.20. Com a morte de F… e depois com a instauração do processo executivo identificado em 1.5., não foram executadas as obras de urbanização, pelo que o alvará de loteamento identificado em 1.19. caducou.
1.21. No prédio identificado em 1.1. os autores nada cultivam, nem plantam árvores, sendo que as árvores que lá existem cresceram de forma espontânea.
1.22. O prédio identificado em 1.1. e o prédio identificado em 1.3. estão circundados por todos os lados por estrada.
1.23. Mediante escritura pública outorgada a 04.01.2008, junta aos autos por cópia a fls. 67 a 70, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, os autores declararam vender ao Município de Santo Tirso, que declarou aceitar a venda, pelo preço de treze mil quatrocentos e sessenta e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos, uma parcela de terreno com 574 m2, a desanexar do prédio identificado em 1.1., a confrontar a sul com a parte sobrante do prédio do qual era desanexada, destinada “a ser integrada no domínio público municipal para execução do arruamento de acesso à Escola EB 2 e 3 de …”.
1.24. Mediante escritura pública outorgada a 07.10.1997, junta aos autos por cópia a fls. 62 a 65, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o autor declarou vender ao Município de Santo Tirso, que declarou aceitar a venda, pelo preço de vinte um milhões oitocentos e cinquenta e sete mil quatrocentos e setenta e dois escudos, uma parcela de terreno com 7228 m2, a desanexar do prédio identificado em 1.1., a confrontar a sul com o autor, destinada “à construção da Escola EB 2 e 3 de …”.
1.25. Dessa escritura consta “Arquivo (…) o triplicado do modelo 129 apresentado nesta data na 1ª Repartição de Finanças de Santo Tirso.”
1.26. Mediante escritura pública outorgada a 03.08.2004, junta aos autos por cópia a fls. 42 a 43, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o réu, na qualidade de procurador e em representação de G…, e outros, declararam vender ao Município de Santo Tirso, que declarou aceitar a venda, uma parcela de terreno com 182 m2, a desanexar do prédio identificado em 1.3., a confrontar a poente com parte sobrante do prédio.
1.27. Os autores sabem que os prédios identificados em 1.1. e 1.3. são aptos para construção.
1.28. A nascente dos prédios identificados em 1.1. e 1.3. existem casas de habitação.
1.29. A norte dos prédios identificados em 1.1. e 1.3. existem armazéns e habitações.
1.30. A sul dos prédios identificados em 1.1. e 1.3. existem habitações.
1.31. A poente dos prédios identificados em 1.1. e 13. existe a escola a que se alude em 1.23.
1.32. O terreno identificado em 1.1. fazia parte de um prédio mais amplo, com a área de pelo menos 12.523 m2.
1.33. O preço por m2 do prédio identificado em 1.3. é de, no mínimo, 40,00 €.
1.34. Os autores sabiam, desde data não concretamente apurada mas anterior a 15.01.2018, que o prédio identificado em 1.3. iria ser objecto de venda judicial.
1.35. Os autores não apresentaram qualquer proposta no processo executivo.
1.36. O prédio identificado em 1.3. era pertença, também, do pai do réu, E…, ainda que por sucessor de seu pai F….
1.37. O prédio identificado em 1.1. e o prédio identificado em 1.3. estão ambos inscritos na matriz predial rústica desde 1975.
1.38. O Serviço de Finanças competente nunca alterou a classificação dos prédios identificados em 1.1. e 1.3. de rústicos para urbanos.
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2. Factos Não Provados:
Não se provou que:
2.1. Os terrenos identificados em 1.1. e 1.3. estão no centro da freguesia da ….
2.2. A área correta do prédio identificado em 1.3. é de 6.884 m2.
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III- O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido fez, ou não, uma correcta subsunção jurídica dos factos que nos autos resultaram provados.
A presente acção tinha por fundamento o exercício do direito de preferência por parte dos Autores sobre a venda do prédio identificados em 1.3 da fundamentação factual.
Na decisão recorrida, não obstante à luz da lei civil os prédios confinantes (o dos Autores e o que foi objecto de venda) fossem ambos de natureza rústica e, portanto, fossem possível o exercício daquele direito de preferência, acaba por negar tal direito aos Autores estribado na circunstância de que, estando demonstrada potencialidade edificativa de ambos os prédios é previsível que se destinem à construção, razão pela qual nos termos do artigo 1381.º, a), do CCivil, resulta afastado o direito de preferência conferido pelo artigo 1380.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Deste entendimento dissentem os recorrentes, alegando à luz da lei civil-artigo 204.º, n.º2 do Código Civil-(e ainda da lei fiscal) os prédios em questão nos presentes autos são, indiscutivelmente, prédios rústicos e têm uma afectação florestal, razão porque lhes deveria ter sido reconhecido o direito de preferência.
Quid iuris?
Como se sabe o artigo 204.º, n.º 2 do Código Civil, define prédio rústico como “uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes” e o prédio urbano é “qualquer edifício incorporado no solo com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.”
Como refere Menezes Cordeiro[1] segundo a noção do CCivil “o prédio rústico é o terreno, ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica e o urbano um edifício com o logradouro.”
Ora, no caso em apreço não havendo, nos terrenos dos prédios em causa, qualquer construção e estando ambos a ser ocupados por árvores e mato (cfr. ponto 1.10 da fundamentação factual), sem dúvida que, face ao estatuído no citado artigo 204.º, n.º 2, do CCivil, seriam prédios rústicos e, por assim ser, aos Autores cabia o exercício do direito de preferência.
Acontece que também resulta do quadro factual supra descrito que apesar de os prédios terem uma afectação florestal, estavam e estão destinados, segundo o PDM, a terreno de construção.
Isto dito, alguma jurisprudência vai no sentido de que é à luz da lei civil e não de normas de outros ramos de direito, designadamente das regras administrativas do PDM ou da legislação fiscal, que se deve fixar a natureza dos prédios, para efeito do exercício do direito de preferência, conferido pelo artigo 1380.º do CCivil e artigo 18.º, n.º1 do DL n.º 384/88, de 25.10 (que regulamenta o emparcelamento rural).[2]
Outra corrente[3] vai no sentido de que na solução de uma questão cível devem concorrer, segundo o princípio fundamental da unidade da ordem jurídica, as normas relevantes de todo o ordenamento jurídico e não apenas as normas do Código Civil, posição com a qual concordamos.
Efectivamente, importa ter em conta que o primeiro e mais importante dos elementos que o artigo 9.º, n. 1, do Código Civil, aponta ao intérprete para a descoberta e fixação do pensamento legislativo é a unidade do sistema jurídico.
De facto, o direito objectivo é um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, há princípios jurídicos gerais de que os outros são deduções e corolários ou então vários princípios que mutuamente se recondicionam ou restringem, de tal maneira que o sentido duma disposição ressalta claro quando é confrontada com outras normas gerais ou supra-ordenadas, quando dos preceitos singulares se reencontra ao ordenamento jurídico no seu todo.[4]
Pois bem, nesta conformidade, as normas do direito civil sobre a classificação das coisas imóveis (artigo 204.º) não pode alhear-se de outras normas do mesmo ordenamento jurídico com as quais aquelas estejam numa relação de subordinação ou conexão, como sucede no caso concreto com o Código das Expropriações.
No caso, importa referir, que ficou assente que apesar dos prédios terem uma afectação florestal e agrícola, estavam e estão destinados, segundo o PDM, a terreno de construção.
Como assim, e tal como se refere na decisão recorrida, apesar dessa afectação florestal, se considerarmos a sua concreta localização e a respectiva envolvente, bem como a circunstância de o PDM neles permitir a construção, facilmente chegamos à conclusão que o prédio adquirido pelos Réus, pela sua previsível afectação económica e pelo seu valor, não pode ser considerado como um terreno de natureza rústica, ou seja, destinado à produção agrícola ou florestal.
Ora, o direito de preferência consagrado no artigo 1380.º do CCivil e alargado pelo artigo 18.º, n.º 1, do DL n.º384/88, de 25/10, representa uma restrição relevante ao princípio basilar da liberdade contratual e apenas está consagrado para assegurar a rentabilidade das explorações agrícolas e evitar o excessivo parcelamento do solo apto para cultura, no pressuposto necessário de ser previsível que o prédio do preferente e o objecto da preferência vão continuar a ser destinados à produção agrícola ou florestal.
Assim, quando os prédios confinantes, apesar da afectação florestal, possuem uma efectiva potencialidade edificativa, conferida pelo PDM, não se justifica a apontada restrição, porque necessariamente, por razões económicas e sociais, a curto ou a médio prazo deixarão de ser afectos à produção florestal.
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Diante do exposto nada temos a censurar à decisão recorrida quando conclui que apesar dos prédios em causa integrarem a definição de prédios rústicos nos termos do art.º 204, n.º 2, do CCivil e estando demonstrada a sua potencialidade edificativa é previsível que se destinem à construção, razão pela qual nos termos do artigo 1381.º, a), do CCivil, resulta afastado o direito de preferência conferido pelo artigo 1380.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
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Improcedem, desta forma todas as conclusões formuladas pelos correntes e, com elas, o respectivo recurso.
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Face a improcedência do recurso desnecessário se torna apreciar a impugnação da matéria de facto posta a título subsidiário pelos recorridos.
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V- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente por provada a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelos Autores recorrentes (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 08/09/2020.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] In Tratado de Direito Civil Português, Volume I, Tomo II, 1ª edição, página 123.
[2] Cfr. entre outros, Ac. desta Relação de 15/01/2009 in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. entre outros, Ac. desta Relação de 24/04/2014 in www.dgsi.pt.
[4] In Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por Manuel Andrade na Monografia Gerais Sobre A Teoria da Interpretação Das Leis.