Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
467/19.3T8ALB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
PEDIDOS INCOMPATÍVEIS
Nº do Documento: RP20211021467/19.3T8ALB.P1
Data do Acordão: 10/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os pedidos dizem-se substancialmente incompatíveis quando nos efeitos jurídicos que visam produzir com a procedência da ação, cada um deles, exclua a possibilidade de verificação de cada um dos outros. Em tal caso, há ininteligibilidade da petição. O juiz fica impossibilitado de decidir.
II - Esta incompatibilidade tanto pode resultar de pedidos mutuamente excludentes, como de pedidos que assentam em causas de pedir inconciliáveis
III - A ação de reivindicação de parcela de imóvel, consagrada no artigo 1311º do Código Civil, funda-se na discussão e reconhecimento do título aquisitivo de prédio identificado no mesmo título e de que o proprietário está desapossado e, portanto, supõe a definição certa, segura e concreta dos limites do prédio reivindicado.
IV - A ação de demarcação, prevista no artigo 1353º do Código Civil, supõe a certeza e indiscutibilidade dos títulos de propriedades confinantes, havendo duvidas apenas quanto aos respetivos limites.
V - A cumulação de tais pedidos é, em si mesma, substancialmente incompatível, pois, as causas de pedir de que decorrem são inconciliáveis. Não pode discutir-se a existência do titulo e requerer a restituição da coisa, (a qual como exige o artigo 581º nº 4 do Código de Processo Civil tem de ser concretamente delimitada), e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos de Autor e Réu por modo a requerer a demarcação a qual supõe a incerteza da delimitação.
VI - A sanção cominada para a cumulação substancialmente incompatível de pedidos é a nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial, artigo 186º nº 1 e 2 c) do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 467/19.3T8ALB.P1

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

B… e mulher C… demandaram D…, Lda., todos com os sinais dos autos, tendo formulado os seguintes pedidos:
“a) Declarar-se que a herança indivisa aberta por óbito de E… e F…, e de que o A. e os restantes irmãos são os únicos e universais herdeiros, é a dona e legitima proprietária do prédio rústico, identificado nos artigos 3º e 4º da P.I.;
b) Ordenar-se a demarcação dos limites entre o prédio da herança indivisa acima mencionada e o prédio da R., atentas as estremas de ambas as propriedades, com a colocação de marcos;
c) Condenar-se a R. a desocupar a área do prédio pertencente à identificada herança e de que ilicitamente se apropriou, demolindo as construções aí efetuadas e repondo a área em causa nas condições em que se encontrava antes dos trabalhos de construção civil efetuados pela R.;
d) Condenar-se a R. a pagar aos herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de E… e de F… a título de indemnização pelos danos causados na sua propriedade, com a destruição de vedações, corte de árvores, destruição de culturas e privação do uso parcial da mesma, a quantia de € 8.000,00 (Oito mil euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal que se vencerem desde a citação e até integral pagamento;”
Fundamentam os pedidos e em síntese na invocação de que:
O A. marido é herdeiro do prédio, descrito no art. 4.º da petição inicial e que se encontra em comunhão hereditária.
A R. é proprietária do prédio identificado no artigo 11º da petição inicial.
A R. invadiu a propriedade pertencente à herança indivisa destruindo a vedação em rede existente, (…) pertencente à herança do A, ocupando totalmente a eira desta, impedindo o seu acesso à denominada casa da eira(…)
Antes das obras de construção civil executadas pela R., os dois prédios estavam também delimitados por alguns marcos de granito e pela rede que foi destruída pela R..
É necessário definir claramente uma linha de demarcação entre os prédios dos A.A. e da R., que são confinantes e repor no prédio dos A.A. os limites e condições existentes antes do início dos referidos trabalhos de construção civil e ocupação ilegal de parte do seu prédio.
(…)
Devendo, assim, estabelecer-se a linha divisória entre os dois prédios para delimitar perfeitamente ambas as propriedades nos limites em que confinam e de acordo com as áreas corretas de cada um dos prédios com a colocação de marcos perfeitamente visíveis nas estremas destes prédios confinantes evitando as presentes e futuras dúvidas sobre os limites materiais das propriedades, respetivamente dos A.A. e da R. do lado em que confinam.
A SEU TEMPO, FOI PROFERIDO DESPACHO JUDICIAL COM O SEGUINTE TEOR:
“Constata-se que a petição inicial suscita questão do conhecimento oficioso do tribunal que acarreta uma nulidade, nos termos dos arts. 186.º e 196.º CPC, afigurando tratar-se de um caso de ineptidão da petição inicial.
(…) de acordo com o princípio do dispositivo, é sobre o A. que invoca a titularidade de um direito que recai o dever de alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito.
(…) A causa de pedir é consubstanciada tão só pelos factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjetiva alegada pela parte e cabe precisamente ao A. especificar a causa de pedir, ou seja, a fonte desse direito, o facto ou ato de que no seu entender, o direito procede.
A falta de tal alegação, ou seja, a falta de causa de pedir determina a ineptidão da petição inicial e conduz à absolvição da instância, constituindo uma nulidade absoluta (art. 278.º/1 b) CPC).
(…) Resulta da exposição da situação efetuada na petição inicial que os AA. pretenderão, por um lado a demarcação e por outro lado, a reivindicação de uma determinada área deste mesmo prédio, que estará a ser ilicitamente ocupada pela Ré.
Sucede que os AA. em momento algum identificam ou descrevem as concretas áreas que estarão a ser ilicitamente ocupadas pela Ré, limitando-se a dizer, sem mais, que a Ré ocupou áreas do terreno dos AA.
Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05.04.2018, disponível in www.dgsi.pt: “- A ação de reivindicação (…) O pedido é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele. (…) nele se incluindo aquela parcela de terreno e, bem assim a restituir-lhe essa parcela de terreno (pedidos típicos da reivindicação).”
Deste modo verifica-se desde logo que os AA. (…) além de não identificarem a parcela ou parcelas de terreno (localização e áreas) ocupadas ilicitamente pela Ré, ou seja, não estamos perante um caso de alegação deficiente de factos, mas antes uma total ausência da mesma.
Por outro lado e tal como resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.02.2006, disponível in www.dgsi.pt: (…) “2. Sendo complexa a causa de pedir na ação de demarcação consistindo na existência de prédios confinantes, de proprietários distintos e de estremas incertas ou divididas, o autor, nessa ação, terá que alegar factos concretos em ordem a identificar o traçado ou linha divisória entre prédios, ou os pontos por onde deve passar a linha divisória.”
Os AA. não alegam tais factos, verificando-se a tal respeito uma total ausência de alegação factual.
Além do supra referido verifica-se ainda outro vício e que é o da cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, na medida em que os AA. cumulam um pedido de demarcação com um pedido de reivindicação.
Tal como resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.04.2018, disponível in www.dgsi.pt:(…) “ 3- Ocorre ineptidão da petição inicial com fundamento em cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis (…) 8- Ocorre cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis quando o Autor pede a condenação do Réu a reconhecer o seu direito de propriedade sobre determinado prédio e que dele faz parte integrante uma determinada parcela de terreno que alega estar a ser possuída pelo Réu (…) e em cumulação real, pede que se ordene a demarcação entre esse seu prédio e o prédio do Réu, contíguo ao primeiro (pedido típico da demarcação).
9- O vício referido em 8) determina a nulidade insuprível da petição inicial, de conhecimento oficioso, que cumpre ao Tribunal da Relação conhecer, ainda que oficiosamente.”
Face ao exposto e dada a manifesta ineptidão da petição inicial, declaro assim a nulidade de todo o processo, não conhecendo do pedido, e em consequência absolvo a Ré da instância (art. (art.186º/2 a) e c) e art. 278º/1 b) e CPC).

OS AA APELARAM TENDO LAVRADO (EM SÍNTESE) AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
(…)
C). Os A.A. na sua petição inicial pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio urbano identificado nos artºs 3º e 4º deste articulado, tal como ele é configurado no artº 1311º do Código Civil.
D).Os A.A., na presente ação, não se limitam a pedir a colocação de marcos nas estremas do seu prédio e do da Ré, por os seus limites não estarem definidos.
E). A Ré em lugar nenhum da sua contestação, alega a ineptidão da petição inicial ou qualquer outra exceção, limitando-se a impugnar os factos articulados pelos A.A.
F). Nos termos do artº 6º, nº 2 do Código de Processo Civil, a Mª Juíza “a quo” devia providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, com a preocupação de contribuir para a realização efetiva da função processual mediante a emanação da decisão de mérito, o que não fez.
G). Se a Mª Juíza “a quo” entendia que os A.A. na P.I., não identificaram suficientemente a parcela de terreno do seu prédio ocupada ilegalmente pela Ré, deveria tê-los convidado a fazê-lo em obediência à norma legal atrás citada e de acordo com o poder/dever estatuído no artº 590º, nºs 2 a 4 inclusive, do Código de Processo Civil.
H). Por economia processual na sequência lógica do seu primeiro pedido os A.A. pediram que fosse restabelecida a linha divisória até aí existente entre os dois prédios e que se encontrava delimitada por esteios e rede de vedação, fixando-se definitivamente e de forma clara os limites de ambas as propriedades, não vendo aqui qualquer incompatibilidade entre o primeiro pedido e este;
I). Como ensina a melhor doutrina processual e de acordo com os princípios de celeridade e economia processual que subjazem ao Código de Processo Civil em vigor, deve cada processo resolver o máximo possível de litígios;
J). A ação de demarcação tal como a ação de reivindicação, face ao atual quadro legislativo são perfeitamente compatíveis e podem até ser complementares;
K). Apesar da jurisprudência citada pela Mª Juíza “a quo” com a qual fundamentou a sua decisão, também existe jurisprudência em sentido contrário ao do Acórdão do Tribunal de Guimarães por esta citada, nomeadamente o Acórdão da Relação de Coimbra de 10/02/2009 (Pº nº 554/06.8TBAND.C1), onde se escreve que nada obsta a que se cumulem pedidos típicos da ação de reivindicação com a pretensão deduzida com vista à demarcação dos dois prédios confinantes ou contíguos;
L). No entendimento dos Apelantes, não há qualquer motivo substancial ou processual que obste a que numa ação declarativa de condenação sobre a forma de processo comum, sejam apreciados os pedidos que formulam na sua petição inicial, pois não são incompatíveis entre si, nem contraditórios e nem correspondem a formas processuais distintas;
M). A Mª Juíza “a quo” ao julgar a petição inicial inepta, declarando a nulidade de todo o processo, não conhecendo do pedido e em consequência absolvendo a Ré da instância (artº 186º/2 a) e c) e artº 278º/1 b) do C.P.C.), pelos motivos expostos na sentença, violou o disposto nos artigos 6º, nº 2, 555º, 590º, nº 2 a 4 inclusive, todos do C.P.C..
A decisão recorrida deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos presentes autos, convidando-se eventualmente os Apelantes a corrigirem e completarem a petição, se assim for entendido por necessário, com vista à realização da audiência final e obtenção de uma decisão de mérito.
Não houve resposta.
Colhidos os vistos legais nada obsta ao mérito

OBJETO DO RECURSO:
(…)
SABER SE EXISTE (IN)COMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL ENTRE OS PEDIDOS FORMULADOS SIMULTANEAMENTE DE REIVINDICAÇÃO E DE DEMARCAÇÃO.
B- SABER SE O TRIBUNAL RECORRIDO DEVERIA TER CONVIDADO OS AA A CONCRETIZAR A IDENTIFICAÇÃO DA PARCELA DE TERRENO ALEGADAMENTE OCUPADA PELOS RR E PERTENÇA DO PRÉDIO REIVINDICANDO NOS TERMOS DO ARTº 6º, Nº 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

DO MÉRITO DO RECURSO:
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se aqui por reproduzido o teor da factualidade processual supra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

QUANTO À QUESTÃO DE SABER SE EXISTE (IN)COMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL ENTRE OS PEDIDOS FORMULADOS SIMULTANEAMENTE DE REIVINDICAÇÃO E DE DEMARCAÇÃO:
O pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação. É a afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, (nº 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil, diploma, a que doravante pertencem as normas indicadas sem outra menção).
O autor pode deduzir vários pedidos cumulativos contra o réu, desde que, eles sejam entre si substancialmente compatíveis, não se verifiquem as circunstâncias que impedem a coligação (...), de harmonia com a disciplina impressa no nº 1 do artigo 555º.
Para a avaliação da (in)compatibilidade substancial dos pedidos formulados na ação só relevam os pedidos que são formulados em simultâneo. É que o juiz tem de conhecer da totalidade das pretensões assim deduzidas o que já não acontece quando estamos perante pretensões alternativas ou subsidiárias.
Não se coloca, pois, a necessidade deste requisito perante pedidos formulados numa relação de alternatividade ou subsidiariedade.
Os pedidos dizem-se substancialmente incompatíveis quando nos efeitos jurídicos que visam produzir, com a procedência da ação, cada um deles exclua a possibilidade de verificação de cada um dos outros. Em tal caso, há ininteligibilidade da petição. O juiz fica impossibilitado de decidir.
Esta incompatibilidade tanto pode resultar de pedidos que mutuamente se excluam, como de pedidos que assentam em causas de pedir inconciliáveis. Neste sentido Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2º, Coimbra Editora, pág. 389.
No mesmo sentido, o Professor Antunes Varela sustenta que “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis” (Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 246).
São exemplos académicos de pedidos substancialmente incompatíveis, o pedido de anulabilidade do contrato cumulado com o pedido de condenação do réu na prestação contratual, (como se este permanecesse válido) ou o pedido de divórcio cumulado com o pedido de anulação do casamento.
NATUREZA DOS PEDIDOS FORMULADOS NOS AUTOS CUJA INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL FOI DECRETADA NA DECISÃO RECORRIDA:
Os concretos pedidos formulados:
“a) Declarar-se que a herança indivisa aberta por óbito de E… e F… e de que o A. e os restantes irmãos são os únicos e universais herdeiros, é a dona e legitima proprietária do prédio rústico identificado nos artigos 3º e 4º da P.I.;
b) Ordenar-se a demarcação dos limites entre o prédio da herança indivisa acima mencionada e o prédio da R., atentas as estremas de ambas as propriedades, com a colocação de marcos;
c) Condenar-se a R. a desocupar a área do prédio pertencente à identificada herança e de que ilicitamente se apropriou, demolindo as construções aí efetuadas e repondo a área em causa nas condições em que se encontrava antes dos trabalhos de construção civil efetuados pela R.;
Como é consabido a ação de reivindicação vem prevista no artigo 1311º do Código Civil o qual inserido no Livro III, Titulo II, Secção II, que tem por epígrafe “Defesa da Propriedade”.
É uma ação petitória e condenatória. Destina-se à defesa da propriedade e tem por fim obter a restituição da coisa, daquele que contra a vontade e sem autorização do proprietário, é seu possuidor ou detentor.
Essencial à sua caracterização é a presença da dupla finalidade típica da reivindicatio: o reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa (imóvel ou móvel) e a consequente restituição da coisa pelo possuidor ou detentor dela.
Nesta tipologia de ação não há incerteza sobre o direito de propriedade, que é condição do pedido de restituição da coisa.
Os pedidos formulados na petição inicial, sob as alíneas a) e c) são, conforme decorre do exposto, pedidos próprios da ação de reivindicação.
Nem há dissenso sobre esta questão.
Os AA formulam, ainda, sob a alínea b) o pedido de “demarcação dos limites entre o prédio da herança indivisa acima mencionada e o prédio da R., atentas as estremas de ambas as propriedades, com a colocação de marcos.”
As ações de demarcação, têm como pressuposto o domínio. O seu fim específico é o de fazer funcionar o direito, (reconhecido ao proprietário pelo artº. 1353º do Código Civil), de obrigar os donos de prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas dos seus prédios.
Nesta ação não se discute o título, mas apenas os termos em que deve ser feita a medição ou a extensão do prédio de que se é dono.
A demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a um estado de incerteza sobre o traçado da linha divisória entre dois prédios.
“Na ação de demarcação a causa de pedir é complexa e consiste na existência de prédios confinantes pertencentes a donos diferentes e de estremas incertas. O direito de demarcação pressupõe a incerteza ou a dúvida sobre a linha divisória entre prédios confinantes, por falta de marcos ou outros sinais exteriores que indiquem as estremas de cada prédio (cfr. António Carvalho Martins, “A ação de demarcação”, Coimbra Editora, 1988, pág. 24). A incerteza ou indefinição sobre os limites dos prédios tanto pode resultar do desconhecimento sobre os limites dos prédios como do desacordo sobre os mesmos (cfr. acórdãos desta Relação de 13/10/2009, proc. nº. 313/07 e de 16/01/2006, proc. nº. 0554858, apud acórdão do TRG de 05.04.2018 citado na decisão recorrida, todos acessíveis em www.dgsi.pt.).
Em conclusão, se não estão em causa os títulos aquisitivos e há apenas incerteza quanto aos limites de prédios confinantes, entre si, então a ação é de demarcação, mas se o tribunal é convocado a reconhecer o domínio sobre a coisa em litígio com a apreciação do titulo aquisitivo, estamos na presença de uma ação de reivindicação.
Em face do exposto, não subsistem duvidas que, o pedido formulado sob a alínea b) é um pedido de demarcação.
De resto, também não existe dissenso quanto a esta matéria.
O dissenso existe quanto à (in)compatibilidade substancial da formulação simultânea destes pedidos.
CUMPRE, POIS, REAPRECIAR O SEGMENTO DA DECISÃO RECORRIDA QUE DECRETOU A INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL POR INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL DOS PEDIDOS SUB IUDICE.
Como ficou expresso, a reivindicação funda-se na discussão do titulo aquisitivo de um prédio identificado no mesmo titulo e de que o proprietário está desapossado, (sendo que este possuidor ou detentor não tem de ser proprietário de prédio confinante ou doutro), portanto supõe a definição certa, segura e concreta do limite da propriedade reivindicada cujo titulo é discutido.
A demarcação supõe a certeza e indiscutibilidade do titulo de propriedades confinantes, havendo duvidas quanto aos seus limites.
A cumulação de tais pedidos é substancialmente incompatível, pois as causas de pedir em que, estes, assentam são inconciliáveis. Não se pode discutir, sem contradição, a existência do titulo e requerer a restituição da coisa (a qual tem de ser concretamente delimitada, artigo 581º nº 4 do CPC), e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos de Autor e Réu por modo a requerer a demarcação a qual supõe a incerteza dos limites.
Com efeito, enquanto o pedido de demarcação tendo como pressuposto o domínio implica a inexistência de duvidas quanto à propriedade as quais se resumem aos seus limites, os pedidos da reivindicação respeitam à discussão e reconhecimento do próprio domínio da coisa de que se está desapossado.
São, por isso, pedidos decorrentes de causas de pedir inconciliáveis o que determina a incompatibilidade substancial dos mesmos.
Neste sentido decidiu o acórdão deste Tribunal de 25.01.2021, processo 4029/18.4T8STS.P1, in www/dgsi: “O efeito jurídico da procedência do pedido de restituição da parcela de terreno reivindicada pela autora (e do implícito pedido de reconhecimento do direito de propriedade) será o de excluir qualquer necessidade de demarcação, pois tal significa que inexiste incerteza ou indefinição quanto aos limites dos dois prédios confinantes, pressuposto da ação de demarcação. (…) Assim se evidencia a incompatibilidade substancial, não só dos pedidos formulados pela autora, mas também das causas de pedir em que se sustentam.”
Decidiram ainda, para além do acórdão citado na decisão recorrida, pela incompatibilidade substancial do pedido de demarcação com os pedidos de reconhecimento de propriedade e de restituição, nomeadamente, os acórdãos do TRE de 31.10. 2013 pr 98/11.6TBNIS.E1; do TRG, de 02-Jun.-2011 pr 406/09.0TBCMN.G1 e o acórdão desta Relação de 13.07.2021 in pr 500/20.6T8ALB.P1. todos in www.dgsi
É certo, que o Apelante traz à colação o acórdão do TRC DE 10-02-2009 processo 554/06.8TBAND.C1- in www.dgsi cujo sumário consigna que nada obsta à cumulação dos pedidos formulados na ação de reivindicação com a pretensão deduzida com vista à demarcação.
Não alinhamos por esse entendimento como flui do exposto.
EFEITOS PROCESSUAIS DA INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL DOS PEDIDOS FORMULADOS:
A incompatibilidade substancial dos pedidos constitui vício processual declarado no artigo 186º, norma que tem a seguinte redação:
(nº 1) “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
(Nº 2). Diz-se inepta a petição:
a). Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b). Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c). Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”
O artigo 186º/3 trata da sanação do vício da ineptidão. Apesar deste número se referir especificamente à alínea a) aplica-se também à alínea b).
No nº 4 vem fixar-se que: “No caso da alínea c) do nº 2 a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma de processo”
No domínio do atual Código de Processo Civil, decidiram que a cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis é um vício insuprível que gera a ineptidão da petição os acórdãos do TRL de 12/07/2018, Processo: 1706/16.8T8LRS.L1-6; e ainda os Acórdãos desta Relação de 24-01-2019 processo 2804/17.6T8VFR.P1 TRP e de 13-07-2021 processo 500/20.6T8ALB.P1; do TRE de 17.11.2016 processo 575/15.0TBPTM.E1 e de 11-05-2017 processo 74/14.7T8LAG.E1, todos em www.dgsi.
No domínio do anterior código, entenderam de igual modo, nomeadamente, os acórdãos do STJ de 04/08/2008 no processo 08S937, disponível em www.dgsi.pt; Ac. do e do TRE de 31-10-2013 processo 98/11.6TBNIS.E1, todos em www.dgsi.
Divergente desta orientação o acórdão do TRE de 21/5/2020 (1032/19.0T8STR-B.E1) decidiu que a dedução de pedidos substancialmente incompatíveis é sanável, por aplicação do regime vinculativo do dever de gestão processual estabelecido no nº 2 do artigo 6º e nos nº 2 e 3 do artigo 590º. Entendeu-se que a “ a redução teleológica do nº 4 do artigo 186º quando conciliada com a aplicação analógica do artigo 38º do mesmo diploma, admite que nas situações de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, a nulidade não subsista em caso de desistência do pedido ou da instância ou ato de natureza equivalente relativamente a um desses pedidos, pois a escolha de uma única pretensão jurídica compatível faz desaparecer os pressupostos que, inicialmente, conduziriam a uma hipótese de ineptidão da petição inicial, desaparecendo assim, por atividade ulterior corretiva, os fundamentos que determinariam a absolvição da instância”
Este aresto mereceu o comentário do Prof Miguel Teixeira de Sousa in BLOG IPPC com o seguinte teor: “Concorda-se com a possibilidade de sanação da ineptidão da petição inicial decorrente de uma cumulação simples de pedidos substancialmente incompatíveis (cf. art. 186.º, n.º 2, al. c), CPC). O que não se acompanha totalmente é que a forma dessa sanação seja necessariamente realizada através da desistência de um dos pedidos incompatíveis ou da desistência da instância quanto a um deles. Dir-se-á que o mais intuitivo é transformar a cumulação simples inadmissível por incompatibilidade substantiva na cumulação em que esta incompatibilidade não obsta à cumulação de pedidos, que é, como se sabe, a cumulação subsidiária (cf. art, 554.º, n.º 2, CPC) in https://blogippc.blogspot.com/2020/11/jurisprudencia-2020-99.html.
O entendimento deste acórdão bem assim como a posição ainda mais abrangente manifestada pelo Professor Miguel Teixeira de Sousa, a nosso ver, não deverão ser aplicados em sede de recurso perante o Tribunal da Relação, nos casos em que o Autor sustenta a legalidade da cumulação, não adiantando nem subsidiariamente, qualquer disponibilidade para perante o não acolhimento da sua posição desistir de uma das pretensões formuladas.
Sendo certo que a posição defendida no acórdão esbarra ainda com os requisitos da desistência da instância, que nos casos em que a ação é contestada, sempre supõe a aceitação dos RR. (artigo 286º nº 1, por um lado, e por outro lado a desistência do pedido extingue o pedido e como tal forma caso julgado material (artigo 285º nº 1) efeito este que pode ser muito adverso e não querido pelo Autor.
Sem por em causa, que a filosofia do atual Código de Processo Civil se orienta, indiscutivelmente, para o máximo aproveitamento dos atos processuais privilegiando sempre o mérito sobre a forma, numa clara adoção do princípio da economia processual, entendemos que os juízes não devem ir tão longe que mesmo nas situações em que as partes insistem pela admissibilidade legal da cumulação perante os tribunais superiores, decidam determinar ao tribunal recorrido que proceda à notificação dos Autores para fazer escolhas, que perante a decisão já proferida e em discussão, não mostraram disponibilidade processual para fazer.
O dever de gestão processual, impresso no artigo 6º nº 2, tem limites e deve ser adequado aos próprios fins do processo com respeito do principio do dispositivo e do principio da autorresponsabilidade das partes, bem assim como deve ser balizado pela razoabilidade e proporcionalidade da atividade exigida ao juiz.
Da autorresponsabilidade das partes decorre que são as mesmas a suportar as consequências negativas da sua inércia ou omissão, sofrendo uma decisão de sentido desfavorável à sua pretensão.
Nas palavras de Lebre de Freitas Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código 3ª ed Coimbra Editora 2013 pg 181 e ss “ a autorresponsabilidade da parte exprime-se ma consequência negativa (desvantagem ou perda de vantagem) decorrente da omissão do ato”. Por exemplo, face à estatuição do artigo 197º nº 2 “não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa” ou ainda a deserção da instância cominada no artigo 281º nº 1 e 2 para a inobservância do ónus de impulso processual, sendo que nestes casos a lei fixa a desvantagem para a conduta negligente da parte. Sucede que no desenvolvimento da instância podem surgir diversas situações patológicas em que a apreciação de tal conduta caberá ao juiz. A situação em apreço é uma dessas patologias processuais.
Conclui-se que não seria conforme, nomeadamente, ao princípio da autorresponsabilidade das partes que o tribunal de recurso perante o não acolhimento da posição da parte apelante que se limita a sustentar a legalidade da cumulação de pedidos viesse a determinar a sua posterior notificação para desistir de um ou mais pedidos formulados, ou optar pela subsidiariedade.
Donde que concluímos que no caso dos autos se verifica a nulidade de todo o processado por via da procedência da exceção da ineptidão por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis a qual configura exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa e que dá lugar à absolvição do Réu da instância (cfr. art. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. b) do CPC).
Confirmamos, pelos motivos expostos, o entendimento do tribunal recorrido.
Fica prejudicada a apreciação da questão colocada quanto à existência ou não do dever de convite ao aperfeiçoamento na parte decisória da decisão recorrida, em que foi declarada a ausência de causa de pedir, por não ter sido concretamente identificada e limitada a parcela do prédio cuja restituição é pedida (quanto à reivindicação) e bem assim por não ter sido identificado o traçado ou os pontos por onde deveria passar a linha divisória dos prédios (quanto à demarcação).

SEGUE DELIBERAÇÃO:
IMPROCEDE A APELAÇÃO, CONFIRMANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA.
Custas pelos Apelantes.

Porto, 21 de outubro de 2021.
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
Carlos Portela